Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00212/12.4BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/15/2021
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores: ACÇÃO ADMINISTRATIVA COMUM; CAMINHO; NÃO EXISTÊNCIA DE ERRO DE JULGAMENTO DE FACTO; =>
ACERTO DA DECISÃO EM TERMOS DE DIREITO - IMPROCEDÊNCIA DO RECURSO;
Recorrente:Junta de Freguesia (...)
Recorrido 1:A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
RELATÓRIO
A. instaurou acção administrativa comum contra a Junta de Freguesia (...), ambos melhor identificados nos autos.
Invocou, em síntese, i) que é proprietário de um conjunto de prédios rústicos em (...); ii) a Junta de Freguesia (...) levou a cabo actos dentro da sua propriedade, como seja a remoção de rede e de pedras aí colocadas; iii) colocou placa toponímica a nomear um caminho que passava dentro da sua propriedade; iv) tal actuação de criação de um caminho teve como único intuito lesá-lo; v) abuso de poder; vi) omissão do dever de audiência dos interessados; vii) carência de forma legal; viii) ofensa ao conteúdo essencial do direito de propriedade; ix) danos causados pela conduta ilícita.
Terminou pedindo:
- A condenação da Ré “ao restabelecimento de direitos e interesses violados, retirando as placas toponímicas, devolvendo os materiais que retirou e reconhecendo o A. como único e legítimo proprietário da faixa indevidamente apossada;”
- A condenação da Ré “em litigância de má-fé face ao abuso de poder, ao incumprimento das disposições administrativas em vigor e ao prejuízo causado ao A. sem que o interesse público o justificasse e a lei o fundamentasse.”
Subsidiariamente, pediu:
- A condenação da Ré no pagamento da quantia de 11.701,88 € a título de danos patrimoniais e 1.000 € a título de danos morais, sendo esta última importância a entregar numa instituição de solidariedade social que a própria Junta defina.
Por decisão proferida pelo TAF de Penafiel foi julgada procedente a acção e:
- Reconhecido o Autor como legítimo proprietário da parcela de terreno designada por Caminho da (...);
- Condenada a Ré, no prazo de 30 dias e sob pena de eventual condenação dos seus representantes em sanção pecuniária compulsória, a:
- Restituir ao Autor a pedra, os três metros de rede e os seis metros de cabo de aço retirados da sua propriedade em 21-01-2012;
- Retirar as placas toponímicas contendo a designação “Caminho da (...)” colocadas à entrada e à saída da propriedade do Autor;
- Condenada a Ré a abster-se de obstar a que o Autor exerça o seu direito de propriedade sobre aquela parcela de terreno;
Desta vem interposto recurso.
Alegando, a Ré formulou as seguintes conclusões:
1ª - Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos referenciados autos que julgou a ação procedente e, em consequência, reconheceu o ora Apelado como legítimo proprietário da parcela de terreno designada por Caminho da (...), e condenou a ora Apelante a, no prazo de 30 dias e sob pena de eventual condenação dos seus representantes em sanção pecuniária compulsória, i) restituir ao Apelado a pedra, os três metros de rede e os seis metros de cabo de aço retirados da sua propriedade em 21-01-2012, ii) retirar as placas toponímicas contendo a designação “Caminho da (...)” colocadas à entrada e à saída da propriedade do Autor, e iii) abster-se de obstar a que o Autor exerça o seu direito de propriedade sobre aquela parcela de terreno, e, finalmente, iv) nas custas do processo.
2ª – A Apelante estriba o seu dissídio quanto ao sentenciado por padecer de erro na valoração e apreciação da prova testemunhal produzida e consequente decisão sobre a matéria de facto;
3ª- Insurge-se ainda contra a mesma por, consequentemente, a sentença padecer de errada aplicação do direito, quer quanto à qualificação do caminho em discussão nos presentes autos, quer mesmo quanto à condenação em custas.
4ª - A Apelante considera incorretamente julgados os pontos A., B., C., D., E., M., S., RR., XX. dos factos provados, e 1. dos factos não provados,
5ª - Os depoimentos das testemunhas J., cujo depoimento se encontra gravado do minuto 00:00 ao minuto 50:19 no registo da gravação áudio da audiência realizada no dia 29-10-2020, da testemunha A., cujo depoimento se encontra gravado do minuto 50:30 ao minuto 1:35:22 no registo da gravação áudio da audiência realizada no dia 29-10-2020 e da testemunha E., cujo depoimento se encontra gravado do minuto 2:37:21 ao minuto 3:19:25 no registo da gravação áudio, impunham decisão diversa;
6ª – Com efeito, tribunal a quo considerou que “A. Antes de 1985 existia um caminho de pé-posto desde aquilo que é hoje a Rua (...) e o Lugar da (...), que servia as pessoas do Lugar da (...) e a Quinta da (...)”;
7ª – Todavia, a prova testemunhal produzida não permite concluir que o caminho em apreço se tratava de um “caminho de pé posto”, nem que servia apenas as pessoas do Lugar da (...) e a Quinta da (...);
8ª - Face aos depoimentos das testemunhas J., (aos minutos 01:42, 30:27 e 41:04), A. (aos minutos 52:20 e 1:19:45) e E., (ao minuto 2:41:15) resulta, sem margem para equívocos, que o Caminho da (...), anteriormente a 1985, permitia a passagem de animais de carga, carros de bois e pessoas, e o seu traçado iniciava-se junto a um tanque existente à margem da Rua (...), servia a casa da (...) e quatro outras propriedades situadas à sua margem e terminava no moinho existente junto ao rio.
9ª - Assim, face à prova produzida, impõe-se a alteração do ponto A: dos factos assentes, nos seguintes termos: “A. Antes de 1985 existia um caminho por onde passavam pessoas, animais de carga e carros de bois, desde aquilo que é hoje a Rua (...) e o Lugar da (...), que servia as pessoas do Lugar da (...), a Quinta da (...) e outras quatro quintas, e as pessoas que se dirigiam a um moinho junto ao rio.”
10ª - Os mesmos elementos de prova não permitem também que o Mmo Juiz a quo, na sua decisão sobre a matéria de facto, tivesse dado como provado que “B. Esse caminho ia desde o tanque que ficava junto do caminho que deu origem à Rua (...), na Bouça do (...), até ao Lugar da (...).”;
11ª – Com efeito, face aos depoimentos indicados na conclusão em 8ª e ainda de J., (aos minutos 12:54 e 38:29, de A. de e E., (ao minutos 2:41:45), resulta claramente que o caminho em apreço tem efetivamente, o seu início próximo de um tanque situado junto do caminho que deu origem à Rua (...), mas não na Bouça do (...), propriedade do Apelado, pois que, só após uma distância de cerca de 30 metros medida a partir do referido tanque, atravessa, aí sim, a dita bouça;
12ª - Assim, face à prova testemunhal produzida, impõe-se a alteração do ponto A: dos factos assentes, nos seguintes termos: “B. Esse caminho ia desde o tanque que ficava junto do caminho que deu origem à Rua (...), passava pelo Lugar da (...) e ia até ao moinho junto ao rio.”
13ª - A mesmíssima prova testemunhal produzida sobre os pontos A. e B. dos factos provados não autoriza, também, que o Mmo. Juiz a quo tivesse dado como provado em C. que “C. Nesse percurso, o caminho atravessava a Bouça do (...), dividindo-a a meio, e ainda outros terrenos agrícolas, a jusante deste, que hoje pertencem á família A. e ao pai da actual presidente da Junta de Freguesia”.
14ª - Com efeito, como atrás referido, logo no seu início, o caminho passa por uma parcela de terreno de um tal E., numa distância de cerca de 30 metros, situando-se a propriedade do Apelado do lado de baixo, delimitada por um muro de pedra (cfr. depoimento da testemunha E., gravado ao minuto 2:41:15), e só depois é que atravessa a Bouça do (...);
15ª - Assim sendo, face à prova testemunhal produzida, impõe-se a alteração do ponto C: dos factos assentes, nos seguintes termos: “C. Nesse percurso, o caminho atravessava, logo no seu início, um prédio de E., a Bouça do (...), dividindo-a a meio, e ainda outros terrenos agrícolas, a jusante deste, que hoje pertencem á família A. e ao pai da actual presidente da Junta de Freguesia”;
16ª - Embora assumindo menor relevância para o thema decidendum, a decisão sobre a matéria de facto vertida nos pontos D. e E. dos factos provados enferma de uma imprecisão que não é, de todo, despicienda;
17ª - Com efeito, em ambos os pontos se faz referência a “Esse caminho…”, ou seja, o caminho de pé-posto existente antes de 1985;
18ª - Sucede que, em causa nos presentes autos está o “Caminho da (...)”, cuja extensão, assinalada pelo Apelado em 51º da P.I., será de 87,5 metros de comprimento, por cerca de 2 metros de largura;
19ª - Dúvidas não restarão, assim, quanto a poder afirmar-se que a parte do primitivo caminho que” tinha uma inclinação muito acentuada não oferecendo condições para a sua pavimentação e não permitia a passagem de veículos automóveis”, era a parte que hoje corresponde ao traçado do Caminho da (...), tanto assim que após o alargamento do trilho identificado em G. dos factos provados, o – esse sim – novo Caminho da G. foi empedrado e infraestruturado;
20ª - Haverá, assim, que ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que consta dos factos dados como assentes em D. e E., dos factos provados, deles passando a constar a referência a “O Caminho da (...)”, em vez de “Esse caminho”;
21ª – Por outro lado, a decisão sobre a matéria de facto padece de várias incongruências e contradições;
22ª Desde logo, em M: dos factos provados, dá-se como assente que “M. Pelo menos desde o alargamento do trilho a que se referem os pontos G e H do probatório, o Caminho da (...) nunca mais foi limpo pela Junta de Freguesia”;

