Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00039/14.9BEVIS
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/01/2022
Tribunal:TAF de Viseu
Relator:Antero Pires Salvador
Descritores:PRINCÍPIO PLENITUDE ASSISTÊNCIA JUIZ - ART.º 605.º CÓDIGO PROCESSO CIVIL, ELABORAÇÃO SENTENÇA JUIZ APOSENTADO, ACIDENTE VIAÇÃO AUTO ESTRADA,
PRESUNÇÃO DE ILICITUDE E CULPA - ART.º 12.º, NS. 1 E 2 LEI 24/2007, DE 18/7., VERIFICAÇÃO OBRIGATÓRIA AUTORIDADE POLICIAL LOCAL
Sumário:1 . De acordo com n.º 3 do art.º 605.º do Cód. Proc. Civil, sob a epígrafe “Princípio da plenitude de assistência do juiz” “O juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou se for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento”, ou seja, o juiz conclui o julgamento, o que significa que, com esta norma pretendeu o legislador que, caso não se verifiquem as excepções expressas na norma, em prol do princípio da plenitude de assistência do juiz e da continuidade da audiência, o juiz transferido, promovido e mesmo aposentado/jubilado, concluísse o julgamento, em prol do reforço do princípio de unidade e tendencial concentração do julgador.

2 . Porém, de acordo com o n.º 4 do mesmo art.º 605.º do Cód. Proc. Civil, “Nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença”, o que significa que, não referindo esta norma aposentado, mas apenas o transferido ou promovido, que o legislador quis ditar que o juiz aposentado conclui o julgamento, mas já não pode elaborar a sentença.

3 . No mesmo sentido o art.º 70.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, Lei n.º 21/85, de 30/7, na redacção dada pela Lei 67/2019, de 27/8.

4 . De acordo com o que se dispõe no art.º 12.º, n.º 1, da Lei nº 24/2007, de 18/07, nos acidentes de viação que são provocados pela presença de animais nas auto-estradas concessionadas é de presumir a falta de cumprimento (e também da culpa) das obrigações de segurança das concessionárias.

5 . Estas só poderão eximir-se à responsabilidade ilidindo aquela presunção, isto é demonstrando que a presença do animal na via se verificou por motivos que não lhe são imputáveis, ou seja, fazendo a prova histórica do acontecimento.

6 . As causas do acidente, atravessamento do canídeo devem ser confirmadas no local pela autoridade policial - art.º 12.º, n.º 2, da citada Lei.

7 . Todavia, mesmo não existindo tal verificação, isso não impossibilita o lesado de poder fazer a prova da existência do animal na via, socorrendo-se de outros meios probatórios e, com isso beneficiando, ainda assim, da presunção de incumprimento estabelecida no nº 1 do mencionado art.º 12.º.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Norte – Secção do Contencioso Administrativo:

