Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00584/12.0BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:05/29/2014
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
TÍTULO EXECUTIVO
Sumário:I- As partes não podem atribuir força executiva a um documento ao qual a lei não concede eficácia de título executivo.
II- Qualquer título que a lei expressamente não repute como tal poderá ser utilizado como documento num processo de declaração, mas não terá a virtualidade de ser gerador de uma acção executiva.
III- Sendo particulares os documentos que serviram de título à presente execução, deles não constando, desde logo, a assinatura do devedor, no caso, o Município, por intermédio de qualquer legal representante ou procurador com poderes bastantes para o vincular, bem andou o Senhor Juiz ao concluir pela inexistência de título executivo válido, face à não verificação dos requisitos cumulativos previstos na alínea c) do artigo 46º do CPC.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:MJS...
Recorrido 1:Município de Tabuaço
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Execução para pagamento de quantia certa - arts. 170.º e seguintes CPTA - Recurso Jurisdicional
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
MJS... intentou contra a Câmara Municipal de Tabuaço, ambos já melhor identificados nos autos, execução para pagamento de quantia certa, dando à execução como título executivo duas facturas, no valor global de 9.000,00€.
Alegou, em síntese, que a Entidade Executada ainda não procedeu ao pagamento das referidas facturas, apesar de interpelada para o efeito por diversas vezes.
Concluiu pedindo a condenação desta ao pagamento da “…quantia exequenda, atualmente de € 2.216,65, acrescida dos juros vincendos, … sobre o valor da dívida original, de 9.000,00 €”.
Por despacho saneador proferido pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Viseu, foi decidido assim: “..julgo verificada e procedente a excepção atrás indicada e, consequentemente, absolvo a Entidade Obrigada da presente instância executiva, nos termos do artigo 278º, nº 1, alínea e), do CPC, aplicável “ex vi” artigo 1º do CPTA.”
Desta decisão vem interposto recurso.
Em alegação o Exequente concluiu que:
1ª- A Recorrida redigira e o exequente assinara duas declarações datadas de 18.9.09, onde este se obriga a executar os trabalhos ali previstos pelas quantias de 4.500,00€ e 3.000,00€, mais IVA, no valor global de 9.000,00€, que aquela aceitou, e se obrigou a pagar-lhe no termo da sua execução.
2ª- Ao final dos trabalhos, o recorrente entregou à executada as faturas respeitantes a cada uma daquelas fases, com os nºs 000122 e 000123, pelo valor orçamentado, que a mesma logo se obrigou a pagar-lhe.
3ª- Na verdade, na secretaria do Município e por mão do Chefe dos Serviços Admnistrativos foram emitidos os respetivos títulos, datados de 26.10.09, destinados à imediata liquidação daquelas importâncias, mas que o exequente não logrou que lhe fossem pagas na Tesouraria do Município até à data.
4ª - A Senhora Juiz veio, agora, absolver a executada da instância, com o fundamento de que aquelas faturas, porque não assinadas pela devedora, não poderam ter-se como títulos executivos, na aceção do 46-1.c) do anterior CPC, sendo certo, porém, que as mesmas não têm que ser assinadas pelo presidente de Câmara, podendo ter sido emitidas, como foram, pelo Chefe dos Serviços Admnistrativos da própria Câmara, entidade responsável pelo pagamento de quaisquer quantias devidas pelo município.
5ª- O mesmo CSA, mais do que subscrever aquelas faturas, emitiu, portanto, os documentos legalmente adequados ao seu pagamento adrede e imediato, pelo que os docs 3 e 4 da p.i. assumem aqui a força própria de verdadeiros títulos executivos, na medida em que aquele autorizou expressamente o pagamento dos trabalhos requisitados pelos competentes Serviços camarários, obrigando-se a pagar ao exequente as exatas quantias a que se reporta cada uma dessas faturas.
6ª- Funcionam, pois, tais títulos como ordens de pagamento, enquanto confissões de dívida, revestindo-se do mesmo ou, ainda, de maior valor do que aquele que as referidas faturas consubstanciam.
8ª- Sendo a documentos dessa natureza que se refere o legislador com as expressões consignadas nas als. b), in fine, e d) do citado art. 46º do CPC e ao dar também como exequível “outro qualquer título passível de ser accionado”, na previsão do 157º-3 do CPTA.
9ª- Mostra-se, pois, a sentença recorrida incursa na nulidade prevista no art. 668º-1.d) do anterior CPC, designadamente por não ter levado em conta que as faturas junta aos autos, complementadas com os docs 3 e 4 da p.i. constituem títulos executivos bastantes, na aceção e para os efeitos previstos nos arts 46º do CPC e 157º-3 do CPTA.