23ª - Porém, ao contrário, em AA. do probatório, dá-se como assente que “AA. De 2011 em diante, o designado Caminho da (...) foi limpo pela Junta de Freguesia apenas uma vez”;
24ª - Ora, se o alargamento do trilho ocorreu em 1983-1985, ou seja, em data anterior a 2011, carece de sentido o facto dado como assente em M., pelo que se impõe a respetiva eliminação;
25ª - Ocorre manifesta contradição o decidido na sentença sobre os factos dados como assentes em S. e RR. do probatório;
26ª – Aí se dá como provado que “S. E. possui uma faixa de terreno de cerca de 30-40m do lado nascente do actual Caminho da (...), ladeado por um muro de pedra” e, por outro que “RR. O designado Caminho da (...), na configuração que lhe foi dada em 2012, atravessa única e exclusivamente a propriedade do A.”;
27ª – Ora, se o Caminho da (...), desde que assim foi designado, e mesmo antes, sempre se iniciou na Rua (...) e desembocou no Caminho da G., teria forçosamente que passar pela faixa de terreno situada logo após a faixa de terreno situada a nascente daquele caminho;
28ª - E não se diga – como se diz na sentença – a parcela de terreno situada entre o tanque onde se inicia o Caminho da (...) e a Bouça do (...), propriedade do Apelado, “resultou do corte do terreno que aí existia aquando do alargamento da Rua (...), o que explica que haja um muro e uma pequena parcela de terreno naquele local, sem que com isso se implicar que o Caminho da (...) passa-se também pelo terreno do referido Eduardo”;
29ª - Com efeito, como resulta do depoimento da testemunha J., tido em conta pelo Tribunal a quo, a parcela em apreço situa-se entre o referido arruamento e o Caminho da (...), sendo que, esse caminho, do lado oposto à dita parcela, é delimitado por um muro em pedra, até á linha de água que marca a fronteira com a Bouça do (...), e a propriedade do Apelado, situa-se para além do referido muro em pedra;
30ª - Assim sendo, não se vê como não possa senão afirmar-se que o Caminho da (...), nesse troço, atravessa a estrema da referida parcela de um tal E.;
31ª - Seja como for, mesmo que tal conclusão careça de melhor demonstração, certo e seguro é que o Caminho da (...), nesse trecho, não atravessa a propriedade do ora Apelado;
32ª - Assim sendo, impõe-se a eliminação pura e simples do facto dado como assente em RR. do probatório.
33ª – Respaldado no depoimento da testemunha E., o Mmo. Juiz a quo, extraiu em XX dos factos provados uma presunção judicial, no sentido de que “XX. A abertura do designado Caminho da (...) teve como propósito prejudicar o Autor, por causa das relações entre o seu funcionário e as pessoas do círculo da Junta de Freguesia”;
34ª - Tal presunção, para além de manifestamente abusiva, face aos “factos” em que está ancorada, não só não é legalmente admissível, muito menos corresponde à verdade;
35ª - A presunção extraída pelo Mmo. Juiz a quo revela, assim, um juízo apriorístico sobre a sorte da presente lide, pois que, tal sendo a intenção da Apelante ao denominar toponimicamente o Caminho da (...), jamais a decisão final poderia ser outra senão a condenação da Apelante;
36ª – Tal presunção não passa senão de um mero juízo conclusivo, aliás inócuo, porquanto, mesmo que tivesse sido intenção da Apelantes prejudicar o Apelado com a designação toponímica do Caminho da (...), sempre ficaria por demonstrar, em concreto, em que se traduziu esse prejuízo;
37ª - Ao contrário do que é dado como assente naquele facto do probatório, a ora Apelante não abriu o Caminho da (...), pois que este já se encontrava aberto há mais de 60 anos, ou, pelo menos, e seguramente, antes de 1985;
38ª – Não pode deixar de ter-se também em linha de conta que quem alertou para a existência do dito Caminho da (...) foi a testemunha M., o qual, como se extrai de Y. e Z. dos factos assentes, foi quem pessoalmente se insurgiu pelo facto de a Apelante ter promovido a realização de caminhadas que utilizaram (também) o caminho em questão, e que, por esse motivo, recorrendo à ação direta, vedou o acesso ao dito caminho, colocando à sua entrada uma pedra e postes;
39ª - É em função desses factos, aliados aos dados como assentes em CC., E HH., cuja autoria não é imputada à Apelante, que deve ser contextualizado e interpretado o depoimento da testemunha E. o qual, ao contrário do que dele extrai o Mmo. Juiz a quo, não confirma, antes infirma a dita presunção;
40ª – Face ao depoimento da testemunha E. gravado ao minuto 3:14:15, foi a testemunha A. quem espoletou a discussão sobre a natureza pública ou privada do “Caminho da (...)”, assumindo as dores do Apelado. E que é uma pessoa conflituosa, é o que resulta do depoimento do próprio e do seu irmão, P.;
41ª - Assim, se algum interesse houvesse – e não resulta provado, nem sequer indiciado, e efetivamente não houve – da Apelante em prejudicar alguém, esse “alguém” seria quem provocou a discussão sobre o “Caminho da (...)”, ou seja, sobre a testemunha A., e não o Apelado, com o qual, reconhecidamente, nenhum conflito havia;
42ª - A Apelante limitou-se, assim, - como era seu dever -, a pugnar pela manutenção no seu domínio público de um caminho como tal qualificado por todos em geral, designadamente pelas testemunhas em cujo depoimento o Tribunal se alicerçou na formação da sua convicção e que, aliás, reconheceu na sentença;
43ª - Tanto basta para demonstrado ficar que nenhum propósito norteou a atuação da Apelante no sentido de prejudicar, de algum modo, o Apelado, pelo que se impõe a eliminação do ponto XX. do probatório;
44ª – No que tange à questão de direito, extrai-se da sentença que o Mmo Juiz a quo, para a sua decisão, considerou que o caso dos autos balizar-se-ia pela verificação de dois requisitos cumulativos, quais sejam, i)a permanência do Caminho da (...) no uso direto e imediato do público desde tempos imemoriais, por um lado, e ii)a utilização desse caminho para servir interesses públicos de determinado grau e relevância;
45ª – Valeu-se ainda de ter dado como assente, sem mais, que o dito Caminho da (...) atravessa a propriedade do Apelado;
46ª - Sucede que, como alegado e demonstrado supra em sede de impugnação da matéria de facto, concedendo que o dito Caminho da (...) atravessa a propriedade do Autor, já não se aceita que o traçado do dito caminho coincida e atravesse em toda a sua extensão a propriedade do Apelado, ou seja, a Bouça do (...);
47ª – Com efeito, face ao relato das testemunhas em cujo depoimento o Tribunal a quo se baseou para formar a sua convicção, e ao dado como assente em S. do probatório, é unanimemente reconhecido que a Bouça do (...) começa a uma distância de cerca de 30 metros após o início do caminho, junto à Rua (...);
48ª - Tanto bastaria para que o Tribunal a quo pudesse reconhecer o Apelado como legítimo proprietário do Caminho da (...) em toda a sua extensão;
49ª - Acresce que o Tribunal a quo, deu como assente que “O Caminho da (...) está desde tempos imemoriais no uso direto e imediato do público”, mas não já que esse mesmo caminho “servia interesses públicos de determinado grau e relevância”, porquanto “Não se provou uma utilização concreta por besta de carga de e para os moinhos sitos a jusante”, mas apenas “um número limitado de pessoas, que residiam no Lugar da (...) ou tinham propriedades na Quinta da (...)”;
50ª - Sucede que, como resulta, designadamente, de A., B. e G. a L. do probatório, em 1983-85 o trilho, ou atalho, por onde as pessoas se desviavam do caminho primitivo para acederem, por comodidade, à Rua (...), foi alargado, dando origem ao denominado Caminho da G.;
51ª - Ora, esse caminho, a partir da saída da propriedade do Apelado, denominada Bouça do (...), (vd. PP. dos factos provados), entronca no traçado do primitivo caminho, dirigindo-se até ao Lugar da (...), estando atualmente pavimentado e infraestruturado, como resulta provado em SS. do probatório;
52ª - Assim sendo, e sendo conhecida a realidade demográfica do país, que aponta para uma diminuição da população em geral, - facto esse não contrariado pela prova produzida -, legítimo é questionar-se sobre o porquê, então, da abertura do Caminho da G., do investimento nele em infraestruturas, tais como rede elétrica, rede de combate a incêndios, pavimentação, se não foi para servir interesse relevantes;
53ª - É suficientemente relevante do ponto de vista do interesse público a freguesia dotar a respetiva população de vias que permitam o acesso às respetivas habitações de pessoas e de meios de transporte consoante os disponíveis em cada época;
54ª – Perante a factualidade que deve ser reconhecida e dada como provada, não pode deixar de considerar-se que o Caminho da (...), antes da abertura do Caminho da G., como esta, na presente, servia interesses públicos relevantes;
55ª - Deveria, pois, na sentença recorrida considerar-se como provado o segundo requisito de que depende a qualificação do Caminho da (...) como caminho público para todos os efeitos legais;
56ª - Vedado estava, assim, ao Mmo Juiz a quo reconhecer diretamente a propriedade do Apelado sobre o caminho em apreço;
57ª – Por outro lado, como se extrai do respetivo relatório, a sentença começa por referir que o Apelado, além de outros pedidos subsidiários, formulou dois pedidos principais;
58ª - Todavia, o Mmo. Juiz na quo condenou apenas a Apelante num dos pedidos, ou seja, a i) restituir ao Apelado a pedra, os três metros de rede e os seis metros de cabo de aço retirados da sua propriedade em 21-01-2012, ii) retirar as placas toponímicas contendo a designação “Caminho da (...)” colocadas à entrada e à saída da propriedade do Autor, e iii) abster-se de obstar a que o Autor exerça o seu direito de propriedade sobre aquela parcela de terreno, e, finalmente, iv) nas custas do processo;
59ª - Ou seja, para além de não se ter pronunciado sobre o segundo pedido formulado pelo Apelado, condenou apenas parcialmente a Apelante, pelo que, coerentemente, não podia senão julgar a ação parcialmente provada e procedente;
60ª - Assim sendo, nunca a Apelada poderia ser condenada senão em parte das custas, na proporção em que o Apelado decaiu, ou seja, na proporção de metade, face ao disposto nos nºs 1 e 2 do artº 527º do CPC.
61ª – Ao decidir como nela se decidiu, a sentença recorrida viola, além do mais, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artºs 349º, do CC, 527º, nºs 1 e 2 do CPC e artºs 17º e 18º do Dec -Lei nº 280/2007 de 07/08.
Termos em que, nos mais de direito e nos supridos, deverá o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença sob censura e decidindo-se a final pela improcedência da ação, com o que se fará
JUSTIÇA!
O Autor juntou contra-alegações, sem conclusões, finalizando assim:
1) Deverá IMPROCEDER LIMINARMENTE O RECURSO INTERPOSTO atento incidir sobre um objecto (caminho anterior a 1985) diverso do objecto dos autos, identificado, pelos A/A no processo e seu pedido: Caminho da (...) (NOVO) criado em 2012 pela R/R.
Ou se assim se não entender....
2) Deverá IMPROCEDER O RECURSO interposto por não provado
3) Mantendo-se a sentença nos termos exarados.
O MP, notificado ao abrigo do disposto no artigo 146º/1 do CPTA, não emitiu parecer.
Cumpre apreciar e decidir.
FUNDAMENTOS
DE FACTO

