Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01144/04.5BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/22/2016
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Hélder Vieira
Descritores:RESPONSABILIDADE MÉDICA; MATÉRIA DE FACTO;
DANOS NÃO PATRIMONIAIS; LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Sumário:I — Em sede de recurso jurisdicional e prova testemunhal, não deve a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida ser alterada se a sua reapreciação, designadamente pelo registo audiogravado, não evidencia, em termos de razoabilidade, ter a mesma sido mal julgada na instância a quo, não se apresentando como arbitrária, mas antes racionalmente fundada de acordo com a prova produzida, nem se apresenta irrazoável, mas antes razoável, de acordo com as regras da lógica e da experiência comum.
II — Do teor literal do nº 2 do artigo 496º do Código Civil, decorre que, por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge e aos filhos e, representativamente, a outros descendentes que hajam sucedido a algum filho pré-falecido.
III — Só na falta desta primeira classe de familiares é que os referidos no segundo grupo terão direito a essa indemnização, ou seja, só se não houver cônjuge nem descendentes da vítima é que os ascendentes passarão a ter direito à indemnização.
IV — Provada a existência de danos, mas não se apurando o seu valor, apesar de sobre este ter incidido a produção de prova, deve relegar-se a sua liquidação para execução de sentença, quer se tenha formulado pedido genérico quer específico.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:O Réu Centro Hospitalar de São João, EPE
Recorrido 1:RMPM e Outro(s)...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
I – RELATÓRIO
Recorrentes:
O Réu Centro Hospitalar de São João, EPE
Os Autores RMPM e outros

Vem interposto recurso da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou parcialmente procedente a supra identificada acção administrativa comum e condenou o Hospital Réu “a pagar a cada um dos AA., HFFM; IFFM; IMFMQS, indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 35.000,00 bem assim como ao A., JBFC, indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 30.000,00 acrescidas de juros desde a notificação desta sentença.

O objecto do recurso interposto pelo Centro Hospitalar de São João, EPE, é delimitado pelas seguintes conclusões da respectiva alegação(1):

A. “O presente recurso vem interposto da sentença que condenou o Centro Hospitalar de São João, E.P.E. (adiante “CHSJ”) a pagar a cada um dos Autores HFFM, IFFM e IMFMQS uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 35.000€, bem assim como ao Autor JBFC, uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 30.000€, acrescidas de juros desde a notificação da sentença;

B. O Meritíssimo Juiz a quo errou por completo na decisão recorrida porque fez uma incorrecta apreciação da prova produzida, violando, desta feita o disposto nos artigos 653.º, n.º 2 e 659.º, n.º 3 do CPC, aplicáveis ex vi artigo 140.º do CPTA;

C. A violação das disposições legais referidas em B) radica no facto de o Tribunal Recorrido, apesar de dar por reproduzido na matéria de facto assente o teor dos relatórios periciais juntos aos autos, ter ignorado olimpicamente os mencionados relatórios e se ter negado a fazer uma apreciação crítica das provas;

D. Consequentemente, a sentença recorrida espelha uma desadequada decisão sobre a matéria de facto, que conduziu, por sua vez a um indevida e errada aplicação do direito, vulnerando, por esse motivo, o disposto no artigo 659.º, n.º 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 140.º do CPTA;

E. O erro no julgamento da matéria de facto incide sobre os quesitos 2.º, 3.º, 8.º, 9.º-A, 15.º e 16.º da Base Instrutória (adiante “BI”);

F. A factualidade constante dos quesitos 2.º e 3.º da BI prende-se com o local onde a entubação para ventilação foi efectuada, se no esófago ou na traqueia, sendo que o Tribunal Recorrido concluiu que tinha sido feita no esófago;

G. Este julgamento não é correcto porquanto nenhuma das testemunhas em cujos depoimentos o Tribunal alicerçou o julgamento destes quesitos menciona que a entubação foi realizada no esófago, ao que acresce que os peritos que produziram o Relatório Pericial junto aos autos (fls. 462 a 464) consideram que os registos da auscultação pulmonar da vítima revelam que a entubação foi feita na traqueia, entendimento que foi corroborado pela Perita consultada pela Inspecção-Geral de Saúde (Relatório Pericial fls. 453 a 461) e ainda, segundo a única testemunha que esteve presente desde o início da cesariana – o Enf. FRJTR –, se a entubação tivesse sido feita na posição esofágica, a vítima não teria tido saturações tão boas durante tempo, nem os sinais vitais teriam aguentado tanto tempo [depoimento de MACAF com início de gravação às 9:30:02; depoimento de MFA com início de gravação às 11:13:59; depoimento de JMRC com início de gravação às 11:48:23 e depoimento de FRJTR com início de gravação às 12:21:40];

H. A decisão da matéria de facto quanto ao quesito 8.º da BI enferma de erro de julgamento ao considerá-lo “Não provado”. Neste quesito questiona-se se a constatação do tubo em posição esofágica poderia ficar a dever-se às manobras de massagens cardíacas;

I. Uma vez que as anestesistas da equipa B afirmaram que quando a posição do tubo foi verificada já tinham sido iniciadas as massagens cardíacas e porque resulta claro do Relatório Pericial junto aos autos (fls 462 a 464) que a constatação do tubo em posição esofágica pode resultar das manobras de ressuscitação com massagem cardíaca externa, o Tribunal a quo errou ao dar como “Não provado” o quesito 8.º [depoimento de MACAF com início de gravação às 9:30:02; depoimento de MFA com início de gravação às 11:13:59];

J. No quesito 9.º-A da BI, julgado “Não provado”, procura-se apurar se o procedimento protocolar assumido em situação de necessidade de ressuscitação face à iminência de paragem cardíaca é pedir auxílio;

K. A decisão do Tribunal Recorrido relativamente ao quesito 9.º-A da BI é incompreensível porquanto, não só as duas anestesistas da equipa B foram unânimes em responder que nas situações descritas o procedimento a adoptar é pedir ajuda, como também o Relatório Pericial junto aos autos (fls. 453 a 461) refere que não era de prever o desencadeamento de um bronco espasmo tão intenso e resistente que justificasse um pedido antecipado de ajuda [depoimento de MACAF com início de gravação às 9:30:02; depoimento de MFA com início de gravação às 11:13:59];

L. O quesito 15.º da BI, julgado “Não provado”, versava sobre a possibilidade de o bronco espasmo ter origem numa conjugação de factores, tais como, tabagismo, estado gravídico, e emergência da intervenção;

M. A decisão proferida sobre este quesito é, outrossim, errada porque a prova produzida conduz exactamente ao entendimento contrário, quer o Relatório Pericial (fls. 458), quer o depoimento de uma das médicas anestesistas do qual resulta inequivocamente que o tabagismo e o edema externo característico da gravidez podem desencadear um bronco espasmo [depoimento de MACAF com início de gravação às 9:30:02];

N. No quesito 16.º da BI, julgado “Não provado”, onde se procura averiguar se era previsível o desencadear de um bronco espasmo tão intenso de forma a justificar um pedido antecipado de ajuda, o Relatório Pericial (fls. 458) é inequívoco conduzindo a uma resposta no sentido contrário ao que veio a ser julgado;

O. Os erros cometidos no julgamento da matéria de facto, em franca violação do disposto no artigo 659.º, n.º 2 do CPC, conduziram o Tribunal a quo a fazer uma deficiente e equívoca aplicação do direito no apuramento da verificação de dois dos requisitos da responsabilidade civil extracontratual: a culpa e a ilicitude, conforme disposto no artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48.051, de 21 de Novembro de 1967;

P. Inexiste culpa dos agentes do CHSJ porque, face à factualidade apurada por via da prova testemunhal produzida e dos relatórios periciais juntos aos autos, ficou demonstrado que não existiu qualquer desvio ou desconformidade entre o seu comportamento e a “conduta padrão” à luz da qual deve ser aferida a existência de culpa como disposto no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48.051 e do artigo 487.º do Código Civil;

Q. Inexiste outrossim ilicitude. O Tribunal a quo errou ao concluir pela violação da legis artis por parte dos agentes do CHSJ, quer no momento da indução da anestesia, quer nos cuidados prestados entre a anestesia e a paragem cardíaca, quer os prestados na sequência da paragem cardíaca, porque não violaram qualquer norma técnica ou protocolar que previsse a adopção de procedimentos diferentes da conduta efectivamente seguida por eles;

R. Inexistindo culpa e inexistindo ilicitude, o Tribunal Recorrido ao condenar o Recorrente ao pagamento de uma indemnização violou o artigo 2.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48.051 que pressupõe a verificação cumulativa dos pressupostos de responsabilidade civil extracontratual de pessoas colectivas públicas: a culpa, a ilicitude; o facto danoso e o nexo de causalidade.

POR FIM,

S. Na eventualidade de improceder a argumentação acima exposta pelo Recorrente no que ao julgamento da matéria de facto e à aplicação do direito respeita, que conduzem, na sua convicção, à improcedência do pedido, o certo é que, ainda que assim não se entenda, o Tribunal a quo errou na aplicação que fez do art.º 496.º, n.º 2, do Código Civil ao atribuir uma indemnização ao pai da vítima, o Autor JBFC;

T. Por força do “princípio do chamamento sucessivo” contido nesse preceito legal, o pai da vítima só deveria ser chamado se não existissem descendentes, conforme resulta da expressão contida no art.º 496.º, n.º 2 “na falta destes”, ao fazer a passagem do 1.º grupo para o 2.º grupo de sujeitos beneficiários da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte.

Termos em que, e nos mais de direito que V.ªs Ex.ªs doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a douta sentença e, em conformidade julgando a presente acção totalmente improcedente, com as legais consequências, ou, caso assim não se entenda, revogar a sentença na parte em que atribui uma indemnização ao pai da vítima, o autor JBFC, com o que V.Exªs farão sã e costumeira JUSTIÇA!”

O objecto do recurso interposto pelos Autores é delimitado pelas seguintes conclusões da respectiva alegação:

I. O presente recurso versa, apenas e só, sobre a parte da decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou improcedente a alínea d) do pedido formulado na Petição Inicial, a saber:

d) ao A. RMPM, na qualidade de legal dos menores HFFM e IFFM, a quantia de 128.080,00 euros, acrescida de juros legais vincendos desde a sua citação até efectivo e integral pagamento;

(valor resultante do requerimento de aperfeiçoamento junto aos autos em 02/10/2006)

II. Conformando-se os Recorrentes com tudo o mais decidido na sentença ora em crise.

III. O julgador fundamentou a improcedência do pedido formulado na alínea d), da seguinte forma:

“…

Também quanto às demais despesas suportadas pelo A., RMPM, em representação dos seus filhos menores, resultantes da infeliz ocorrência com a sua mãe, não se logrou provar aquilo que vinha alegado a tal título.

Na verdade, a factualidade elencada relativa às concretas despesas que o A. RMPM, pai das duas crianças menores filhas de FCFS, teria com a habitação/ educação/saúde/alimentação /vestuário das mesmas não foi alcançada a sua prova.

…”

IV. Encontramos nos autos factos alegados e provados que permitiriam julgar de forma diferente, nomeadamente, no Ponto III da douta sentença, onde se pode ler:

Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, resultam provados os seguintes factos:

5) RMPM é pai dos dois filhos menores de FCFS: o HFFM e a IFFM.

7) HFFM nasceu em 27/01/1998.

8) IFFM nasceu em 04/07/2001.

36) Desde o dia 04/07/2001, a FCFS esteve sempre internada no Hospital de S. João, tendo sido transferida, por decisão do próprio hospital, para uma unidade hospitalar em Lousada.

42) A FCFS faleceu no dia 28/03/2009, com 44 anos.

59) O filho da FCFS, HFFM, desde o dia 04/07/2001, vive exclusivamente aos cuidados do pai, aqui autor, RMPM.

61) O filho, HFFM, desde o seu nascimento, e até à data de ocorrência dos factos em apreço, sempre viveu na companhia da FCFS.

70) Com o filho, HFFM, o pai tem despesas mensais.

71) Com a filha, IFFM, o pai tem despesas mensais.

…” (Sublinhado nosso)

Posto isto,

V. Importa considerar que a FCFS para os alimentos dos seus filhos menores até 04/07/2001, passado depois o Recorrente a suportar as despesas com habitação/educação/saúde/alimentação/vestuário com os seus filhos menores HFFM e IFFM.

VI. Razão pela qual, peticionou na qualidade de legal dos menores HFFM e IFFM, a condenação do Réu no pagamento da quantia de 128.080,00 euros, acrescida de juros legais vincendos desde a sua citação até efectivo e integral pagamento.

VII. Ficou provado que efetivamente o Recorrente tem despesas mensais com os filhos HFFM e IFFM, mas foi julgado improcedente este pedido por entender o Julgador que o Recorrente não provou qual o montante concreto dessas despesas.

Ora,

VIII. Os pressupostos para aplicação do art. 661º nº 2, do CPC, estão preenchidos e aplica-se ao caso concreto.

IX. O Recorrente deduziu um pedido específico, concreto, e não se tendo logrado fixar com precisão a extensão das despesas, deveria poder fazê-lo em liquidação em execução de sentença.

X. O art. 569º, do CC, possibilita ao lesado a possibilidade de deduzir pedidos genéricos, a concretizar, posteriormente, razão pela qual se impõe, no caso vertente, a aplicação do art. 661º nº 2, do CPC.

XI. Neste sentido, tem decidido a jurisprudência que consideramos dominante e mais recente, como o Ac. do STJ de 18-4-2006 (in www.dgsi.pt/jstj,nsf/954 ) onde expressamente se refere em sumário que “a relegação para liquidação em execução de sentença de indemnização deduzida pelos réus na sua reconvenção, é legalmente possível, apesar de terem formulado um pedido líquido e não terem conseguido provar o montante exato dessa indemnização”.

XII. No mesmo sentido decidiram, entre outros, os Acs. do STJ de 25-10-2005 (in www.dgsi.pt/jstj,nsf/954 ), de 29-1-98 ( BMJ, 473º, 445), de 3-12-98 ( BMJ, 482º, 179).

XIII. Ainda a este propósito entendemos sublinhar o que sobre a questão se referiu no Acórdão do STJ de 29/01/1998 já acima referenciado: “A mais elementar razão de sã justiça, de equidade, veda a solução de se absolver o réu apesar de demonstrada a realidade da sua obrigação; mas também se revela inadmissível, intolerável que o juiz profira condenação à toa. Por isso o legislador ditou a regra da condenação no que se liquidar em execução de sentença – art. 661º nº 2 do Código de Processo Civil -“.

