Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00717/21.6BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/15/2022
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:ACIDENTE DE VIAÇÃO, PRESCRIÇÃO, ARTIGO 498º/1 DO CÓDIGO CIVIL, AUSÊNCIA DE "DOLO DO OBRIGADO"
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
A..., LDA., com sede na ... ...,

instaurou ação administrativa contra o MUNICÍPIO DE ..., com sede na ... e C... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Avenida ..., ... Porto, formulando o pedido de condenação destes no pagamento da quantia de €7.353,00, acrescida dos juros de mora legais, contados da citação até efetivo e integral pagamento.

Por saneador-sentença proferido pelo TAF de Penafiel foi julgada

procedente a exceção de prescrição e absolvidos os Réus dos pedidos.

Deste vem interposto recurso.
Alegando, a Autora formulou as seguintes conclusões:

A)
Resulta dos autos e da sentença recorrida que apenas em 13/07/2018 a recorrente tomou conhecimento da resposta definitiva da recorrida - companhia de seguros - no sentido de não assumir os danos reclamados junto daquela.
B)

Tal situação ficou a dever-se a dolo do obrigado e não a qualquer acção da recorrente.
C)
Todo o período de delonga verificado na presente situação não pode ser imputável à recorrente, nem prejudicar a posição que a mesma ocupa de ver ressarcidos os danos por si reclamados.
D)

Assim, o prazo de prescrição do direito da recorrente só poderá começar a contar do dia 14/07/2018.
E)

Considerando-se que a prescrição ocorreria em 14/07/2021.

Porém,


F)

Fruto das medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica que impuseram diversas suspensões ao prazo prescricional, deverá ser aplicado ao referido prazo um período acrescido de 161 dias, como referido na sentença de que se recorre.
G)

Na data de instauração da presente acção e a data da citação das recorridas, ainda se encontrava pendente e em curso o prazo de prescrição aplicável com o acréscimo motivado pelas medidas excepcionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica.
H)

Entende a recorrente que não se verifica a invocada prescrição como pretendido pelas recorridas,
1)

Devendo, por isso, ser a sentença proferida ser alterada, considerando-se verificada a suspensão do prazo de prescrição aplicável e ordenando-se o prosseguimento dos autos nos termos requeridos na petição inicial.

Assim, revogando-se a decisão proferida e, ordenando-se o prosseguimento dos autos, se fará


JUSTIÇA.

A Ré/Seguradora juntou contra-alegações, sem conclusões, finalizando assim:

TERMOS EM QUE, mantendo-se a
decisão recorrida, far-se-á
JUSTIÇA!

O MP, notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na decisão foi fixada a seguinte factualidade:
A. A Autora é proprietária do veículo pesado de passageiros Mercedez Benz, com a matrícula ..-BH-.. - cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial;

B. O referido veículo foi interveniente num sinistro ocorrido no dia 11/12/2017, tendo embatido no tronco de uma árvore que estava na berma da estrada – cfr. documentos n.ºs ... e ... junto com a petição inicial;

C. Por carta datada de 14/12/2017 e endereçada à Câmara Municipal ..., a Autora comunicou o seguinte:

No passado dia 11 de Dezembro de 2017, pelas 19H00 o nosso autocarro de matrícula ..-BH-.., circulava na rua de ... em ..., tendo embatido numa árvore que estava caída na via pública, sem qualquer sinalização, tendo sido chamadas as autoridades para tomarem conta da ocorrência.
Os prejuízos sofridos pelo autocarro são elevados.