Na sentença foi fixada a seguinte factualidade:
A. Antes de 1985 existia um caminho de pé-posto desde aquilo que é hoje a Rua (...) e o Lugar da (...), que servia as pessoas do Lugar da (...) e a Quinta da (...) (fls. 106 dos autos e depoimento de J.);
B. Esse caminho ia desde o tanque que ficava junto do caminho que deu origem à Rua (...), na Bouça do (...), até ao Lugar da (...) (depoimento das testemunhas J., A. de A. e E.);
C. Nesse percurso, o caminho atravessava a Bouça do (...), dividindo-a a meio, e ainda outros terrenos agrícolas, a jusante deste, que hoje pertencem à família A. e ao pai da actual presidente da Junta de Freguesia (depoimento de J.);
D. Este caminho tem uma inclinação muito acentuada, não oferecendo condições para a sua pavimentação (depoimento de J.);
E. Este caminho não permite a passagem de veículos automóveis, pela sua largura (depoimento das testemunhas J. e E.)
F. Antes de 1985 existia um caminho carreteiro entre o Lugar da (...) e o Lugar da (...) – cujo percurso corresponde hoje ao da Rua do Rio (fls. 106 dos autos);
G. O Lugar da (...) era ainda servido por um trilho, no que corresponde ao leito do actual Caminho da G. (depoimento das testemunhas J. e J.);
H. As pessoas usavam esse trilho, para evitar ir pelo Caminho da (...) (depoimento de J.);
I. As crianças que residiam no Lugar da (...) não usavam o Caminho da (...), antes iam pelo meio dos campos agrícolas para ir para a escola (depoimento de A. e de E.);
J. Em 1983-1985 o trilho a que se refere o ponto G do probatório foi alargado, tendo dado origem ao Caminho da G. (depoimento de J.);
K. No Lugar da (...) residiam, nessa altura, três pessoas (depoimento de J.);
L. Desde o alargamento do trilho a que se referem os pontos G e H o Caminho da (...) deixou de ser usado, até 2012 (depoimento de J.);
M. Pelo menos desde o alargamento do trilho a que se referem os pontos G e H do probatório, o Caminho da (...) nunca mais foi limpo pela Junta de Freguesia (depoimento de J. e de A. de A.);
N. Em 14-04-2007, a Assembleia de Freguesia aprovou por unanimidade o processo de toponímia da freguesia (fls. 64 dos autos);
O. Em 23-07-2007, a Câmara Municipal de (...) deliberou aprovar a toponímia de (...) de acordo com a proposta aprovada pela Assembleia de Freguesia em 14-04-2007 (fls. 66 dos autos);
P. Em 25-04-2008 a Assembleia de Freguesia deliberou acerca do processo toponímico, «que voltou a ser discutido uma vez que durante a sua implementação se notaram algumas incorrecções que depois de discutidas foram aprovadas as seguintes alterações:
- Rua (...), que inicia Rua (…) e termina Rua (…);
- Rua do (…) que inicia na Rua do (…) e termina Rua do (...); Largo (…) confluência da Rua da (…) e Rua Dr. (…);
- Rua de (...) para Rua de (...).
- Calçada da (…) que inicia Rua das (…) e termina Rua (…)
- Rua (…) que inicia Rua (...) (cruzamento da Bela Vista) e termina limite do concelho.» - fls. 68 dos autos)
Q. Em 05-12-2008, o A. adquiriu os seguintes bens imóveis sios na freguesia de (...), (...) (fls. 13-21 dos autos):
UM - Urbano, composto de casa de dois pisos com terreno de quintal, com a superfície coberta de cento e trinta vírgula dez metros quadrados e a superfície descoberta de mil e sessenta e nove vírgula noventa metros quadrados, situado no Lugar da (...), a confrontar do norte, sul e poente com H. (Herd°s) e do nascente com H. (Herd°s) e Caminho, não descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) e inscrito na matriz urbana sob o artigo P – 303;
DOIS - Rústico, denominado “Souto da Rachada” , cultura e videiras em ramada, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número NOVENTA E QUATRO - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 127.
TRÊS - Rústico, denominado "Bouça do (...)”, cultura e videiras em cordão e enforcado, sito no Lugar da (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número NOVENTA E CINCO - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 173.
QUATRO - Rústico, denominado “Souto entre as Fragas” , mato e eucaliptal, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número NOVENTA E OITO — (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 90.
CINCO - Rústico, denominado “Leira do Soutelo”, pastagem e oliveiras, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número NOVENTA E NOVE - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 71.
SEIS - Rústico, denominado “Sorte da Ponte”, pinhal, eucaliptal, mato e resina, sito no Lugar da (...), descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CEM - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 188.
SETE - Rústico, denominado “Lavoura de Soutelo”, cultura, videiras de enforcado, pastagem, árvores dispersas, eucaliptal, mato e dependências agrícolas, com a área de vente e sete mil duzentos e trinta e nove metros quadrados, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CENTO E UM - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 68.
OITO - Rústico, denominado "Roço das Barcas”, cultura, videiras de enforcado, pinhal, mato e (...), sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CENTO E DOIS - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 98.
NOVE - Rústico, denominado “Sorte do Escumareiro” , mato, eucaliptal e (...), sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CENTRO E TRÊS - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 105.
DEZ - Rústico, denominado “Leiras da Veiga", cultura, videiras em cordão de enforcado, oliveiras e mato, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CENTO E QUATRO - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 107.
ONZE - Rústico, denominado "Sorte da Rachada", mato, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CENTO E CINCO — (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 111.
DOZE - Rústico, denominado "Sorte do Olival Fechado e Leiras da Portela”, pastagem, mato, (...) e oliveiras, sito no lugar de Soutelo, descrito na Conservatória do Registo Predial de (...) sob o número CENTO E SEIS - (...) e inscrito na matriz rústica sob o artigo 118.
R. A Bouça do (...) vem descrita da seguinte forma no Registo Predial (fls. 285 dos autos):
Cultura, videiras em cordão e enforcado, pinhal, eucaliptal, mato, (...), oliveiras e resina – Norte; - A.; - sul; - Caminho; - nascente; - Herdºs. de Primo J.; - poente, - J.;
S. E. possui uma faixa de terreno de cerca de 30-40m do lado nascente do actual Caminho da (...), ladeado por um muro de pedra (depoimentos de J. e A.);
T. Em 28-03-2009 a Junta de Freguesia informou o A. que “as vias públicas que servem a vossa propriedade são: Rua (...) e Caminho da G.” (fls. 22 dos autos);
U. O A. contratou A. como efectivo para trabalhar na sua propriedade (fls. 36 dos autos);
V. Em 17-05-2010, a Câmara Municipal de (...) aprovou o processo de toponímia na sequência da deliberação do ponto P do probatório (fls. 70-71);
W. Em Novembro de 2010, a Junta de Freguesia (...) promoveu uma caminhada no âmbito da “Festa do caldo das coibes” (depoimento das testemunhas de A. e J.);
X. Essa caminhada atravessou terrenos que pertenciam ao Autor, localizados mais junto ao rio (depoimento de A.);
Y. Na sequência desse atravessamento, A. disse na Junta de Freguesia que se queriam fazer caminhadas em terrenos privados deveriam, de futuro, pedir autorização (depoimento de A.);
Z. No seguimento dessa comunicação, o A. colocou postes e vedação em redor da Bouça do (...), e colocou ainda uma pedra no caminho que se veio a designar por Caminho da (...) (depoimento de A.);
AA. De 2011 em diante, o designado Caminho da (...) foi limpo pela Junta de Freguesia apenas uma vez (depoimento de A.);
BB. Em 2011, a Junta de Freguesia deliberou por unanimidade «proceder a uma alteração da toponímica, classificando dois novos arruamentos públicos e alterando outro» (fls. 76 dos autos);
CC. Em 2011, o armazém da quinta do Autor ardeu (fls. 23 dos autos e depoimento de A.);
DD. Em 2011, postes que o A. tinha mandado colocar na borda do seu terreno e em parte no Caminho da (...), foram derrubados (fls. 24 dos autos e depoimento de A.);
EE. Em 15 de Março de 2011 foi publicado edital pela Junta de Freguesia (...), com o conteúdo que infra se reproduz (fls. 88 dos autos):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]


FF. Em 02-04-2011 afixou-se edital na sede da Junta de Freguesia (...), com o conteúdo que infra se reproduz (502-505 do SITAF):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

GG. Em 16-04-2011, a Assembleia de Freguesia de (...) deliberou acerca de proposta de alteração toponímica apresentada pela Junta de Freguesia, «para proceder à seguinte alteração …:
- Caminho da (...) (novo), inicia Rua (...) e termina Caminho da G.;
- Travessa dos (...) (novo), inicia Rua dos (...) e termina Calçada dos (...),
- Calçada dos (...) (alteração), inicia e termina Rua dos (...),» - fls. 73-74 dos autos;
HH. Em 30-05-2011 foi arquivado o inquérito criminal n.º 472/11.8GBAMT, no qual o A. tinha apresentado queixa contra incertos da destruição de pés de vinha já enxertados, nas suas propriedades sitas em (...) (fls. 26 dos autos e depoimento de A.);
II. Em 10-10-2011, o Presidente da Junta de Freguesia dirigiu-se à Bouça do (...) com a intenção de remover a pedra colocada pelo Autor no designado Caminho da (...) (facto provado por admissão);
JJ. Em 19-11-2011, o presidente da Junta de Freguesia emitiu o ofício referência n.º 76.204/2011, com o conteúdo que infra se reproduz (fls. 31 dos autos):
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