XIV. Assim, deveria o Tribunal a quo ter julgado procedente o pedido formulado na alínea d), condenando o Recorrido no pagamento na quantia a liquidar em execução de sentença.

Assim,

XV. Atento tudo o supra exposto, deve o presente recurso levar provimento e ser alterada a decisão proferida em 1ª Instância, no que ao pedido formulado na alínea d) diz respeito e, em consequência, ser julgado procedente, condenando-se o Recorrido no pagamento em quantia a liquidar em execução de sentença.


* * *

TERMOS EM QUE, Deve o presente recurso ter provimento nos moldes em que vêm as alegações formuladas e só assim se fará Inteira e sã Justiça”.

Os Recorridos apresentaram as respectivas contra-alegações, em termos que se dão por reproduzidos.

O Ministério Público, notificado ao abrigo do disposto no artº 146º, nº 1, do CPTA, não se pronunciou.

As questões suscitadas(2) e a decidir(3), se a tal nada obstar, resumem-se em determinar o seguinte:

— Quanto ao recurso interposto pelo Réu Hospital, se a sentença sob recurso errou (i) no julgamento da matéria de facto contida nos quesitos 2º, 3º, 8º, 9º-A, 15º e 16º da base instrutória; (ii) no julgamento de direito quanto aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, ilicitude e culpa; (iii) subsidiariamente, saber se a decisão recorrida errou na aplicação do artigo 496º, nº 2, do Código Civil, ao atribuir uma indemnização ao pai da vítima, JBFC.

Quanto ao recurso interposto pelos Autores, se a decisão recorrida errou na apreciação do pedido formulado na alínea d) do petitório, em face da atinente matéria de facto assente.

Cumpre decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS ASSENTES NA DECISÃO RECORRIDA

A matéria de facto fixada pela instância a quo é a seguinte:

1) FMSF é irmã de FCFS e filha de JBFC.

2) FMSF foi nomeada tutora de FCFS, por haver sido decretada a sua interdição por anomalia psíquica.

3) O companheiro de FCFS, RMPM, foi nomeado para exercer o cargo de produtor, integrando o conselho de família.

4) Em 29/03/2006, por decisão judicial, foi alterada a tutela determinada, tendo sido nomeado, em substituição da tutora removida, RMPM na qualidade de tutor e IMFMQS como protutor.

5) RMPM é pai dos dois filhos menores de FCFS: o HFFM e a IFFM.

6) IMFMQS é o filho maior de FCFS.

7) HFFM nasceu em 27/01/1998.

8) IFFM nasceu em 04/07/2001.

9) JBFC é o pai de FCFS, integrando o conselho de família.

10) FCFS nasceu em 24/03/1965.

11) No dia 4 de Julho de 2001, cerca das 4.55 horas, a FCFS deu entrada na urgência do Hospital de S. João, grávida de 32 semanas, com hemorragias vaginais.

12) Foi internada neste hospital, tendo sido encaminhada para o bloco operatório de obstetrícia, a fim de ser submetida a uma intervenção cirúrgica (cesariana).

13) Nesta operação intervieram o médico obstetra, Dr. DMGAC e a médica anestesista, Dra. AAAM.

14) Antes do internamento no Hospital de S. João, a FCFS deslocava-se aos serviços de consultas externas do mesmo uma vez por mês e, semanalmente, às consultas de hematologia.

15) No circunstancialismo descrito em 12) e 13), a médica, Dra. AAAM, efectuou à FCFS um exame prévio de anestesiologia, com recolha de antecedentes pessoais, tendo resultado que a doente não tinha antecedentes anestésicos, mas hábitos tabágicos acentuados, e apresentava uma oscultação cardio-pulmonar aparentemente normal.

16) As 5.40 horas, pela médica, Dra. AAAM, iniciou-se a indução anestésica.

17) A cirurgia iniciou-se cerca das 5.40 horas.

18) Às 5.45 horas é extraído o recém-nascido, com índices de APGAR 6/8, aos 1.0 e 5.° minutos.

19) Na cesariana, a FCFS registou saturação baixa de 02, tendo tal facto sido comunicado à médica anestesista.

20) Em face do facto antecedente, a equipa cirúrgica tentou finalizar rapidamente a intervenção.

21) Ao suturar a aponevrose, o cirurgião suspendeu, temporariamente, a intervenção para que se prestasse assistência de reanimação à doente.

22) Nesta sequência, foram administrados 200mg de hidrocortisona e aminofilina 240 mg IV.

23) Mantendo o bronco espasmo, começa a saturação de 02 a baixar para valores de cerca dos 60%, acompanhada de hipotensão marcada e bradicardia ÷/-. 35 bpm.

24) São administradas atropina 0,5+0,5+0,5 mg IV + adrenalina 1+1 mg IV.

25) Às 6.12 horas, chegaram ao bloco de obstetrícia as médicas Dra. MFA e Dra. MACAF, encontrando a FCFS em paragem cardiorespiratária, cianosada e o monitor com o traçado electrocardiográfíco em assistolia.

26) A médica, Dra. AAAM, informou estas duas médicas que se tratava de uma situação de bronco espasmo grave aquando da intubação e hipoxia progressiva agravada de paragem cardíaca ocorrida às 6.12 horas.

27) Nesse momento, estas médicas procederam, de imediato, a massagem cardíaca externa contínua, com administração de atropina, adrenalina, gluconato de cálcio, bicarbonato de sódio, tendo revisto a via aérea com constatação de tubo em posição esofágica, sendo, de imediato, colocado em posição endotraqueal e efectuada ventilação com oxigénio a 130%.

28) Com estes actos médicos, ao fim de cerca de 5 minutos, foi recuperado o ritmo sinusal da FCFS.

29) Efectuado ECG de 12 derivações, revelou isquemia global do miocárdio.

30) A cirurgia foi, então, terminada e a FCFS ficou hemodinamicamente estável em ventilação controlada na UCIPU.

31) Devido ao período de tempo em que esteve em paragem cardíaca, cerca de 7 minutos, sofreu a FCFS sequelas a nível neurológico.

32) FCFS encontrava-se, desde então, em coma vigil, com tetraplegia e tetraispasticidade, sem qualquer possibilidade de recuperação.

33) Na sequência desta intervenção cirúrgica, a FCFS ficou a padecer de uma incapacidade total.

34) De tal modo, que dependia totalmente de terceiros para sobreviver, que eram, necessariamente, médicos e enfermeiros que, devido ao estado de coma vigil, tinham que prestar assistência médica constantemente tacto admitido por acordo das partes.

35) Razão pela qual foi de todo, impossível a FCFS sobreviver fora de uma instituição hospitalar ou similar.

36) Desde o dia 04/07/2001, a FCFS esteve sempre internada no Hospital de S. João, tendo sido transferida, por decisão do próprio hospital, para uma unidade hospitalar em Lousada.

37) O internamento da FCFS tinha custos que rondavam os €4.500,00 mensais, suportados pela Hospital de S. João.

38) A médica, Dra. AAAM, foi a assistente hospitalar de anestesiologia do réu que naquele dia, 04/07/2001, se encontrava de serviço no bloco operatório, tendo, por essa via, assistida directamente a FCFS como médica anestesista.

39) Em 25/01/2003, foi emitido parecer pela Direcção do Colégio da Especialidade de Anestesiologia a pedido da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, sobre o processo apresentado pela Dra. AAAM.

40) Foi instaurado, pela Inspecção-Geral de Saúde, “Processo de inquérito a factos relacionados com a assistência médica prestada a FCFS” tendo sido proferido, em 27/10/2003, despacho de arquivamento, com base no Relatório Final elaborado pelo Instrutor.

41) Foi instaurado, no D.I.A.P. do Porto, o inquérito n.° 35102.9 TDPRT-0100 contra a Dra. AAAM e outros no âmbito do qual foi proferido, em 21/11/2003, despacho de arquivamento pelo Procurador da República.

42) A FCFS faleceu no dia 28/03/2009, com 44 anos.

43) A FCFS faleceu no estado de solteira, sucedendo-lhe como únicos herdeiros os seus filhos: JMFQS, HFFM e IFFM.

44) Na sequência do falecimento de FCFS foi elaborado Relatório de Autópsia Médico-Legal, do qual consta:

“ (...) J. CONCLUSÕES 1.- A informação social recolhida, o resultado dos exames complementares de diagnóstico solicitados e os achados necrópsicos permitem afirmar que a morte de FCFS foi devida a brocopneumonia de aspiração. “RELATÓRIO ANÁTOMO-PATOLÓGICO (...) Diagnóstico: Broncopneumonia de aspiração. Enfarte cerebral antigo”.

45) No circunstancialismo descrito em 16), a médica, Dra. AAAM, procedeu à introdução do laringoscópio, visualizando as cordas vocais, com entubação esofágica.

46) Na auscultação, a FCFS apresentava bronco espasmo marcado, com sibilos em ambos os campos pulmonares, elevada resistência à ventilação manual e valores de ETCO2 de 2&30 mmHg.

47) Foi pedido auxílio às equipas de ressuscitação intra-hospitalar, Dr. JMRC, e à equipa B do serviço de urgência de anestesia, Dra. MFA e Dra. MACAF.

48) O Dr. JMRC, da equipa de ressuscitação, na sequência da sua chamada, procedeu à auscultação pulmonar da FCFS, tendo constatado a presença de sons respiratórios diminuídos bilateralmente.

49) Só em caso de iminente paragem cardíaca se justifica a intervenção da equipa de ressuscitação.

50) Entre as 5.45 horas e as 6.12 horas, não foi efectuada qualquer massagem cardíaca externa continua à FCFS.

51) A FCFS não recuperou, em tempo útil, o ritmo sinusal.

52) Tendo ocorrido isquemia global do miocárdio.

53) Entre as 5.45 horas e as 6.10 horas, a Dra. AAAM, avançou com algumas manobras protocolares de reanimação farmacológica.

54) A continuada baixa de 02 é uma das causas de paragem cardíaca.

55) A FCFS ficou com incapacidade total e permanente.

56) Apesar do coma vigil em que se encontrava, a FCFS tinha sentimentos e percepção do que a rodeava, nomeadamente, dores e forte desgosto por se encontrar em semelhante estado.

57) De tal modo, que chorava, embora esporadicamente, e tinha o rosto marcado pelo seu enorme e patente sofrimento.

58) Era sensível ao contacto e à dor, reagindo instintivamente a qualquer tipo de contacto (denominado coma reactivo).

59) O filho da FCFS, HFFM, desde o dia 04/07/2001, vive exclusivamente aos cuidados do pai, aqui autor, RMPM.

60) Os filhos menores da FCFS não compreendem a situação da sua mãe, nem a razão por que estão privados da sua companhia.

61) O filho, HFFM, desde o seu nascimento, e até à data de ocorrência dos factos em apreço, sempre viveu na companhia da FCFS.

62) Até 04/07/2001, o filho, HFFM, era uma criança alegre e descontraída.

63) Desde essa data, passou a ter comportamentos que transmitem profunda tristeza, desespero e uma enorme revolta, perguntando incessantemente pela mãe e, muito principalmente, porque não regressa a mãe a casa.

64) Situação emocional que se agravou após a morte da sua mãe.

65) Sem que, até hoje, compreenda a situação que motivou a morte da sua mãe e a razão pela qual se viu privado da sua companhia.

66) A FCFS era uma mulher activa e empreendedora que contribuía para os alimentos dos seus filhos.

67) Também o filho, agora maior, JMFQS, vivia com a FCFS.

68) O estado em que a mãe ficou abalou-o sobremaneira, ao ponto de o levar a isolar-se de tudo o que o rodeava, tornando-se um jovem deprimido, solitário e sem grande vontade de lutar, uma vez que sente a falta da sua mãe.

69) Situação agravada com a morte da sua mãe.

70) Com o filho, HFFM, o pai tem despesas mensais.

71) Com a filha, IFFM, o pai tem despesas mensais.

72) Pelas 6hl0m, o enfermeiro FRJTR chamou as médicas, Dra. MFA e Dra. MACAF, elementos da equipa B do serviço de urgência, apelando ajuda para a situação de paragem cardiorespiratória da FCFS.

73) A morte da FCFS foi consequência directa das lesões de que ficou a padecer, decorrentes da cesariana.

74) A FCFS era uma mulher com muita alegria de viver e bastantes sonhos e projectos de vida.

75) Era muito activa, empreendedora, demonstrando um grande dinamismo.

II.2 – DO MÉRITO DO RECURSO

Vertidos os termos da causa e a posição das partes, passamos a apreciar cada uma das questões a decidir, já acima elencadas.

II.2.1. Recurso interposto pelo Réu Hospital de São João, EPE.

II.2.1.1. — Da matéria de facto contida nos quesitos 2º, 3º, 8º, 9º-A, 15º e 16º da base instrutória.

O recorrente invoca erro de julgamento da matéria de facto assente em primeira instância em resposta aos quesitos 2º, 3º, 8º, 9º-A, 15º e 16º da base instrutória.

Cumpre apreciar, tendo presente o disposto no artigo 712º do CPC1961 (actual artigo 662º do CPC2013), quanto à modificabilidade da decisão de facto, aqui aplicável (artigo 140º do CPTA).

O Supremo Tribunal Administrativo tem pacificamente firmado uma linha jurisprudencial — cfr. acórdãos, entre outros, de 19-10-2005, processo nº 394/05; de 19-11-2008, processo nº 601/07; de 02-06-2010, processo nº 0161/10; de 21-09-2010, processo nº 01010/09 — da qual se retira o princípio de que, em sede de recurso jurisdicional e prova testemunhal, só deve ser alterada a matéria de facto em que assenta a decisão recorrida se a sua reapreciação, designadamente, pelo registo audiogravado, evidenciar, em termos de razoabilidade, ter sido mal julgada na instância a quo, ou seja, deve reservar-se as alterações da mesma para os casos em que ela se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que seja seguro, de acordo com as regras da lógica ou da experiência comum, que a decisão não é razoável.

Na verdade, e cita-se o sumariado no último dos identificados acórdãos, “o tribunal ad quem deve ser particularmente cuidadoso no uso dos poderes de reapreciação da decisão de facto, ao abrigo do artº 712º do CPC, tendo em conta o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal a quo artº 655º, nº 1, do CPC e que é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão da 1ª instância”, sendo certo que a mera audiogravação da prova é insusceptível de fornecer todos os elementos que, no sistema da oralidade e segundo o princípio da imediação, foram directamente percepcionados pelo julgador a quo e integraram a sua convicção sobre a credibilidade do testemunho.