I
RELATÓRIO

1 . “A..., SA”, com sede na EN ...31, Estrada ..., ..., ..., inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Viseu, de 31 de Dezembro de 2021, que, julgando procedente a acção administrativa, instaurada pela Ré/Recorrida “Z... LIMITED COMPANY - SUCURSAL em ...", com sede em C/AA, 27, 7.ª planta - ..., ..., a condenou a pagar à A. a quantia de 5.187,20 €, acrescida de juros moratórios contados desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento.
*
2 . No final das suas alegações, a recorrente “A..., SA” formulou as seguintes conclusões:
"I . Por ser notório que esta sentença, e salvo o devido respeito, viola flagrantemente o princípio da plenitude da assistência dos juízes e, evidentemente, o disposto no artigo 605º, nº 3 do C. P. C., é indiscutível que a sentença é nula, nulidade essa que expressamente se argui nestas linhas (cfr. o Ac. do STJ, de 08.03.2018, citado no corpo das alegações);
II. Por tal razão, impõe-se pelo menos a anulação da sentença, bem como eventualmente (se não houver outra solução que, cremos, a lei naquele artigo 605º, nº 3 do C. P. C. também prevê e não parece estar demonstrado que não é possível) - a repetição da prova.
Isto posto,
III. Independentemente do que antecede e de que, obviamente, não se prescinde, entende a R. que o tribunal a quo não analisou correctamente a prova produzida, incorrendo em claro erro de apreciação da prova no que se refere aos pontos 18 e 22 dos factos provados, além de que incorreu em não menos clara omissão pronúncia sobre a matéria constante dos artigos 45º e 46º da contestação que, ademais, de importante para a defesa da R. é sobretudo essencial para uma boa decisão da causa;
IV. Assim, e desde logo quanto ao ponto 18 dos factos provados, verifica-se que a resposta decidida pela sentença do tribunal a quo peca por claro defeito, já que, seja com base na lei (leia-se: Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável), seja com base no depoimento de BB transcrito acima, seja ainda com base no não impugnado (e confirmado em audiência final) doc. nº 1 junto à contestação da R., porquanto não se trata de organizar patrulhamentos desta ou daquela maneira porque assim à R. “apeteceu” como sugere (mais até que isso) uma tal resposta, mas antes de os organizar de acordo com a obrigação assumida pela R. com o concedente e que tem evidentes reflexos na correspondente obrigação de segurança que lhe cabe demonstrar;
V. Assim, respeitando a prova produzida a este respeito, aquele ponto 18 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redacção:
– provado que “A R., de acordo com a obrigação que assumiu com o concedente a respeito dos patrulhamentos, organiza os patrulhamentos a toda a extensão da sua concessão, que se inicia no nó de ligação da A...5 à A... e termina em ..., de forma a efectuar habitualmente passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 03 horas.”;
VI. Do mesmo modo, e como se pode ver do depoimento de CC igualmente transcrito nestas linhas, o ponto 22 dos factos provados tem uma redacção que é também exígua e até redutora, razão pela qual deve ser substituída pela seguinte:
– provado que “Cinco dias após a ocorrência do sinistro, o oficial de conservação da R., CC, efectuou uma verificação da vedação, concretamente às vedações existentes em todo o sublanço entre os nós de ... e ... onde se situa o local do sinistro e em ambos os sentidos de marcha da A...5, tendo concluído que a dita vedação não apresentava anomalias.”;
VII. Por outro lado, também errou a sentença por não ter emitido qualquer pronúncia (“formal”, por assim dizer, já que apenas não consta do rol dos factos provados) no que tange aos artigos 45º e 46º da contestação da R., sendo certo que tal matéria deve ter-se provada (até pelo que consta da própria motivação da matéria de facto que a revela claramente) e sugere-se que a redacção a adoptar seja a seguinte:
– provado que “O motorista do conjunto não imobilizou o veículo nas imediações do local indicado como correspondendo ao do sinistro, já que prosseguiu viagem até à área de serviço de ....”.
Dito isto,
VIII. A sentença segue um raciocínio que não é o mais correcto, no sentido, desde logo, de que tratou esta situação da mesma forma que o faria seguramente, pelo visto, se houvesse margem para aplicação da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho a estes autos), considerando – como deve ocorrer – a prova produzida e a matéria de facto relevante (e mormente aquela alteração defendida nestas linhas quanto aos artigos 45º e 46º da contestação da R. sobre os quais a sentença não se pronunciou);
IX. Porém, essa Lei nº 24/2007, de 18 de Julho é inaplicável in casu, porquanto só assim poderia acontecer se a autoridade policial tivesse (obrigatoriamente) verificado no local as causas do acidente, i. e., o nº 1 do artigo 12º daquela Lei só consente a sua aplicação se a “condição” prevista no nº 2 – “Para efeitos do disposto no número anterior (...)” for observada (cfr., a este propósito, nomeadamente as conclusões III e IV do Ac. do T. R. C. de 09.03.2010, relator Jacinto Meca, proc. nº 2610/07.6YXLSB.C1, consultável em www.dgsi.pt );
X. E não foi, nem podia ter sido, porque ademais de não ter sido sequer ouvido o motorista que decidiu, qualquer que tenha sido a razão, prosseguir até à área de serviço e abandonado o local que se diz ser o do sinistro, todas as demais “testemunhas” a que se alude na sentença (militar da GNR e funcionário da R.) não são testemunhas do sucedido e não podem fazer mais do que tirar ilações, que até podem ser legítimas, mas seguramente nada garante (ou pode) que o sejam;
XI. Além disso, importa dizer que o objectivo que ressalta deste nº 2 do artigo 12º não é, na nossa perspectiva, o de limitar ou de impedir a prova do utente e/ou de substituir a decisão dos tribunais por aquela das autoridades policiais no local, mas é, isso sim (e seguramente visando prevenir situações de fraude), o de garantir às concessionárias algum equilíbrio com os utentes em matéria de fardo probatório, já que sobre elas (embora em determinadas condições aqui não reunidas) passou a impender o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança;
XII. Está assim – e também por esse motivo - irremediavelmente afastada a hipótese de aplicação do artigo 12º nº 1 da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho ao sinistro dos autos, devendo, por isso, e tal como resulta expressa e inequivocamente da Base LXXIII do Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável, ser este sinistro enquadrado no único âmbito possível da responsabilidade extracontratual;
XIII. Por isso, vale neste caso tanto o princípio basilar da responsabilidade civil extracontratual (Cód. Civil, artigo 483º nº 1), como o disposto nos nºs. 1 e 2 do artigo 487º do Cód. Civil, sendo que a aplicação deste último artigo (e concretamente do seu nº 1) não está de modo algum excluída, uma vez que não havia (ou há) presunção legal de culpa a impender sobre a concessionária;
XIV. Incumbia, por isso, à A., nos termos previstos nos artigos 342º, 483º e 487º do Cód. Civil (e também de harmonia nomeadamente com a citada Base LXXIII), fazer a prova dos factos constitutivos do seu direito e bem assim a prova da eventual culpa da R., de modo que só devia lograr obter a condenação desta R. se tivesse alegado e provado que as vedações da auto-estrada se apresentavam com deficiências e que o animal tinha ingressado na via mercê dessas deficiências ou então, e pelo menos, que a R./recorrente sabia da existência de um animal nas vias e nada fez para o remover e/ou sinalizar;
XV. Assim, sendo patente que a A. não logrou provar nada disso (nem sequer o alegou, de resto), impunha-se a absolvição da recorrente que, por seu turno, fez a prova do contrário (que não no sentido usado na sentença que, nesse particular, também não faz sentido) relativamente ao (bom) estado da vedação.
Segue-se que
XVI. À data dos factos (acidente) estava em vigor a Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, lei esta que, no nosso entender, veio de uma vez por todas clarificar (se é que havia essa necessidade) que os acidentes ocorridos em auto-estrada devem ser analisados e enquadrados (como já sucedia – ou, pelo menos, devia correctamente suceder - antes dela) no âmbito da responsabilidade extracontratual – é, de resto, essa (e não qualquer outra) a conclusão que se pode/deve tirar, sem receio de errar, do disposto na Base LXXIII do Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável;