Assim, vimos solicitar com a maior urgência nos informem, qual a seguradora bem como o número de apólice, para que o autocarro seja avaliado dos prejuízos sofridos.” – cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial;

D. Em resposta à missiva referida na alínea antecedente, o Réu Município informou a Autora, por carta datada de 12/01/2018, que “o pedido de indemnização foi remetido para a companhia de seguros C... COMPANHIA DE SEGUROS (...), através do mediador SABSEG (...).” – cfr. documento n.º ... junto com a contestação do Réu Município;

E. Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...85, válida à data do sinistro, o Réu Município transferiu para a Ré Seguradora a responsabilidade civil geral “Autarquias”, com o capital de 1.250.000,00, por sinistro e anuidade, e franquia de € 250,00 – cfr. documentos n.ºs ... e ... juntos com a contestação da Ré Seguradora;

F. No dia 26/01/2018, a Ré Seguradora efetuou uma peritagem ao veículo da Autora, concluindo que a reparação dos danos ascendia à quantia de €688,00 – cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial;

G. Por ofício datado de 08/03/2018, a Ré Seguradora comunicou à Autora que declinava “qualquer responsabilidade inerente à presente ocorrência” – cfr. documento n.º ... junto com a petição inicial;

H. Por carta datada de 23/03/2018, endereçada à Ré Seguradora, a Autora reiterou a responsabilidade daquela pela reparação dos danos decorrentes do sinistro e requereu que a Ré reconsiderasse a sua posição – cfr. documento n.º ... junto com a réplica;

I. Em resposta à missiva referida na alínea antecedente, a Ré Seguradora reiterou a posição já vertida na comunicação referida na alínea G) - cfr. documento n.º ... junto com a réplica;

J. A petição inicial deu entrada em juízo em 29/10/2021 – cfr. fls. 1 dos autos;

K. Ambos os Réus foram citados em 05/11/2021 – cfr. fls. 47 e 48 dos autos.

X
DE DIREITO
Está posta em causa a decisão que ostenta este discurso fundamentador:
Na presente ação administrativa, a Autora peticionou a condenação dos Réus no

pagamento da quantia de € 7.353,00, acrescida da quantia correspondente aos juros de mora legais, contados desde a citação até efetivo e integral pagamento, emergente de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, ocorridos em 11/12/2017, alegando, em síntese, que ocorreu um embate de um veículo de sua propriedade num tronco de pinheiro que se encontrava na via por onde circulava e que não estava sinalizado, e que o acidente apenas se deu porque o Réu Município não cumpriu o seu dever de vigilância, fiscalização e segurança da referida via e que os danos decorrentes deste tipo de sinistros estavam transferidos, por via de contrato de seguro, para a Ré Seguradora.

O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas foi aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31/12, preceituando o artigo 5.º que o direito à indemnização prescreve nos termos do artigo 498.º do Código Civil, aplicando-se o disposto neste código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição.

A prescrição determina a paralisação dos direitos, sempre que os mesmos não sejam

exercidos, sem uma justificação legítima, durante um certo lapso de tempo fixado por lei. Confere-se, assim, ao beneficiário da prescrição, o poder ou a faculdade de recusar de modo lícito, a realização da prestação devida.

Dispõe o referido artigo 498.º do Código Civil o seguinte:

“1 – O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que

o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso.

2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de

regresso entre os responsáveis.

3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo

mais longo, é este o prazo aplicável.

4. A prescrição do direito de indemnização não importa prescrição da ação de

reivindicação nem da ação de restituição por enriquecimento sem causa, se houver lugar a uma ou a outra.”

O prazo de prescrição está sujeito às vicissitudes estabelecidas nos artigos 318.º e ss.º

do Código Civil, e concretamente, ao regime de interrupção estabelecido nos artigos 323.º e seguintes daquele diploma.

De acordo com o disposto no n.º 1 deste artigo, “a prescrição interrompe-se pela citação

ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito, seja qual for o processo a que o ato pertence e ainda que o tribunal seja incompetente.”

Por força do disposto no n.º 2 deste artigo, “se a citação ou a notificação se não fizer

dentro de cinco dias depois de ter sido requerida, por causa não imputável ao requerente, tem-se a prescrição por interrompida logo que decorram os cinco dias”.

Decorre, por sua vez do n.º 1 do artigo 326.º do código Civil que a “interrupção inutiliza

para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo (…).”

Voltando ao caso dos autos, importa então saber em que data se inicia o prazo de

prescrição, atendendo à posição divergente das Partes.