Como defende Antunes Varela, no Manual de Processo Civil, 2ª Edição, pág. 657, «Esse contacto directo, imediato, principalmente entre o juiz e a testemunha, permite ao responsável pelo julgamento captar uma série valiosa de elementos (através do que pode perguntar, observar e depreender do depoimento, da pessoa e das reacções do inquirido) sobre a realidade dos factos que a mera leitura do relato escrito do depoimento não pode facultar».

Vejamos, ponto por ponto.

Entende o Recorrente que o Tribunal a quo assentou a sua convicção única e exclusivamente nos depoimentos das testemunhas MACAF, MFA e JMRC, médicos.

Mas tal alegação revela desacerto com o teor da atinente fundamentação exarada na audiência de julgamento que teve lugar no dia 02-05-2013, aquando da decisão sobre a matéria de facto. Na verdade, da mesma consta, designadamente, o seguinte:

A formação da convicção do Tribunal acerca de cada facto baseou-se numa apreciação crítica de toda a prova produzida, isto é, dos vários depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento à matéria a que foram indicadas, com relevo a que tange à prova testemunhal, à parte dos depoimentos em que as testemunhas mostraram ter um conhecimento directo dos factos, depondo com imparcialidade e isenção, em conjugação com toda a prova documental junta aos autos bem assim como com a documentação constante do administrativo apresentado pelo Hospital Réu.

Foram especialmente relevantes para a formulação das respostas os depoimentos das médicas anestesistas Dra. MACAF e Dra. MFA, em exercício de funções no Hospital Réu à data dos factos e que integravam a equipa de urgência quando lhes foi solicitada ajuda para se dirigirem ao Bloco de Obstetrícia para prestar auxilio à FCFS, tendo a Dra. MACAF referido que foi ver se estava tubo bem com a via aérea e constatou que o tubo não estava bem posicionado, tendo colocado o tubo na traqueia, altura em que a Dra. MFA já tinha iniciado manobras de reanimação, através de massagem cardíaca. Mais referiu a Dra. MACAF que ventilou a doente manualmente e ao fim de algum tempo de massagem cardíaca e de serem ministrados fármacos, a doente começou a reagir tendo retomado o ritmo cardíaco.

Muito relevante, também, para formar a convicção do tribunal foi o depoimento do médico de medicina interna, Dr. JMRC que, à data dos factos, exercia funções no Hospital Réu, nomeadamente, na equipa de reanimação que foi chamada para prestar auxílio à FCFS, tendo o mesmo referido que a doente teve uma paragem cardíaca; que quando chegou ao bloco já se encontravam as anestesistas Dra. MACAF e Dra. MFA; que foi substituído/ recolocado o tubo; que a doente sofreu um espasmo brônquico que levou a saturação do oxigénio e diminuição cardíaca.

Foram também ouvidos o Dr. DMGAC, médico de obstetrícia/ ginecologia no Hospital Réu, que recebeu a Autora nos serviços de urgência, encaminhando-a posteriormente para o Bloco Operatório para efectuar uma cesariana com urgência bem assim como o Dr. BSP, médico obstetra que em 2001 exercia a função de Director de Serviço no Réu, tendo nessa data proferido um despacho informativo a mencionar que deveria ser o serviço de anestesia a fazer o inquérito acerca dos factos constantes nos autos. Os depoimentos destas duas testemunhas foram importantes para esclarecer que foi o Dr. DMGAC e não o Dr. BSP que efectuou a cesariana à FCFS e, em função disso, ter sido determinada, com o acordo das partes, a correcção do teor da alínea M) da MA, conforme melhor consta da acta da audiência de julgamento.

No sentido de esclarecer o que ocorreu no bloco operatório no dia 4/7/2001, no decurso da cesariana feita à FCFS foi da máxima relevância o depoimento de FRJTR, enfermeiro obstetra no Hospital Réu que, na data dos factos, exercia a função de enfermeiro no Operatório de Obstetrícia, tendo o mesmo referido que primeiro chamou anestesistas, Dra. MFA e Dra. MACAF quando a frequência cardíaca da doente chegou a um ponto em que a paragem respiratória era iminente e, depois, accionou a Linha Vida, destinada a situações de paragens cardiorespiratórias.

(…)

Refira-se ainda que as respostas negativas dadas aos itens 5° a 8°; 11° a 16°; 26°; 27°; 39° e 48° resultam do facto de não ter sido produzida qualquer prova sobre tal factualidade e que as respostas relativas aos itens 3º; 19º e 20º resultam do facto da prova produzida sobre tal matéria não ter sido de molde a convencer o tribunal quanto à sua ocorrência, nos exactos termos descritos em cada um dos referidos itens.”.

Portanto, não só os depoimentos das testemunhas médicos, como também do Enfermeiro FRJTR (cujo depoimento foi considerado de máxima relevância), como, ainda, os documentos juntos aos autos e o processo administrativo junto pelo Réu, fundaram a convicção do Tribunal a quo.

Vejamos a matéria, com maior detalhe, tendo presentes os documentos juntos aos autos pelas partes e o depoimento das testemunhas, ouvida integralmente a gravação de cada um dos depoimentos.

O doc. 10 junto com a petição inicial verte o relatório sobre a doente FCFS, dirigido ao Prof. Doutor, Director do Serviço de Anestesia do Hospital de S. João, subscrito pela Drª AAAM.

Neste relatório é introduzido o relato da ocorrência do broncoespasmo, com elevada resistência à ventilação manual.

Resulta do relatório da médica responsável pela situação de anestesia na concreta situação, que foram ministrados 200 mg de hidrocortisona e aminofilia 240 mg IV e feita a revisão da colocação do tubo endotraqueal através de laringoscopia.

No entanto, ainda segundo o relatório, o broncoespasmo mantém-se, o que significa que, nessa lógica, não terá reagido aos medicamentos administrados, e começa a SatO2 a baixar para valores cerca dos 60%, acompanhada de hipotensão marcada e bradicardia +- 35 bpm.

De seguida, a Drª AAAM afirma — o relatório está elaborado na primeira pessoa: “Peço auxílio de imediato às equipas de ressuscitação intrahospitalar (Dr. JMRC) e equipa de urgência de anestesia (Drª MACAF e Drª MFA)”.

Pelo depoimento das testemunhas, designadamente a Drª MACAF, ficamos a saber que o pedido de auxílio, telefónico, foi efectuado pelo enfermeiro FRJTR; pelo depoimento da Drª MFA sabemos que a chamada foi efectuada por um enfermeiro; na verdade, do depoimento do enfermeiro FRJTR resulta que, sem consultar os médicos presentes e após falar com outro seu colega enfermeiro, foi ele quem decidiu pedir, e pediu telefonicamente, auxílio às referidas equipas.

É nossa convicção que a referida afirmação que a Drª AAAM produz no seu relatório, quanto à iniciativa do pedido de auxílio, não corresponde ao que efectivamente ocorreu.

De seguida, naquele relatório exarou-se: “9º - São administradas atropina 0,5+0,5+0,5 mg IV + adrenalina 1+1 mg IV compareceram as equipas do Reanima e Anestesia. A doente faz paragem cardíaca”.

Do ponto de vista sequencial, é diverso o que consta do relatório de ocorrência elaborado pelas Drª MACAF e Drª MFA, equipa da urgência de anestesia. Referem as mesmas que “À chegada de ambas ao referido Bloco de Obstetrícia, encontraram a cesariana a decorrer” e que “A parturiente encontrava-se cianosada e no monitor o traçado electrocardiográfico em assistolia”. Isto significa que, à sua chegada, encontraram já ausência de batidas cardíacas, com a parturiente a apresentar características da cianose, o que se mostra compatível com a situação descrita, pela diminuição do teor de oxigénio no sangue.

Já o relatório do Colégio da Especialidade de Anestesiologia junto pela médica anestesiologista Drª AAAM aos autos de inquérito, processo nº 12/02-I, realizado pela Inspecção-Geral de Saúde (fls. 454 a 464 do processo em suporte de papel), compatibiliza as duas versões, afirmando que “A resposta ao pedido de auxílio foi rápida, coincidindo a paragem cardíaca com a chegada ao Bloco Operatório das duas equipas (Reanimação e Anestesiologia)”.

O relatório da Drª AAAM refere, de seguida: “Iniciada a massagem cardíaca, feito de novo laringoscopia e nova reintubação endotraqueal (…)”.

Do referido parecer do Colégio da Especialidade de Anestesiologia consta, nesta parte: “As Drªs MFA e MACAF (equipa de Anestesia) encontram a doente em assistolia, revêem os eléctrodos, avançam para a medicação adequada à nova situação e procedem à massagem cardíaca. A constatação da posição do tubo fora da laringe é de admitir no contexto das manobras de ressuscitação com massagem cardíaca externa.”. (nossa ênfase gráfica).

No entanto, o relatório da ocorrência apresentado pelas Drª MACAF e Drª MFA refere o episódio em termos tão diversos quão relevantes e cita-se: “(…) é revista a via aérea com a constatação de tubo em posição esofágica, que é, de imediato colocado em posição endotraqueal e efectuada ventilação com oxigénio a 100%” (nossa ênfase gráfica).

Há, pois, uma fundamental diferença entre a posição do tubo “fora da laringe” — numa formulação tão ampla quão indefinida — e o que é relatado pelas próprias médicas socorristas, no seu relatório, ou seja, de que constataram que o tubo estava em posição esofágica, facto bem expresso no relatório (e confirmado pelos seus depoimentos), mas ignorado posteriormente, tanto pelo Colégio da Especialidade como pela Inspecção-Geral de Saúde, passando de “posição esofágica” para “tubo fora da laringe”.

E este é um ponto igualmente fundamental.

Vejamos o depoimento do Enfermeiro FRJTR.

Do respectivo registo áudio resulta evidente que se encontra sob grande tensão no momento do depoimento, o que foi até apontado pela Mª Juiz a quo, denotando grande desconforto na abordagem de questões que implicassem qualquer grau de apreciação, passada ou presente, dos actos praticados pelos médicos, maxime pela médica anestesista, Drª AAAM.

Afirma e reitera que é enfermeiro e que não pode fazer qualquer avaliação relativa aos actos médicos.

Afirma que normalmente, dentro da sala de cirurgia estão sempre três enfermeiros, a saber, de anestesia, circulante e instrumentista, e cirurgiões (cirurgião, cirurgião ajudante) e um anestesista. Estavam todos na sala, entenda-se, o Bloco Operatório.

O cirurgião estava ocupado com a cirurgia em si.

O problema em crise situa-se no campo de actuação do responsável pelo controlo e manutenção das funções vitais da doente, a Drª AAAM.

Na sequência de factos que a matéria de facto revela, perante os problemas respiratórios e baixa frequência cardíaca da doente, o Enfermeiro FRJTR conferenciou com um seu colega enfermeiro, no sentido de pedir ajuda aos serviços de urgência interna.

Relata que a anestesista de serviço estava a exercer funções, ou seja, estava no exercício das suas funções enquanto médica anestesista.

Note-se que não relata ter conferenciado com a médica responsável, o que se compreende em face do seu enfático depoimento no sentido de, sendo enfermeiro, não se imiscuir na avaliação de actos médicos, pois não iria tomar uma iniciativa que, à mingua de iniciativa da própria médica no sentido do pedido de ajuda, poderia ser interpretada como uma implícita avaliação dos actos médicos praticados por quem tinha a responsabilidade do controlo e manutenção das funções vitais da doente e que não estava a obter resultados na reanimação farmacológica, pois a doente agravou (ao ponto de impor a urgência do pedido de ajuda) os problemas respiratórios e baixa frequência cardíaca.

É de notar que, conforme apurado, às 05,45 horas foi extraído o recém nascido, tendo a parturiente FCFS registado baixa saturação de O2, sendo esta baixa saturação continuada uma das causas da paragem cardíaca; e entre as 05,45 horas e as 06,12 horas, a Drª AAAM avançou apenas com algumas manobras de reanimação farmacológica, que, aliás, se revelaram insuficientes, pois a parturiente veio a ser encontrada, pela equipa da urgência, cianosada e no monitor o traçado electrocardiográfico em assistolia, ou seja, com ausência de sístoles e, consequentemente, de batidas cardíacas — o coração tinha parado.

Foi o Enfermeiro FRJTR que, numa avaliação da situação que tinha perante si, seguramente perante a gravidade da situação, decidiu “preventivamente”, como afirma, chamou as equipas de urgência.

Relata ainda que a Drª MACAF, quando chegou, “mudou tudo”, numa impressiva hiperbolização.

Dos depoimentos das testemunhas Drª MACAF e Drª MFA resulta uma sequência de factos, outrossim, reveladora da concreta situação.

Ao entrarem na sala do bloco Operatório, após a chamada de urgência do Enfermeiro FRJTR, a Drª MACAF vai logo para a cabeceira e inicia os procedimentos da via aérea. A Drª MFA entrou na sala, pediu um estrado (para se erguer sobre a marquesa e ficar a um nível elevado, superior à doente, à cabeceira do lado esquerdo) e iniciou manobras de compressões cardíacas.

Tudo se passa rapidamente, e cada uma das médicas que actuam em socorro dirige-se prontamente para o local específico da sua intervenção, uma para a cabeceira, verificando a via aérea, e a outra para a zona torácica, pedindo um estrado para se elevar (e alguém lho facultou, com consumo de algum tempo, ainda que rapidamente suprida a sua falta), iniciando esta, de seguida, a massagem cardíaca, pelo que a intervenção na via aérea, verosimilmente não ocorreu em momento muito posterior, mas ou em simultâneo ou quase em simultâneo com a massagem cardíaca.

Admitindo, no entanto, que as manobras de massagem cardíaca se iniciaram ainda significativamente antes da intervenção da Drª MACAF na via aérea, afigura-se que poderia ter ocorrido o que o Colégio da Especialidade de Anestesiologia exarou no seu parecer, pois o que aquele Colégio diz é que A constatação da posição do tubo fora da laringe é de admitir no contexto das manobras de ressuscitação com massagem cardíaca externa.