XVII. Ora, é verdade que com o advento da referida Lei se procedeu a uma inversão do ónus da prova que agora impende sobre as concessionárias de AE, assim se criando um regime especial e inovador para este tipo de acidentes, embora – insista-se – sempre filiado na responsabilidade extracontratual;
XVIII. Todavia, e como bem se percebe do espírito e do texto da lei (dos nºs. 1 e 2 do artigo daquela lei), mas também do elemento histórico de interpretação (vide projecto de lei nº 164/X do BE), já não corresponde à verdade que com essa lei se tenha estabelecido uma presunção de culpa em desfavor das concessionárias, pois que se assim fosse a redacção do citado artigo 12º nº 1 seria seguramente outra, mais próxima daquela constante do artigo 493º nº 1 do Cód. Civil;
XIX. Efectivamente, e quanto à dita presunção de culpa, nem tal decorre da referida lei, nem tal resulta do DL nº 142-A/2001, de 24 de Abril, concluindo-se tão-só que com a vigência da lei citada passou a impender um ónus de prova sobre as concessionárias de auto-estradas, embora restrito à demonstração do cumprimento das obrigações de segurança (e nada mais que isso). Isto para além de não se poder, de forma alguma, concluir que sempre há situações de inversão de ónus de prova se quer(quis) consagrar uma presunção legal de culpa (cfr. Cód. Civil, artigo 344º nº 1);
XX. Por outro lado, sendo verdade que a R. se obrigou a vigiar e a patrulhar a auto-estrada, assim envidando os seus melhores esforços no sentido de assegurar a circulação na auto-estrada em boas condições de segurança e comodidade, daí não decorre que essa sua obrigação implica uma omnipresença em todos os locais da sua concessão como – é claro – considerou a sentença, mormente nos locais de eclosão de acidentes ou onde possam estar a deambular animais;
XXI. De modo que também não nos parece minimamente correcto que se possa considerar que incumbia à R. demonstrar a forma como o animal terá ingressado na via, sendo certo que dessa forma caminharíamos inevitavelmente na direcção de uma responsabilidade objectiva, sem culpa, que também não tem previsão legal (cfr., a este único respeito e pela sua manifesta impressividade, a conclusão III do sumário do ac. do T. R. C. de 10.01.2006 citado no corpo das alegações);
XXII. A formulação do artigo 12º nº 1 da citada lei faz recair sobre as concessionárias, entre as quais, a recorrente, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança, sendo que, no caso destes autos, é nítido e indiscutível que a recorrente satisfez integralmente o ónus que lhe competia, i. e., demonstrou que cumpriu com aquelas suas obrigações de segurança, particularmente no que se refere à integridade da vedação, situada – importa recordar – entre nós abertos da AE;
XXIII. Efectivamente, a definição destas obrigações de segurança passa essencial e obrigatoriamente (como é até intuitivo, aliás), num acidente com animais, pela prova de que as vedações se encontravam intactas e sem rupturas nas imediações do local do acidente (cfr. também a este respeito o Ac. deste T. C. A. N. de 12.07.2018 igualmente citado antes), que não, e bem ao contrário do que se sustenta na decisão sem qualquer base nomeadamente legal para que o possa fazer, a demonstração que a vedação impede ou pode impedir a intrusão de animais na auto-estrada (basta pensar nas “características” desta auto-estrada e nas “características” também de alguns animais). E a verdade é que essa prova – insiste-se – foi claramente feita pela R./recorrente;
XXIV. Cumpre, aliás, assinalar a contradição em que de certo modo incorre a sentença, posto que apesar de ter por cumpridos (e a prova produzida a isso obrigava) os deveres que à concessionária competiam (além de outros factos que constituem factos públicos e notórios, como a circunstância da auto-estrada não ter nós fechados), conclui afinal que isso não chega, alvitrando ainda, e sem qualquer ligação à realidade e/ou aos textos legais relevantes, que de certo modo à concessionária competia também a prova do contrário, o mesmo é dizer p. ex. a prova “histórica” do ingresso do animal na via;
XXV. Mais: além de vários “lugares-comuns”, salvo o devido respeito, completamente à deriva, é visível que o raciocínio seguido pela sentença é nitidamente especulativo, pois que parte claramente do princípio (e sem ter a mínima base de facto para que o pudesse fazer) que o animal só poderia ter ingressado na AE devido a uma qualquer anomalia/falha (na vedação – será?), sem considerar qualquer outra possibilidade/explicação perfeitamente plausível para a presença do animal na via (e a verdade é que essas possibilidades/explicações existem, não se podendo concluir automaticamente que o animal acedeu à via porque p. ex. as vedações apresentavam deficiências ou então que ocorreu uma qualquer anomalia, seja ela qual for);
XXVI. Por outro lado, a R. também demonstrou, sem qualquer espécie de dúvida ou reserva, que desconhecia a presença do animal na via apesar do cumprimento integral (e permanente, no sentido de estar sempre no terreno, embora não esteja, como é – ou devia ser – evidente, em todo o lado ao mesmo tempo) da sua missão de vigilância e patrulhamento;
XXVII. De modo que, e não podendo a R./recorrente (nem tal lhe sendo exigível) ser omnipresente, não se vislumbra como podia (ou pode) ser responsabilizada pela eclosão deste acidente, tanto mais que nos parece pacífico e totalmente indiscutível que as obrigações a seu cargo são claramente obrigações de meios. E não, portanto, obrigações de resultado, como é claríssimo acaba por concluir – sem o dizer, no entanto - a sentença da 1ª instância;
XXVIII. De resto, não sendo possível à recorrente (especialmente, como bem se percebe, numa auto-estrada como esta, com nós abertos) evitar em absoluto que os animais ingressem na via e, face ao que ficou provado, nada mais lhe devendo ser exigível em termos de conduta e de prova, parece claro que se impunha (e isso ainda sucede) a sua absolvição, já que esta demonstrou que cumpriu em concreto (e não apenas “genericamente”, portanto) com todas as suas obrigações, concretamente com aquelas de segurança (cfr., a este propósito, e mais uma vez, o Ac. do T. C. A. N. de 12.07.2018 citado nestas linhas);
XXIX. Assim, no entendimento da recorrente, a sentença violou, salvo o devido respeito, o nº 1, alínea b) e nº 2 do artigo 12º da Lei nº 24/2007, de 18 de Julho, bem como a Base LXXIII do Decreto-Lei nº 142-A/2001, de 24 de Abril, na redacção aplicável, os artigos 342º, 346º e 483º do Cód. Civil e os artigos 7º, 9º e 10º do RRCEEP (Decreto-Lei nº 67/2007, de 31 de Dezembro), devendo, por isso, ser revogada em conformidade com o expendido nestas linhas".
E termina, "Termos em que se deve dar total provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão de que se recorre, desde logo por ser manifesta a nulidade de que enferma, com as necessárias consequências legais.
Se assim não se entender, o que se admite apenas para efeitos deste raciocínio, deve ser dado total provimento a este recurso, revogando-se igualmente a decisão de que se recorre e substituindo-se por uma outra que reaprecie e decida a prova nos moldes defendidos nestas linhas pela recorrente e que julgue totalmente improcedente a presente acção com base nos argumentos de facto e de direito expendidos nesta peça processual, bem como absolva a recorrente do pedido, tudo com as necessárias consequências legais e como é de inteira justiça".”.
*
3 . A Ré/Recorrida "Z... LIMITED COMPANY - SUCURSAL em ...” não apresentou contra alegações.
*
4 . O Digno Magistrado do M.º P.º neste TCA, notificado nos termos do art.º 146.º n.º 1 do CPTA, nada disse.
*
5 . Sem vistos, mas com envio prévio do projecto aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, foram os autos remetidos à Conferência para julgamento.
*
6 . Efectivando a delimitação do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela recorrente, sendo certo que o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, acima elencadas, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, ns. 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil, “ex vi” dos arts.1.º e 140.º, ambos do CPTA.