KK. Em 06-12-2011, a Junta de Freguesia (...) recebeu uma missiva do A. na qual este solicitou i) a suspensão das diligências contidas na carta ref. 76.204/2011, datada de 19-11-2011; ii) reunião com o presidente da Junta para discutir o conteúdo dessa carta; iii) auxílio para se apurar quem cometeu actos contra os bens do Autor na freguesia e para saber por que motivo se promoveu a alteração toponímica no seu terreno (fls. 27-28 dos autos);
LL. Esta missiva não teve qualquer resposta (facto provado por admissão);
MM. Em 09-01-2012 a Câmara Municipal de (...) deliberou aprovar a alteração e criação de topónimos a que se refere o ponto GG do probatório (fls. 75 e 103-106 dos autos);
NN. Em 21-01-2012, sábado, a Junta de Freguesia procedeu à remoção da pedra mencionada no ponto Z do probatório (facto provado por admissão);
OO. Em 21-01-2012, sábado, a Junta de Freguesia retirou 3 metros de rede e 6 metros de cabo de aço que estavam implantados no local do Caminho da (...) (facto provado por admissão);
PP. Em 31-01-2012, a Junta de Freguesia mandou colocar duas placas toponímicas, uma na entrada e outra na saída da propriedade do Autor designada por Bouça do (...), as quais diziam “Caminho da (...)” (facto provado por admissão);
QQ. Em 25-02-2012, a Junta de Freguesia remeteu ao A. aviso de cobrança coerciva dos custos com a remoção da pedra referida no ponto Z do probatório (fls. 32 dos autos);
RR. O designado Caminho da (...), na configuração que lhe foi dada em 2012, atravessa única a exclusivamente a propriedade do A. (depoimento de J., A., E. e ainda doc. de fls. 104);
SS. O Caminho da G., nas imediações do ora designado Caminho da (...), está sinalizado, tem electricidade pública, água de combate a incêndios e ainda água para consumo doméstico (depoimento de A.);
TT. Depois de 2012, a única pessoa que utiliza o Caminho da (...) com regularidade é A., para trabalhar nos terrenos do Autor (depoimento de A.);
UU. O Autor procedeu e procede à limpeza do designado Caminho da (...) desde a aquisição da Bouça do (...) (depoimento de A.);
VV. O Presidente da Junta de Freguesia (...) à data dos factos descritos nos pontos N a QQ do probatório, tem inimizade contra o trabalhador contratado pelo Autor, A. de A. (depoimento de J.);
WW.O secretário da Junta de Freguesia, à data dos factos descritos nos pontos N a QQ do probatório, é irmão de A. de A., tendo divergências familiares com este (depoimento de Paulo Luís A.);
XX. A abertura do designado Caminho da (...) teve como propósito prejudicar o Autor, por causa das relações entre o seu funcionário e as pessoas do círculo da Junta de Freguesia (depoimento de E., presunção judicial);
YY. Nunca foi comunicada ou proposta ao Autor, pela Ré, qualquer expropriação, indemnização ou compensação pelos actos da Junta de Freguesia em relação ao Caminho da (...) (provado por admissão);
DE DIREITO
Está posta em causa a sentença que acolheu a leitura do Autor.
Atente-se no seu discurso fundamentador:
i. Da propriedade do Caminho da (...)
O A. defende que a actuação da Ré afectou e sonegou uma área da sua propriedade, sem que lhe tenha sido dirigido qualquer procedimento a esse respeito. Considera que foi violada a sua propriedade.
A Ré alega que o denominado “Caminho da (...)” está desde tempos imemoriais no uso directo e imediato do público e que sempre foi administrado pela Junta de Freguesia (...), conservando-o e reparando-o sempre que necessário. A Junta invoca assim a dominialidade pública do caminho.
Neste ponto devemos começar por convocar o Assento do STJ de 02-06-1989, o qual se debruçou sobre a dominialidade dos caminhos da seguinte forma:
Ora, entende-se que, quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente.
É suficiente para que uma coisa seja pública o seu uso directo e imediato pelo público, não sendo necessária a sua apropriação, produção, administração ou jurisdição por pessoa colectiva de direito público.
Assim, um caminho é público desde que seja utilizado livremente por todas as pessoas, sendo irrelevante a qualidade da pessoa que o construiu e prove a sua manutenção.
Como bem se refere no acórdão recorrido, esta orientação é a que melhor se adapta às realidades da vida, visto ser com frequência impossível encontrar registos ou documentos comprovativos da construção, aquisição ou mesmo administração e conservação dos caminhos, e assim se obstar à apropriação de coisas públicas por particulares, com sobreposição do interesse público por interesses privados.
Basta, portanto, para a qualificação de um caminho como caminho público o facto de certa faixa de terreno estar afecta ao trânsito de pessoas sem discriminação.

Como é bom de ver, este Acórdão não estabelece uma orientação muito concreta, deixando desprotegidas uma série de situações que, em bom rigor, não mereceriam a qualificação enquanto caminho público. Daí que a jurisprudência posterior tenha vindo a adoptar uma interpretação restritiva do aresto, segundo a qual não basta que o caminho esteja no uso directo e imediato do público como, bem assim, a sua utilização deve satisfazer interesses colectivos relevantes.
Veja-se, a título de exemplo, o Ac. STJ de 13/01/2004, no proc. 3433/03 (apud Ac. STJ de 14-10-2004, proc. n.º 04B2576):
“Essa interpretação restritiva é, aliás, a que se encontrava na mente dos ilustres signatários do Assento, pois é isso mesmo o que resulta do facto de o corpo do acórdão que o integra referir expressamente que quando a dominialidade de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. Nem outra coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de utilidades individuais”.

Como decorre do exposto, interessa também e especialmente a satisfação de uma utilidade pública, que não se afere somente em função do número de utilizadores de dado caminho.
Esta interpretação restritiva vale, conforme esclareceu o STJ em aresto de 28-05-2013, proc. 3425/03.6TBGDM.P2.S1, quando o caminho em causa atravesse propriedade privada. A lógica subjacente é que apenas quando o caminho em disputa atravesse propriedade privada se deve ponderar a compressão deste direito em face de um uso imemorial e ininterrupto.
Veja-se, para síntese das várias posições que o STJ foi adoptando, depois do Assento de 1989, o Ac. STJ de 18-10-2018, proc. 1334/11.4TBBGC.G1.S1.
Retiremos então dos considerandos supra os requisitos com que nos havemos de balizar neste caso, considerando desde já que o dito Caminho da (...) atravessa a propriedade do Autor:
- O Caminho da (...) está desde tempos imemoriais no uso directo e imediato do público?
- O Caminho da (...) servia interesses públicos de determinado grau e relevância?
No que concerne à primeira questão, é mister reconhecer que testemunha mais velha, o Sr. J. aludia à utilização de um percurso naquilo que hoje corresponde ao Caminho da (...). Não se provou uma utilização concreta, como pretendia a Ré, por bestas de carga de e para os moinhos sitos a jusante, mas deve reconhecer-se e extrair-se dos pontos A e L do probatório que havia ali um caminho que era utilizado pelas pessoas do Lugar da (...).
A mais velha das testemunhas reconheceu-o; quanto às demais, não se podendo do depoimento delas retirar a memória concreta do transporte dos cereais também se deve admitir que estas terão herdado um conhecimento de que, em tempos idos, se circulava por ali.
Deve então considerar-se verificado o primeiro requisito.
Quanto à segunda questão/requisito, entendemos que esta não resulta provada dos autos. Sem nos adentrarmos repetindo a motivação da matéria de facto, urge dizer que a mais velha das testemunhas (e que terá a memória mais remota) classificou aquele caminho como caminho de servidão, dizendo que este se destinava apenas ao Lugar da (...) e à Quinta da (...).
Mais resultou provado que no Lugar da (...) residiam apenas três pessoas.
Por outro lado, outras testemunhas mais novas indicaram que as crianças do Lugar da (...) não passavam por lá para ir para escola, que preferiam atravessar os campos agrícolas; outra testemunha disse ainda que as pessoas usavam outro trilho, que veio a dar origem ao Caminho da G., para não circularem pelo dito Caminho da (...).
Mesmo hoje, conforme resultou provado, as pessoas não utilizam aquele caminho – este apenas é utilizado por A. no seu trabalho agrícola.
Daqui não se pode extrair que o Caminho da (...) alguma vez tenha servido interesses públicos de determinado grau e relevância. Pelo contrário, resulta que o Caminho da (...) servia apenas um número limitado de pessoas, que residiam no Lugar da (...) ou tinham propriedades na Quinta da (...).
Notamos ainda que este caminho, ao contrário do Caminho da G. que fica poucos metros a sul, não tem qualquer infraestrutura pública nem qualquer elemento que possa ser considerado marca de dominialidade pública, à excepção da placas toponímicas cuja colocação é aqui disputada pelo Autor.
Destarte deve ter-se por não verificado este segundo requisito.
A este respeito há-de acrescentar-se que para se aferir tal utilidade seria irrelevante saber se antes circulavam por lá as mulas ou não, para os moinhos, uma vez que tal seria insuficiente para fundar uma utilidade pública. Vide o Ac. do TRG de 12-05-2016, proc. 42/13.6TBMDB.G1:
O transporte, desde há mais de 100 anos e até pelo menos 1986, de grão pelos agricultores de Atei por um caminho até uma azenha (que está actualmente em ruínas) é insuficiente para concluirmos que tal caminho estava destinado à satisfação de fins de utilidade pública.
Por outro lado, a jurisprudência reconhece ainda a figura da desafectação tácita, que «determina a integração do bem anteriormente público no domínio privado da entidade pública respectiva» - Ac. do STJ de 11-02-2004, proc. 04B2576. Esta «apenas será de aceitar nos casos em que exista uma mudança de situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela qualificação jurídica», o que se afiguraria ser o presente caso em face do alargamento do Caminho da G., caminho indiscutidamente público com todas as marcas da dominialidade e que era o caminho utilizado há já várias décadas até à actuação da Junta de Freguesia aqui em apreço.
Em conclusão, reconhece-se a propriedade do A. sobre o designado Caminho da (...).

ii. Dos vícios imputados à actuação da Ré
O A. alega ainda que a actuação da Ré padece de vários vícios: violação art. 61.º do CPA (ponto 19.º); preterição de procedimento (ponto 42.º); desvio de poder (vício a que se reconduz a alegação do ponto 44.º da p.i.); preterição do dever de audiência prévia (ponto 46.º) carência absoluta de forma legal (ponto 47.º).
O artigo 61.º do CPA, na redacção em vigor à data, previa o seguinte:
1 - Os particulares têm o direito de ser informados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamento dos procedimentos em que sejam directamente interessados, bem como o direito de conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas.
2 - As informações a prestar abrangem a indicação do serviço onde o procedimento se encontra, os actos e diligências praticados, as deficiências a suprir pelos interessados, as decisões adoptadas e quaisquer outros elementos solicitados.
3 - As informações solicitadas ao abrigo deste artigo serão fornecidas no prazo máximo de 10 dias.