Todavia, se a posição do tubo fora da laringe é de admitir no contexto das manobras de ressuscitação com massagem cardíaca externa o que, mesmo em termos leigos, se compreende, pois a dinâmica dos movimentos mecânicos gerados pela massagem cardíaca, actuando sobre os tecidos, os fluidos e os gases, é de ordem a permitir ou induzir a expulsão do tubo no sentido da faringe —, já não explica a posição do tubo em posição esofágica. É que o posicionamento esofágico do tubo pressupunha (caso estivesse o tubo originariamente, bem colocado, na traqueia) que o tubo tivesse sido expulso da traqueia por tais movimentos, como admitido pelo Colégio da Especialidade de Anesteseologia, e que, pela acção dos mesmos movimentos (outros não houve), tivesse sido reintroduzido, desta feita, no esófago. O que, pelos motivos supra exarados, pelo próprio argumento utilizado pelo Colégio e pela natureza das coisas, carece de qualquer sentido.

E se, nessas circunstâncias, o tubo foi encontrado introduzido em posição esofágica e não endotraqueal, é de concluir pela originária entubação esofágica.

Enfatiza-se que a testemunha Drª MACAF, ela própria médica anestesista, afirma que não sabe se a colega anestesista (a Drª AAAM) colocou o tubo em posição endotraqueal, numa posição contida que se compreende, pois é o trabalho de uma colega de especialidade que está em causa.

Mas afirma, de forma clara e peremptória: “Na altura que cheguei lá, mudei a posição do tubo: O tubo estava no esófago e mudei-o para a traqueia”.

Quanto à Drª MFA, que procedeu à massagem cardíaca, pelo seu depoimento, e no sentido do relatório da ocorrência que na altura elaboraram, confirma que a Drª MACAF foi para a cabeceira e reviu a entubação e corrigiu a via aérea.

Esclareceu que o procedimento de intubação endotraqueal é, muitas vezes, às cegas, pois “nem sempre vemos onde metemos o tubo”. “É frequente entubar para o esófago. É cego: Fazemos as manobras, mas não vemos”.

Tudo conjugado, compreende-se perfeitamente, a convicção formada pelo Juiz a quo.

Em face dos documentos juntos aos autos e, mesmo privado, este Colectivo, da oralidade e da imediação, pelo registo audiogravado não é evidenciado, em termos de razoabilidade, ter a identificada matéria de facto sido mal julgada na instância a quo — bem pelo contrário —, não devendo a mesma ser alterada, pois não se apresenta como arbitrária e antes racionalmente fundada, de acordo com a prova produzida, as regras da lógica e da experiência comum.

Assim:

Quesito 2º: “No circunstancionalismo descrito em P) da matéria de facto assente, a Drª AAAM, procedeu à introdução do laringoscópio, visualizando as cordas vocais, com entubação esofágica?”.

Quesito 3º: “Ou, pelo contrário, a entubação foi feita na traqueia?”.

Em P) da matéria assente, assente como facto 16) na decisão sob recurso, consta o seguinte: “Às 5.40 horas, pela Drª AAAM, iniciou-se a indução anestésica”.

A matéria ínsita no quesito 2º foi julgada provada. Julgamento que, com os fundamentos supra exarados, convictamente se mantém.

A matéria do quesito 3º foi julgada não provada. O que, igualmente, se mantém.

Quesito 8º: “O tubo encontrava-se no esófago devido às manobras das massagens cardíacas?

A resposta a este quesito foi “não provado”. Com os referidos fundamentos, mantém-se este julgamento.

Quanto ao quesito 9º-A, porque imbrincado no quesito 9º, aprecia-se tendo presente o quesito 9º e a resposta, não impugnada, que este, em julgamento da atinente matéria, mereceu do Tribunal a quo.

Assim: Quesito 9º: “Na sequência do referido em z), a Drª AAAM pediu auxílio às equipas de às equipas de ressuscitação intrahospitalar, Dr. JMRC, e à equipa B do serviço de urgência de anestesia, Drª MFA e MACAF?.

A resposta a este quesito foi: “Provado apenas que foi pedido auxílio às equipas de ressuscitação intra-hospitalar, Dr. JMRC, e à equipa B do serviço de urgência de anestesia, Drª MFA e MACAF”.

Quesito 9º-A: “Adoptou o comportamento descrito em 9º por ser esse o procedimento que se impõe em caso de necessidade de ressuscitação cardio-pulmonar, em decorrência de protocolo internacionalmente assumido, por ter detectado um perigo iminente de paragem cardíaca?”.

A resposta a este quesito foi “não provado”. Em face da resposta ao quesito 9º e com os fundamentos supra descritos é de manter este julgamento. Na verdade, tendo sido pedido auxílio, não o foi pela Drª AAAM, mas antes pelo Enfermeiro FRJTR, como clara e expressivamente resulta, entre os demais, do seu depoimento em audiência de julgamento. Na verdade, relata que a anestesista de serviço “estava a exercer funções”, numa referência ao facto de estar ocupada com as suas funções, e foi ele e um seu colega que conversaram e decidiram pedir ajuda, porque os sinais da doente assim o motivaram: A doente começou a ter problemas respiratórios e a frequência cardíaca estava a descer e foi por isto que conversou com o colega enfermeiro e “preventivamente”, como disse, chamou a urgência.

Quesito 15º: “O broncoespasmo pode ter a sua origem na acção conjugada dos seguintes factores: instrumentação da via aérea, hábitos tabágicos, e estado gravídico da doente e a emergência da intervenção?”.

Este quesito foi julgado “não provado”. E bem. Não se provou a matéria constante dos quesitos 11º, 12º, 13º e 14º, o que não vem impugnado, ou seja: Não se provou que (11º) “A Drª AAAM tinha a necessária competência técnica e os meios necessários e disponíveis no Bloco Operatório para, por si só, instituir os procedimentos necessários à reversão de um bronco espasmo de características normais”; não se provou que (12º) “O bronco espasmo leve e de fácil reversão ocorre, por vezes, pela simples instrumentalização da via aérea, sendo o tabagismo e o estado gravídico factores conhecidos de elevado risco de bronco espasmo”; não se provou que (13º) “Terá ocorrido uma hiperactividade brônquica constitucional”; e também não ficou provado que (14º) “O descrito em 13º é impossível de prever”. Ademais, prova pericial, eventualmente susceptível de esclarecer a questão, não foi realizada.

Finalmente, em face dos restantes factos provados e não provados e fundamentação supra, mostra-se correcto o julgamento de “não provado” ao quesito 16º, do seguinte teor: “Era imprevisível a ocorrência de um broco espasmo tão intenso e resistente, por forma a justificar um antecipado pedido de auxílio?”.

Improcede, nesta matéria, a alegação do Recorrente.

II.2.1.2. — Dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, ilicitude e culpa.

Entende o Recorrente que foi violado o artigo 2º, nº 1, do Decreto-Lei n.º 48.051, na medida em que Inexiste culpa dos agentes do CHSJ porque, face à factualidade apurada por via da prova testemunhal produzida e dos relatórios periciais juntos aos autos, ficou demonstrado que não existiu qualquer desvio ou desconformidade entre o seu comportamento e a “conduta padrão” à luz da qual deve ser aferida a existência de culpa como disposto no artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 48.051 e do artigo 487.º do Código Civil e “Inexiste outrossim ilicitude. O Tribunal a quo errou ao concluir pela violação da legis artis por parte dos agentes do CHSJ, quer no momento da indução da anestesia, quer nos cuidados prestados entre a anestesia e a paragem cardíaca, quer os prestados na sequência da paragem cardíaca, porque não violaram qualquer norma técnica ou protocolar que previsse a adopção de procedimentos diferentes da conduta efectivamente seguida por eles”;

Mas não tem razão.

Em face da matéria de facto provada e não provada, não merece qualquer censura o juízo operado pelo Tribunal a quo, do seguinte teor, na matéria que ora importa considerar:

Está em causa nos presentes autos a apreciação da responsabilidade civil extracontratual por actos de gestão pública, cuja concretização, à data da ocorrência dos factos dos presentes autos, era feita, em geral, pelo Decreto-Lei n.º 48051, de 21.11.67 que estabelecia, no seu art.° 2.º, n.º1 o princípio de que «o Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício».

Assim sendo, a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos ilícitos e culposos, pressupunha a existência de um facto ilícito, imputável a um órgão ou agente e a existência de danos que tenham resultado como consequência directa e necessária daquele.

No essencial, a responsabilidade civil das pessoas colectivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes no exercício das suas funções ou por causa desse exercício corresponde ao conceito civilístico da responsabilidade civil extracontratual regulada nos artºs 483º e ss. do Código Civil.

Aliás, é jurisprudência pacífica que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por factos ilícitos praticados pelos seus órgãos ou agentes assenta nos pressupostos da idêntica responsabilidade prevista na lei civil, com as especialidades resultantes das normas próprias relativas à responsabilidade dos entes públicos.

De harmonia com o preceituado no art. 483.º do Código Civil, «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».

O elemento básico da responsabilidade é pois o facto do agente, um facto objectivamente dominável ou controlável pela vontade, o qual consiste, em regra, num facto positivo que importa a violação de um dever geral de abstenção, do dever de não ingerência na esfera do titular do direito absoluto, mas que também se pode traduzir num facto negativo, numa abstenção ou numa omissão (cfr. art. 486º do C. Civ.), mas, neste caso, quando haja o dever jurídico de praticar um acto que, seguramente ou muito provavelmente, teria impedido a consumação desse dano.

A ilicitude traduz-se quer na violação de um direito de outrem, quer na violação de normas legais destinadas a proteger interesses alheios.

Mas para que o lesado, neste último caso, tenha direito a indemnização é necessário que estejam preenchidos três requisitos: que à lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal; que a tutela dos interesses do particular figure entre os fins da norma violada e que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar.

No âmbito da responsabilidade ora em análise, o conceito de ilícito tem a sua amplitude fixada no art. 6º do citado DL nº 48051: consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.

Deste modo, quanto aos actos jurídicos (incluindo, pois, os actos administrativos) a ilicitude coincide com a ilegalidade do acto. Já quanto aos actos materiais, há ilicitude quando houver violação das normas legais e regulamentares ou dos princípios gerais aplicáveis, ou ainda quando houver violação das regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração.

Em concreto, o conceito de ilicitude do facto praticado, nos casos de responsabilidade por acto médico, vem sendo densificado como a violação de regras reconhecidas pela ciência médica em geral como as apropriadas à abordagem de um determinado caso clínico, na concreta situação em que tal abordagem ocorre, ou seja, a violação das leges artis ou de qualquer norma regulamentar ou estatutária que regule as relações entre o médico e o doente.

As leges artis são regras a seguir pelo corpo médico no exercício da medicina. Umas são normas escritas, contidas em lei do Estado (Vide, por exemplo, o art. 13º do DL nº 282/77, de 5 de Julho (Estatuto do Médico)) e/ou em instrumentos de auto-regulação (vejam-se as prescrições do Código Deontológico da Ordem dos Médicos e as que estão vertidas em guias de boas práticas ou protocolos de actuação). Outras, na sua maioria, são regras não escritas, são métodos e procedimentos, comprovados pela ciência médica, que dão corpo a standards contextualizados de actuação, aplicáveis aos diferentes casos clínicos, por serem considerados pela comunidade científica, como os mais adequados e eficazes. (Cfr., a propósito, Sónia Fidalgo, “Responsabilidade Penal Por Negligência No Exercício da Medicina Em Equipa”, p. 74 e segs.)” – v. Ac do STA de 13/3/2012, in p 477/11.

Assim sendo, no domínio da responsabilidade por acto médico, a ilicitude consistirá, para além da violação de normas legais ou regulamentares, também a violação das leges artis, isto é, as regras da boa prática médica, isto é, regras e princípios profissionais, acatados genericamente pela ciência médica, num determinado momento histórico, para casos semelhantes, ajustáveis, todavia às concretas situações individuais.

Ao médico exige-se que desempenhe a sua actividade segundo as leges artis, cumprindo as regras técnico-científicas, devendo prestar os melhores cuidados que estejam ao seu alcance, agindo segundo as exigências das referidas leges artis e dos conhecimentos científicos existentes à época, actuando de acordo com um dever objectivo de cuidado.

Desta forma, o médico deve obediência ao conjunto de regras da sua arte reconhecidas pela ciência médica em cada momento como sendo as que são as apropriadas a um determinado acto médico, tendo em conta os contornos que o acto assume em cada situação concreta.

No que tange à culpa, o artigo 4.º do D.L. n.º 48051, dispõe que a mesma é apreciada nos termos do artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil, isto é, pela diligência de um bom pai de família, face às circunstâncias do caso.

Nos casos de responsabilidade por acto médico, a culpa traduz um juízo dirigido ao médico, censurando-o pela sua conduta, em virtude de nela se ter manifestado um defeito de vontade ou de competência.

Em regra, os comportamentos do médico geradores de responsabilidade são-lhe imputáveis a título de negligência e não de dolo. Com efeito, normalmente, o médico não adere ao resultado ilícito previsto na norma, quer através de uma conduta que o provoque necessariamente (dolo necessário) ou apenas eventualmente (dolo eventual), quer através de uma actuação que vise alcançá-lo (dolo directo). A culpa surge então como a omissão da diligência e competência exigíveis de acordo com as circunstâncias concretas.

É portanto o desvio da actuação adoptada pelo médico em relação a um modelo de comportamento em termos de competência, prudência e atenção que ele podia e devia ter observado.

Esse desvio pode manifestar-se sob três formas: pela omissão dos cuidados devidos, pela adopção imponderada de condutas arriscadas ou inadequadas, ou pela imperícia caracterizada como ausência dos conhecimentos teóricos, da capacidade técnica e da destreza prática, adequados ao ofício exercido.

Trata-se de um critério abstracto de aferição da culpa na medida em que aquilo que é exigível ao concreto agente é determinado em função de um modelo ideal de agente, no entanto, a abstracção não é completa, na medida em que o modelo é também construído com base em elementos retirados da situação concreta, nomeadamente as características específicas do médico em causa.

Note-se ainda que importa atentar que a culpa do ente colectivo, como é o caso de um hospital, não se esgota na imputação de uma culpa psicológica aos agentes que actuaram em seu nome, dado que o facto ilícito que causou certos danos pode resultar de um conjunto, ainda que mal definido, de factores próprios da desorganização ou falta de controlo, ou da falta da colocação de certos elementos em determinadas funções, ou de outras falhas que se reportam ao serviço como um todo. Daí que nestes casos ao lado da culpa dos agentes é possível, ainda, falar de uma culpa do serviço (neste sentido Ac. do S.T.A. de 17-06-1997 - Proc. nº 38.856).