A este propósito trazemos à colação o referido no Acórdão do STA de 21/11/2013,

recurso n.º 0929/12, disponível em www.dgsi.pt:

“O art. 498º, 1, do CC prevê um prazo de 3 anos (que pode ser superior se o facto ilícito

for crime e a este corresponder um prazo de prescrição maior) para a prescrição do direito à indemnização “a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso”. Há, assim, dois prazos de prescrição: (a) um prazo mais curto a contar do conhecimento do direito; (a) um prazo geral a contar do facto danoso.


Quando a lei toma em consideração dois factos a partir dos quais começa a correr o

prazo (conhecimento do direito e facto danoso), fá-lo, certamente, porque quer distinguir as duas situações. Tal significa, portanto, que para este efeito “facto danoso” e “conhecimento do direito” não são a mesma coisa. Se fosse a mesma coisa, o prazo da prescrição, mesmo o mais curto, começaria sempre a contar do “facto danoso”.

Por outro lado, o art. 498º, 1, do CC diz-nos quais os elementos ou pressupostos da

responsabilidade civil que o lesado não tem que conhecer para que o prazo da prescrição comece: (i) a pessoa do responsável e (ii) a extensão integral dos danos. Quer isto dizer que o legislador, quando coloca o conhecimento do direito, como marcador do início da prescrição, exclui expressamente da necessidade de conhecimento a pessoa do responsável e a extensão integral dos danos. Portanto, ao não excluir (desse conhecimento) os factos constitutivos do direito à indemnização, o legislador considera que o conhecimento desses factos é, no fundo, o conhecimento idóneo para fazer iniciar o prazo da prescrição.

Nem poderia ser de outro modo, pois cabendo ao autor alegar, na petição inicial, os

factos constitutivos do seu direito, enquanto não tiver conhecimento deles não os pode alegar.

(...).

Portanto, e como se disse no acórdão deste STA de 6-7-2004, proferido no recurso 0597/04 (onde é feito um apanhado da jurisprudência e doutrina sobre este ponto) citando um outro acórdão de 21-1-2003 apesar da lei não considerar necessário que o lesado tenha a certeza jurídica do seu direito, já considera necessário que tenha conhecimento dos factos bastantes para poder qualificar o facto como ilícito: “não tem que ser “um conhecimento jurídico”, bastando que o lesado conheça os factos constitutivos desse direito, ou seja, esteja em condições de formular um juízo subjectivo, pelo qual possa qualificar aquele acto como gerador de responsabilidade e seja perceptível que sofreu danos em consequência dele”.”

Como refere Carlos Cadilha, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pp. 122-123, “Desde que se constate a ocorrência de um dano indemnizável (ainda que não completamente determinável) que proveio da prática de um facto ilícito e culposo, inicia-se o prazo prescricional, competindo ao lesado desenvolver as diligências para identificar o responsável. No âmbito da responsabilidade civil extracontratual da Administração, é, em todo o caso, possível deduzir um pedido indemnizatório contra o Estado ou outra pessoa colectiva pública quando os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular do órgão, funcionário ou agente, mas sejam atribuíveis a um deficiente funcionamento do serviço ou quando não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, embora o dano resulte de um concreto comportamento do agente (cfr. artigo 7.º, n.º 2). Por outro lado, quando os danos não sejam determináveis (ou o não sejam ainda em parte), o lesado poderá deduzir um pedido indemnizatório ilíquido, que permitirá remeter a fixação da indemnização para uma decisão ulterior, conforme prevê o artigo 564.º, n.º 2, 2.ª parte, do Código Civil (ver nota 7 ao artigo 3.º).”


Do exposto, resulta que o prazo de três anos para a prescrição do direito de

indemnização, decorrente da responsabilidade civil por facto ilícito, tem o seu termo inicial no conhecimento, pelo lesado, dos respetivos pressupostos, ou seja, que sabe ter direito à indemnização, que sabe que foi praticado um ato que lhe causou danos.

Ora, da factualidade provada resulta que o facto ilícito e danoso ocorreu em 11/12/2017, data em que ocorreu o embate do veículo matrícula ..-BH-.. no tronco de uma árvore que estava na berma da estrada, momento a partir do qual a Autora teve conhecimento do direito que lhe assistia, ou seja, que tinha ocorrido o sinistro descrito na petição inicial e que tal facto lhe provocou danos, aliás, isso mesmo vem demonstrado na carta que enviou ao Réu Município apenas três dias depois, quando descreve o sinistro e refere que “os prejuízos sofridos pelo autocarro são elevados.”