Efectivamente, ficou provado nos autos que o A. dirigiu um pedido de informação à Junta de Freguesia, e que esta não lhe deu qualquer resposta. O Autor era aliás uma parte interessada na suspensão das diligências de cobrança coerciva da remoção da pedra e também era interessada no que diz respeito à colocação de placas toponímicas à entrada e à saída do seu terreno.
Também ficou provado que a Junta nada respondeu.
Tal constitui efectivamente uma violação do direito à informação do Autor.
Todavia, tal é inconsequente para esta acção, tendo em conta os pedidos formulados pelo Autor. Não se vislumbra como pode este direito ser convocado para sustentar um pedido dirigido à devolução dos materiais removidos pela Junta de Freguesia ou para o reconhecimento do Autor como único e legítimo proprietário do designado Caminho da (...). Quanto muito, poderia fundar uma intimação para prestação de informações, prevista no art. 104.º e ss. do CPTA (na redacção em vigor à data), que é o meio processualmente adequado para a reintegração desse direito.

O Autor alegou ainda falta de procedimento, preterição do direito de audiência prévia e carência de forma legal.
Este conjunto de alegações pode ser resumida numa só – o Autor alega que não existe qualquer acto nem qualquer procedimento que titule a actuação lesiva da Ré. Se não houve nem procedimento nem acto, não poderia logicamente considerar-se verificado qualquer dos vícios que pressupõem essa existência (o direito de audiência prévia).
Com efeito, não consta dos autos qualquer acto administrativo praticado pela Junta de Freguesia em relação àquele caminho – a actuação, em termos procedimentais, da Junta e da Assembleia limitou-se a dar um parecer no âmbito de um procedimento de toponímia que é aprovado pela Câmara Municipal respectiva – art. 64.º/1/v) da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, em vigor à data dos factos.
A actuação da Junta foi uma actuação material, cujo fundamento radicou não na classificação de toponímia, mas na suposta dominialidade pública do caminho, não havendo acto administrativo susceptível de ser avaliado em conformidade com a normas procedimentais invocadas (preterição de procedimento, preterição de audiência prévia, carência absoluta de forma legal).
Resta assim saber, antes de mais, se a Junta de Freguesia poderia ter retirado a pedra e a rede do caminho do Autor, colocado placas de toponímia à entrada e à saída da propriedade do Autor, e, de modo geral, se esta se poderia ter apossado do caminho, sem acto administrativo prévio.
Note-se que tanto a pedra como a rede são propriedade do Autor, o que não foi disputado pelas partes, pelo que este direito de propriedade se opõe, em princípio à pretensão da Ré. Também, como vimos, o designado Caminho da (...) é um caminho privado, integrado na propriedade do Autor.
De acordo com o art. 62.º da CRP:
1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
2. A requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização.
Trata-se de um direito fundamental para cuja ablação o legislador previu um procedimento próprio prévio. Como se diz no art. 62.º/2, «a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização».
Não se discute que o terreno do Autor não foi objecto de qualquer procedimento de expropriação ou semelhante.
Daqui decorre que a afectação do direito de propriedade requer a prática de um acto administrativo prévio, sem o qual não se pode considerar lícita a actuação material da Ré. Esta violou assim o direito de propriedade de Autor, tanto sobre o seu terreno como sobre as coisas que este lá tinha e que pela Ré foram removidas.

No ponto 44 da p.i., o Autor descreve a actuação da Ré como abuso de poder, indicando que esta actuação não foi realizada para servir o interesse público, mas antes, para o prejudicar (ponto 36.º da p.i.).
O abuso de poder é uma figura típica do direito penal, designando o crime praticado pelo funcionário que «…abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa».
Em direito administrativo, uma actuação motivada por um fim fútil ou contrário às normas atributivas do poder para essa actuação designa-se “desvio de poder”. Esta figura está hoje expressamente prevista no CPA enquanto causa de nulidade no art. 161.º/1/e) do CPA, mas ao abrigo da lei vigente à data dos factos a jurisprudência entendia que «se mantém a doutrina que decorria do § único da LOSTA, entretanto revogado: “a anulação por desvio de poder terá lugar sempre que da prova exibida resultar para o tribunal a convicção de que o motivo principalmente determinante da prática do acto recorrido não condizia com o fim visado pela lei na concessão do poder discricionário”» - Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. II, 2.ª ed., p. 402.
Recorda-se aqui que o tribunal não está vinculado pela qualificação jurídica, mas apenas pelos factos invocados – art. 5.º/3 do CPC – princípio iura novit curia.
Esta figura aplica-se mesmo em situações onde está em causa um conjunto de actuações materiais, uma vez que protege princípios que abrangem toda a actuação administrativa e não apenas os actos administrativos proper sensu. Se o princípio da prossecução do interesse público se aplica a toda a actuação, seja em função do disposto no art. 4.º do CPA, seja em virtude do superior comando constitucional (art. 266.º/1 da CRP) então o desvio de poder tanto pode ocorrer perante actos administrativos como perante actuações materiais.
A consequência é que não se prende com a anulabilidade de um acto administrativo mas apenas com a avaliação da (i)licitude de uma conduta, seja para efeitos indemnizatórios seja para efeitos de restabelecimento de direitos.
Descendo ao nosso caso, verifica-se que a Junta de Freguesia não teve como motivação a prossecução do interesse público, mas apenas prejudicar o Autor. Novamente, sem repetir aqui a motivação, verifica-se que o conjunto factual no qual o acto se insere denuncia um intuito lesivo dos direitos do Autor e não o interesse da Freguesia.
Encontra-se verificado o invocado desvio de poder.