II
FUNDAMENTAÇÃO
1 . MATÉRIA de FACTO
São os seguintes os factos fixados na decisão recorrida:

1. No dia 24.10.2012, pelas 23 horas, o veículo tractor de mercadorias de matrícula espanhola ....GRG circulava na auto-estrada n.º ...5 (A...5), sentido Este-Oeste (...);
2. O veículo ....GRG atrelava o semi-reboque de matrícula espanhola R....BBP;
3. O referido veículo é propriedade de GS... e era pelo mesmo conduzido;
4. Ao km 110,350 da A...5, o veículo ....GRG colidiu com dois javalis que atravessavam a via da direita para a esquerda;
5. Desse embate resultaram estragos no veículo ....GRG e a morte de dois javalis;
6. Os estragos no veículo ....GRG verificaram-se na sua zona frontal, designadamente, no pára-choques, nos faróis de nevoeiro, no radiador, no protector do farol, na pintura e na placa de matrícula (cf. documentos n.os ...2, ...3 e ...5 juntos com a p.i.);
7. Ao km 110,350 a A...5, no sentido Este-Oeste, tem duas hemifaixas de rodagem;
8. Não dispõe de iluminação pública;
9. Compareceram no local a GNR e um funcionário da R. (cf. documento n.º ...2 junto com a p.i.);
10. A GNR destacou para o local um guarda do Destacamento de Trânsito de ... que lavrou auto de ocorrência de trânsito (cf. documento n.º ...2 junto aos autos com a p.i.);
11. A R. destacou para o local o oficial de assistência e vigilância DD, que procedeu à recolha dos dois javalis;
12. O proprietário do veículo ....GRG havia transferido a responsabilidade contra terceiros e por danos próprios desse veículo para a A. (cf. documento n.º ...4 junto aos autos com a p.i.);
13. O veículo ....GRG foi peritado (cf. documento n.º ...3 junto aos autos com a p.i.);
14. Tendo sido objecto de reparação pela oficina «T..., S.L.», cujo custo ascendeu a EUR 5.667,20 (cf. documento n.º ...3 junto aos autos com a p.i.);
15. A A. pagou àquela oficina o valor de EUR 5.187,20 pela reparação do veículo, já descontada a franquia contratual, no valor de EUR 480,00 (cf. documento n.º ...5 junto aos autos com a p.i.);
16. A R. é a concessionária da A...5 (admitido por acordo – cf. artigos 23º a 27º da p.i. e 17º a 41º da contestação);
17. A A...5, na área concessionada à R., é uma auto-estrada com pórticos de cobrança em plena via, não sendo os seus nós de entrada e de saída fechados;
18. A R. organiza patrulhamentos diários a toda a extensão da sua concessão, que se inicia no nó de ligação da A...5 à A... e termina em ..., de forma a efectuar habitualmente passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 03 horas;
19. No dia do sinistro descrito nos pontos anteriores, os patrulhamentos da R. passaram no local por volta das 21 horas e 25 minutos (cf. documento n.º ...2 junto com a contestação);
20. Nessa altura, não foi detectado pela patrulha da R., nem naquele local nem nas suas imediações, qualquer animal;
21. A vedação da A...5 no local do sinistro é em rede de malha progressiva, com 1,60 metros de altura e arame farpado no topo e na base;
22. Cinco dias após a ocorrência do sinistro, o oficial de conservação da R., CC, efectuou uma verificação da vedação, tendo concluído que a mesma não apresentava anomalias;
23. A R. foi citada para a presente acção em 31.01.2014 (cf. documentos de fls. 43 e 45 do ...).
*
E foram considerados não provados os seguintes factos:
"A. O veículo ....GRG circulava pela hemifaixa de rodagem mais à direita;
B. O local onde ocorreu o acidente é uma recta;
C. O condutor do veículo ....GRG circulava com os médios ligados;
D. O tempo estava bom;
E. O embate do veículo ....GRG ocorreu na hemifaixa da direita da A...5, sentido ...;
F. O trânsito no local era diminuto".

2 . MATÉRIA de DIREITO

No caso dos autos, tendo em consideração, a sentença recorrida e as alegações apresentadas pela recorrente, maxime, as suas conclusões, supra transcritas, importa saber, em primeiro lugar, se se verifica a suscitada nulidade – por violação do princípio da plenitude de assistência do juiz – e depois, se aquela, além de ter efectivado uma correcta aplicação das normas legais aplicáveis atenta a factualidade provada, também decidiu correctamente a factualidade dada como provada – factos 18 e 22 - e não provada – arts. 45.º e 46 da contestação, que a recorrente pretende ver alteradas e inscritas, respectivamente, na factualidade provada.
*
Comecemos - como se impõe, por razões de logicidade cognitiva – pela nulidade da sentença, questão suscitada e contida sinteticamente nas conclusões I e II das alegações recursivas.
A questão coloca-se nos seguintes termos:
- O Sr. Juiz de direito, Dr. EE, titular do processo e que procedeu à sua instrução e presidiu à audiência de julgamento, em 2/3/2016 – com gravação da prova - , sem que tivesse procedido à elaboração da sentença – na qual se verteria a factualidade provada e não provada – foi aposentado, melius, jubilado, pelo CSM E não pelo ..., uma vez que se encontrava a exercer funções na jurisdição administrativa/fiscal, em comissão permanente de serviço
, objectivamente por razões de idade e tempo de serviço;
- atenta a saída da jurisdição administrativa e fiscal e aposentação/jubilação, nos termos do Despacho do Juiz Desembargador Presidente dos TAF´s da Zona Centro Despacho da autoria do Relator deste aresto, por na altura – de 1/9/2014 a 1/9/2021 – exercer as funções de Presidente dos TAF´s da Zona Centro. (onde se inclui o TAF de Viseu), foi o presente processo distribuído – como os demais (14) aos 2 Srs. Juízes de direito, nessa altura, em funções nesse TAF de Viseu – ao Sr. Juiz de direito, Dr. FF que elaborou a sentença, ora objecto de reapreciação por este TCA Norte, sem que tivesse presidido à audiência de discussão e julgamento, ainda que a prova tivesse sido gravada.
Atenta esta factualidade objectiva, a recorrente questiona a validade da sentença, por alegada violação do princípio da plenitude de assistência do juiz que impera na jurisdição administrativa, que, no seu entender, importa a nulidade da sentença, embora o Sr. Juiz autor da sentença, em sede de sustentação da mesma, tenha posicionado a questão em sede de nulidade processual.
A recorrente alicerça a sua alegação no texto do n.º 3 do art.º 605.º do Cód. Proc. Civil, sob a epígrafe “Princípio da plenitude de assistência do juiz” que dispõe que:
O juiz que for transferido, promovido ou aposentado conclui o julgamento, exceto se a aposentação tiver por fundamento a incapacidade física, moral ou profissional para o exercício do cargo ou se for preferível a repetição dos atos já praticados em julgamento” – sublinhado nosso.
Com esta norma pretendeu o legislador que, caso não se verifiquem as excepções expressas na norma, em prol do princípio da plenitude de assistência do juiz e da continuidade da audiência, o juiz transferido, promovido e mesmo aposentado/jubilado, concluísse o julgamento, em prol do reforço do princípio de unidade e tendencial concentração do julgador.
Ou seja, …. “conclui o julgamento” … conforme preceitua a norma legal transcrita e que a recorrente aduz em defesa da sua tese.
Ora o Sr. Juiz de direito, Dr. EE, concluiu o julgamento, apenas não tendo elaborado a sentença.
Contudo, não se pode olvidar o n.º 4 do mesmo art.º 605.º do Cód. Proc. Civil que preceitua:
Nos casos de transferência ou promoção, o juiz elabora também a sentença”.
Ora, cotejando os ns. 3 e 4 do art.º 605.º, facilmente se verifica que esta norma do n.º 4 já não refere o juiz aposentado, mas apenas o transferido ou promovido, o que não pode deixar de significar que o legislador quis ditar que o juiz aposentado conclui o julgamento, mas já não pode elaborar a sentença, opção legislativa que bem se entende.
No mesmo sentido, o art.º 70.º , sob a epigrafe "Cessação de funções" do Estatuto dos Magistrados Judiciais, Lei n.º 21/85, de 30/7, na redacção dada pela Lei 67/2019, de 27/8, que preceitua:
"1 - Os magistrados judiciais cessam funções:
a) No dia em que completem 70 anos de idade;
b) No dia 1 do mês seguinte àquele em que for publicado o despacho do seu desligamento ao serviço;
c) Nos casos não abrangidos pelas alíneas anteriores, no dia seguinte ao da publicação da nova situação no Diário da República;
d) No dia seguinte àquele em que perfaça 15 anos ininterruptos de licença prevista na alínea e) do artigo 12.º
2 - Nos casos previstos no número anterior e nas alíneas a) a c) do artigo 12.º, os magistrados judiciais que tenham iniciado qualquer julgamento prosseguem os seus termos até final, salvo disposição legal em contrário ou se a mudança de situação resultar de ação disciplinar" - sublinhado nosso.
*
Assim, sem necessidade de outras considerações, entendemos que não se verifica qualquer nulidade de sentença/nulidade processual, detendo o Sr. Juiz de direito que elaborou a sentença, Dr. FF, competência jurisdicional para elaborar a sentença dos autos, na sequência da redistribuição do processo.
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Continuemos, depois de dirimida esta questão formal, pela análise/decisão das demais questões suscitadas no recurso,
in casu, pela assertividade (ou não) da matéria de facto provada e não provada.
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Antes, porém, de entrarmos na análise específica e crítica das provas levadas em consideração para se obterem os factos provados e não provados, - ambos questionados em sede recursiva - importa que clarifiquemos alguns conceitos inerentes a esta matéria, de molde a balizarmos, tanto quanto possível, a sindicância possível e adequada, no que concerne à modificação da matéria de facto, dada como provada, pela 1.ª instância, ainda que com base na jurisprudência dos Tribunais Superiores da jurisdição administrativa, quer do STA, quer deste TCA, os quais já lapidaram, com rigor, esta matéria e com os quais concordamos e já temos incluído noutras decisões por nós relatadas.
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Assim, refere, a este propósito o Ac. do STA, de 19/10/2005, in Rec. 0394/05 “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto”.
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No mesmo sentido, vai o Ac. do mesmo Tribunal, de 14/3/2006, in Rec. 01015/06, que refere que “A garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto (art. 712º C.P.Civil) deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova (art. 655º/1 do C.P.Civil).
Assim, tendo em conta que o tribunal superior é chamado a pronunciar-se privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1ª instância e que a gravação/transcrição da prova, por sua natureza, não pode transmitir todo o conjunto de factores de persuasão que foram directamente percepcionados por quem primeiro julgou, deve aquele tribunal, sob pena de aniquilar a capacidade de livre apreciação do tribunal a quo, ser particularmente cuidadoso no uso dos seus poderes de reapreciação da decisão de facto e reservar a modificação para os casos em que a mesma se apresente como arbitrária, por não estar racionalmente fundada, ou em que for seguro, segundo as regras da ciência, da lógica e/ou da experiência comum que a decisão não é razoável.
Tudo a aconselhar um especial cuidado por parte do tribunal superior no uso dos seus poderes de reapreciação dos pontos controvertidos da matéria de facto (cfr., neste sentido, os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 2003.06.18 – rec- nº 1188/02 e de 2004.06.22 – rec. nº 1624/03).
Sob pena de pôr em causa os princípios da oralidade e da livre convicção que informam a nossa lei processual civil, o tribunal de recurso deve reservar a modificação da decisão de facto para os casos em que a mesma seja arbitrária por não se mostrar racionalmente fundada ou em que for evidente, segundo as regras da ciência, da lógica e /ou da experiência que não é razoável a solução da 1ª instância”.
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Salientamos, ainda, (face às normas do CPTA) acerca desta matéria, o que se escreveu no Ac. deste TCA Norte, de 8/3/2007, in Proc. 00110/06, a saber :
Decorre do regime legal vertido nos arts. 140.º e 149.º do CPTA que este Tribunal conhece de facto e de direito sendo que na apreciação do objecto de recurso jurisdicional que se prende com a impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal “a quo” se aplica ou deve reger-se, na ausência de regime legal especial, pelo regime que se mostra fixado em sede da legislação processual civil nesta sede.