Assim, a prescrição do direito a que se arroga a Autora teria ocorrido a 11/12/2020.


Sucede que, por via da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 (que aprovou medidas excecionais e

temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-Cov2 e da doença COVID 19), alterada pela Lei 4-A/2020, de 06/04, e com efeitos a partir de 09/03/2020, foi decretada a suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos – cfr. artigo 7.º, n.º 3 e 10.º.

Assim, no dia 09/03/2020 o prazo prescricional em curso foi suspenso por força da Lei n.º 1-A/2020, ou seja, a sua contagem foi paralisada e só se retomaria a partir do momento em que viesse a ser declarado o términus da situação excecional de resposta à pandemia.


A Lei n.º 16/2020, de 29/05 veio, nomeadamente, dar por finda a suspensão dos prazos

judiciais e administrativos, alterando o regime que havia sido fixado pelo artigo 7.º da Lei n.º 1A/2020, de 19/03, alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04 e entrou em vigor em 03/06/2020.

No que diz respeito aos prazos de prescrição e caducidade, o artigo 6.º da Lei n.º 16/2020, dispõe o seguinte: “sem prejuízo do disposto no artigo 5.º, os prazos de prescrição e caducidade que deixem de estar suspensos por força das alterações introduzidas pela presente lei são alargados pelo período de tempo em que vigorou a sua suspensão.”


Assim, com a entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29/05, ou seja, em 03/06/2020, os

prazos de prescrição foram acrescidos em 87 dias (correspondente aos dias de suspensão dos prazos) – cfr. Acórdão do TCAN de 17/12/2021, processo n.º 00022/21.8BEAVR, disponível em www.dgsi.pt.

Voltando ao caso sub judice, tal implica que o prazo de prescrição terminaria em 28/03/2021. Sucede que, nesta data, estava em vigor a Lei n.º 1-A/2020, de 19/03 na redação dada pela Lei n.º 4-B/2021, de 01/03, que veio estabelecer um regime muito semelhante ao introduzido pela Lei n.º 4-A/2020, de 06/04, e, no que diz respeito à suspensão dos prazos de prescrição, similar ao exposto supra, pelo que o prazo de prescrição foi alargado pelo período correspondente à vigência da suspensão, a qual vigorou de 22/01/2021 a 05/04/2021, num total de 74 dias – cfr. artigo 6.º-B. n.º 3 da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, aditado pela Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, artigo 4.º da Lei n.º 4-B/2021 e artigos 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 05/04.


Por via das duas suspensões de prazo previstas na legislação que referimos, o prazo de

prescrição foi acrescido em 161 dias (87 + 74), pelo que, a prescrição do direito de que a Autora se arroga ocorreu no dia 21/05/2021.

*
Alega ainda a Autora que as Rés a impediram de exercer o seu direito, pelo que deve ser

aplicado o disposto no artigo 321.º, n.º 2 do Código Civil que prevê a suspensão da prescrição por dolo do obrigado.

Dispõe o artigo 321.º do Código Civil o seguinte:

“1. A prescrição suspende-se durante o tempo em que o titular estiver impedido de fazer

valer o seu direito, por motivo de força maior, no decurso dos últimos três meses do prazo.

2. Se o titular não tiver exercido o seu direito em consequência de dolo do obrigado, é

aplicável o disposto no número anterior.”

Alega a Autora, neste ponto, que só em 13/07/2018 é que a Ré Seguradora lhe deu a

resposta definitiva no sentido em que não assumia o pagamento dos danos reclamados e que a delonga na tomada de posição de qualquer das Rés a impediu de exercer o seu direito.