Sob o título má-fé, o Autor invoca ainda que «o apossamento, por uma autarquia, dum caminho particular aberto por um particular, a suas expensas e sem o cumprimento dos normativos administrativos … constitui abuso de poder e incumprimento da lei».
De seguida, alega que «tal acto não corresponde a nenhum interesse público relevante e digno de nota e antes e objectivamente só prejudica o cidadão e a sua propriedade, o que constitui litigância de má-fé»
Ora, os factos invocados pelo Autor não se reconduzem à litigância de má-fé, prevista no art. 542.º do CPC. Vejamos esta disposição:
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
3 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé.
Este regime tem por objectivo sancionar a lide dolosa, que consiste na violação de regras de conduta processuais – v. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. II, 3.ª ed., p. 456. Tal decorre desde logo do elemento literal da norma (“tendo litigado de má-fé”).
Ao invés, estes factos são apenas a repetição dos anteriores já mencionados a respeito do desvio de poder – aliás, o Autor invoca o abuso de poder e não prossecução do interesse público tanto nos pontos 61.º e 62.º (da má-fé) como no ponto 44.º (que enquadrámos supra no âmbito do desvio de poder).
O desvio de poder já foi tratado em sede própria, pelo que não há mais nada aqui a tratar.
A consequência de a Junta de Freguesia ter praticado os actos que praticou, que se consubstanciam na remoção da pedra, da rede e na colocação de placas toponímicas, sem ter para isso título jurídico, implica a condenação desta na «adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos ou interesses violados» - art. 37.º do CPTA na redacção da Lei n.º 63/2011, de 14/12.
Tal só não sucederia nos casos em que «se verifique que à satisfação dos interesses do autor obsta a existência de uma situação de impossibilidade absoluta ou que o cumprimento, por parte da Administração, dos deveres a que seria condenada originaria um excepcional prejuízo para o interesse público» (art. 45.º do CPTA), situação em que se procederia à fixação de uma indemnização.
A Ré não invocou nem impossibilidade absoluta nem excepcional prejuízo para o interesse público decorrente da restituição da situação hipotética, pelo que deve esta ser condenada na adopção das condutas necessárias ao restabelecimento de direitos, id est, na devolução ao Autor da pedra, de 3 metros de rede, de 6m de cabo de aço, na remoção das placas toponímicas dizendo “Caminho da (...)” e, em geral, a abster-se de obstar ao exercício, pelo Autor, dos seus poderes sobre a parcela de terreno onde passa actualmente o Caminho da (...).
Afigura-se que o prazo de 30 dias é suficiente para que a Ré cumpra as referidas injunções, pelo que será este o prazo fixado para tal – art. 44.º do CPTA.
*
O pedido indemnizatório foi formulado subsidiariamente (art. 469.º do CPC na redacção em vigor à data da propositura da acção), pelo que tendo sido julgada a acção procedente quanto ao primeiro pedido, fica prejudicada a sua apreciação – art. 608.º/2 do CPC.
X
Constitui entendimento unívoco da doutrina e obteve consagração legal o de que o objecto do recurso jurisdicional se encontra delimitado pelas conclusões extraídas da motivação, por parte do recorrente, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matéria que nelas não tiver sido versada, com ressalva óbvia, dos casos que imponham o seu conhecimento oficioso.
Assim:
Do erro de julgamento de Facto -
A Apelante considera incorretamente julgados os pontos A., B., C., D., E., M., S., RR., XX. dos factos provados, e 1. dos factos não provados.
Vejamos:
Conforme tem sido sistematicamente entendido, quer pela doutrina quer pela jurisprudência, no que respeita à modificação da matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, o Tribunal de recurso só deve intervir quando a convicção desse julgador não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se, assim, a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova, bem como à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto - acórdão do STA, de 19/10/2005, proc. 0394/05. Aí se refere, no que aqui releva, que “o art. 690º-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorretamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida. Este artigo deve ser conjugado com o 655° do CPC que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir”. Esta exigência decorre da circunstância de o tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. (É pacífico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. Abrantes Geraldes “Temas da Reforma do processo Civil, II vol., 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267
Este entendimento tem sido seguido pela generalidade da jurisprudência (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e fatores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2.ª instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1.° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13/10/2001, em Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..)”.
Na verdade, decorre do regime legal vertido nos artºs 140º e 149º do CPTA que este Tribunal ad quem conhece de facto e de direito sendo que na apreciação do objeto de recurso jurisdicional que se prende com a impugnação da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo se aplica ou deve reger-se, na ausência de regime legal especial, pelo regime que se mostra fixado em sede da legislação processual civil nesta sede. Ora com a revisão do CPC operada pelo DL 329-A/95, de 12/12, e pelo DL 180/96, de 25/09, foi instituído, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto. Importa, porém, ter presente que o poder de cognição deste Tribunal sobre a matéria de facto ou controlo sobre a decisão de facto prolatada pelo tribunal a quo não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto, sendo certo que da situação elencada (impugnação jurisdicional da decisão de facto - artº 690º-A do CPC) se distinguem os poderes previstos no n.º 2 do artº 149º do CPTA que consagram solução diversa e de maior amplitude da que se mostra consagrada nos artº 712º e 715º do CPC. Assim, pese embora tal regime e situações diversas temos, todavia, que referir que os poderes conferidos no artº 149º/2 do CPTA não afastam os poderes de modificação da decisão de facto por parte deste Tribunal ao abrigo do artº 712º do CPC por força da remissão operada pelos arts. 1º e 140º do CPTA porquanto o TCA mantém os poderes que assistem ao tribunal de apelação no âmbito da fixação da matéria de facto quando esta constitui objeto ou fundamento de recurso jurisdicional. Daí que sobre o Recorrente impenda um especial ónus de alegação quando pretenda efetuar impugnação com aquele âmbito mais vasto, impondo-se-lhe, por conseguinte, dar plena satisfação às regras previstas no artº 690º-A do CPC. É que ao TCA assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal a quo desde que ocorram os pressupostos vertidos no artº 712º/1 do CPC, incumbindo-lhe, nessa medida, reapreciar as provas em que assentou a decisão impugnada objecto de controvérsia, bem como apreciar oficiosamente outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre aqueles pontos da factualidade controvertidos.
A este propósito e tal como sustentado pelo Prof. Mário Aroso e pelo Cons. Fernandes Cadilha “(…) é entendimento pacífico que o tribunal de apelação, conhecendo de facto, pode extrair dos factos materiais provados as ilações que deles sejam decorrência lógica (…). Por analogia de situação, o tribunal de recurso pode igualmente sindicar as presunções judiciais tiradas pela primeira instância pelo que respeita a saber se tais ilações alteram ou não os factos provados e se são ou não consequência lógica dos factos apurados. (…) ” (em Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pág. 743). (…) “Retomando o que supra fomos referindo sobre a amplitude dos poderes de cognição do tribunal de recurso sobre a matéria de facto temos que os mesmos não implicam um novo julgamento de facto, porquanto, por um lado, tal possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o Recorrente considere incorretamente julgados e desde que cumpra os pressupostos fixados no artº 690º-A n.ºs 1 e 2 do CPC, e, por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Os poderes de modificabilidade da decisão de facto que o artigo 712º do CPC atribui ao tribunal superior envolvem apenas a deteção e correção de pontuais, concretos e excepcionais erros de julgamento e não uma reapreciação sistemática e global de toda a matéria de facto.” “Para que seja alterada a matéria de facto dada como assente é necessário que, de acordo com critérios de razoabilidade, apreciando a prova produzida “salte à vista” do Tribunal de recurso um erro grosseiro da decisão recorrida, aparecendo a convicção formada em 1ª instância como manifestamente infundada”.
E como ressalta ainda do sumário do proc. nº 00242/05.2BEMDL, de 22/02/2013, acolhido por este TCAN em 22/05/2015 no âmbito do proc. 840/05.4BEVIS I. “Como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (art. 655º, n.º 1 do CPC) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que na formação dessa convicção não intervêm apenas fatores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio.
II. Será, portanto, um problema de aferição da razoabilidade, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência da convicção probatória do julgador no tribunal «a quo», aquele que, no essencial, se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento de facto pelo tribunal “
ad quem”.
Voltando ao caso concreto temos que:
“R - A Bouça do (...) vem descrita da seguinte forma no Registo Predial (fls. 258 dos autos):
"cultura, videiras em cordão e enforcado, pinhal, eucaliptal, mato, (...), oliveiras e resina. -Norte – A.; sul - Caminho; Nascente - Herdeiros de Primo J.; Poente – J." e
RR - o designado Caminho da (...), na configuração que lhe foi dada em 2012 atravessa única e exclusivamente a propriedade do A. (depoimento de J., A., E. e ainda doc. de fls. 104)".
Em consonância o Tribunal Constitucional (por exemplo...) no Acórdão 329/99 reconhece “o direito a cada um não ser privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública - e, ainda assim, tão só mediante o pagamento da justa indemnização” (artº 62º nºs 1 e 2 CRP”.
Atente-se nos factos dados como provados na sentença e não impugnados:
“TT. Depois de 2012, a única pessoa que utiliza o Caminho da (...) com regularidade é A., para trabalhar nos terrenos do Autor (depoimento de A.):
“UU - O Autor procedeu e procede à limpeza do designado Caminho da (...) desde a aquisição da Bouça do (...) (depoimento de A.)”
“YY - Nunca foi comunicado ou proposta ao Autor, pela Ré, qualquer expropriação, indemnização ou compensação pelos actos da Junta de Freguesia em relação ao Caminho da (...) (provado por admissão)”.
Donde, resultar também, que o ónus da prova quanto à utilidade pública e à justa indemnização pela criação em 2012, do Caminho da (...)/Novo, pela Junta/Ré incumbiam à mesma o que ela não fez.
Note-se o supra apontado facto YY e a posição do Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 11/09/2012, proc. 113/09.3 TBSBG.C2, citado a folhas 23 e 24 da sentença, onde começa por referir que:
“A respeito da caracterização do caminho como público, importa sublinhar um elemento central da dinâmica argumentativa desta acção, sendo que é dessa caracterização que emergirá a correcta alocação do ónus da prova (do ónus da prova da natureza do caminho indicado em M) dos factos como caminho público”.
E continua:
“Vale esta constatação - rectius vale esta caracterização da dinâmica argumentativa da acção - enquanto alocação do ónus da prova da existência do caminho público atravessando o prédio da A. ao R. (não à A.) sendo que, em função disto, a regra da decisão que se formará no caso de um non liquet probatório traduzir-se-á na não prova da existência desse caminho, afirmado na sua existência pelo Município R. nos termos do art.º 343º nº 1 Código Civil (CC)".
Ora, tal como se encontra assente no presente processo, a acção está votada ao insucesso.
É que, o recurso que se aprecia tem como “objectivo” outro caminho que não o dos autos.
Na verdade, como contrapõe o Autor/Recorrido, nesta sede recursiva a Ré/Recorrente quer “ressuscitar” um caminho que, há muito não existe, nem foi levado ao elenco dos factos tidos por provados.
Vejamos os factos dados como assentes, neste particular:
A - Antes de 1985 existia um caminho...
B - Esse caminho ia desde o tanque...
C- Nesse percurso, o caminho atravessava a Bouça do (...), dividindo-a a meio, e ainda os terrenos agrícolas, a jusante deste, que hoje pertencem à família, A. e ao pai da actual Presidente da Junta de Freguesia (depoimento de J.);
Q - Em 5.12.2008 o A. adquiriu os seguintes bens imóveis sitos na freguesia de (...), (...) (fls. 13-21 dos autos):
...
...
TRÊS - Rústico, denominado Bouça do (...)...
R - A Bouça do (...) vem descrita da seguinte forma no Registo Predial (fls. 285 autos):
"cultura, videiras em cordão e enforcado, pinhal, eucaliptal, mato, (...), oliveiras e resina - Norte- A. - sul- caminho - nascente herdeiros de primo j. - poente: J";
T - Em 28.03.2009 a Junta de Freguesia informou o A. que “as vias públicas que servem a vossa propriedade são: Rua (...) e Caminho da G. (fls. 22 dos autos)”.
W - Em Novembro de 2010 a Junta de Freguesia (...) promoveu uma caminhada no âmbito da “Festa do Caldo das coíbes” (depoimento das testemunhas de A. e J.);
X - Essa caminhada atravessou terrenos que pertencem ao Autor, localizados mais junto ao rio (depoimento de A.);
Y - Na sequência desse atravessamento, A. disse na Junta de Freguesia que, se queriam fazer caminhadas em terrenos privados, deveriam de futuro, pedir autorização (depoimento de A.);
GG - Em 16.04.2011, a Assembleia de Freguesia de (...) deliberou acerca da proposta de alteração toponímica apresentada pela Junta de Freguesia para proceder à seguinte alteração...
Caminho da (...) (NOVO), inicia na Rua (…) e termina no Caminho da (…)
KK - Em 06.12.2011, a Junta de Freguesia (...) recebeu uma missiva do A. na qual este solicitou "...iii) auxílio para se apurar quem cometeu actos contra os bens do Autor na Freguesia e para saber porque motivo se promoveu a alteração toponímica no seu terreno (fls. 27-28 dos autos)
LL - Esta missiva não teve qualquer resposta (facto provado por admissão):
PP - Em 31.01.2012 a Junta de Freguesia mandou colocar duas placas toponímicas, uma na entrada e outra na saída da propriedade do Autor, designada por Bouça do (...), as quais diziam “Caminho da (...)” (facto provado por admissão).
Nada provando a Ré, tal como lhe incumbia - ónus da prova - quanto ao pedido formulado na p.i. pelo Autor relativamente ao Caminho da (...) (NOVO) por si criado em 2012 nos condicionalismos legais, ou seja:
- Do interesse público,
- Da justa indeminização,
- Do conhecimento e consentimento do Autor.
Concretamente, e segundo o facto PP provado e não questionado, está toponimicamente identificado pela Junta Ré, por duas placas, uma na entrada outra na saída da propriedade do Autor.
O caminho a que se referem as alíneas A, B, C, D, E, do probatório e nº 1 não provado, já não existia em 28/03/2009 conforme a Junta de Freguesia, ora Recorrente, oficiou o Autor (v. ponto T provado e não impugnado), escrevendo: “as vias públicas que servem a vossa propriedade são:
Rua (...) e Caminho da G.”.
Em resumo:
-O julgador, no uso dos seus poderes de direcção e de julgamento do processo, deve nortear a selecção dos factos provados pela essencialidade dos mesmos para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis de direito. Factos e não meras considerações conclusivas e/ou de direito.

O que realizará de acordo com a sua íntima e fundada convicção, face às alegações das partes, provas constantes dos autos, no contexto da questão jurídica que lhe cabe decidir.

