Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00061/17.3BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/11/2019
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:FUNDO DE GARANTIA SALARIAL; CRÉDITOS SALARIAIS; CESSAÇÃO DO CONTATO DE TRABALHO; SENTENÇA; INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO CRÉDITOS SALARIAIS; ARTIGO 309º DO CÓDIGO CIVIL;
ARTIGO 2.º, N.º 8, DO NOVO REGIME DO FUNDO DE GARANTIA SALARIAL (DECRETO-LEI N.º 59/2015, DE 21.04); INCONSTITUCIONALIDADE.
Sumário:
1. No caso de créditos salariais, embora emergentes da cessação de contrato de trabalho, que foram reconhecidos por sentença aplica-se o prazo geral de prescrição de vinte anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.
2. É inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2018, de 27.06.2018, no processo 555/2017 (retificado pelo Acórdão nº 447/2018). *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Fundo de Garantia Salarial
Recorrido 1:CTPC
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

Fundo de Garantia Salarial veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, pela qual foi julgada procedente a acção administrativa que CTPC intentou contra o Recorrente e, em consequência, anulado o acto que indeferiu o requerimento para pagamento de créditos salariais formulado pelo Autor e condenado o Réu Fundo de Garantia Salarial a apreciar o referido requerimento, procedendo aos pagamentos que lhe forem devidos nos termos dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21.04.
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Invocou para tanto, em síntese, que a sentença recorrida padece de ilegalidade e erro de julgamento quanto à solução jurídica da causa por errada aplicação do direito e ter violado o n.º 1 do artigo 3º do preâmbulo, os n.ºs 4 e 8 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04.
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O Recorrido não contra-alegou.
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O Ministério Público neste Tribunal não emitiu parecer.
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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
1 - O presente recurso tem por objecto a sentença proferida pelo Tribunal "a quo" que, em 23/05/2018, ordenou a) a anulação do ato que indeferiu o requerimento para pagamento de créditos salariais formulado pelo autor, condenando o réu Fundo de Garantia Salarial a apreciar o referido requerimento, procedendo aos pagamentos que lhe forem devidos nos termos dos artigos 2º e 3º do Decreto-Lei nº. 59/2015 de 21 de Abril.
2 - Salvo o devido respeito por melhor opinião a sentença recorrida padece de ilegalidade e erro de julgamento quanto à solução jurídica da causa por errada aplicação do direito e ter violado o n.º 1 do artigo 3º do preâmbulo, os n.ºs 4 e 8 do artigo 2º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21/04.
Isto porque
3 - Na sentença ora em apreciação a Meritíssima Juiz refere que CTPC intentou a presente acção administrativa contra o Fundo de Garantia Salarial com vista "ser declarado nulo ou anulado o acto de indeferimento do pedido de pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho praticado pelo Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial, através do ofício nº 59624 datado de 3 de Outubro de 2016 e B) ser o Réu condenado a deferir o pedido apresentado pelo Autor de pagamento, pelo menos relativamente aos créditos laborais vencidos emergentes do não pagamento de retribuição, subsídio de alimentação e indemnização pela cessação do contrato de trabalho, devidos e vencidos no período que medeia entre 23.01.2013 e 23.07.2012".
Com efeito,
4 - O trabalhador reclamou créditos no âmbito do processo de insolvência n.º 1364/12.9TBPTL onde a sua Entidade Patronal foi declarada insolvente cuja sentença transitou em julgado em 13/02/2013. O recorrido requereu o FGS em 02/03/2016.
Acresce que,
5 - Considera a Meritíssima Juiz que ..." a reclamação e o reconhecimento de créditos laborais no âmbito do processo de insolvência da entidade patronal do autor neste tocante terão o mesmo efeito da acção interposta no Tribunal de Trabalho, ou seja a reclamação interrompe o prazo de prescrição de um ano, porquanto reflecte a intenção do trabalhador de exercer o seu direito de crédito e o reconhecimento acarreta o prazo de prescrição só ocorra passados vinte anos... Artigos 311º n.º 1 e 309º do Código Civil".
6 - Todavia acrescenta que…, “segundo o artigo 319 nº 3 do Regulamento do Código de Trabalho aprovado pela Lei 35/2004 de 29.7, esse prazo era de 20 anos, pelo que o Autor ainda estaria em prazo de reclamação dos seus créditos salariais junto do FGS, faltando ainda muitos anos para a caducidade do direito de reclamar o pagamento dos créditos laborais".