Assim, pese embora tal regime e situações diversas temos, todavia, que referir que os poderes conferidos no art. 149.º, n.º 2 do CPTA não afastam os poderes de modificação da decisão de facto por parte deste Tribunal ao abrigo do art. 712.º do CPC por força da remissão operada pelos arts. 01.º e 140.º do CPTA porquanto o TCA mantém os poderes que assistem ao tribunal de apelação no âmbito da fixação da matéria de facto quando esta constitui objecto ou fundamento de recurso jurisdicional.

É que a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador que se mostra vertido no art. 655.º do CPC, sendo certo que, na formação da convicção daquele quanto ao julgamento fáctico da causa, não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, visto que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação e/ou na respectiva transcrição.
Na verdade, constitui dado adquirido o de que existem inúmeros aspectos comportamentais dos depoentes que não são passíveis de ser registados numa simples gravação áudio. Tal como já era apontado pelo Juiz Cons. Eurico Lopes Cardoso os depoimentos não são só palavras, nem o seu valor pode ser medido apenas pelo tom em que foram proferidas. Todos sabemos que a palavra é só um meio de exprimir o pensamento e que, por vezes, é um meio de ocultar. A mímica e todo o aspecto exterior do depoente influem, quase tanto como as suas palavras, no crédito a prestar-lhe e como tal apreendidos ou percepcionados por outro Tribunal que pretenda fazer a reapreciação da prova testemunhal, sindicando os termos em que a mesma contribuiu para a formação da convicção do julgador, perante o qual foi produzida (cfr. BMJ n.º 80, págs. 220 e 221).
Como tal, o juiz, perante o qual foram prestados os depoimentos, sempre estará numa posição privilegiada em termos de recolha dos elementos e sua posterior ponderação, nomeadamente com a devida articulação de toda a prova oferecida, de que decorre a convicção plasmada na decisão proferida sobre a matéria de facto.
Em conformidade, a convicção resultante de tal articulação global, evidencia-se como sendo de difícil destruição, principalmente quando se pretende pô-la em causa através de indicações parcelares, ou referências meramente genéricas que o impugnante possa fazer, como contrárias ao entendimento expresso.
Com efeito e como tem vindo a ser entendimento jurisprudencial consensual o depoimento de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerado em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
Segundo a lição que se extrai dos ensinamentos do Prof. Enrico Altavilla "(…) o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (in: "Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12).
Como já defendia o Prof. J. Alberto dos Reis “… É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no acto do depoimento ...” (in: “Código de Processo Civil Anotado”, vol. IV, pág. 137).
Daí que a convicção do tribunal se forma de um modo dialéctico, pois, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos, importa atender também à análise conjugada das declarações produzidas e dos depoimentos das testemunhas, em função das razões de ciência, da imparcialidade ou falta dela, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, das hesitações, das inflexões de voz, da serenidade, dos “olhares de súplica” para alguns dos presentes, da "linguagem silenciosa e do comportamento", da própria coerência de raciocínio e de atitude demonstrados, da seriedade e do sentido de responsabilidade evidenciados, das coincidências e inverosimilhanças que transpareçam no decurso da audiência de julgamento entre depoimentos e demais elementos probatórios.
Ao invés do que acontece nos sistemas da prova legal em que a conclusão probatória está prefixada legalmente, nos sistemas da livre apreciação da prova, como o nosso, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto da discussão em sede de julgamento, com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
Note-se, contudo, que este sistema não significa puro arbítrio por parte do julgador.
É que este, pese embora, livre, no seu exercício de formação da sua convicção, não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.
Aliás, a nossa lei processual determina e faz impender sobre o julgador um ónus de objectivação da sua convicção, através da exigência da fundamentação da matéria de facto (da factualidade provada e da não provada), devendo aquele analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (cfr. art. 653.º, n.º 2 do CPC).
É que não se trata de um mero juízo arbitrário ou de simples intuição sobre veracidade ou não de uma certa realidade de facto, mas antes duma convicção adquirida por intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que aquela convicção carece de ser enunciada ou explicitada por expressa imposição legal como garante da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador na administração da justiça.
À luz desta perspectiva temos que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Aliás e segundo os ensinamentos do Prof. M. Teixeira de Sousa ”(…) o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente (…)” (in: “Estudos sobre o novo Processo Civil”, pág. 348).
…Mercê do que vimos expondo ao tribunal de recurso apenas e só é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão”.
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Feitas estas considerações dogmáticas acerca da matéria, revertamos ao caso concreto dos autos, transcrevendo a fundamentação da factualidade provada e não provada, - aliás, elaborada com exímio, exaustivo e louvável rigor - para assim melhor apreendermos, quer a razão da recorrente - conforme se fez constar das alegações de recurso - quer da sentença, como segue e quanto aos factos dados como provados e não provados:
"A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto inserta nos pontos 1. a 6., 9., 10., 12. a 15., 19. e 23. do probatório resulta do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente aqueles que foram sendo indicados nos respectivos pontos do probatório. Importa referir que os factos 1. a 6., 9., 10., 12. a 15. e 19., ainda que suportados em documentos juntos aos autos, foram também confirmados pelas testemunhas GG (gestora de sinistros e funcionária da A.), HH (militar da GNR que esteve presente no local do sinistro e que elaborou o auto de ocorrência de trânsito, constante dos autos como documento n.º ...2 junto com a p.i.), II (operadora da central de comunicações da R.) e DD (oficial de assistência e vigilância na R.), que prestaram depoimentos espontâneos, serenos, objectivos e congruentes, confirmando o teor daqueles documentos e descrevendo não apenas a relação contratual de seguro que une a A. ao proprietário do veículo, seu segurado, como também a ocorrência do acidente, os estragos sofridos pelo veículo, a reparação de que o mesmo foi alvo, o respectivo pagamento efectuado pela A., a presença dos animais na via, a sua remoção do local e as actividades habituais de vigilância e conservação da via pela R. e aquelas que por esta foram efectuadas no dia do sinistro.
Os factos elencados nos pontos 1. a 11. do probatório, respeitantes à ocorrência do acidente e às consequências deste, foram considerados provados com base, desde logo, nos documentos ali referidos, mas também nos depoimentos prestados em juízo pelas testemunhas HH e DD, que depuseram com conhecimento directo e concreto da situação em apreço, prestando, cada uma delas, um depoimento que, no essencial, se revelou coerente e espontâneo, demonstrando, assim, sinceridade no relato.
Importa referir que, pese embora o condutor do veículo não tenha sido inquirido nestes autos, nem qualquer outra testemunha que tenha presenciado o acidente, a verdade é que a diversa prova, documental e testemunhal, produzida foi suficiente para convencer o Tribunal quer da ocorrência do acidente conforme descrito pela A., quer das consequências que esta invoca.
Com efeito, o relato constante do auto de ocorrência de trânsito lavrado pela GNR momentos após a produção do acidente, conjugado com o depoimento prestado pelo militar HH, seu autor, foi deveras relevante para a prova da ocorrência do acidente, suprindo a falta de depoimento por banda do condutor do veículo. Na verdade, o relato que este prestaria em juízo, com elevado grau de certeza, como decorre das regras da experiência, seria o mesmo que prestou perante o militar da GNR inquirido e que este verteu no auto de ocorrência de trânsito que consubstancia o documento n.º ...2 junto aos autos com a p.i.. Neste documento constam não apenas as circunstâncias em que o embate ocorreu, mas também que a GNR constatou a existência dos estragos na zona frontal do veículo, assim como a existência de animal morto na via. Tal circunstancialismo foi integralmente confirmado em juízo pela testemunha HH, que, mostrando boa recordação do evento, tendo em consideração tratar-se de um veículo pesado de matrícula espanhola, como salientou, referiu que antes mesmo de se deslocar junto do veículo sinistrado que já se encontrava na área de serviço de ..., passou no local do embate e constatou a presença de um javali morto junto da berma esquerda da faixa de rodagem onde o mesmo se produziu. Mais referiu que, depois, a concessionária R. informou que existia outro javali morto. Referiu também que constatou no veículo sinistrado a presença de pelo de animal, compatível com o de javali. No que tange à testemunha DD, esta referiu que, no âmbito da sua deslocação ao local por força da comunicação do sinistro aqui em discussão, constatou a existência de dois javalis mortos na faixa de rodagem onde seguia o veículo segurado pela A., um junto da berma esquerda e outro junto da berma da direita, tendo-os removido e transportado para o centro de operações da R. em .... Mais referiu que, depois de remover os animais mortos, deslocou-se para a área de serviço de ... na A...5, mas que, quando lá chegou, o que não terá sucedido antes da 01 hora e 30 minutos dessa mesma madrugada, já lá não se encontrava nem o veículo sinistrado nem a GNR, mas que o funcionário do posto de combustível dessa área de serviço lhe referiu que ali haviam estado.
Pelo que, da conjugação destes depoimentos com o auto de ocorrência de trânsito, assim como com os documentos relativos à peritagem do veículo e à sua reparação emergiu a convicção do Tribunal não apenas quanto à ocorrência do acidente, mas também quanto às suas consequências – estragos, reparação e respectivos custos, os quais foram suportados pela A. e seu segurado (este apenas na quantia de EUR 480,00, correspondente à franquia contratual). Ainda que diversos factos relativos à dinâmica do acidente se tenham considerado não provados – tendo sido incluídos no elenco de factos não provados constante dos pontos A. a F. do probatório, o que se ficou a dever à total ausência de prova por banda da A., que os alegara, mas também, relativamente ao ponto B., da prova do seu contrário pela R. (conforme depoimento da testemunha DD) –, a verdade é que os mesmos não logram abalar a convicção do Tribunal quanto à ocorrência do acidente nos termos em que vem alegado pela A., nem as suas consequências, atenta a diversa prova produzida e já referida. Pelo que, tais factos quedaram-se por inócuos para a prova da ocorrência do sinistro.