Nestes termos e melhores de direito que serão supridos, revogando a decisão em mérito e substituindo-a por outra que determine o prosseguimento dos autos, far-se-á JUSTIÇA

Não foi oferecida contra-alegação.
O MP, notificado nos termos e para os efeitos contidos no artº 146º/1 do CPTA, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO/DE DIREITO
Está posto em causa o despacho proferido pelo TAF de Viseu, que julgando verificada a arguida excepção da ausência de título executivo, absolveu da instância executiva o Município de Tabuaço/Recorrido.
É este o teor da decisão sob censura:
“(…)
Da alegada ausência de título executivo
«Resulta do artigo 157º que podem servir de base a um processo executivo a intentar nos tribunais administrativos as sentenças proferidas por estes tribunais (cfr. artigo 157º, nºs 1 e 2), os actos administrativos inimpugnáveis de que resultem direitos para particulares a que a Administração não dê a devida execução (cfr. artigo 157º, nº 3) e os demais títulos executivos que, nos termos da lei geral, podem ser accionados contra a Administração (cfr. artigo 157º, nº 3): estes últimos são os documentos que, para além das sentenças, o artigo 45º do CPC qualifica, em geral, como títulos executivos.» (Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, 2010, Almedina, página 500 e 501) (destaque a negrito da signatária).
Nos termos do artigo 6º, nºs 1 e 3, da Lei 41/2013, de 26 de Junho, sob a epígrafe “Ação executiva” «1 - O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, aplica-se, com as necessárias adaptações, a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor.», salvo relativamente «3 - …, …aos títulos executivos, às formas do processo executivo, ao requerimento executivo e à tramitação da fase introdutória só se aplica às execuções iniciadas após a sua entrada em vigor.». (destaques da signatária).
Para apreciação da excepção em apreço e tendo em conta a prova documental patente nestes autos, considero relevante a seguinte matéria de facto:
A) Em 26/10/2009, o Exequente emitiu uma factura em nome do Município de Tabuaço, com o contribuinte 506601455, com a designação “Serviço designado na requisição nº 4697 em Adorigo”, no valor de € 3.000,00, acrescido de IVA, à taxa de 20%, no valor de € 600,00, num total de € 3.600,00, contendo a vermelho e manuscrito, no canto superior direito o número “407(cf. documento junto pelo Exequente).
B) Em 26/10/2009, o Exequente emitiu uma factura em nome do Município de Tabuaço, com o contribuinte 506601455, com a designação “Serviço designado na requisição nº 4698 em Adorigo”, no valor de € 4.500,00, acrescido de IVA, à taxa de 20%, no valor de € 900,00, num total de € 5.400,00, contendo a vermelho e manuscrito, no canto superior direito o número “406(cf. documento junto pelo Exequente).
C) O presente processo executivo deu entrada neste TAF em 22/11/2012 (cf. fls. 1 dos autos).