7 - Entende ainda a Meritíssima Juíza no seu aresto que..."O prazo antigo estava pois, ainda em curso e era mais longo que o prazo novo".
8 - Concluindo a Meritíssima Juíza que assiste aqui razão ao Autor e que este "...poderia reclamar os seus créditos junto do FGS até ao dia 4 de Maio de 2016", um ano após a entrada em vigor do diploma legal que estabeleceu o novo regime do FGS, "...pelo que tendo-o feito a 02.03.2016, fê-lo atempadamente, não se verificando a caducidade do seu direito".
9 - Destarte a Meritíssima Juiz considerou erroneamente que o requerimento (de 02/03/2016 que esteve na origem do ato de indeferimento de 29/09/2016) apresentado pelo Autor é tempestivo nos termos e para os efeitos do artigo 3º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 59/2015 de 21 de Abril: pelo que ao não ser admitido, o Réu violou tal disposição normativa.
10 - O requerimento apresentado em 02/03/2016 está abrangido pelo normativo inserto no DL 59/2015, de 21/04 (cf n.º 1 do art.º 3 do preâmbulo) e, portanto, sujeito à verificação cumulativa de todos os requisitas exigidos, sendo um deles, a tempestividade do requerimento previsto nos termos do n.º 8 do art.º 2º do mesmo diploma legal.
11 - Tendo o contrato de trabalho do A. cessado no dia 30/09/2012, verifica-se a extemporaneidade do formulário, modelo GS1-DGSS e inobservância do prazo de caducidade previsto no n.º 8 do art.º 2º do DL 59/2015, de 21/04.
12 - À data em que o trabalhador apresentou o seu requerimento de FGS (02/03/2016) estava já em vigor o novo regime jurídico do FGS consubstanciado no Decreto-Lei nº 59/2015, de 21/4:
13 - O prazo consagrado no art.º 2 n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21/4, pretende impor o exercício de um direito até um certo momento temporal, o que se fundamenta em razões de segurança e certeza jurídica.
14 - Que o prazo previsto no n.º 8 do artigo 2º do novo regime jurídico do FGS é um prazo de caducidade.
15 - O prazo de caducidade caracteriza-se por não se suspender nem se interromper a não ser que a lei expressamente o determine, caso do artigo 328º do Código Civil.
16 - Atenta a data em que cessou o contrato de trabalho do trabalhador (2012) é inegável que à data em que requereu os seus créditos laborais, (2016), o referido prazo já se encontrava decorrido.
17 - O pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho de trabalho pelo FGS está sujeito à emissão de um ato administrativo e sujeito à aplicação dos princípios que norteiam a actividade administrativa como o princípio da legalidade, do qual decorre desde logo que o pagamento a efectuar ao trabalhador está limitado quantitativa e temporalmente, tratando-se de poder vinculado da Administração.
18 - A sentença, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 2º, nº 8º, bem como o n.º 1 e 3 do artigo 3º do preâmbulo e o artigo 5º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21/04, enfermando de ilegalidade e erro de julgamento.
19 - Assim, deverá o aresto produzido ser revogado e substituído por outro que julgue totalmente improcedente a presente acção administrativa por nada haver a apontar ao acto praticado em 29/09/2016 pelo recorrente FGS e notificado ao recorrido através do ofício número 59624 de 3 de outubro de 2016.
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II – Matéria de facto.
Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:
1- O Autor celebrou contrato de trabalho com a empresa “CHF&R, Lda.”.
2- O referido contrato de trabalho cessou no ano de 2012.
3- Em 24.12.2012, foi requerida a insolvência da empresa “CHF&R, Lda” – cf. fls. 4 do processo administrativo.
4- Em 23.01.2013, a empresa “CHF&R, Lda” foi declarada insolvente no âmbito do proc. 1364/12.9TBPTL, que correu termos pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima – cfr. fls. 5 a 16 do processo administrativo.
5- A referida decisão transitou em julgado a 13.02.2013 – cfr. fls. 4 do processo administrativo.
6- Em 19.02.2013, no âmbito do referido processo de insolvência, o Autor reclamou créditos, no valor global de 28.155,00 euros – cfr. documento 1 junto com a petição inicial e fls. 24 a 26 do processo administrativo.