Dado que nos termos do artigo 321.º do Código Civil a suspensão do prazo por “dolo do

obrigado” “apenas ocorre no decurso dos últimos três meses do prazo”, este regime nunca seria aplicável. Com efeito, decorre do aludido preceito, que enquanto durasse o “dolo do obrigado” o prazo de prescrição não corria nos últimos três meses. Ora, em 13/07/2018, não estávamos no decurso dos três últimos meses do prazo – mesmo que se considere o prazo sem as suspensões decorrentes da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, com as suas sucessivas alterações - pelo que, o regime referido no aludido preceito não tem qualquer relevância neste caso.

Com efeito, entre 13/07/2018 e a data da instauração da presente ação - a qual ocorreu

em 29/10/2021 - decorreram muito mais de três meses, sendo pois irrelevante o aludido regime jurídico para este caso.

De tudo o exposto, conclui-se, assim, que na data em que foi instaurada a presente ação

e, por inerência, na data em que as Rés foram citadas, já se mostrava ultrapassado o prazo de prescrição consagrado no artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil, pelo que a suscitada exceção perentória terá que proceder, determinando a absolvição dos Réus do pedido, o que infra se determinará.

X
A sentença, como se vê, apreciou correctamente a questão da prescrição, única matéria objeto do recurso.
Alicerça-se a Recorrente, na invocação de dolo do devedor, para sustentar não se ter chegado a verificar a prescrição do seu direito.
Contudo, sem razão.
Com efeito, ainda que se admitisse ter havido dolo da parte da Recorrida ao ter respondido em 13/07/2018, pela segunda vez, que declinava a responsabilidade, a prescrição verificava-se na mesma.
Atente-se na factualidade provada e não questionada.
Tratando-se de uma ação de responsabilidade civil extracontratual do município, nos termos do artº 5.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro, relativa à responsabilidade civil extracontratual do Estado e pessoas coletivas de direito público, “O direito à indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado, das demais pessoas colectivas de direito público e dos titulares dos respectivos órgãos, funcionários e agentes bem como o direito de regresso prescrevem nos termos do artigo 498.º do Código Civil, sendo-lhes aplicável o disposto no mesmo Código em matéria de suspensão e interrupção da prescrição.”
O direito de indemnização prescreve passados três anos, conforme dispõe o artº 498.º, n.º 1 do CC.
Como é claro, a ora recorrente tem conhecimento do seu direito desde a data do acidente, designadamente, o de propor a presente ação contra os aqui recorridos.
Tendo ocorrido o acidente em 11 de dezembro de 2017, a prescrição ocorreu no dia 11 de dezembro de 2020.
De acordo com o disposto no artº 323.º/1 do C. Civil, a prescrição interrompe-se, nomeadamente pela citação, que é o ato que aqui releva.
A ação, como demonstrado, foi intentada em 29/10/2021, pelo que tanto a 2.ª Ré como a sua segurada, o 1.º Réu, foram citados para a ação muito depois do prazo de prescrição ter terminado.
Em face do exposto, o direito da Autora de ser indemnizada em virtude deste acidente, encontra-se prescrito nos termos dos artigos 498.º/1, do C. Civil e 5.º da Lei 67/2007, de 31 de dezembro.
Mesmo aplicando-se o regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais decorrentes das medidas adotadas no âmbito da pandemia da doença Covid-19, fixado na Lei 1-A/2020, de 19/03 e respetivas alterações, que, no total, suspendeu os prazos por 161 dias (87 + 74), o prazo prescricional há muito que se encontra ultrapassado.
A sentença analisou com acerto o período de suspensão da prescrição.
Ora, adicionando-se os períodos de suspensão dos prazos decorrentes da "legislação covid-19", ao prazo prescricional de 3 anos, a prescrição do direito da Autora verificou-se em 21/05/2021, como muito bem explanado no aresto recorrido.
Assim sendo, verifica-se, nos presentes autos, a exceção perentória de prescrição, tendo os Réus de ser absolvidos do pedido, como foram - cfr. artigos 576.º, n.º 3 e 579.º do CPC.