Vejamos então.
Toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva (artigo 10º, nº 5, do CPC vigente).
O Exequente deu à execução duas facturas (alíneas A) e B) do probatório).
Preceituava o artigo 46º, nº 1, alínea c), do CPC, [Já revogado pelo artigo 4º, alínea a), da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho] que «À execução apenas podem servir de base: (…)
c) Os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias, cujo montante seja determinado ou determinável por simples cálculo aritmético de acordo com as cláusulas dele constantes, ou de obrigação de entrega de coisa ou de prestação de facto;…» (destaque da signatária).
Ora, as facturas juntas aos autos pelo Exequente e dadas à execução como títulos executivos (alíneas A) e B) do probatório) não se encontram assinadas pela EO. e, como tal, não constituem títulos executivos, nos termos do supra transcrito artigo 46º, nº 1, alínea c), do CPC.
Em resumo, inexistindo título executivo, não pode o Tribunal, com efeito, conhecer do objecto deste processo nem os autos podem prosseguir, indo a EO. ser absolvida desta instância executiva.”
X
O Recorrente assaca ao despacho erro de julgamento de direito, invocando, para tanto, o desacerto da interpretação e aplicação do artº 46º do anterior CPC, em que se alicerçou o tribunal a quo para a solução do caso.
Avança-se, desde já, que não lhe assiste razão.
Como é sabido, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da acção executiva.

O título executivo é o documento do qual resulta a exequibilidade de uma pretensão e, portanto, a possibilidade de realização coactiva da correspondente pretensão através de uma acção executiva; esse título incorpora o direito de execução, ou seja, o direito do credor a executar o património do devedor ou de um terceiro para obter a satisfação efectiva do seu direito à prestação - cfr. artºs 817º e 818º do CC.

“As partes não podem atribuir força executiva a um documento ao qual a lei não concede eficácia de título executivo (“nullus titulus sine lege”) e também não podem retirar essa força a um documento que a lei qualifica como título executivo; tal significa que os títulos executivos são, sem possibilidade de quaisquer excepções criadas “ex voluntate”, aqueles que são indicados como tal pela lei e que, por isso, a sua enumeração legal está submetida a uma regra de tipicidade.” - ac. do STJ de 29/4/2014, rec. 5656/12.9YYPRT.P1.S1.

No que tange à definição de título executivo, ensina-nos Amâncio Ferreira, invocado pela Senhora Procuradora-Geral Adjunta, que “Podemos defini-lo, na esteira de Manuel de Andrade, como o documento de acto constitutivo ou certificativo de obrigações, a que a lei reconhece a eficácia de servir de base ao processo executivo ou, então, como Mandrioli, como um acto de verificação (accertamento)” contido num documento que, no seu complexo, constitui a condição necessária e suficiente para proceder à execução forçada.” (em «Curso de Processo de Execução», 3ª ed. revista e actualizada, pág. 19).
Mais avança o citado Autor que a enumeração dos títulos executivos, efectuada no artigo 46º do anterior CPC, é taxativa e que “Qualquer outro título que não venha incluído no referido preceito poderá ser utilizado como documento num processo de declaração, mas não terá a virtualidade de ser gerador de uma acção executiva” (ob. cit., pág. 20).
Mais acrescenta que “Os documentos particulares para se configurarem como títulos executivos devem obedecer aos requisitos mencionados na alínea c) do artº 46º, a saber:
a) Conterem a assinatura do devedor;
b) Importarem a constituição ou reconhecimento de obrigações;
c) As obrigações reportarem-se ao pagamento de quantia determinada ou determinável por simples cálculo aritmético, à entrega de coisas móveis ou à prestação de facto.” (v. autor e obra citados, pág. 30).
A jurisprudência do STJ é uniforme no sentido da tipicidade dos títulos executivos.
No ac. de 10/12/2013, rec. 2319/10.3TBOAZ-A.P1.S1, o sumário reza assim:
I. Na execução a causa de pedir não é o próprio título executivo, mas antes os factos constitutivos da obrigação exequenda reflectidos naquele: o título executivo terá de representar o acto jurídico pelo qual o executado reconhece uma obrigação para com o exequente.
II. Se o titulo dado à execução não contém a se, nem dele se extrai, a expressão da proveniência do direito de crédito do Exequente no confronto com o dever de pagamento dos Executados, tratando-se de uma mera «Declaração» de quitação sujeita a determinadas condições, dela não decorrendo qualquer reconhecimento ou confissão de dívida, o mesmo não poderá enquadrar o preceituado no normativo inserto no artigo 46º, nº 1, alínea c) do CPCivil.
E no ac. de 05/05/2011, rec. 5652/9.3TBBRG.P1.S1 consignou-se que:
I- Da mesma forma que a causa de pedir pode ser simples ou complexa, também o título executivo o poderá ser.
II- O título executivo é complexo quando corporizado num acervo documental em que a complementaridade entre dois ou mais documentos se articula e complementa numa relação lógica, evidenciada no facto de, regra geral, cada um deles só por si não ter força executiva e a sua ausência fazer indubitavelmente soçobrar a do outro, mas juntos asseguraram eficácia a todo o complexo documental como título executivo.
III- Se um complexo documental particular, de aparente exequibilidade extrínseca e intrínseca, é recognitivo de uma obrigação pecuniária, exigível e líquida, preenche o título executivo extrajudicial tipificado na al. c) do artº 46º do CPC