Os factos constantes dos pontos 12. a 15. do probatório, referentes ao contrato de seguro celebrado entre a A. e o proprietário do veículo sinistrado, de matrícula espanhola ....GRG, seu accionamento e gestão do sinistro por banda da A., com a realização de peritagem ao veículo, sua reparação e respectivo pagamento, resultaram provados com base não apenas nos documentos ali referidos, mas também no depoimento da testemunha GG. Tal testemunha, ainda que seja funcionária da congénere portuguesa da A., demonstrou conhecimento do assunto, pese embora não tenha feito a gestão do sinistro. Porém, tal circunstância não afasta a sua credibilidade, nem tampouco a força probatória dos documentos sobre que incidiu o seu relato. Ademais, o seu depoimento foi relevante para explicar e contextualizar os procedimentos da A. quer ao nível da contratação do seguro, quer da regularização do sinistro.
O facto constante do ponto 16. do probatório foi considerado provado por acordo, resultando das alegações convergentes das partes, constantes dos artigos 23º a 27º da p.i. e 17º a 41º da contestação.
Para a prova dos factos constantes dos pontos 17. a 22. do probatório, respeitantes à vigilância e manutenção da via, características da mesma e sua vedação, o Tribunal tomou em consideração os depoimentos das testemunhas II, DD, JJ (oficial de conservação na R.) e BB (encarregado de assistência, vigilância e conservação na R.), que prestaram depoimentos descritivos das obrigações contratuais da R. perante o Estado Português, das operações de vigilância e fiscalização da via, enunciando procedimentos habituais e descrevendo medidas gerais implementadas pela R., mas também descrevendo as actividades de vigilância da via efectuadas na data do sinistro, assim como as características da rede de vedação da via no local do sinistro (que é de 1,60m de altura e em malha progressiva, sendo mais apertada na base e até meio e depois mais larga até ao cimo, sendo rematada no topo e na base com arame farpado).
Assim, por estas testemunhas foram descritas as actividades de patrulha efectuadas no dia do sinistro, revelando que a patrulha passou pela última vez no local do sinistro (antes deste ocorrer), por volta das 21 horas e 25 minutos (ou seja, cerca de uma hora e trinta e cinco minutos antes do evento), executando a sua última patrulha do dia. Pelas testemunhas foi referido também que, após receberem comunicação da ocorrência do sinistro, a testemunha DD deslocou-se de imediato para o local, tendo, à chegada, constatado a presença de dois javalis mortos na via, recolhendo-os, e procedido à verificação da vedação, numa extensão de cerca de 300m para cada lado, não tendo avistado qualquer anomalia na mesma.
Por estas testemunhas foi ainda referido que, cinco dias depois do acidente, a testemunha JJ efectuou uma inspecção à vedação no local do sinistro e suas imediações, não tendo constatado qualquer anomalia.
O facto constante do ponto 23. do probatório resulta da tramitação dos presentes autos, pelo que é do conhecimento das partes.
Deram-se como não provados os factos elencados nos pontos A. a F. por não terem ficado cabalmente demonstrados, como já se referiu antecedentemente".
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Ora, quanto à matéria de facto, o recorrente critica a decisão do TAF de Viseu, quanto aos factos 18 e 22.
Consta do ponto 18 do probatório o seguinte:
A R. organiza patrulhamentos diários a toda a extensão que se inicia no nó de ligação da A...5 à A... e termina em ..., de forma a efectuar habitualmente passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 03 horas".
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A recorrente pretende um aditamento (que sublinhamos na transcrição) a essa concreta factualidade, de modo a que dele conste, expressamente, que “A R., de acordo com a obrigação que assumiu com a concedente a respeito dos patrulhamentos, organiza patrulhamentos diários a toda a extensão da sua concessão, que se inicia no nó de ligação da A...5 à A... e termina em ..., de forma a efectuar habitualmente passagens de vigilância no mesmo local com o intervalo máximo de 03 horas".
Independentemente da existência de prova documental ou testemunhal desse extracto aditando e das normas contratuais celebradas entre concedente e concessionário, o aditamento pretendido é de todo inócuo para a decisão dos autos, mesmo numa óptica mais vasta, soluções plausíveis de direito, sendo mesmo que a própria recorrente, na sua alegação jurídica, não aborda essa pertinência de interesse.
Apenas importa para as várias soluções plausíveis de direito a matéria descrita no ponto 18, que resulta - como evidencia a fundamentação da sentença – da prova testemunhal e documental, sendo a mesma toda e aquela que foi alegada pela R./Recorrente, sendo irrelevante que essa vigilância, nos termos alegados e apurados, seja derivada de obrigações na relação contratual ou do entendimento da concessionária de modo a melhor fazer a vigilância que deve executar.
Em resumo, nada a acrescentar/aditar ao ponto 18 do probatório.
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Quanto ao ponto 22, pretende a recorrente que se adite, pormenorize – parte infra sublinhada -, que a inspecção realizada à vedação no local do acidente, passados 5 dias da ocorrência, pelo oficial de conservação da R., CC, refira que “Cinco dias após a ocorrência do sinistro, o oficial de conservação da R., CC, efectuou uma verificação da vedação, concretamente as vedações existentes em todo o sublanço entre os nós de ... e ... onde se situa o local do sinistro e em ambos os sentidos de marcha da A ...5, tendo concluído que a dita vedação não apresentava anomalias”.
Também nesta parte, não vemos razão plausível, justificável para o pretendido aditamento, ainda que resultante do depoimento da indicada testemunha, sendo que para a solução jurídica encontrada pela sentença o mesmo é de todo irrelevante, assim, como o será para a solução que infra evidenciaremos.
Entendemos, porém, em abono da verdade factual e objectiva e pela maior proximidade temporal com os factos apurados, efectivada uma reapreciação da prova, ouvindo os depoimentos prestados, aliás, também em consonância com o que o Sr. Juiz que elaborou a sentença exarou na fundamentação fáctica, na sequência do ponto 11 do probatório, aditar o seguinte facto:
"24 . O oficial de conservação da A..., SA, DD que se deslocou para o local, procedeu à verificação da vedação, numa extensão de cerca de 300m para cada lado, não tendo avistado qualquer anomalia na mesma".
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Quanto ao aditamento resultante do alegado nos arts. 45.º e 46.º da contestação, embora a sentença tenha por adquirida essa factualidade, porque efectivamente da prova produzida resulta inequivocamente que o condutor e proprietário do veículo sinistrado, GS..., depois do acidente, seguiu para a área de serviço de ..., local onde deu pertinentes informações ao soldado da GNR que se deslocou a esse local e redigiu o Auto de Ocorrência de Trânsito – fls. 13 do processo físico - , KK, importa que se fixe também essa factualidade, aditando-se, assim, à factualidade provada o seguinte:
25 . O motorista do tractor de mercadorias, GS..., de matrícula espanhola ....GRG, após o embate nas imediações do local indicado como correspondendo ao do sinistro, prosseguiu até à área de serviço de ..., onde descreveu ao soldado do ..., sediado em ..., HH, a ocorrência”.
***
Quanto à vertente jurídica questionada.
A argumentação da R./Recorrente reside, inter alliud, na inaplicação ao caso dos autos da verificação do ónus da prova por parte das concessionárias, melius, existência de uma presunção de culpa sobre a R./recorrente, por virtude do art.º 12.º, ns. 1 e 2 da Lei 24/2007, de 18 de Julho, na medida em que a autoridade policial não verificou no local do acidente as causas do mesmo, como se mostra obrigatório no n.º 2 do art.º 12.º da Lei 24/2007, de 18 de Julho.
Vejamos.
Extrai-se da sentença recorrida:
"...
Para tanto, importa ainda ter em consideração, no que concerne ao bloco de legalidade aplicável, que a Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho veio definir os “direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares e estabelece, nomeadamente, as condições de segurança, informação e comodidade exigíveis, sem prejuízo de regimes mais favoráveis” (art.º 1º).
E o art.º 12º do referido diploma estabelece o seguinte:
“Artigo 12.º
Responsabilidade
1 – Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário,
com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respectiva causa diga respeito a:
a) Objectos arremessados para a via ou existentes nas faixas de rodagem;
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
2 – Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente
é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança.
3 – São excluídos do número anterior os casos de força maior, que directamente afectem as actividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excepcionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) ..., subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra.”
Desta forma, o legislador resolveu no art.º 12º a problemática da repartição do ónus de prova dos elementos constitutivos da obrigação de indemnizar: quando esteja em causa um sinistro numa auto-estrada concessionada, provocada pelo atravessamento de um animal, e que a autoridade policial competente tenha verificado no local as causas do acidente (v.g. a viatura acidentada e o animal), a entidade concessionária fica onerada com uma presunção de incumprimento das obrigações de segurança que lhe cabe observar, cabendo-lhe, portanto, o ónus de prova do cumprimento das obrigações de segurança.
Solução normativa cuja conformidade constitucional já foi verificada e validada pelo Tribunal Constitucional cf. Acórdãos n.os 597/2008, 596/2009 e 629/2009.
Feitos estes considerandos e munidos do quadro normativo aplicável à situação sub specie, vejamos agora o caso concreto.
Da matéria de facto dada como provada resulta que o condutor do veículo ....GRG, quando ia a circular na A...5 no sentido Este-Oeste não logrou, ao km 110,350, evitar o embate com dois javalis que surgiram a atravessar a referida auto-estrada. E em resultado desse embate o veículo pesado de mercadorias sofreu vários danos.
Ficou provado que o acidente teve como causa o atravessamento desses animais na faixa de rodagem em que seguia o veículo pesado segurado pela A..
A causa do acidente, foi verificada pela patrulha da GNR que ali se deslocou, tendo constado a presença de um javali na berma esquerda da hemifaixa de rodagem em que seguia o veículo ....GRG, tendo o outro javali sido verificado no local (berma direita da mesma hemifaixa de rodagem) pelo funcionário da R. que se deslocou para o local após comunicação do sinistro. Outrossim, a causa do acidente ficou demonstrada em juízo por recurso à prova testemunhal. Com efeito, como resulta da fundamentação da matéria de facto, o militar da GNR que lavrou o auto de ocorrência de trânsito, além de confirmar o teor desse auto, aduziu também que verificou a presença de pelo de animal no pára-choques do veículo ....GRG, não oferecendo quaisquer dúvidas de que a causa do sinistro foi a presença, na faixa de rodagem, daqueles javalis, que surgiram a atravessar a via. A presença dos referidos animais no local apontado pelo condutor do veículo sinistrado foi ainda confirmada pelo funcionário da R. que os recolheu.