Entende a Recorrente que o prazo de prescrição só começa a correr a partir de 14/07/2018 porque "apenas em 13/07/2018 a recorrente tomou conhecimento da resposta definitiva da recorrida - companhia de seguros - no sentido de não assumir os danos reclamados junto daquela", e que "tal situação ficou a dever-se a dolo do obrigado e não a qualquer acção da recorrente."
Ora, o prazo de prescrição começa a correr independentemente de se saber a pessoa do responsável e a extensão dos danos. Basta que o lesado tenha conhecimento do direito que lhe assiste, e a Recorrente tem conhecimento do seu direito desde o momento em que se deu o acidente, tanto assim que 3 dias depois estava a interpelar o 1.º Réu - cfr. facto provado sob a al. C).
Depois de lhe ter sido participado o sinistro, a Ré seguradora entrou em campo no dia 26/01/2018, a efetuar a peritagem ao veículo da Autora, e, em 08/03/2018, manifestou-lhe que entendia não dever assumir a responsabilidade.
A Autora, em 23/03/2018, insistiu junto da Ré seguradora para que esta
revisse a sua posição, tendo a mesma, em 13/07/2018, respondido mantê-la.
Nesta altura desconhecia-se a "covid" e a Autora tinha quase dois anos e
meio para propor a ação.
Não faz, assim, qualquer sentido dizer que a Ré seguradora demorou mais de 3 meses a reiterar a posição que manifestara antes com qualquer objetivo doloso, designadamente, tendo em vista a prescrição que só iria ocorrer dois anos e meio depois.
Aliás, a Autora não alega na petição inicial nem na réplica, que qualquer um dos Réus a tenha falsamente convencido de que não lhe assistia o direito de ser indemnizada. Só esse tipo de dolo é que poderia - eventualmente - ser integrado no artigo 321.º do CC.
Como refere Antunes Varela, em CC anotado, 3.ª ed. rev. e atualizada, pág. 287, o n.º 2 equipara ao motivo de força maior o dolo do obrigado. Nos termos do art. 253.º, haverá dolo quando este tiver induzido ou mantido em erro o credor. Convenceu-o, por exemplo, de que o direito não existia ou já estava prescrito.
Inexistindo a alegação de quaisquer factos que possam ser integrados no artigo 253.º do CC, o dolo invocado pela Autora nem sequer seria suscetível de prova.
Mas mesmo que fosse - e não foi -, também aí o direito da Autora estaria prescrito.
Como sentenciado: "Dado que nos termos do artigo 321.º do Código Civil a suspensão do prazo por “dolo do obrigado” “apenas ocorre no decurso dos últimos três meses do prazo”, este regime nunca seria aplicável. Com efeito, decorre do aludido preceito, que enquanto durasse o “dolo do obrigado” o prazo de prescrição não corria nos últimos três meses.
Ora, em 13/07/2018, não estávamos no decurso dos três últimos meses do prazo - mesmo que se considerasse o prazo sem as suspensões decorrentes da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, com as suas sucessivas alterações - pelo que, o regime referido no aludido preceito não tem qualquer relevância neste caso.
Com efeito, entre 13/07/2018 e a data da instauração da ação - a qual ocorreu em 29/10/2021 - decorreram muito mais de três meses, sendo pois irrelevante o aludido regime jurídico para este caso."
Em suma:
-O princípio de que todos estamos sujeitos às consequências do nosso comportamento é central no Direito;
-O momento inicial de contagem do prazo de prescrição de três anos, prazo regra, coincide com o momento do conhecimento empírico dos pressupostos da responsabilidade pelo lesado concreto, conhecimento esse que deve enraizar nos factos provados, e deverá potenciar ao lesado o exercício do seu direito;
-In casu, o prazo da prescrição a que se reporta o citado n.º 1 do artigo 498.º do CC, começou a correr na data do acidente em que interveio o veículo automóvel da Autora;
-A prescrição é uma forma de extinção de direitos, que visa, sobretudo, realizar objectivos de certeza e segurança jurídicas, mas que em termos estritos de justiça desde cedo foi qualificada de impium remedium - cfr., a este respeito, Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2ª ed., págs. 371 a 374 e na jurisprudência, Ac. do STA de 02/12/2004, Proc. 0145/04;