Os poderes conferidos ao tribunal ad quem pelo artigo 662º/1, do CPC, devem ser articulados com o disposto no artigo 607º/5º, quando refere que “o juiz aprecia livremente as provas, segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.”.

Pelo que o tribunal ad quem procederá à alteração da decisão de facto ou determinará a sua anulação apenas se, apurando a razoabilidade da convicção probatória do juiz, face aos elementos e alegações que agora lhe são apresentados em recurso, verificar que a mesma padece de claras deficiências de apreciação ou se mostra insuficiente, considerando indispensável a sua ampliação - cfr. artigos 660º e 642º do CPC e, entre outros, os Acórdãos do STA, de 25/09/2012, proc. nº 0990/12, deste TCAN, de 06/12/2013, proc. nº 01035/05BEVIS e na doutrina Miguel Teixeira de Sousa, em Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 348;

-Os poderes dados à Relação sobre a alteração da matéria de facto provada em 1ª instância têm que se cingir a casos de flagrante desconformidade entre o que foi produzido em termos de prova e aquilo que foi dado como assente;
-Só em casos extremos é que a Relação poderá alterar a matéria de facto dada como provada pelo julgador da 1ª instância e apenas quando se verifique que as respostas dadas não têm qualquer fundamento face aos elementos de prova trazidos ao processo ou que estão totalmente desapoiadas do que se produziu em audiência de julgamento;
-Decidiu-se no Acórdão do STJ, de 10 de março de 2005, que a plenitude do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto sofre naturalmente a limitação que a inexistência de imediação necessariamente acarreta, não sendo, por isso, de esperar do tribunal superior mais do que a sindicância de erro manifesto na livre apreciação das provas.
Na verdade, não basta ao recorrente discordar quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer “um segundo julgamento”, com base na gravação da prova: o poder de cognição deste tribunal, em matéria de facto, constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância, sem assumir a amplitude de um novo julgamento que faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação daquela mesma instância.
-É que na impugnação da decisão da matéria de facto do tribunal de 1ª instância, o objecto precípuo da cognição do Tribunal da Relação não é a coerência e racionalidade da fundamentação da decisão de facto, mas antes uma apreciação e valoração autónoma da prova produzida, labor que, contudo, se orienta para a deteção de qualquer erro de julgamento naquela decisão da matéria de facto. Por isso, não bastará uma qualquer divergência na apreciação e valoração da prova para determinar a procedência da impugnação, sendo necessário constatar um erro de julgamento - Acórdão da RC de 28/06/2011, proc. 185/07.5TBANS-B.C1.
-No presente recurso não há lugar à modificação da matéria de facto tida por assente e/ou não assente e, com tal, não pode haver qualquer mexida nos pontos A., B., C., D., E., M., S., RR., XX. dos factos provados, e 1. não provado.
-A fixação da matéria de facto não merece o menor reparo, uma vez que teve na devida consideração a globalidade do acervo probatório que foi trazido aos autos e não se vislumbra qualquer omissão ou contradição quanto aos factos provados e não provados; a decisão fundamentou, ponto por ponto, e assentou na interpretação e aplicação das regras acerca do ónus da prova, incidente sobre os factos a demonstrar pelas partes.
As subtilezas apontadas pela Ré/Recorrente não nos habilitam a formar uma convicção diferente da do Tribunal a quo. O Tribunal desenvolveu um caminho árduo no sentido do apuramento da verdade material.
Nenhum erro crasso, ostensivo, palmar, detetámos neste percurso, razão pela qual não buliremos no probatório.
Repare-se:
Em sede de factualidade não provada o Tribunal consignou:
Com interesse para a decisão da lide, julgam-se não provados os seguintes factos:
1. O designado Caminho da (...) era por onde seguiam os animais de carga no transporte dos cereais e da farinha para e dos moinhos, respectivamente;
E, no que à motivação da factualidade tida por assente respeita, explicou:
A convicção do Tribunal formou-se com recurso aos meios de prova indicados junto de cada facto dado como provado (admissão nos termos do art. 490.º/2 do CPC na redacção da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro e documentos juntos aos autos e não impugnados pelas partes – cf. 362.º e ss. do CC), e ainda com recurso ao depoimento das testemunhas, tendo formado a sua livre convicção com base na motivação que infra se expõe (cf. art. 396.º do CC e art. 466.º/3 do CPC).
A testemunha J. foi tesoureiro da Junta de Freguesia (...) antes do mandato de 1983-1985 e presidente da Junta de Freguesia em 1983-1985 e de 1990-2001, tendo assim razão de ciência para as declarações que efectuou. Esta revelou-se bastante espontânea, tendo logo contado ao Tribunal o essencial daquilo que sabia, mesmo antes das perguntas dos mandatários.
Esta explicou que em 1983-1985 havia um caminho de servidão à (...) e à Quinta da (...), com uma inclinação muito acentuada e que não oferecia condições de pavimentação. Por isso, no seu primeiro mandato, negociou com o proprietário da Bouça do (...) e de outro terreno vizinho o alargamento de um trilho que lá existia nas imediações e que também dava acesso ao Lugar da (...).
Depois desse alargamento, o tal caminho de servidão à (...) (na designação da testemunha) caiu em desuso, tendo ficado abandonado até 2012. Para a testemunha, esse caminho deixou de ter qualquer utilidade para as pessoas.
Questionada sobre se em 1983-1985 já existia o referido Caminho da (...) em 1983-1985, a testemunha disse peremptoriamente que «não, na altura era o caminho de servidão à (...); o Caminho da (...) só apareceu em 2012».
Esta referiu-se a um acordo com o anterior proprietário do terreno que hoje pertence ao A. pelo qual este tinha dado o seu consentimento para se alargar o (hoje denominado) Caminho da G.. Esta não conseguiu precisar o que se acordou e se se acordou alguma coisa relativamente ao tal caminho de servidão à (...).
Esta testemunha depôs de forma espontânea e credível, tendo indicado no mapa a localização do terreno do Autor.
Como explicou a testemunha, este “caminho de servidão” era mais comprido do que o actual Caminho da (...), uma vez que ia até ao Lugar da (...) e actualmente vai só até ao cruzamento que dá para a casa do Autor na sua propriedade.
Quando se referiu à localização e extensão do terreno de E., na vizinhança do terreno do A., este esclareceu que esta pequena parcela resultou do corte do terreno que aí existia aquando do alargamento da Rua (...), o que explica que haja um muro e uma pequena parcela de terreno naquele local, sem com isso se implicar que o Caminho da (...) passasse também pelo terreno do referido Eduardo ou que servisse de divisória entre estes dois terrenos. Este era tesoureiro da Junta de Freguesia quando se abriu esta Rua (Rua (...)), pelo que a testemunha tem razão de ciência compatível com estas declarações.
A testemunha disse ainda que, antes de 1983, limpariam o referido caminho, mas nesta parte não ofereceu certezas. O seu depoimento traduziu mais uma hipótese, algo que imagina ter sido feito e nada que se lembre concretamente.
A testemunha A. de A. depôs de forma espontânea, escorreita e coerente, apresentando um depoimento credível.
Esta testemunha reside e cresceu na zona. Como revelou, quando estava em idade escolar, “nos tempos antigos” ninguém passava naquele caminho, preferindo a testemunha atravessar os campos agrícolas por outro carreiro até à escola.
Esta explicou que o caminho só começou a ser utilizado depois da aquisição do terreno pelo A., tendo sendo limpo pela testemunha na sequência dessa aquisição. Segundo a testemunha, a Junta de Freguesia só limpou o caminho uma única vez, mas já na altura da actual disputa.
Artur A. relatou que, numa ocasião, a Junta de Freguesia organizou uma caminhada que passava por uns terrenos do Autor, mais junto ao rio, e que depois dessa ocasião pediu à Junta de Freguesia que se esta queria organizar caminhadas nos seus terrenos, que mandasse algo por escrito a solicitar autorização.
Face à percepcionada intrusão, a testemunha colocou então uma rede na borda do terreno, cortando o chamado Caminho da (...). Depois o presidente da Junta foi lá para retirar a pedra e teve oposição por parte da testemunha. De acordo com o seu depoimento, posteriormente, a um sábado, por altura do nascimento da sua filha, recebeu “uma chamada a dizer que estava lá o camião com dois guardas”, e que a pedra foi levada nessa ocasião.
A testemunha falou ainda do incêndio na casa, de danos causados nos enxertos e nas condutas da água. Esta falou ainda de um problema com os parcelários (documentos utilizados para candidatura a subsídios agrícolas) - a testemunha tinha detectado que um dos vizinhos, pai da actual presidente da Junta de Freguesia, tinha apresentado parcelários que abrangiam uma área de terreno pertencente ao Autor.
Notamos a respeito do sentimento da testemunha nesta parte que se limitou a descrever as coisas conforme as percebeu, e não transpareceu, na percepção do Tribunal, qualquer ódio ou inimizade a qualquer das pessoas a quem se referiu.
A testemunha não vê ninguém utilizar o caminho, e esta frequenta a zona durante o dia, todos os dias de semana. A este respeito declarou que as únicas pessoas que habitam a jusante são a mãe e o pai da testemunha, que, pela sua idade, não se deslocam muito e que, ocasionalmente, os vizinhos vão lá ao fim-de-semana, usando o Caminho da G..
Esta depôs sobre as condições do Caminho da G., nomeadamente que tem as infraestruturas públicas - electricidade, água para combate a incêndios, e a água para uso residencial.
Esta testemunha também conseguiu identificar os terrenos no mapa, efectuando uma delimitação que corresponde à explicação da testemunha J..
Quanto ao depoimento de J., presidente da Junta de Freguesia (...) entre 2001 e 2013, este não se afigurou coerente, pelo que o Tribunal o considerou pouco credível.
Em primeiro lugar, a testemunha demonstrou saber os nomes de todos os proprietários de todas as parcelas de terreno na área, à excepção da parcela de terreno do Autor que ficou cortada do remanescente da sua propriedade.
Em segundo lugar, a testemunha descreve o pavimento do Caminho da (...), mas questionada sobre se este tinha ou não infraestruturas, já não soube responder. As infraestruturas são algo tão visível quanto o pavimento e a testemunha, tendo sido presidente da Junta de Freguesia durante os factos aqui em causa, deveria saber se o caminho tem ou não infraestruturas, especialmente depois de declarar que ia lá com alguma frequência.