Além disso, os estragos provocados no veículo ....GRG foram considerados compatíveis com o embate de dois javalis.
Ora, como tem vindo a ser pacificamente entendido pela jurisprudência, a circunstância de a autoridade policial não ter sido chamada ao local ou, ainda que o tenha sido, não ter encontrado o veículo sinistrado, mas apenas o animal, no preciso local onde ocorreu o embate não impede o condutor sinistrado (ou a companhia de seguros que se sub-rogue na sua posição em virtude de contrato de seguro automóvel) de beneficiar da presunção de incumprimento que recai sobre a concessionária da auto-estrada por força do disposto no art.º 12º, n.º 1 da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho, pois que o lesado mantém a possibilidade de fazer prova do sinistro e do atravessamento do animal na via, socorrendo-se de outros meios probatórios – cf. Acórdãos do Tribunal da Relação ... de 13.09.2012 (proc. n.º 128/10....), do Tribunal da Relação ... de 19.02.2013 (proc. n.º 1814/08....) e do Tribunal da Relação ... de 11.01.2011 (proc. n.º 4196/08....) e de 16.03.2015 (proc. n.º 2476/12....).
Foi precisamente o que sucedeu nos presentes autos, pois que a prova da ocorrência do embate foi efectivamente feita pela A. e a presença do animal na via foi constatada pela autoridade policial.
Provou-se que no dia do acidente o local do sinistro foi patrulhado pelos serviços da R., não tendo estes detectado qualquer animal na via, sendo que a última passagem no local pelos serviços da R. ocorreu cerca de uma hora e trinta e cinco minutos antes do sinistro ora sub specie.
E provou-se que, cinco dias após a ocorrência do sinistro, a R. efectuou uma inspecção à rede de vedação da A...5 no local onde o mesmo ocorreu e suas imediações, não tendo verificado qualquer anomalia.
Tendo presente o quadro fáctico alegado pela R. e dado como provado, impõe-se a seguinte questão: a demonstração de que a R. vigia regularmente a auto-estrada, que horas antes do acidente os vigilantes de serviço percorreram a via, passando no local do sinistro antes dele suceder, sem detectar qualquer animal é suficiente para ilidir a presunção de incumprimento que sobre si recai, por força do art.º 12º, n.º 1 da Lei n.º 24/2007, de 18 de Julho?
O Tribunal considera que não.
Em primeiro lugar, pese embora tenha sido alegado e demonstrado que a A...5 está, pelo menos no local do sinistro, protegida com vedações exteriores em rede metálica, com malha de abertura progressivamente variável e arame farpado no topo e na base e que tal vedação foi instalada conforme dimensões e características aprovadas na fase de construção, a verdade é que nada resultou da prova apresentada no sentido de que a rede instalada no local impede efectivamente a entrada de javalis como aqueles que estiveram envolvidos no acidente a que os autos respeitam.
Ora, não tendo sido alegado tal facto e não resultando da prova que a rede tenha esta capacidade, seria irrelevante que não existisse nenhuma anomalia da rede. E é também irrelevante a existência de patrulhamentos se não ficar demonstrado que estão instalados na auto-estrada em causa os meios técnicos que visem impedir a entrada de raposas na via.
A este propósito, ao contrário do que é alegado, o cumprimento de obrigações de segurança não se restringe à operação de patrulhamento, à confirmação do estado das redes e às concretas previsões contratuais que constam do contrato de concessão outorgado com o Estado Português. É que, apesar do que alega relativamente à vedação da via, a R. não demonstra que a auto-estrada estava efectivamente vedada em condições de segurança. Além disso, os patrulhamentos não são especificamente destinados à detecção de animais. Importa ter em atenção que, ao contrário dos elementos estáticos (como pedras) que podem causar acidentes, os animais são elementos que se movimentam e que se escondem, pelo que os patrulhamentos só por si não se afiguram como prova adequada do cumprimento das obrigações de segurança desacompanhados de outra prova no sentido de que a R. tenha instalado na auto-estrada infra-estruturas que permitam em concreto prevenir a entrada de javalis.
Repare-se que não estamos aqui a discutir a responsabilidade contratual da R. perante o concedente. Está em discussão a responsabilidade da R. enquanto concessionária da A...5, responsável pela sua vigilância, manutenção, fiscalização e conservação, perante terceiros, a título de responsabilidade civil extracontratual. Pelo que à R. não basta alegar e provar o cumprimento de obrigações contratuais, importa que demonstre actos e operações que assegurem a concreta e efectiva segurança da via para os seus utilizadores, nomeadamente impedindo o atravessamento de animais.
Em segundo lugar, em face da jurisprudência constante dos Tribunais Superiores, a R. teria que demonstrar que os animais surgiram na auto-estrada de uma forma incontrolável, por um motivo de força maior, nomeadamente através de um acto de terceiro que não podia impedir.
No caso em apreço, não se sabe de onde vieram os javalis, sendo certo que os mesmos surgiram na faixa de rodagem da auto-estrada pela qual seguia o condutor do veículo segurado pela A., quando não deviam ter aparecido.
A presença de um qualquer animal numa auto-estrada, nomeadamente javalis, é sempre um factor de grande risco, já que nela é permitido atingir a velocidade de 120 km/h.
A este propósito veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação ... de 04.07.2013 (proc. n.º 3238/11....), que refere o seguinte:
“Quando, apesar da existência de vedações, um cão se introduz na auto-estrada, existe, em princípio, um incumprimento concreto por parte da concessionária, porquanto, nos termos do contrato que celebrou com o Estado, ela se comprometeu, além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas.
E tal presunção de incumprimento subsistirá sempre que, como no caso vertente, seja ignorada a razão da introdução do animal na via.
É manifesto que a entrada de um cão na auto-estrada pode acontecer por qualquer meio, incluindo ser aí largado por um utente.
Mas, enquanto não for conhecida a efectiva razão do sucedido, é a favor do lesado/utente, e não da concessionária que a respectiva dúvida terá de resolver-se, de acordo com o preceituado no n.º 1 do art.º 12º da Lei nº 24/2007, conjugado com o n.º 1 do art.º 350.º do C.Civil (Ac. Relação ..., 2011/01/11, www.dgsi.pt).
A simples afirmação feita pela ré (e corroborada pelas suas testemunhas – seus funcionários) de que as vedações, nas imediações do local do acidente estariam em condições no dia em que este ocorreu, não chega para que possamos afastar a presunção decorrente do artigo 12º, nº 1 da Lei nº 24/2007.
Caso contrário – caso afastássemos essa presunção com tão pouco – estaríamos a colocar o problema praticamente no mesmo estado em que se encontraria sem a existência da presunção. Esta valeria, pois, muito pouco, reconduzindo-se a uma espécie de obrigação protocolar da concessionária de trazer os seus funcionários a tribunal para afirmarem uma espécie de fórmula sacramental desoneradora de uma presunção legal assente em relevantes fundamentos de justiça.
Cremos, com efeito, que este grau de exigência se coaduna – é o que melhor se coaduna – com a teleologia da norma e está presente, em termos de mensagem normativa subjacente, no próprio texto através do carácter particularmente restritivo das exclusões estabelecidas no nº 3 desse artigo 12º.
Como se deixou já dito, perdoe-se-nos a repetição, a concessionária celebrou com o Estado um contrato (o contrato de concessão) pelo qual se comprometeu, para além do mais, a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas.
Ora, está fora de qualquer dúvida que a introdução numa auto-estrada, via por essência de trânsito automóvel rápido, de um animal (um canídeo, no caso concreto), coloca sérios problemas de segurança rodoviária.
Por outro lado, o aparecimento daquele animal na via, nega a obrigação de segurança viária que cabe à R. proporcionar aos utentes da via, correspondendo esse surgimento a uma perigosa violação da segurança do tráfego automóvel.
Ou seja, mesmo que a ré tivesse provado que genericamente cumpriu as suas obrigações decorrentes do contrato de concessão, o certo é que não demonstrou, no caso concreto, a observância desses mesmos deveres.
Não pode pôr-se a cargo do automobilista a prova da negligência da ré ou da origem do cão, porque não foi a prestação dele que falhou nem é ele que tem a direcção efectiva da via - o poder de facto sobre a auto-estrada (como um todo, incluindo vedações, ramais de acesso e áreas de repouso e serviço).
Como acima ficou dito, só o «caso de força maior devidamente verificado» exonera o devedor (a concessionária) da sua obrigação de garantir a circulação em condições de segurança e, na hipótese de inexecução, o dever de reparar os prejuízos causados.
Isto significa, no essencial, que não será suficiente à concessionária de uma auto-estrada mostrar que foi diligente no cumprimento dos seus deveres em geral; terá de estabelecer positivamente qual o evento concreto, alheio ao mundo da sua imputabilidade moral, que lhe não deixou realizar o cumprimento.
Essa prova só terá sido produzida quando se conhecer, em concreto, o modo de intromissão do animal. A causa ignorada não exonera o devedor, nem a genérica demonstração de ter agido diligentemente.
Para afastar a presunção de incumprimento que sobre si impende, deveria, pois a R. provar, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem.
Isto é, e em jeito de conclusão (segundo a tese jurisprudencial maioritária, a que aderimos) sempre que há um acidente de viação numa auto-estrada concessionada, devido a um cão (ou outro animal) que se introduziu na mesma auto-estrada, presume-se o incumprimento da concessionária.
Esta só afastará essa presunção se demonstrar que a intromissão do animal na via, não lhe é, de todo, imputável, provando, em concreto, que o canídeo surgiu de forma incontrolável para si ou foi colocado na auto-estrada, negligente ou intencionalmente, por outrem (Acórdão do Tribunal da Relação ... de 17-5-2012 disponível no mesmo sítio electrónico).
Isto porque, contrariamente ao defendido pela R. a obrigação que sobre si impende, decorrente da Base XLIV, nº 1, do DL nº 248-A/99, de 6 de Julho, é uma obrigação de resultados, já que existe, por banda da concessionária, a obrigação de promover e concretizar uma boa circulação rodoviária nas auto-estradas.”
É esta a jurisprudência que tem merecido acolhimento no Tribunal Central Administrativo Norte, conforme se pode verificar nos Acórdãos de 25.02.2010 (proc. n.º 00636/05....), de 28.02.2014 (proc. n.º 00048/10....) e de 28.06.2019 (proc. n.º 00620/14....).
E, como já se referiu antecedentemente, esta interpretação jurisprudencial foi já sindicada pelo Tribunal Constitucional, que se pronunciou pela sua não inconstitucionalidade.
Revertendo esta jurisprudência ao caso em apreço, a R. não logrou provar a proveniência dos javalis ou que os mesmos surgiram de forma incontrolável por si e que, por esse motivo, não lhe é imputável o sucedido.