-Tal instituto pressupõe que a parte possa opor-se ao exercício de um direito não exercido durante o tempo fixado na lei;
-Trata-se, a um tempo, de punir a inércia do titular do direito em exercê-lo em tempo útil, e de tutelar os mencionados valores da certeza e da segurança das relações jurídicas, mediante a exigência da sua consolidação em prazos razoáveis;
-O seu regime é inderrogável - artigo 300º do CC - e determina, em termos genéricos, que o respectivo prazo começa a contar do momento em que o direito pode ser exercido - artigo 306º/1 do CC;
-No âmbito específico da prescrição do direito indemnizatório em análise, presume o legislador que o mesmo pode ser exercido a partir do momento do seu conhecimento pelo lesado - artigo 498º/1 do CC;
-Assim, o início de contagem do prazo de prescrição de três anos - prazo regra -, coincide com o momento do conhecimento do direito pelo lesado, conhecimento esse que lhe deve potenciar o exercício do direito - teoria da realização, em contraposição com a teoria da violação, segundo a qual o início da prescrição se deve reportar ao momento da violação - a propósito desta temática, cfr. Vaz Serra, Prescrição Extintiva e Caducidade, pág. 199; Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 95, 96 e 97; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4ª ed., vol. I, pág. 503; Parecer da Procuradoria Geral da República de 25 de Julho de 1984, BMJ 343-62; Ac. STJ de 27/11/73, anotado por Vaz Serra na RLJ, ano 107, pág. 296; Ac. STA de 07/03/89, AD nºs 344-345, págs. 1035 a 1053;
-Tal conhecimento, para relevar, não inclui necessariamente a identificação da pessoa do responsável nem a extensão integral dos danos - artigo 498º/1 do CC - evitando-se deste modo que o início da prescrição fique acorrentado a uma eventual incúria por parte do lesado;
-Para efeitos do início do prazo prescricional e nos termos do artº 498º/1 do CC, repete-se, é relevante o conhecimento do lesado concreto, bastando um conhecimento empírico dos factos constitutivos do direito, ou seja, é suficiente que o lesado saiba que foi praticado um ato que lhe provocou danos, e que esteja em condições de formular um juízo subjetivo, pelo qual possa qualificar aquele ato como gerador de responsabilidade pelos danos que sofreu;
-Tanto a doutrina como a jurisprudência vêm defendendo que o momento do conhecimento do direito de indemnização pelo lesado se ajusta ao momento do conhecimento dos pressupostos condicionantes da responsabilidade, fazendo, assim, apelo a um mínimo de objectividade no qual se alicerce a contagem do respectivo prazo - Ac. STJ de 27/11/73, BMJ 330-495; Ac. STA de 12/01/93, AD 382; Ac. STA de 13/11/2001, Proc. 47482; Ac. STJ de 18/04/2002, Proc. 950/02; Ac. STA de 27/04/2006, Proc. 0304/05; Ac. STA de 01/06/2006, Proc. 257/06; e na doutrina, Antunes Varela, em Das Obrigações em Geral, 4ª ed., vol. I, pág. 585 e Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 4ª ed., pág. 401, nota 3;
-Só a partir do conhecimento, pelo lesado, destes pressupostos é que se começa a contar o prazo de prescrição (Acs. do STA de 31/10/2000 Proc. 44345, de 4/12/2002 Proc. 1203/02 e de 6/7/2004 Proc. 597/04);
-Por outro lado, aquele “conhecimento do direito” é um conhecimento empírico, como ensina Carlos Cadilha, em “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado”. E, como se consigna no Ac. do STA de 27/01/2010, proc. 513/09, para “efeitos de prescrição”, “conhecer o direito”, como resulta do artigo 498º citado, não é, necessariamente, conhecer na perfeição e na sua integralidade todos os elementos que compõem o dever de indemnizar, pois que o exercício do direito é independente do desconhecimento da “pessoa do responsável e da extensão integral os danos”;
-Tal equivale a dizer que nenhum reparo pode ser assacado à decisão recorrida que julgou verificada a exceção perentória de prescrição do direito à indemnização da Recorrente.

Desta feita, improcedem as conclusões das alegações.

DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.

Porto, 15/7/2022

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Alexandra Alendouro