Na responsabilidade por acto médico, a culpa traduz-se numa actuação de um profissional de saúde desconforme com a leges artis, ou seja, uma omissão do dever de cuidado exigível na conduta do médico, de acordo com o conhecimento da ciência médica no momento em que o acto médico é realizado.

O critério do “bom pai de família” acolhido no art.° 487º, n.º 2 do Código Civil deverá corresponder, neste domínio, ao médico normalmente prudente, diligente, sagaz, cuidadoso, com conhecimentos, capacidade física, intelectual e emocional para desempenhar as funções a que se propõe.

Assim, actuará com negligência o médico que, perante as circunstâncias do caso concreto que se lhe apresenta, não emprega o zelo, o esforço, as aptidões, a capacidade e o discernimento necessários para executar o acto médico de molde a respeitar os deveres legais que sobre o mesmo impendem.

(…)

Quanto ao ónus da prova da culpa, regra geral, e da aplicação do disposto nos artigos 487.º e 342º, nº 1 do Código Civil, resulta que cabe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, salvo caso de presunção legal art. 344º n.º 1, C. Civil ou quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado art. 344º, nº 2 do C.C.

Importa ainda fazer sucintas considerações acerca do nexo de causalidade entre o facto e o dano, sendo necessário referir, desde logo, que o mesmo só se verifica quando, dos factos apurados, se possa concluir que a conduta imputável ao agente é, em abstracto, idónea para a produção do dano, ou seja, quando há uma relação directa e necessária entre a conduta do lesante e os danos causados ao lesado, sendo legítima tal conclusão sempre que o resultado dessa conduta seja previsível.

Com o propósito de aferir, em cada caso concreto, da verificação do nexo de causalidade há que recorrer à matéria de facto assente e integrá-la de acordo com as normas legais.

Assim, preceitua o artigo 563.º do Código Civil que a indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.

Adoptou, o legislador, a doutrina da causalidade adequada, nos termos da qual o lesante apenas responde pelos danos causados na justa medida em que a sua conduta foi adequada à produção dos mesmos, sendo de excluir os danos que tiveram lugar fruto de uma circunstância extraordinária, ou para os quais a conduta do agente não se revela apta a produzir os mesmos, devendo, para apurar se estamos perante uma ou outra situação, fazer-se apelo às regras de experiência comum ou, dito de outro modo, à aptidão abstracta que a conduta do lesante revela para que possa ser considerada como causa do dano.

No domínio da responsabilidade por acto médico, a aferição do nexo causal passará por determinar se a actuação do médico contribuiu para a produção do dano e se este não se produziu em virtude de circunstâncias excepcionais e imprevisíveis. Se a actuação do médico desencadeou a produção de danos deverá ter-se por estabelecido o nexo de causalidade. O nexo de causalidade deverá reconduzir-se à relação que se estabelece entre o incumprimento dos deveres do médico e o dano sofrido pelo paciente, existindo nexo causal relativamente aos danos que provavelmente o lesado não teria sofrido se não fosse o comportamento imputado ao lesante, valendo também aqui a teoria da causalidade adequada consagrada no art.° 563º do CC.

Caberá, agora, apreciar a responsabilidade concreta do ora R. para o que se torna necessário determinar se, efectivamente, em face da factualidade apurada se mostram preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual.

Alegam os AA., como vimos, que, em consequência do erro médico consubstanciado na falta de diligência da médica que atendeu a A., FCFS no Hospital R. e que concretizam na entubação esofágica com vista a ser ministrada a anestesia bem assim como na ausência em tempo útil de manobras de reanimação quando a FCFS entrou em paragem cardiorespiratória que foi a causa das sequelas ocorridas e da sua morte.

Desta forma, a responsabilidade que possa impender sobre o R. e em que os AA. alicerçam a sua pretensão indemnizatória há-de assentar numa violação da leges artis pelo médico a quem imputam a prática do facto (ilícito) determinante do dano, e que ocorrerá, como vimos, se não tiver sido adoptada a perícia e o cuidado em função do critério de diligência acima explanado, em termos de prestar um tratamento errado ou deficiente ao doente em função desse critério.

O ponto de partida essencial será assim apurar da desconformidade da concreta actuação do agente (médica anestesista, Dra. AAAM) no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um profissional dessa área medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teriam tido em circunstâncias semelhantes, naquela data.

E para tanto é necessário ter em consideração a matéria de facto provada, que na parte mais relevante para a ilicitude e para a culpa se pode resumir nestes termos:

- No dia 4 de Julho de 2001, cerca das 4.55 horas, a FCFS deu entrada na urgência do Hospital de S. João, grávida de 32 semanas, com hemorragias vaginais.

- Foi internada neste hospital, tendo sido encaminhada para o bloco operatório de obstetrícia, a fim de ser submetida a uma intervenção cirúrgica (cesariana).

- Nesta operação intervieram o médico obstetra, Dr. DMGAC e a médica anestesista, Dra. AAAM.

- A médica, Dra. AAAM, efectuou à FCFS um exame prévio de anestesiologia, com recolha de antecedentes pessoais, tendo resultado que a doente não tinha antecedentes anestésicos, mas hábitos tabágicos acentuados, e apresentava uma oscultação cardio-pulmonar aparentemente normal.

- Às 5.40 horas, pela médica, Dra. AAAM, iniciou-se a indução anestésica.

- A referida médica procedeu à introdução do laringoscópio, visualizando as cordas vocais, com encubação esofágica.

- Às 5.45 horas é extraído o recém-nascido, com índices de APGAR 6/8, aos 1.0 e 5.° minutos.

- Na cesariana, a FCFS registou saturação baixa de 02, tendo tal facto sido comunicado à médica anestesista.

- Em face do facto antecedente, a equipa cirúrgica tentou finalizar rapidamente a intervenção.

- Ao suturar a aponevrose, o cirurgião suspendeu, temporariamente, a intervenção para que se prestasse assistência de reanimação à doente.

- Nesta sequência, foram administrados 200mg de hidrocortisona e aminofilina 240 mg IV.

- Mantendo o bronco espasmo, começa a saturação de 02 a baixar para valores de cerca dos 60%, acompanhada de hipotensão marcada e bradicardia ÷/-. 35 bpm.

- São administradas atropina 0,5+0,5+0,5 mg IV + adrenalina 1+1 mg IV.

- Foi pedido auxílio às equipas de ressuscitação intra-hospitalar, Dr. JMRC, e à equipa B do serviço de urgência de anestesia, Dra. MFA e Dra. MACAF.

- O Dr. JMRC, da equipa de ressuscitação, na sequência da sua chamada, procedeu à auscultação pulmonar da FCFS, tendo constatado a presença de sons respiratórios diminuídos bilateralmente.

- Entre as 5.45 horas e as 6.12 horas, não foram efectuadas qualquer massagem cardíaca externa continua à FCFS.

- Entre as 5.45 horas e as 6.10 horas, a Dra. AAAM, avançou com algumas manobras protocolares de reanimação farmacológica.

- Pelas 6hl0m, o enfermeiro FRJTR chamou as médicas Dra. MFA e Dra. MACAF, elementos da equipe B do serviço de urgência, apelando ajuda para a situação de paragem cardiorespiratória da FCFS.

- Às 6.12 horas, chegaram ao bloco de obstetrícia as médicas Dra. MFA e Dra. MACAF, encontrando a FCFS em paragem cardiorespiratária, cianosada e o monitor com o traçado electrocardiográfíco em assistolia.

- A médica, Dra. AAAM, informou estas duas médicas que se tratava de uma situação de bronco espasmo grave aquando da intubação e hipoxia progressiva agravada de paragem cardíaca ocorrida às 6.12 horas.

- Nesse momento, estas médicas procederam, de imediato, a massagem cardíaca externa contínua, com administração de atropina, adrenalina, gluconato de cálcio, bicarbonato de sódio, tendo revisto a via aérea com constatação de tubo em posição esofágica, sendo, de imediato, colocado em posição endotraqueal e efectuada ventilação com oxigénio a 130%.

- Com estes actos médicos, ao fim de cerca de 5 minutos, foi recuperado o ritmo sinusal da FCFS.

- Efectuado ECG de 12 derivações, revelou isquemia global do miocárdio.

- A cirurgia foi, então, terminada e a FCFS ficou hemodinamicamente estável em ventilação controlada na UCIPU.

- Devido ao período de tempo em que esteve em paragem cardíaca, cerca de 7 minutos, sofreu a FCFS sequelas a nível neurológico.

- A FCFS encontrava-se, desde então, em coma vigil, com tetraplegia e tetraispasticidade, sem qualquer possibilidade de recuperação.

- Na sequência desta intervenção cirúrgica, a FCFS ficou a padecer de uma incapacidade total.

- A FCFS faleceu no dia 28/03/2009, com 44 anos.

- Na sequência do falecimento de FCFS foi elaborado Relatório de Autópsia Médico-Legal, do qual consta: “ (...) J. CONCLUSÕES 1.- A informação social recolhida, o resultado dos exames complementares de diagnóstico solicitados e os achados necrópsicos permitem afirmar que a morte de FCFS da CONCEIÇÃO FERRE1RA da SILVA foi devida a brocopneumonia de aspiração. “RELATÓRIO ANÁTOMO-PATOLÓGICO (...) Diagnóstico: Broncopneumonia de aspiração. Enfarte cerebral antigo”.

- A morte da FCFS foi consequência directa das lesões de que ficou a padecer, decorrentes da cesariana.

Importa agora apurar se, face aos factos descritos, se mostram preenchidos todos os pressupostos de que depende a responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, nomeadamente, se perante a manobra de entubação esofágica da FCFS com vista a ser ministrada a anestesia para ser realizada a intervenção cirúrgica – cesariana – e a actuação posterior da médica anestesista no procedimento de reanimação face à paragem cardiorespiratória ocorrida, face ao desfecho final, isto é, as inegáveis sequelas neurológicas e posterior morte da FCFS, houve ou não da parte da referida médica anestesista inobservância de quaisquer deveres de cuidado que torne culposa a sua actuação em termos de ter existido inexecução de um dever geral de diligencia que lhe era exigível conhecer no momento da entubação e na actuação posterior face à paragem cardiorespiratória ocorrida ou se utilizou uma técnica incorrecta dentro dos padrões científicos actuais na chamada leges artis.

Para os AA., no caso em apreço, estão presentes todos os pressupostos da responsabilidade do R., isto é, o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade e para, assim concluir, partiram da circunstância de que a médica anestesista que assistiu a FCFS no dia 4/7/2001, errou no momento da entubação bem como nos cuidados que prestou após a detecção da paragem cardiorespiratória.

É entendimento quase unânime que a obrigação a que um médico está adstrito perante o seu paciente, é na maioria da sua actividade, traduzida em acção tendente a proporcionar-lhe melhores cuidados de saúde, respeitando as leges artis e os conhecimentos científicos actualizados e comprovados, sendo certo que, a prestação do médico é por regra uma obrigação de meios, não o responsabilizando pela obtenção de um resultado, mas antes quando e se usar inadequadamente meios impróprios, exigindo-se que actue em conformidade com a diligência que a situação clínica do doente exige e, na não omissão de actos que a mesma impõe.

Assim é que, para que surja a obrigação de indemnizar a quem invoque incumprimento ou cumprimento defeituoso, deverá ser alegado e provado o nexo de causalidade entre a desconformidade verificada e as boas regras da prática da medicina no caso, e que ela decorreu dos actos praticados pelo médico, funcionando então, e após, contra si, a presunção legal de culpa.

No caso em apreço, parece não haver dúvidas que a administração da anestesia aquando da intubação da FCFS com vista à realização da cesariana, esteve na origem da paragem cardíaca e posterior incapacidade total e subsequente morte.

Importa, pois, apurar se nesta actividade (de um agente do Hospital R. e do próprio Hospital), se procedeu com toda a diligência e competência adoptando os procedimentos, as técnicas e os fármacos adequados à situação, e que, segundo as leges artis, se impunham tomar, tudo sendo feito para evitar a ocorrência, como sustenta o R., nada tendo a ver com o que posteriormente veio a suceder, isto é, os danos cerebrais e a posterior morte da FCFS, ou se, antes, a actuação se desviou do padrão de comportamento diligente e competente.

Na que concerne à realização da intervenção propriamente dita – a cesariana - face à matéria de facto dada como provada, isto é, que a Dr.ª AAAM, efectuou à FCFS um exame prévio de anestesiologia, com recolha de antecedentes pessoais, tendo resultado que a doente não tinha antecedentes anestésicos, mas hábitos tabágicos acentuados, e apresentava uma oscultação cardio-pulmonar aparentemente normal, não se pode extrair que houvesse qualquer contra indicação para a sua realização e, consequentemente, à administração da anestesia.

Temos que concluir, pois, que o resultado imediato que se pretendia – realização de cesariana, antecedida da anestesia – estava ao alcance da médica que a ministrou bem assim como ao alcance de toda a estrutura que foi preparada pelo Hospital R. para esse fim.

Infelizmente, dessa actuação adveio um quadro clínico caracterizado por coma vigil, com tetraplegia e tetraispasticidade, sem qualquer possibilidade de recuperação, ficando a FCFS a padecer de uma incapacidade total durante cerca de oito anos, findo a falecer no final desse período.

Em face deste desfecho e atento o ónus probatório era ao Hospital R. que tinha de alegar e provar que aplicou a aptidão e diligência possível, mas que por razões que não podia prever ou não podia controlar, a finalidade pretendida – a cesariana, com a preliminar anestesia – acarretou a infeliz ocorrência.

Ora, o R. alegou que a médica anestesista, Dra. AAAM procedeu à introdução do laringoscópio, visualizando as cordas vocais e introduziu tubo na traqueia, tendo no início da cirurgia - 5h40m do dia 4/7/2001 - a Dra. AAAM detectado um broncoespamo marcado na FCFS, porquanto apresentava sibilos em ambos os campos pulmonares e elevada resistência à ventilação manual, com valores ETCO2 de 25-30 mmmH, tudo isto constituindo sinais inequívocos da correcta entubação traqueal e que, imediatamente a Dra. AAAM administrou à FCFS os fármacos adequados, tendentes à resolução da complicação inesperadamente surgida, solicitando ao médico obstetra para retirar a criança o mais depressa possível e o que sucedeu pelas 5H45, tendo o recém-nascido APGAR 6/8 avaliado por Pediatria e após o que se iniciou a suturação do útero e controlo da hemorragia.