Com estes ensinamentos e voltando ao caso em concreto, temos como inequívoco que são particulares os documentos que serviram de título à presente execução.
Na verdade, dos mesmos não consta a assinatura do devedor, o Município de Tabuaço, por intermédio de qualquer legal representante ou procurador com poderes bastantes para o vincular.
É certo que o Recorrente advoga que os títulos executivos não são as facturas constantes de fls. 26 do p. f., mas sim as “Declarações” por ele mesmo assinadas, conjugadas com as Requisições Externas de Despesa, as quais constituem os documentos 1, 2, 3 e 4 juntos com o requerimento executivo (v. fls. 14 a 17 do p. f.).
Porém, as mencionadas Declarações, insertas a fls. 14 e 15 do p. f., para além de se reportarem a ofícios cujo teor se desconhece, são declarações unilaterais, porque exclusivamente assinadas pelo próprio exequente e, portanto, não constituem quaisquer declarações negociais e, muito menos, de constituição e/ou reconhecimento de dívida por parte do executado.
Por outro lado, como bem se extrai do parecer antecedente do MP, as também aludidas Requisições Externas de Despesa são documentos processados por computador, que exibem duas assinaturas ilegíveis sob as menções de “Serviço Requisitante” e “Autorização”, tendo-lhes, ademais, sido apostas, em caracteres manuscritos, cuja autoria se desconhece, as referências a facturas com os nºs 000 122 e 000123, facturas essas sem qualquer correspondência com as constantes de fls. 26 dos presentes autos.
Como já acima se salientou, ignora-se a quem pertencem as assinaturas apostas nessas Requisições; o Recorrente não demonstrou que tenham sido feitas pelo punho do Chefe dos Serviços Administrativos do executado Município de Tabuaço. Por outro lado, desconhece-se se o mesmo detinha poderes bastantes para que a sua assinatura pudesse vincular o próprio executado, sua entidade patronal.
Logo, falta, nos citados documentos particulares, que serviram de suporte à instauração da execução, o requisito essencial da aposição da assinatura do devedor.
Assim sendo, bem andou o Senhor Juiz ao concluir pela inexistência de título executivo válido, face à não verificação dos requisitos cumulativos previstos na alínea c) do citado artº 46º do antigo CPC.
Tal equivale a dizer que têm de improceder as conclusões da alegação.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Notifique e D.N..
Porto, 29/05/2014
Ass.: Fernanda Brandão
Ass.: Hélder Vieira
Ass.: Ana Paula Portela