7- Os referidos créditos foram reconhecidos por sentença proferida a 03.07.2015 e transitada em julgado a 31.12.2015 – cfr. fls. 4, 14 a 20 e 27 do processo administrativo.
8- Em 02.03.2016, o Autor requereu ao Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos créditos laborais emergentes da cessação do contrato de trabalho que havia celebrado com a sociedade “CHF&R, Lda. – cfr. fls. 1 do processo administrativo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
9- Em 18.03.2016, o Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial proferiu despacho no sentido do indeferimento do requerimento apresentado pelo Autor com o seguinte fundamento “O requerimento não foi apresentado no prazo de 1 ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, nos termos do nº 8 do art. 2º do Dec-lei nº 59/2015 de 21 de abril” – cfr. fls. 31 a 36 do processo administrativo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
10- O Autor, por ofício de 18.03.2016, foi notificado da intenção de indeferimento e para, querendo, se pronunciar – cfr. fls. 37 do processo administrativo.
11- O Autor apresentou resposta a 07.04.2016 – cfr. fls. 38 e 39 do processo administrativo.
12- Por despacho de 29.09.2016, do Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial foi mantida a decisão de indeferimento do requerimento apresentado pelo Autor com fundamento na sua extemporaneidade porquanto não foi apresentado no prazo de 1 ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho – cfr. fls. 42 a 47 do processo administrativo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
13- O Autor foi notificado da decisão de indeferimento por ofício, datado de 30.09.2016 - cfr. fls. 48 do processo administrativo cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
14- A petição inicial que originou a presente acção foi remetida a este tribunal, via site, a 07.01.2017 – cfr. fls. 1 dos autos.
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III - Enquadramento jurídico.
1. A inconstitucionalidade da norma constante do nº. 8 do artigo 2.º, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04.
Sobre este tema pronunciou-se o recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2018, de 27.06.2018 (rectificado pelo Acórdão nº 447/2018), no processo 555/2017:
“(…)
3. Face ao exposto, na improcedência do recurso, decide-se:
A) julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão;
(…)”
Discorrendo, para chegar a esta decisão, o seguinte:
“(…)
2.4.1. A proteção da retribuição inclui, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição, a previsão de “garantias especiais”, cuja modelação cabe ao legislador, que, para o efeito, goza de “ampla liberdade” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1166). Não obstante, a instituição do mecanismo do Fundo de Garantia Salarial (para além de – como vimos – consistir numa obrigação para o Estado Português decorrente do Direito da União) não pode deixar de ser vista como concretização de uma das garantias a que se refere aquele n.º 3 (nesse sentido, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 777).
Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5. Tendo presentes as linhas essenciais do NRFGS – em particular a norma objeto do presente recurso (cfr. itens 2.1. e 2.2., supra) – verificam-se aporias que o afastam do padrão de efetividade e certeza acabado de traçar.
De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS. Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
Não estamos – deve sublinhar-se – perante a questão, sucessivamente apreciada pela jurisprudência europeia, de saber se o legislador pode fixar prazos mais ou menos alargados para o exercício do direito ao acionamento do FGS, sob pena de caducidade ou prescrição: ninguém aqui discute a existência de prazos nem o prazo em concreto estabelecido na norma referenciada na decisão.
O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito. Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.
Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição. Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.
Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.
A este respeito, não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.
Note-se, todavia – sublinhando o sentido atuante que a qualificação jurídica do prazo aqui acabou por assumir –, que o Fundo, na fundamentação da respetiva posição de indeferimento da pretensão dos ora Recorridos (cfr. item 1.2.1. supra) – e sublinha-se, pois, que foi nesse quadro que a decisão recorrida, como não podia deixar de ser, se forjou –, qualificou expressamente o prazo em causa no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS como de caducidade, referindo-lhe expressamente a circunstância, que é própria do regime da caducidade nos termos do artigo 328.º do CC, de só comportar suspensão ou interrupção mediante previsão legal, no caso inexistente. E, de facto, é neste contexto que se afirma que, “[e]m matéria de contagem do prazo de caducidade[,] aplicam-se, em princípio, tal como na prescrição, as regras gerais, com uma importante diferença. Na caducidade vale muito mais plenamente o princípio segundo o qual o tempo se conta ininterruptamente”, já que, “[…] como resulta do artigo 328.º do CC, ‘o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe, senão nos casos em que a lei o determine’. Assim, se a lei, em cada caso concreto, não admitir, expressamente, a suspensão e a interrupção do prazo de caducidade (ou algum destes institutos), o prazo corre sempre sem intermitências de qualquer ordem” (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2007, p. 703). Ora, tendo sido a invocação, por parte do FGS, desta característica do regime da caducidade que conduziu à construção do indeferimento (por inexistir previsão legal a permitir a suspensão ou a interrupção do decurso do prazo), não poderia a decisão recorrida, ao sindicar esse indeferimento, deixar de pressupor essa interpretação e construir em função dela a questão de inconstitucionalidade que constituiu a respetiva ratio decidendi.
Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5.1. Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (referido supra no item 2.3.2.1.), que a configuração do prazo pode tornar “[…] impossível na prática ou excessivamente difícil” o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – “[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um EstadoMembro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza”.
2.6. As razões que antecedem são, pois, aptas a fundar um juízo de censura constitucional à norma sub judicio, confirmando a esse respeito a decisão recorrida. Complementarmente, justificam-se duas observações adicionais, referidas à incidência na situação do Direito da União e à referenciação da intervenção do Tribunal Constitucional exclusivamente à questão de inconstitucionalidade.
2.6.1. Assim, como primeira nota, respeitante às incidências do caso relativas ao Direito da União, cumpre-nos salientar, quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal no quadro referencial do artigo 8.º, n.º 4 da CRP (aqui relevante no trecho que estabelece que “[…] as normas emanadas das […] instituições [da União Europeia], no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos no Direito da União […]”), a ausência de justificação para que equacionemos (neste recurso) um reenvio prejudicial de interpretação ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE).
Vale esta opção – como adiante explicitaremos – em função da constatação de não se prefigurar aqui, na sequência da jurisprudência do TJUE referida ao longo deste Acórdão, uma dúvida quanto à interpretação do Direito da União que apresenta relevância no caso concreto, designadamente quanto ao sentido prescritivo dos artigos 3.º sucessivamente incluídos nas Diretivas 80/987/CEE e 2008/94/CE, referidas no item 2.3.1 supra. Estas, consubstanciando “atos jurídicos da União” vinculativos do Estado português “[…] quanto ao resultado a alcançar […]”, na aceção do terceiro parágrafo do artigo 288.º do TFUE (“[a] directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios”), mostram-se já devidamente esclarecidas pela jurisprudência do TJUE, no seu sentido operante relativamente à norma de Direito interno aqui sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional (o artigo 2.º, n.º 8 do NRFGS na interpretação em causa na decisão recorrida).
Aliás, conforme indicámos no item 2.5.1. supra, o ora decidido encontra-se, assumidamente, em linha com o sentido evidente dessa jurisprudência relevante na matéria aqui em causa – referimo-nos às decisões, todas proferidas em processos de reenvio, do TJUE referenciadas no item 2.3.3. supra e respetivas subdivisões (2.3.3.1 a 2.3.3.4.) –, concretamente com o ponto 46. acima transcrito, no item 2.3.3.1., constante do acórdão Visciano c. INPS, de 16 de julho de 2009 (processo C-69/08).
Com efeito, estando em causa uma obrigação de reenvio, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 267.º do TFUE, “[…] para os órgãos jurisdicionais que julguem sem hipótese de recurso judicial previsto no direito interno” [Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1982 – Processo 283/81 Srl Cilfit et Lanificio di Gavardo SpA c. Ministero della sanità”, in Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia. Uma Abordagem Jurisprudencial, Sofia Oliveira Pais (coord.), 3.ª ed., Coimbra, 2014, p. 223], verifica-se neste caso uma das circunstâncias nas quais, segundo o TJUE no acórdão Cilfit, está o tribunal nacional dispensado desse reenvio.
Referimo-nos em concreto, seguindo o ponto 14. desse acórdão de 1982 (que é invariavelmente assumido como precedente de forte valor persuasivo), às situações em que exista “[…] uma orientação jurisprudencial do Tribunal que esclareça o ponto de direito em causa, qualquer que seja a natureza do procedimento que deu lugar a esta jurisprudência, mesmo na ausência de uma estrita identidade das questões em litígio”. Nestes casos, o esclarecimento anterior pelo TJUE de uma situação equivalente, em termos aptos a suportar, consistentemente, um juízo de identidade de razão, confere à norma interpretada a natureza de “ato clarificado” (Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 1982…”, cit. p. 229).