Mais diz o R. que, entretanto, a doente mantinha problemas respiratórios, com agravamento compromisso hemodinâmico, das tensões arteriais e do ritmo cardíaco e pelas 06h00 a FCFS fez uma hipotenso marcada com bradicardia — 35 pulsações/minuto – e que face a este quadro clínico, com o broncoespamo intenso e persistente e consequente hipoxia com progressão rápida para a anóxia do miocárdio, temendo uma paragem cardíaca, que podia sobrevir ainda que não necessariamente, logo a Dra. AAAM iniciou os procedimentos de reanimação administrando à doente os fármacos adequados à situação, e aplicando ventilação e, simultaneamente, também a mesma médica imediatamente accionou o mecanismo de recurso chamando a equipa de ressuscitação intra-hospitalar e equipa de urgência de anestesiologia, que compareceram simultaneamente, dois minutos depois, ajuda essa pedida, não por temor ou por qualquer reconhecimento de insuficiência pessoal, mas somente por esse ser o procedimento que se impõe em caso de necessidade de ressuscitação cardiopulmonar, em decorrência de protocolo internacionalmente assumido, tendo nesse exacto momento, a doente feito paragem cardíaca e logo dois elementos daquela equipa de Anestesiologia, a Dra. MFA e a Dra. MAF, procederam às técnicas de ressuscitação com massagem cardíaca e o Dr. JMRC, da equipa de ressuscitação, procedeu à auscultação pulmonar à FCFS, tendo constatado a presença de sons respiratórios diminuídos bilateralmente, o que constitui indícios inequívocos de que o tubo estava correctamente colocado e nunca no esófago.

Concluiu o R. que o broncoespamo intenso e persistente ocorrido durante a realização da cesariana pode ter tido a sua origem pela acção conjugada dos seguintes factores: instrumentação da via aérea, hábitos tabágicos, o estado gravítico da doente e a emergência da intervenção, que inviabiliza uma preparação minuciosa.

Acontece que o que resulta provado é que, quando se iniciou a cesariana - às 5.40 horas, pela médica anestesista, Dra. AAAM, se iniciou a indução anestésica, tendo a referida médica procedido à introdução do laringoscópio, visualizando as cordas vocais, com entubação esofágica; às 5.45 horas foi extraído o recém-nascido, tendo a FCFS registado saturação baixa de 02, sendo a continuada baixa de 02 uma das causas de paragem cardíaca.

Mais se provou que a FCFS apresentava bronco espasmo marcado, com sibilos em ambos os campos pulmonares, elevada resistência à ventilação manual e valores de ETCO2 de 2&30 mmHg; que mantendo o bronco espasmo, começou a saturação de 02 a baixar para valores de cerca dos 60%, acompanhada de hipotensão marcada e bradicardia ÷/-. 35 bpm, tendo sido administradas atropina 0,5+0,5+0,5 mg IV + adrenalina 1+1 mg IV; que entre as 5.45 horas e as 6.10 horas, a Dra. AAAM, avançou com algumas manobras protocolares de reanimação farmacológica; que pelas 6hl0m, o enfermeiro FRJTR chamou as médicas, Dra. MFA e Dra. MACAF, elementos da equipa B do serviço de urgência, apelando a ajuda para a situação de paragem cardiorespiratória da FCFS; que foi pedido auxílio às equipas de ressuscitação intra-hospitalar, Dr. JMRC que, na sequência da sua chamada, procedeu à auscultação pulmonar da FCFS, tendo constatado a presença de sons respiratórios diminuídos bilateralmente; que entre as 5.45 horas e as 6.12 horas, não foram efectuadas qualquer massagem cardíaca externa continua à FCFS; que às 6.12 horas, chegaram ao bloco de obstetrícia as médicas Dra. MFA e Dra. MACAF, após solicitação do Enfermeiro FRJTR, em funções no bloco operatório de obstetrícia à data da intervenção cirúrgica (cesariana), encontrando a FCFS em paragem cardiorespiratária, cianosada e o monitor com o traçado electrocardiográfíco em assistolia tendo a médica, Dra. AAAM, informado estas duas médicas que se tratava de uma situação de bronco espasmo grave aquando da intubação e hipoxia progressiva agravada de paragem cardíaca ocorrida às 6.12 horas, tendo nesse momento, estas médicas procedido, de imediato, a massagem cardíaca externa contínua, com administração de atropina, adrenalina, gluconato de cálcio, bicarbonato de sódio, tendo revisto a via aérea com constatação de tubo em posição esofágica, sendo, de imediato, colocado em posição endotraqueal e efectuada ventilação com oxigénio a 130%; que com estes actos médicos, ao fim de cerca de 5 minutos, foi recuperado o ritmo sinusal da FCFS, porém, efectuado ECG de 12 derivações, o mesmo revelou isquemia global do miocárdio.

Perante esta factualidade, dúvidas não há de que a entubação efectuada na FCFS com vista à indução anestésica foi feita no esófago e não na traqueia, sendo irrefutável a prova recolhida quanto a tal factualidade, para a qual foram importantíssimos os depoimentos das médicas anestesistas da equipa B bem assim como da equipa de reanimação, Dra. MACAF, Dra. MFA e Dr. JMRC, respectivamente.

Na verdade, quando lhes foi solicitada ajuda para se dirigirem ao Bloco de Obstetrícia para prestar auxilio à FCFS, a Dra. MACAF foi ver se estava tudo bem com a via aérea e constatou que o tubo não estava bem posicionado, tendo colocado o tubo na traqueia, altura em que a Dra. MFA já tinha iniciado manobras de reanimação, através de massagem cardíaca. Por sua vez, o Dr. JMRC referiu que foi substituído/recolocado o tubo e que a doente sofreu um espasmo brônquico que levou a saturação do oxigénio e diminuição cardíaca.

Por outro lado e em relação aos acontecimentos posteriores ao registo de saturação baixa de O2, para valores de cerca dos 60%, acompanhada de hipotensão marcada e bradicardia ÷/- 35 bpm, é um facto que, entre as 5.45 horas e as 6.10 horas, a médica anestesista, Dra. AAAM, avançou com algumas manobras protocolares de reanimação farmacológica, tendo sido administradas atropina 0,5+0,5+0,5 mg IV + adrenalina 1+1 mg IV. No entanto, entre as 5h 45m, hora a que recém - nascido foi retirado e a altura em que baixa de O2 já se tinha registado e até às 6.12 horas, hora a que chegaram ao bloco de obstetrícia as médicas Dra. MFA e Dra. MACAF, encontrando a FCFS em paragem cardiorespiratária, cianosada e o monitor com o traçado electrocardiográfíco em assistolia, não foi efectuada qualquer massagem cardíaca externa continua à FCFS, massagem essa que estas duas médicas levaram a cabo, tendo ainda administrado atropina, adrenalina, gluconato de cálcio, bicarbonato de sódio e revisto a via aérea com constatação de tubo em posição esofágica, sendo, de imediato, colocado em posição endotraqueal e efectuada ventilação com oxigénio a 130%, actos médicos que, ao fim de cerca de 5 minutos, levaram à recuperação do ritmo sinusal da FCFS.

Este quadro factual é revelador de que a entubação não se encontrava correctamente efectuada, porquanto se encontrava colocado no esófago ao invés de se posicionar na traqueia, posicionamento esse que, conforme foi testemunhado pelo Dr. JMRC, provoca falta de oxigénio que, por sua vez, provoca paragem cardíaca. Associado a este quadro está a circunstância de ter havido uma dilação temporal entre a detecção da baixa de oxigénio e a efectiva resolução do problema, sendo de salientar que foi o enfermeiro FRJTR que perante o circunstancialismo que observou na sala de operações, face à monitorização em curso, tomou a iniciativa de chamar as duas anestesistas, Dra. MFA e Dra. MACAF para auxiliar a anestesista, Dra. AAAM.

Ainda que seja frequente, como foi dito pelo Sr. Enfermeiro FRJTR, a ocorrência de bronco espasmos e diminuição de oxigenação e que a Dra. Ana tivesse efectuado manobras com vista à reversão do espasmo detectado o que é certo é que o mesmo evoluiu de modo grave entre as 5h45 e as 6h12 sem que a anestesista responsável pela doente que integrava o corpo clínico que se encontrava destacado no bloco operatório para realização da cesariana à FCFS tivesse actuado de forma a, efectivamente, reverter a situação, nesse período, através, p.ex., da chamada de auxílio como veio a ser feito, chamada essa que estranhamente não foi efectuada pela médica anestesista que parece não ter sabido ler a informação que constava no monitor que indicava diminuição cardíaca mas por outro elemento que se encontrava no bloco operatório, o enfermeiro FRJTR que decidiu no sentido da necessidade de chamar apoio/auxílio de outra equipa de anestesistas que prontamente compareceram e efectuaram as manobras que vieram a reverter a situação de paragem respiratória, embora se viesse a revelar tardia já que a FCFS esteve em paragem cardíaca cerca de 7 minutos, pelo que sofreu sequelas graves a nível neurológico que lhe determinaram incapacidade total e, decorridos oito anos, a sua morte.

Chegados a este ponto, podemos concluir que ocorreu violação da leges artis na medida em que a entubação efectuada não foi a devida e que foi omitido um comportamento devido perante o erro ocorrido na entubação destinada à indução anestésica, consubstanciado no recurso atempado ao comportamento que revertia a situação de diminuição cardíaca que decorreu no período ente as 5h45m e as 6h12m, demasiado longo como se veio a constatar e que um profissional diligente devia ter antevisto.

Sendo indesmentível que, resultando a morte duma mulher grávida durante a realização de uma cesariana com anestesia geral (é certo que chegou ao hospital grávida de 32 semanas, com hemorragias vaginais, mas sem dados clínicos desfavoráveis como se concluiu no exame prévio de anestesiologia) é de considerar, face à prova efectuada, a falta de diligência de quem era o responsável pela administração da anestesia e/ou pela recuperação dela, porquanto o que é normal não é seguramente a consequência mortal como ocorreu no caso em apreço, sendo certo que cabia ao Hospital R. demonstrar que a aplicação da anestesia foi a correcta, que foi detectado logo que algo se passava e que as tentativas de reanimação foram as mais adequadas, tudo de acordo com as legis artis, o que não sucedeu.

Em face do exposto, julga-se verificado, para além dos pressupostos relativos à ilicitude e à culpa, o pressuposto relativo ao nexo de causalidade entre o facto e dano. (…)”.

O que, pelas razões supra expostas, é de manter integralmente.

Improcede a alegação do Recorrente.

II.2.1.3. — Da questão subsidiária do alegado erro na aplicação do artigo 496º, nº 2, do Código Civil, ao atribuir uma indemnização ao pai da vítima, o autor JBFC.

Defende o Recorrente quePor força do “princípio do chamamento sucessivo” contido nesse preceito legal, o pai da vítima só deveria ser chamado se não existissem descendentes, conforme resulta da expressão contida no art.º 496.º, n.º 2 “na falta destes”, ao fazer a passagem do 1.º grupo para o 2.º grupo de sujeitos beneficiários da indemnização por danos não patrimoniais em caso de morte.”.

Vejamos.

Dispõe o artigo 496º do Código Civil, ao tempo em vigor:

1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior.

Na redacção resultante da Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto, dispõe:

1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.

4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.

Recorde-se que, na sequência dos incidentes supra descritos, a FCFS ficou em estado de coma vigil desde o dia 04-07-2001, tendo vindo a falecer no dia 28-03-2009.

Na petição inicial da acção intentada em 11-06-2004, foi peticionada condenação dos Réus a pagarem, entre o mais, ao Autor JBFC, pai da FCFS, a quantia de 3.500,00 euros, acrescido de juros legais vincendos desde a citação até efectivo e integral pagamento.

O que se mostra subsumível ao disposto no nº 1 do artigo 496º do Código cvil, segundo o qual, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Todavia, em 28-03-2009, ocorreu o falecimento da FCFS e os Autores requereram a ampliação do pedido de condenação dos Réus, o qual foi admitido, ora a pagar, entre o mais, ao Autor JBFC, pai da FCFS, a quantia de 30.000,00 euros, acrescido de juros legais vencidos e vincendos desde a data da morte de FCFS até efectivo e integral pagamento.

Reconduzindo-nos apenas ao que vem posto em crise, permanecendo pacífico o mais que, outrossim, não é de conhecimento oficioso, estamos perante pedido originário de 3.500,00€ e, em consequência da morte de FCFS em 2009, o pedido foi de 30.000,00.

A sentença sob recurso concluiu que “Perante esta factualidade e tendo ainda em conta todas as concretas circunstâncias do caso, considera-se que é justo e adequado atribuir como indemnização pela perda do direito à vida da FCFS os montantes que vêem peticionados, isto é, € 35.000,00 a cada um dos filhos da FCFS bem como de € 30.000,00 a João Baptista, pai da FCFS”.

Foi, pois, a perda do direito à vida de FCFS e o montante peticionado em sede da consequente e admitida ampliação do pedido que foram considerados na decisão recorrida.

Como dispõe o nº 2 do referido artigo 496º do Código Civil, por morte da vítima e na falta do cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes, então sim, a indemnização cabe aos pais ou outros ascendentes.

No sentido interpretativo que tem na letra da lei a correspondência verbal exigida pelo artigo 9º, nº 2, do Código Civil, é de concluir que integrando o primeiro dos referidos grupos os menores filhos de FCFS, HFFM, IFFM e IMFMQS, serão estes os titulares do direito à indemnização, não tendo o pai da vítima direito a compensação por danos não patrimoniais (quer dos sofridos pela vítima, quer por ele próprio) com a morte da filha.

Neste sentido veja-se, entre muitos outros, acórdão do STJ, de 24-05-2007, processo nº 07B1359, onde se sumariou:

1. A indemnização pela perda do direito à vida cabe, não aos herdeiros da vítima por via sucessória, mas aos familiares referidos e segundo a ordem estabelecida no nº 2 do art. 496º C.Civil, por direito próprio.

2. Ao lado do dano morte e dele diferente, há o dano sofrido pela própria vítima no período que mediou entre o momento do acidente e a sua morte.

O dano vivido pela vítima antes da sua morte é passível de indemnização, estando englobado nos danos não patrimoniais sofridos pela vítima a que se refere o nº 3 do mencionado art. 496º.

Estes danos nascem ainda na titularidade da vítima. Mas, como expressivamente refere a lei, também o direito compensatório por estes danos cabe a certas pessoas ligadas por relações familiares ao falecido. Há aqui uma transmissão de direitos daquela personalidade falecida, mas não um chamamento à titularidade dos bens patrimoniais que lhe pertenciam, segundo as regras da sucessão.