Não foi alegada ou produzida qualquer prova concreta sobre a introdução dos javalis na auto-estrada, pelo que não se encontra ilidida a presunção de incumprimento que sobre a R. impende.
Assim, recai desde logo sobre esta o dever de indemnizar a A. pelos prejuízos sofridos na sequência e como consequência do embate com os javalis.
Tendo sido apurado que sobre a R. recai o dever de vigilância, fiscalização e conservação da A...5 por força do contrato de concessão que celebrou com o Estado Português, é esta responsável perante terceiros, pelos eventuais danos causados pelo evento aqui sub specie.
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Assim, devem acrescer ao valor dos danos indemnizáveis (EUR 5.187,20) os juros de mora à taxa legal, contados somente desde a data da citação da R. para a presente acção que ocorreu em 31.01.2014 [cf. ponto 23. do probatório] até efectivo e integral pagamento, tudo nos termos das disposições conjugadas dos art.os 805º, n.º 3, 806º e 559º, n.º 1 do CC e da Portaria n.º 291/2003, de 08 de Abril.
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Em face de todo o exposto, impõe-se concluir que assiste razão à A., devendo proceder a presente acção." - sublinhados e negritos nossos.
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Ora a presunção de culpa, o ónus probandi das concessionárias, vertido no n.º 1 do art.º 12.º da Lei 24/2007, está dependente, como se mostra clarividente do n.º 2 desse normativo --- Para efeitos do disposto no número anterior, a confirmação das causas do acidente é obrigatoriamente verificada no local por autoridade policial competente, sem prejuízo do rápido restabelecimento das condições de circulação em segurança"---, da confirmação do acidente obrigatoriamente no local pela autoridade policial competente.
Ora, no caso dos autos, o condutor do tractor de mercadorias GS... deslocou a viatura do local do acidente para a área de serviço de ... - cfr. ponto 25 dos factos provados, aditado nesta instância recursiva -, local onde a viatura foi observada pelo soldado da GNR, chamada ao local, tendo a descrição do acidente sido registado com base nas declarações do condutor, sem qualquer outra testemunha presencial do acidente, desconhecendo-se, em concreto, as razões de não aguardar no local a autoridade policial competente, pois que o condutor não prestou declarações na audiência de julgamento, embora do depoimento do oficial de conservação da Ré, DD, tenha resultado que estaria com pressa para descarregar a carga que transportava.
Ainda que o elemento da GNR tenha visto no local, onde eventualmente terá ocorrido o acidente, sem outros destroços, um javali, o mesmo não pôde confirmar as causas do acidente, obrigatoriamente no local – porque, efectivamente a ele não assistiu.
Mesmo o oficial de segurança da A..., SA que também tomou conta da ocorrência, DD, viu e retirou do alegado local do sinistro dois javalis, esteve na área de serviço de ... mas não esteve com o condutor ou mesmo com o soldado da GNR ..., pois que apenas ali chegou pelas 01 30, quando o acidente ocorreu pelas 23 horas.
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Servem estes argumentos para a R./Recorrente afastar a presunção que sobre si impende, resultante da norma vertida no art.º 12.º n.º 2 da Lei 24/2007.
Não ignoramos a bondade da tese defendida pela A..., SA (aliás, doutamente desenvolvida), mas - cremos - não tem suporte na maioria da jurisprudência, seja dos tribunais comuns, seja dos tribunais da jurisdição administrativa, como sejam os indicados, com elevada correcção subsuntiva, na sentença do TAF de Viseu.
Em Acórdão recente deste TCA - de 27/5/2022, in Proc. 435/18.... - , com o mesmo colectivo, decidiu-se que, não tendo a autoridade policial competente comparecido no alegado local do acidente em AE, mas tendo apenas contactado com o condutor na área de serviço, mas sem que existissem quaisquer vestígios no local onde alegadamente terá ocorrido o acidente com arbustos/pau na AE - como foi confirmando pela GNR e assistência na AE - concluiu-se que não se verificava a situação prevista e indutora da presunção de ilicitude e culpa do n.º 2 do art.º 12.º da Lei 24/2007, importando, assim, em confirmação da sentença da 1.ª instância, à improcedência da acção.
Porém, a situação fáctica e objectiva que os autos nos patenteiam é bem diferente.
Na verdade, como decorre dos factos provados --- sendo que, em sede de audiência, as testemunhas não foram sequer questionadas acerca da possibilidade do veículo em causa não ter tido o acidente naquele dia/hora e local, perspectivando uma situação de fraude, que agora a recorrente, de certo modo, parecer querer induzir --- no local indicado pelo condutor e proprietário do veículo sinistrado - tractor de mercadorias e semi-reboque - foram vistos pela autoridade policial que lavrou o Auto de Ocorrência de Trânsito de fls. 13 do processo físico, soldado KK - que não foi impugnado - e pelo oficial de conservação da A..., SA, DD, os corpos dos dois javalis, os quais foram recolhidos por este.
Na área de serviço, o soldado da GNR, verificou directamente os danos na viatura e constatou mesmo que existiam ainda pêlos de javali, além de que os danos, documentados nas fotografias 15 a 20 do processo físico evidenciam esse embate, sendo como diz a decisão judicial em recurso - sem controvérsia recursiva -, considerados compatíveis com o embate de dois javalis.
Ora, perante esta concreta factualidade - confirmada, em sede de audiência, pelas duas indicadas testemunhas - aderindo à jurisprudência citada pela sentença do TAF de Viseu - fls. 16 - em situações de todo semelhantes à dos autos, entendemos que subsiste a presunção de ilicitude e culpa ínsita no referido art.º 12.º da Lei 24/2007.
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Como se diz (e adere) no Ac. Rel. Porto, de 16/3/2015, in Proc. 2476/12 "De acordo com o que se dispõe no artigo 12º, nº 1, da Lei nº 24/2007, de 18/07, nos acidentes de viação que são provocados pela presença de animais nas auto-estradas concessionadas é de presumir a falta de cumprimento (e também da culpa) das obrigações de segurança das concessionárias.
Estas só poderão eximir-se à responsabilidade ilidindo aquela presunção, isto é demonstrando que a presença do animal na via se verificou por motivos que não lhe são imputáveis, ou seja, fazendo a prova histórica do acontecimento.
As causas do acidente, atravessamento do canídeo devem ser confirmadas no local pela autoridade policial - art.º 12.º, n.º 2, da citada Lei.
Todavia, mesmo não existindo tal verificação, isso não impossibilita o lesado de poder fazer a prova da existência do animal na via, socorrendo-se de outros meios probatórios e, com isso beneficiando, ainda assim, da presunção de incumprimento estabelecida no nº 1 do mencionado art.º 12.º.
Mas ainda que assim não se entenda o nosso Cód. Civil permite perspectivar os factos de forma a poder ser justificada, a mais que um título, a inversão do ónus da prova da culpa, quer no plano da responsabilidade civil extracontratual pela via da responsabilidade contratual".
Igualmente, no Ac. Rel. Coimbra, de 9/3/2010, "Se o canídeo ou outro animal atravessa a auto-estrada e provoca um acidente, não é exigível ao utente que demonstre que a entrada no auto-estradas se ficou a dever à existência de um buraco na rede, buraco que a existir pode situar-se a centenas de metros do local do acidente, tal como não é exigível que seja o utente a alegar e provar, em face das características físicas do animal, que a concepção e construção da rede não impedia a sua entrada na via.
Seguramente que a concessionária, considerando a fauna existente no local de construção do auto-estrada e a necessária existência de canídeos, deve projectar e implantar uma rede que impeça a entrada de animais na auto-estrada, tal como deve ser a concessionária a colocar nos viadutos que atravessam as auto-estradas as vedações necessárias a impedirem o arremesso de objectos, tal como, ninguém, melhor que a concessionária, dispõe de elementos técnicos que lhe permitam alegar e provar que a existência de líquidos não se ficou a dever a erro de projecto ou de construção, mas sim à existência de condições climatéricas anormais para a zona.
Se diariamente se apela à utilização das auto-estradas em virtude de serem as rodovias, mais seguras, rápidas e cómodas, então a concessionária não pode deixar de estar vinculada a dotá-las das infra-estruturas necessárias ao cumprimento das regras de segurança, de entre as quais se destaca, por recorrente, a colocação de redes que impeçam efectivamente a entrada de animais na auto-estrada, os quais são um perigo para a circulação, colocando em sérios riscos a segurança dos utentes. Se existe situação recorrente nas auto-estradas é a entrada de animais com os resultados conhecidos, sendo que a concessionária não pode deixar de estudar as razões que determinam a sua entrada e tomar as medidas necessárias para evitar que tal suceda, cumprindo deste modo as obrigações que assumiu no contrato de concessão: a assegurar permanentemente, em boas condições de segurança e comodidade, a circulação nas auto-estradas".
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No caso dos autos, pese embora se tenha demonstrado que, quer no dia do acidente - 24/10/2023, pelas 23 horas - quer passados 5 dias, se tenha verificado o estado de conservação da rede, por funcionários da Ré A..., SA, no dia, em cerca de 300 m para cada lado do local do acidente e, no 5.º dia posterior, desde os nós mais próximos (... e ...), referindo ambos (DD e CC, respectivamente) que não tinha anomalias, entendendo-se com buracos ou danificada, o certo é que o acidente se verificou a cerca de 5 Km. do nó de ..., pois que este fica - conforme confirmado pelo Soldado da GNR em audiência, HH, com ajuda telefónica do ... - ao Km 105,35 e o acidente ocorreu ao Km 110,350.
Deste modo, independentemente das característica concretas da rede na data, o certo é que os javalis entraram na AE, devendo demonstrar-se - o que não foi efectivado - que, sabendo (ou devendo saber) a concessionária que, naquela zona, existem javalis, foram tomadas medidas específicas para evitar essa entrada.
Remete-se, a propósito para a argumentação - que acompanhamos - da sentença do TAF de Viseu, secundada pela jurisprudência aí transcrita, v.g., Ac. Rel. Porto, de 4/7/2013, bem como os arestos deste TCA também á indicados.
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Improcede, deste modo, a, aliás douta, argumentação da Ré/Recorrente, pelo que importa negar provimento ao recurso, e assim manter a sentença recorrida.

III
DECISÃO

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes deste Tribunal em negar provimento ao recurso e assim manter a decisão recorrida.
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Custas pela Ré/Recorrente.
*
Notifique-se.
DN.

Porto, 1 de Julho de 2022

Antero Salvador
Helena Ribeiro
Nuno Coutinho
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i) E não pelo ..., uma vez que se encontrava a exercer funções na jurisdição administrativa/fiscal, em comissão permanente de serviço

ii) Despacho da autoria do Relator deste aresto, por na altura – de 1/9/2014 a 1/9/2021 – exercer as funções de Presidente dos TAF´s da Zona Centro.