2.6.2. A isto acresce – como segunda nota complementar acima indicada no item 2.6. – a seguinte observação. Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa). Assim, na falta de uma opção legislativa expressa, caberá aos tribunais comuns a solução das questões que o presente julgamento deixa em aberto (designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção).
Cinge-se, pois, a presente decisão, à questão de inconstitucionalidade, nos termos em que esta emergiu da decisão de recusa do Tribunal a quo.
2.7. Pelas razões que antecedem, improcede o recurso, devendo confirmar-se a decisão recorrida.
É o que nos resta afirmar, conferindo-lhe expressão decisória.
(…)”
Decisão com a qual se concorda, vistos os seus fundamentos.
Dispõe o artigo 282º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”.
“1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.
Não vemos razão para não aplicar esta norma, dirigida à hipótese de “declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral” ao caso, como o presente, em que temos uma declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ainda sem força obrigatória geral.
Na verdade é a solução que mais segurança e certeza traz para a solução de casos similares, dada a sedimentação que o antigo regime jurídico já tinha alcançado.
E porque, por outro lado, tendo em conta a multiplicidade de situações idênticas que correm nos tribunais administrativos, mantendo-se a declaração de inconstitucionalidade, com o recurso obrigatório pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, é previsível que venha a surgir essa declaração com força obrigatória geral, pelo que, com esta posição, já estará preparado o caminho pela jurisprudência dos tribunais administrativos para tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, reforçando a certeza e segurança jurídicas.
A configuração do prazo para reclamar créditos ao Fundo de Garantia Salarial constante da norma em apreço, como prazo de caducidade insusceptível, como tal, de suspensão ou interrupção, pode tornar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício do direito do trabalhador credor, além de que, face à divergência de interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, conduz a uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica o que pode constituir uma violação do princípio da efetividade.
Apenas não vemos razão para nos embrenharmos nas questões que aqui se deixam em aberto, designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção.
Questões cuja resolução poderá manter ou até acentuar a insegurança e incerteza na interpretação e aplicação da norma.
E porque, por outro lado, tendo em conta a multiplicidade de situações idênticas que correm nos tribunais administrativos, mantendo-se a declaração de inconstitucionalidade, com o recurso obrigatório pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, é previsível que venha a surgir essa declaração com força obrigatória geral, pelo que, com esta posição, já estará preparado o caminho pela jurisprudência dos tribunais administrativos para tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, reforçando a certeza e segurança jurídicas.
Dispunha o artigo 319º, nº 3, da Lei nº 35/2004, de 29.07, norma anteriormente em vigor, que o Fundo de Garantia Salarial só assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até 3 meses da respectiva prescrição.
No caso concreto os créditos, embora emergentes da cessação do contrato de trabalho, ocorrida em 2012, foram reconhecidos por sentença de 03.07.2015, transitada em julgado em 31.12.2015, em processo de insolvência da entidade patronal do Recorrido.
Pelo que ao caso se aplica o prazo geral de vinte anos, previsto no artigo 309º, do Código Civil, por aplicação do disposto no artigo 311º nº 1 do mesmo Código.
Assim sendo, quando o Autor reclamou junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos seus créditos salariais, no dia 02.03.2016, estava longe de caducar o seu direito porque também estavam longe de prescrever os créditos salariais.
2. Restantes questões suscitadas.
Decidida a questão anterior, fulcral, em sentido desfavorável ao Recorrentes, ao ponto de determinar por si só, a procedência total da acção, fica prejudicado o conhecimento de todas as demais questões suscitadas.
Pelo que se deve concluir que não merece provimento o recurso interposto pelo Fundo de Garantia Salarial, impondo-se manter a decisão recorrida, com os referidos fundamentos.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em NEGAR PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que mantêm a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Porto, 11.01.2019
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia, com declaração de voto
Ass. Maria da Conceição Silvestre, com declaração de voto
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Declaração de voto
Não dissentindo do fundamento de inconstitucionalidade presente no citado Ac. do Tribunal Constitucional, tenho que a sua transposição para o caso não passa por aplicar a norma do art.º 282º, nº 1, da CRP; antes, sem essa intermediação, cabe mesma solução de direito final por desaplicação, e sem represtinação.
Porto, 11 de Janeiro de 2019.
Ass. Luís Migueis Garcia
Ass. Maria da Conceição Silvestre