Quis-se chamar essas pessoas, por direito próprio, a receberem a indemnização pelos danos não patrimoniais causados à vítima de lesão mortal e que a ela seria devida se viva fosse.

3. Do teor literal do nº 2 do art. 496º C.Civil, decorre que esse direito de indemnização cabe, em simultaneidade, ao cônjuge e aos filhos e, representativamente, a outros descendentes que hajam sucedido a algum filho pré-falecido.

Só na falta desta primeira classe de familiares é que os referidos no segundo grupo terão direito a essa indemnização, ou seja, só se não houver cônjuge nem descendentes da vítima é que os ascendentes passarão a ter direito à indemnização.

Sendo a vítima casada, o cônjuge integra o primeiro desses grupos e, como não havia filhos, será o único titular do direito a indemnização devida pela sua morte, não tendo os pais da vítima direito a compensação por danos não patrimoniais (quer dos sofridos pela vítima, quer por eles próprios) com a morte do filho.

É, pois, de acolher a posição do Recorrente, devendo, nesta parte, revogar-se a decisão sob recurso.

II.2.2. — Recurso interposto pelos Autores

II.2.2.1. — Do alegado erro na apreciação do pedido formulado na alínea d) do petitório, em face da atinente matéria de facto assente.

A alínea d) do petitório formula o pedido de condenação dos Réus ao pagamento “ao A. RMPM, na qualidade de legal dos menores HFFM e IFFM, a quantia de 128.080,00 euros, acrescida de juros legais vincendos desde a sua citação até efectivo e integral pagamento”, sendo este o valor resultante do requerimento de aperfeiçoamento junto aos autos em 02/10/2006, admitido por despacho de 23-03-2007, já que inicialmente havia peticionado a condenação dos Réus ao pagamento do montante de 83.400,00€.

Tal pedido tinha como respectiva causa de pedir os custos mensais com alimentação, educação, vestuário, saúde e restantes despesas suportadas pelo Autor RMPM, em representação dos seus filhos menores.

Nesta matéria, decidiu especificamente a sentença sob recurso:

“(…) Os danos cuja compensação os AA pedem consistem numa pensão vitalícia que comporte todas as despesas realizadas e a realizar com o internamento hospitalar, bem como com todos seus cuidados médicos, os quais se computaram, em 4.500,00 euros mensais ou, em alternativa, sejam condenados a suportarem tais despesas às suas custas; no pagamento da quantia de 375.000,00 euros ao A., RMPM, na qualidade de tutor de FCFS e na quantia de 83.400,00 euros; no pagamento ao A. JMFQS, a quantia de 35. 000,00 euros; ao A. HFFM, a quantia de 35. 000,00 euros; à A. Filipa a quantia de 35. 000,00 euros e ao A., João Baptista a quantia de 30.000,00 euros.

(…)

Também quanto às demais despesas suportadas pelo A., RMPM, em representação dos seus filhos menores, resultantes da infeliz ocorrência com a sua mãe, não se logrou provar aquilo que vinha alegado a tal título.

Na verdade, a factualidade elencada relativa às concretas despesas que o A. RMPM, pai das duas crianças menores filhas de FCFS, teria com a habitação/ educação/saúde/alimentação/vestuário das mesmas não foi alcançada a sua prova. (…)”.

Da atinente matéria de facto consta, designadamente, o seguinte:

5) RMPM é pai dos dois filhos menores de FCFS: o HFFM e a IFFM.

(…)

7) HFFM nasceu em 27/01/1998.

8) IFFM nasceu em 04/07/2001.

(…)

36) Desde o dia 04/07/2001, a FCFS esteve sempre internada no Hospital de S. João, tendo sido transferida, por decisão do próprio hospital, para uma unidade hospitalar em Lousada.

42) A FCFS faleceu no dia 28/03/2009, com 44 anos.

59) O filho da FCFS, HFFM, desde o dia 04/07/2001, vive exclusivamente aos cuidados do pai, aqui autor, RMPM.

61) O filho, HFFM, desde o seu nascimento, e até à data de ocorrência dos factos em apreço, sempre viveu na companhia da FCFS.

70) Com o filho, HFFM, o pai tem despesas mensais.

71) Com a filha, IFFM, o pai tem despesas mensais.”.

O único ponto em discussão é o de saber se, perante os factos provados, segundo os quais, designadamente, “com o filho, HFFM, o pai tem despesas mensais e com a filha, IFFM, o pai tem despesas mensais, é correcto o julgamento de improcedência do pedido, pela não prova dasconcretas despesas” ou se, pelo contrário, se verificam os pressupostos ínsitos no nº 2 do artigo 661º do CPC/1961, segundo o qual, “se não houver elementos para fixar no objecto ou quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que seja líquida”.

De harmonia com o disposto no nº 2 do artigo 378º do CPC/1961, “o incidente de liquidação pode ser deduzido depois de proferida sentença de condenação genérica, nos termos do nº 2 do artigo 661º (…)”.

A presente, é uma situação em que se provou a ocorrência dos danos consubstanciados na existência de despesas mensais, a cargo do progenitor, com os dois menores, mas não se alcançou prova dos factos alegados que permitissem quantificá-los.

Vejamos a doutrina e jurisprudência sobre esta matéria.

Esclarece LEBRE DE FREITAS, in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, Coimbra, pag. 648 e segts, o seguinte:

Pode acontecer que, em acção de condenação, os factos provados, embora conduzam à condenação do Réu, não permitam concretizar inteiramente a prestação devida.

Tal pode acontecer nos casos em que é deduzido um pedido genérico não subsequentemente liquidado (…) como naqueles em que o pedido se apresenta determinado, mas os factos constitutivos da liquidação não são provados (ALBERTO DOS REIS, CPC anotado cit, I, p. 615, e V. p. 71; AUGUSTO LOPES CARDOSO, O pedido e a sentença, RT, 93, p. 57-58; RODRIGUES BASTOS, Notas cit., III, ps. 184-185; ver, em contrário, MANUEL GONÇALVES SALVADOR, Pedidos genéricos, RT, 88, ps. 5-62. O actual art. 647 (realização da audiência final sem ser conhecido o resultado do exame médico, em acção de indemnização por responsabilidade civil, sem prejuízo do disposto no art. 661-2) revela que a condenação genérica pode ter lugar em casos em que os danos já ocorreram, embora ainda não tenham sido determinados por prova pericial.

O STJ perfilhou, no acórdão de 17.1.95, BMJ, 443, p.395, tirado por maioria, uma interpretação restritiva do preceito do art. 661-2, apenas aplicável quando, ainda que se tenha deduzido pedido líquido, ainda não for possível, no momento da sentença, conhecer todos os factos necessários à liquidação (por não se terem verificado ou «estarem em evolução»), mas não quando eles já tiverem todos ocorrido e, muito menos, quando, como ocorria no caso concreto, tiverem sido alegados, mas não provados (no mesmo sentido também, remetendo, o ac. do STJ de 26.9.95, BMJ, 449, p.293, e, mais limitativamente ainda, pois circunscreve a previsão do art. 661-2 ao caso de pedido genérico, quando a lei o admita, o ac. TRC de 21.5.91, CJ, 1991, III, p.71).

Mas a jurisprudência dominante é no sentido inicialmente referido (por todos: ac. do STJ de 29.1.98, BMJ, 473, p.445, relatado por Sousa IFFM, com boa citação de doutrina e jurisprudência (…): no sentido de o juízo de equidade só ter lugar em último recurso, quando não haja possibilidade de vir a provar, em execução de sentença, os elementos de que depende a liquidação, julgou o STJ em 6.7.78, BMJ, 279, p. 190 (em acção de indemnização por incumprimento de contrato de transporte marítimo, em que fora formulado pedido líquido, ficou apenas provado que a autora teve prejuízos de montante não determinado, por não se terem provado os factos, anteriores à propositura da acção, que permitiam quantificá-lo), em 22.1.80, BMJ, 293, p. 327 (em acção por acidente de viação, em que fora deduzido pedido genérico, apurou-se que o autor ficou impossibilitado para exercer a sua profissão, mas não se sabia nem a sua idade nem qual o seu grau de incapacidade), com a concordância de VAZ SERRA (Anotação ao acórdão do STJ de 22.1.80, RLJ, 113, ps. 326-328; no mesmo sentido, Anotação ao acórdão do STJ de 6.3.80, RLJ, 114, ps. 309-310), que estende ainda a previsão do juízo de equidade aos casos em que nem o próprio dano (e já não apenas o seu montante) se prove (Anotação ao acórdão do STJ de 4.6.74, RLJ, 108, ps. 223-224 e 227-229), e em 14.2.91, AJ, 15/16, p. 29, bem como o TRC em 12.12.96, BMJ, 415, p. 736, e em 12.5.98, BMJ, 477, p.571, e o TRE em 12.12.96, BMJ, 462, p. 506; no sentido de, na falta de prova dos factos, já ocorridos, de que depende a liquidação, haver lugar à fixação equitativa da indemnização e só na falta de elementos para determinar os limites, mínimo e máximo, do juízo de equidade haver recurso à liquidação em execução de sentença, julgou o STJ em 10.7.97, BMJ, 469, p. 524 (…), consequentemente fixando equitativamente a indemnização a pagar, bem como, com o resultado inverso (e equivalente ao do acórdão de 22.1.80) de remeter a sua fixação para a acção executiva, em 6.3.80, BMJ, 295, p. 369 (havia que fazer o apuramento do grau de incapacidade profissional permanente, já verificado mas não determinado, da vítima do acidente de viação, em execução de sentença). Deduzido o pedido líquido, mas sem alegação de factos respeitantes ao dano verificado (dano patrimonial decorrente de o inquilino ter tido que abandonar a casa arrendada, por motivo de ruído), entendeu o ST em 4.6.74, BMJ, 238, p. 204, que o pedido de reparação desse dano improcedia, não havendo que remeter para a liquidação em acção executiva nem que julgar com base na equidade.

Verificada a previsão do nº 2, este impõe a condenação genérica: o tribunal condenará o réu no que se liquidar em execução de sentença, isto é, na fase liminar do processo executivo que se seguir (arts. 805 a 810), sem prejuízo da sua condenação parcial na parte já liquidada (e provada) (…).”.

No sentido dominante, a propósito do artigo 661º, nº 2, do CPC, veja-se ALBERTO REIS: CPC anotado, vol.I, pág. 615 e Vol. VI, pág. 71: “se não puder condenar em objecto ou quantidade líquido, condene em objecto ou quantidade ilíquido. Eis o conteúdo e o sentido da norma referida, a qual tanto se aplica ao caso de se ter formulado pedido genérico, como ao de se ter formulado o pedido específico, mas não se ter conseguido fazer a prova da especificação.”.

Também AUGUSTO LOPES CARDOSO, in O pedido e a sentença- Revista dos Tribunais, ano 93º, pág. 57 conclui que (...) para tal tipo de decisão judicial não é preciso sequer que o autor tenha feito um pedido ilíquido (...) pode resultar das respostas aos quesitos que não confirmem inteiramente a certeza dos danos que o lesado invocasse (...)”.

VAZ SERRA, in RLJ, ano 114º, pág.309 e 310 entende que “A aplicabilidade do nº 2 do artº 661º do CPC não depende de ter sido formulado um pedido genérico; mesmo que o autor tenha deduzido na acção um pedido de determinada importância indemnizatória, se o tribunal não puder averiguar o valor exacto dos danos, deve relegar a fixação da indemnização, na parte que não considerar ainda provada, para execução de sentença”.

Vejamos em concreto.

Alegaram os Autores que à data da ocorrência dos factos, o filho menor mais velho tinha 3 anos e a filha menor mais nova era recém-nascida e que desde então vivem com o progenitor, num apartamento pelo qual o pai pagava 570,00€ mensalmente.

Alegaram, no que respeita ao menor HFFM, despesas mensais com o proporcional da renda da casa e da água, a alimentação, vestuário, escola, despesas médicas e medicamentos, livros e material escolar variado, num total de 460,00€ e, “partindo do princípio que o pai contribuiu, em metade, uma vez que as capacidades de ambos os progenitores eram semelhantes, perfaz uma quantia média mensal para este menor de 230,00€”; e continua: “Se o mesmo tinha 2 anos quando os factos ocorreram, se a mãe contribuir com alimentos até aos seus 18 anos, daria a quantia de 41.400,00€ (230,00€ x 12 x 15)”.

Quanto à menor IFFM, com alegação de idênticas despesas e valores, concluiu pelo valor mensal das despesas de 460,00€ e “se a menor era recém-nascida, o valor mensal é calculado na base dos seus 18 anos, o que perfaz 49.680,00€ (230,00 mensal x 12 x 18)”.

Isto, o que se alegou. Vejamos o que ficou provado.

Em sede de julgamento, ao quesito “Os filhos menores da FCFS, HFFM e IFFM, desde o dia 04/07/2001, vivem exclusivamente aos cuidados do pai, aqui autor, RMPM?” foi respondido: “Provado apenas que o filho da FCFS, HFFM, desde o dia 04/07/2001, vive exclusivamente aos cuidados do pai, aqui autor, RMPM”.

Provado ficou também que “O filho, HFFM, desde o seu nascimento, e até à data da ocorrência dos factos em apreço, sempre viveu na companhia da FCFS”; que “A FCFS era uma mulher activa e empreendedora que contribuía para os alimentos dos seus filhos; e que “Também o filho, agora maior, JMFQS, vivia com a FCFS”.

Não ficou provada a matéria do quesito 39: “Os filhos menores residem num apartamento tipo T2, com dois quartos, pelo qual o pai paga uma mensalidade de €590,00?”.

Todavia, ao quesito 40º — “Com o filho, HFFM, o pai tem as seguintes despesas mensais: renda - €100; água/luz - €20; alimentação - €110; vestuário - €20; escola - €30; despesas médicas e medicamentos - €20?” — foi respondido em julgamento da matéria: “Provado apenas que com o filho, HFFM, o pai tem despesas mensais” [facto 70) da matéria assente].

E ao quesito 41º — “Com a filha, IFFM, o pai tem as seguintes despesas mensais: renda - €100; água/luz - €20; alimentação - €110; vestuário - €20; escola - €30; despesas médicas e medicamentos - €20?” — foi respondido em julgamento da matéria: “Provado apenas que com a filha, IFFM, o pai tem as despesas mensais” [facto 71 da matéria assente].

Quid júris?

Relembra-se que está em causa apenas a parte da sentença recorrida que concluiu que “…a factualidade elencada relativa às concretas despesas que o A. RMPM, pai das duas crianças menores filhas de FCFS, teria com a habitação/ educação/saúde/alimentação/vestuário das mesmas não foi alcançada a sua prova.”.

Acontece que, neste caso, a existência dos danos foi assente — as despesas mensais que o pai tem com os menores seus filhos — e apenas se julgou não provado “as concretas despesas, a saber, de renda - €100; água/luz - €20; alimentação - €110; vestuário - €20; escola - €30; despesas médicas e medicamentos - €20, relativamente a cada um deles, não ignorando, todavia, que ficou provado que apenas o filho da FCFS, HFFM, desde o dia 04/07/2001, vive exclusivamente aos cuidados do pai, aqui autor, RMPM.

As crianças hão-de, necessariamente, ao longo da sua vida e até perfazerem os 18 anos, como alegado, habitar algures, alimentar-se, utilizar vestuário, ter educação escolar, beneficiar de serviços médicos e de medicamentos, e isso tem um custo, neste caso a cargo do pai dos menores, como provado, e já sem a contribuição, para tanto, da mãe dos mesmos.

Estamos em presença de despesas que consubstanciam danos que, embora previsíveis, não são determináveis, pelo que a fixação da indemnização correspondente será, em princípio, remetida para decisão ulterior, como dispõe o nº 2 do artigo 564º do Código Civil.

A questão que se levanta é a de saber se é legalmente admissível a relegação para liquidação em execução de sentença da indemnização deduzida pelos Autores, apesar de aqueles terem formulado um pedido líquido e, se bem que tenham provado a ocorrência de despesas mensais com os dois menores, não provaram o montante exacto dessa indemnização, já que não lograram provar os factos alegados que permitiriam quantificá-los.

E a resposta é afirmativa, já se adianta, acolhendo a linha jurisprudencial e doutrinal supra e adiante citada.

Neste caso, o dano existe, está assente, e corresponde às despesas mensais que o progenitor tem com os menores, e apenas se julgou não provado os montantes de renda - €100; água/luz - €20; alimentação - €110; vestuário - €20; escola - €30; despesas médicas e medicamentos - €20, relativamente a cada um deles.

Não sendo possível a reconstituição natural e devendo a indemnização ser fixada em dinheiro, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados — dispõe o artigo 566º do Código Civil, maxime o seu nº 3.

Tal como jurisprudencialmente esclarecido — acórdão do STJ, de 22-01-1980, proc. nº 068133I - O nº 2 do artigo 564 do Código Civil permite que na fixação da indemnização se atenda aos danos futuros, desde que sejam previsíveis, podendo o julgador, nos termos da parte final dessa norma, remeter para decisão ulterior a fixação da indemnização, se os danos não forem logo determináveis.

II - Quando não possa ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgara equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (n.º 3 do artigo 566 do Código Civil).

III - A contradição aparente entre as duas disposições resolve-se no sentido de que a fixação da indemnização segundo critérios de equidade só se impõe quando esgotada a possibilidade de apuramento dos elementos com base nos quais o seu montante haja de ser determinado.

No caso presente, e sem prejuízo de futuramente poder julgar-se esgotada a possibilidade de apuramento dos elementos com base nos quais o montante da indemnização haja de ser determinado, a possibilidade desse apuramento não se mostra actualmente esgotada.

Assim, e não se verificando a previsão do artigo 566º, nº 3, do Código Civil, há que relegar para execução da sentença a referida quantificação, nos termos do artigo 661º, nº 2, do CPC/1961 que abrange também o caso de o pedido ter sido deduzido como líquido, tendo-se provado a existência de despesas mensais, mas não o seu quantitativo.

Na verdade, o artigo 569º do Código Civil permite expressamente a formulação de pedidos genéricos, a liquidar posteriormente de acordo com os cânones gerais do incidente de liquidação.

Por isso, o lesado tem a faculdade de prescindir da prova no momento processual inicial, para quantificar os danos exactos que sofreu, podendo fazê-lo mais tarde.

Assim sendo, por paridade de razão, isso também lhe será facultado quando formular um pedido líquido e certo e não lograr fazer a prova daquele montante líquido.

Pressuposto essencial é a demonstração da existência de prejuízos — o que foi efectuado no caso presente. O resto já tem que ver com a contabilidade da sua amplitude. (vd. acórdão do ST, de 11-01-2005, proc. 04A4007, cuja linha de raciocínio aqui foi seguida).

Veja-se ainda o supra identificado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-01-1998, in BMJ 473, 445, “a mais elementar razão de sã justiça, de equidade, veda a solução de se absolver o réu apesar de demonstrada a realidade da sua obrigação; mas também se revela inadmissível, intolerável, que o juiz profira condenação à toa.

Por isto, o legislador ditou a regra da condenação no que se liquidar em execução de sentença – art. 661º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Esta regra, porque especial, prevista para casos particulares a respeito dos quais provê, não contende como disposto nos artigos 342º, nº1 do Código Civil ou 672º do Código de Processo Civil.

Repare-se que, por força do disposto no § único do artigo 275º do Código de Processo Civil de 1939, era obrigatória a conversão do pedido genérico em específico na pendência da acção declarativa, por meio de incidente de liquidação, nas duas primeiras hipóteses de admissibilidade de pedido genérico; a conversão só podia ser deixada para a acção executiva em caso de impossibilidade.

Ora esta conversão deixou de existir logo a partir de 1961, atenta a redacção dada ao nº 2 do art. 471º do Código de Processo Civil de 1961, correspondente ao artigo 275º de 1939. A conversão do pedido genérico em específico na pendência da acção declarativa, ainda que possível, passou a ser facultativa, podendo sempre a ela proceder-se na acção executiva.

Daqui resulta que a interpretação restritiva do disposto no artigo 661º, nº 2 do Código de Processo Civil não casa com a eliminação da obrigatoriedade de conversão do pedido genérico em específico na pendência da acção declarativa.

Mais recentemente, entre outros, em plano de similitude, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 03-10-2006, proc. 497/2000.C1, onde se sumariou e decidiu, designadamente:

«Não existe qualquer dúvida que os demandantes sofreram danos em resultado do acidente dos autos, apesar de, em relação a parte deles, não se conhecer qual o montante concreto a que ascenderam tais prejuízos. Perante esta circunstância, o que fazer?

Condenar a R. Seguradora no pagamento aos AA., nos valores dos danos, efectivamente, sofridos por eles, a liquidar em execução de sentença, como se fez na douta sentença recorrida, ou absolver a demandada com o fundamento de os AA. não terem logrado provar, podendo tê-lo feito na acção declarativa, os valores desses prejuízos, como defende a apelante?

Vejamos:

Estipula o art. 661º nº 2 do C.P.Civil:

" Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida ".

Aplicação desta norma, para o que aqui interessa, depende da verificação, em concreto, de uma indefinição de valores de prejuízos. Mas como pressuposto primeiro de aplicação do dispositivo, deverá ocorrer a prova de existência de danos.

Este preceito tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, a quantidade de condenação (neste sentido A. Reis, C.P.C. Anotado, Vols. I pág. 614 e segs. e V pág. 71, Vaz Serra, RLJ, ano 114º, pág. 309, Rodrigues Bastos, Notas ao C.P.C, vol. III, pág. 233). Portanto e para o que aqui importa, no caso de o autor ter deduzido um pedido específico (isto é, um pedido de conteúdo concreto), caso não logre fixar com precisão a extensão dos prejuízos, poderá fazê-lo em liquidação em execução de sentença.

A este propósito haverá a salientar, corroborando a posição que se assume, que a norma não distingue os pedidos, aplicando regimes diversos consoante se trate de pedidos genéricos ou pedidos específicos. Note-se que a norma fala genericamente em casos em que não há elementos para fixar a quantidade, pelo que reduzir o campo de aplicação da norma aos pedidos genéricos (concretizados no art. 471º nº 1 do C.P.Civil), é diminuir, sem razão, o campo de aplicação da disposição, indo contra o antigo dito latino e princípio atinente à interpretação de normas jurídicas, segundo o qual "ubi lex non distinguit, nec nos destinguere debemus".

A própria lei substantiva, concretamente o art. 569º do C.Civil, permite ao lesado a possibilidade de deduzir pedidos genéricos, a concretizar, posteriormente. Por isso, se o lesado não necessita de indicar, logo no momento inicial do processo, a importância exacta em que avalia os danos que sofreu, podendo fazê-lo mais tarde, por maioria de razão isso também lhe deverá ser facultado quando formule um pedido líquido e certo e não logre fazer prova do respectivo montante.

Quer isto dizer que, no caso vertente, apesar de se ter deduzido um pedido específico em relação aos prejuízos e de não ter logrado fazer a prova da especificação, provando-se a existência de danos, a aplicação à situação desta disposição, é correcta.

Neste sentido, tem decidido a jurisprudência que consideramos dominante e mais recente, como o Ac. do STJ de 18-4-2006 (in www.dgsi.pt/jstj,nsf/954) onde expressamente se refere em sumário que “a relegação para liquidação em execução de sentença de indemnização deduzida pelos réus na sua reconvenção, é legalmente possível, apesar de terem formulado um pedido líquido e não terem conseguido provar o montante exacto dessa indemnização”. No mesmo sentido decidiram, entre outros, os Acs. do STJ de 25-10-2005 (in www.dgsi.pt/jstj,nsf/954 ), de 29-1-98 ( BMJ, 473º, 445), de 3-12-98 ( BMJ, 482º, 179). De resto, a não entender-se assim, uma interpretação da norma em causa como a que pretende a apelante, iria originar a que a verdade formal se sobrepusesse à verdade material, o que contrariaria um dos objectivos da reforma processual civil de 1995/96, pois o legislador, como referiu no preâmbulo do Dec-Lei 329/95 de 12/12, teve em vista remover obstáculos que impedissem a realização de uma justiça material, tendo introduzido na lei adjectiva diversas normas para lograr esse fim, tais como, a possibilidade de suprimento oficioso dos pressupostos processuais (arts. 265º nº 2 e 508º nº 1 al. a)), a possibilidade de o juiz proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento de qualquer articulado (art. 508º nº 2 e 3), a possibilidade do juiz ampliar a matéria de facto a partir de factos resultantes da instrução e discussão da causa (art. 265º nºs 2 e 3). Ainda a este propósito entendemos sublinhar o que sobre a questão se referiu no Acórdão do STJ de 29-1-1998 já acima referenciado: “A mais elementar razão de sã justiça, de equidade, veda a solução de se absolver o réu apesar de demonstrada a realidade da sua obrigação; mas também se revela inadmissível, intolerável que o juiz profira condenação à toa. Por isso o legislador ditou a regra da condenação no que se liquidar em execução de sentença – art. 661º nº 2 do Código de Processo Civil -“.

Aliás o entendimento que perfilhamos era já o mais seguido, antes da dita reforma processual (vide., entre outros, o Ac. do STJ de 27-1-93 (Col. Jur., Acs. STJ, 1993, 1º, 89).».

No acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22-02-2001, proc. 0031748, sumariou-se: “Provada a existência de danos, mas não se apurando o seu valor, apesar de sobre este ter incidido a produção de prova, deve relegar-se a sua liquidação para execução de sentença, quer se tenha formulado pedido genérico quer específico.”.

Termos em que procede o fundamento do recurso, nesta parte.

Em suma:

— Quanto ao recurso interposto pelo Réu Hospital:

i. Improcede o fundamento do recurso relativamente ao alegado erro no julgamento da matéria de facto contida nos quesitos 2º, 3º, 8º, 9º-A, 15º e 16º da base instrutória;

ii. Improcede o fundamento do recurso relativamente ao alegado erro no julgamento de direito quanto aos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, ilicitude e culpa;

iii. Procede o fundamento do recurso quanto à subsidiária questão de saber se a decisão recorrida errou na aplicação do artigo 496º, nº 2, do Código Civil, ao atribuir uma indemnização ao pai da vítima, JBFC, devendo a mesma ser revogada nesta medida.

— Quanto ao recurso interposto pelos Autores:

i. Procede o fundamento do recurso quanto ao erro na apreciação do pedido formulado na alínea d) do petitório atinente ao Autor RMPM, com alteração do decidido em primeira instância, que excluiu da decisão final a respectiva condenação do Réu, entendendo-se ser admissível relegar para execução de sentença a sua liquidação.

III. DECISÃO

Termos em que acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte, no seguinte:

I — Quanto ao recurso jurisdicional interposto pelo Réu Hospital, em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:

A) Revogam a decisão de condenação do Hospital Réu a pagar a JBFC, indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 30.000,00 acrescido de juros desde a notificação da sentença;

B) No mais, acordam em negar provimento ao recurso.

II — Quanto ao recurso interposto pelos Autores, RMPM e outros, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, condena-se o Hospital Réu a pagar ao Autor RMPM os montantes que vierem a ser liquidados em execução de sentença, correspondentes às despesas cuja existência, enquanto dano, foi julgada provada em 70) e 71) da matéria assente, acrescidos de juros de mora desde a data da sentença e até integral pagamento.

Custas da 1ª instância e da apelação a cargo do Hospital Réu, na proporção do decaimento, sendo que os Autores beneficiam de apoio judiciário.

Notifique e D.N..

Porto, 22 de Janeiro de 2016
Ass.: Helder Vieira
Ass.: Alexandra Alendouro
ASS.: João Beato
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(1) Nos termos dos artºs 144.º, n.º 2, e 146.º, n.º 4, do CPTA, 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4, e 685.º-A, n.º 1, todos do CPC, na redacção decorrente do DL n.º 303/07, de 24.08 — cfr. arts. 05.º e 07.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 41/2013 —, actuais artºs 5.º, 608.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4 e 5, 639.º e 640º do CPC/2013 ex vi artºs 1.º e 140.º do CPTA.
(2)Tal como delimitadas pela alegação de recurso e respectivas conclusões — artigos 608º, nº 2, e 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 2, 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil ex vi artº 140º do CPTA.
(3) Para tanto, e em sede de recurso de apelação, o tribunal ad quem não se limita a cassar a decisão judicial recorrida porquanto, “ainda que declare nula a sentença, o tribunal de recurso não deixa de decidir o objecto da causa, conhecendo do facto e do direito”, reunidos que se mostrem os necessários pressupostos e condições legalmente exigidas — art. 149.º do CPTA.