Em terceiro lugar, a testemunha também não foi coerente no que diz respeito à limpeza daquele caminho. Começou por dizer que era a Junta de Freguesia que fazia a limpeza daquele caminho; depois já admitiu que seriam os particulares a fazê-lo há cerca de 30 anos atrás. Ora, durante esse período de tempo em que o caminho seria limpo pela Junta, a testemunha J. declarou de forma clara e credível que o caminho estivera ao abandono, não havendo concordância entre estes depoimentos.
Em quarto lugar, a testemunha começou por dizer que não limparia caminhos particulares, para depois se contradizer afirmando que os limparia se servissem muitas pessoas; a final, veio a dizer que abriria caminhos ainda que fossem para servir uma única pessoa.
Em quinto lugar, quando questionado se houve um negócio com a Junta acerca do Caminho da G., disse que não encontrou qualquer acta, mas depois já veio a mencionar o nome da pessoa, proprietário de terreno naquela zona, que cedeu terreno para o alargamento do Caminho da G. e referiu-se ao negócio.
Em sexto lugar, a testemunha foi contraditória também na parte em que se refere à colocação de placas de toponímia no percurso a jusante do terreno do Autor - esta disse que havia mais placas (que mais nenhuma testemunha viu), mas depois não sabe os nomes dos caminhos e hesita no seu depoimento. Só lendo a legenda do mapa com que foi confrontado (fls. 104) é que conseguiu dizer os nomes das ruas.
Interrogado também acerca da razão pela qual se comunicou ao Autor que as ruas que serviam a sua propriedade eram a Rua da (...) e a Rua (...), sem qualquer menção ao Caminho da (...), não soube responder.
O Tribunal não pode deixar de notar a espontaneidade e a acidez com que esta testemunha se referiu a A. de A.. Quando perguntado se o conhecia, disse que era uma pessoa mal educada, e que não tratava com esta, de uma forma assaz reveladora da inimizade que lhe guarda. A reacção apresentada pela testemunha em sede de audiência permitiu concluir que esta guarda ódio e rancor contra A..
A testemunha trabalhou no Porto 40 anos, o que implica que esta passaria mais tempo nesta cidade do que em (...) - ou seja, o conhecimento desta testemunha é qualitativamente inferior ao da testemunha J. e, inclusive, da testemunha A. de A..
J. padece de esquecimentos estratégicos em tudo o que comprometeria a posição da Junta da Freguesia, mesmo em pontos em que mais nenhuma testemunha discute e em que as partes estão de acordo. Estes factores, em conjugação com a espontânea inimizade demonstrada para com o trabalhador do Autor, levam o tribunal a desconsiderar o depoimento desta testemunha, excepto em aspectos mais determinados.
Por exemplo, a testemunha referiu-se ao surgimento do Caminho da G., dizendo que as pessoas passavam por lá para não ir pelo dito Caminho da (...). Por outro lado, quando questionado acerca do motivo pelo qual apenas em 2012 veio a inaugurar o Caminho da (...), a testemunha disse que não havia Caminho da (...) - afirmou que algumas pessoas reclamaram com a pedra e com as redes e foi por causa disso que fez o aditamento à toponímia.
Esta parte coincide com o âmbito do depoimento de J., quando este afirmou que o Caminho da (...) não foi utilizado durante décadas.
Outro ponto prende-se com o trajecto tomado pela testemunha - esta disse que foi ao rio no Verão, mas não tomou aquele trajecto. Tal permite avaliar a utilidade actual (e à data da “inauguração”) do Caminho da (...). Neste ponto a testemunha diz que o caminho só serve pessoas que eventualmente vão a pé, e apenas se forem da (...) à escola (ou seja, num único sentido).
A testemunha E. é pai da actual presidente da Junta de Freguesia. O depoimento desta apresentou algumas contradições face ao depoimento doutras testemunhas, contradições essas que o Tribunal ponderou.
O depoimento desta testemunha não coincide com o depoimento de J. nem com o depoimento de A. de A., no que diz respeito à utilização do caminho. Aqui, por se revelar melhor a razão de ciência de J. (e por o depoimento deste coincidir com o Artur A.), prevaleceu o seu depoimento.
Por outro lado, também tem aqui interesse a explicação da testemunha para a abertura do Caminho da G.. A testemunha mencionou que foi um senhor, o qual tinha filhos em idade escolar, que pediu para se abrir o caminho, porque as crianças iam pelo meio do monte e “molhavam-se todas” - “então fizeram aquela abertura para eles poderem passar”. Estas declarações implicam que as crianças não usariam o designado Caminho da (...), o que está em consonância com o depoimento de A. de A..
A testemunha confirmou o depoimento de A. de A. relativamente aos terrenos naquela zona, nomeadamente acerca do facto de o caminho passar no meio do terreno do A.
Quanto à limpeza do caminho, a testemunha disse ainda que o caminho era limpo normalmente com as limpezas da freguesia. Para razão de ciência invocou ter sido tesoureiro da Junta de Freguesia na altura de J.. Ora, uma vez que J., presidente da Junta, afirmou que o caminho não foi limpo pelo menos desde 1985, e que a sua razão de ciência (ser presidente da Junta vs tesoureiro; idade mais avançada) é melhor do que a de E., prevaleceu o depoimento de J..
Apesar de ter tido dificuldade em enquadrar-se no mapa, a testemunha confirmou a descrição dos terrenos da zona e do caminho realizada pela testemunha A. de A. e acrescentou que só há placa toponímica à entrada e à saída do terreno do Autor, não havendo qualquer placa a jusante daí.
Segundo a testemunha, o Caminho da G. só foi pavimentada há 3 anos, em 2017. Antes disso, segundo a testemunha, esta passava por lá (Caminho da G.) muitas vezes. Posteriormente no seu depoimento, a testemunha veio a afirmar que agora passa pelo Caminho da (...). Ora, se antes de 2017 a testemunha diz que passava pelo Caminho da G., quando este não estava pavimentado, não se afigura crível que agora que este está pavimentado tenha deixado de ir por lá, para usar um caminho mais estreito, mais íngreme e não pavimentado. Ademais, não coincide neste ponto com o depoimento de Artur de A..
A testemunha disse ainda, de forma espontânea, que o A. estava a pagar pelos erros cometidos pelo seu trabalhador - A. de A. -, por este ser conflituoso. Nesta parte a espontaneidade do depoimento foi valorada positivamente pelo Tribunal.
A testemunha Paulo Luís de A. foi secretário da Junta de Freguesia desde 2003/4 até 2012/3. A testemunha é irmão de A. de A., tendo dito que não tem relações com o irmão por causa de problemas pessoais.
Na descrição que faz dos caminhos naquela zona a testemunha refere que este caminho (da Burra) mais precisamente, deveria ser chamado Travessa do Caminho da G.. Esta explicou os percursos que se pode fazer para o local da (...), daqui tendo resultado, em conjugação com o constante do mapa do Município de apoio à toponímia e também em conjugação com a carta militar, que a Rua do (..) ou Caminho do (...) liga o Lugar da (...) à Rua (...).
Este diz que para aceder à escola ou à igreja, quando estava em idade escolar, iam por aquele Caminho da (...), o que não coincide com o que foi dito pelo irmão, A. de A. nem com o que disse E., segundo os quais as crianças iam para a escola atravessando os campos agrícolas. Por isso, nesta parte não foi considerado o depoimento da testemunha.
Esta disse que o Caminho da (...) continuou a ser utilizado, mas menos, e depois segue a descrever que, “para a igreja, neste momento, e para a escola e para aquela área da freguesia, é o caminho que nós percorremos”, o que não coincide com as declarações de J., nem se afigura muito razoável, face às regras da experiência. Com efeito, não se discute que as únicas pessoas que aí residem em permanência são um casal com cerca de 80 anos (os pais da testemunha), cuja mobilidade, em razão da idade, é previsivelmente limitada. Além disto, se as pessoas antes de 1983-1985 utilizavam um trilho (hoje Caminho da G.) para não irem pelo Caminho da (...), não faz sentido que escolham hoje utilizá-lo.
A testemunha diz que a Rua não constava da toponímia por mero esquecimento, tal como foi por mero esquecimento que não mencionaram o Caminho da (...) na missiva que remeteram ao Autor. Posteriormente, já veio a dizer que não indicaram o Caminho da (...) ao Autor porque acharam que este não ia tirar proveito deste caminho, mas sim do Caminho da G., que tinha melhores condições. O Tribunal não pode ignorar esta incoerência, a qual descredibilizou esta parte do depoimento da testemunha.
A testemunha disse ainda que a Junta de Freguesia fazia a limpeza deste troço. Depois já disse que a limpeza do caminho era uma limpeza natural, decorrente do uso do caminho. Posteriormente, já vem a dizer que presume que este actualmente seja limpo pela Junta de Freguesia. Aqui a testemunha não só apresenta um depoimento incoerente como está em contradição com o que disse J..
A testemunha mais credível foi J. - este senhor foi tesoureiro da Junta de Freguesia (...) antes do mandato de 1983-1985 e presidente da Junta de Freguesia em 1983-1985 e de 1990-2001. Esta vive ainda na freguesia, e é a testemunha de idade mais avançada e mais isenta que depôs em tribunal.
A. de A. também depôs de forma isenta e espontânea, sem hesitações, através de uma narrativa linear e coerente, pelo que o seu depoimento também se mostrou credível – sendo certo que não tem o benefício da idade de J..
As demais, pela inimizade que têm para com o trabalhador do Autor, pelas contradições e incoerência de partes muito significativas dos seus depoimentos, pelo facto que, afinal, passarem a maior parte da sua vida fora da freguesia, pelas relações que têm com o executivo da Freguesia, e também por serem mais novas (e, por isso, terem uma menor memória ou menor percepção da situação existente há várias décadas) não podem merecer a mesma credibilidade.
A motivação por detrás de uma determinada actuação não é, em regra, susceptível de prova directa, devendo nessas ocasiões o julgador lançar mão de presunções judiciais, que consistem em ilações que o julgador tira de factos conhecidos para firmar um facto desconhecido - art. 349.º do CC. Como se disse no Ac. do STJ de 14-07-2016, proc. 377/09.2TBACB.L1.S1:
essas presunções são um meio frequente de provar os factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração directa, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afectiva ou volitiva, dos agentes visados
Nesse sentido, o ponto XX do probatório foi dado como provado tendo como base o seguinte:
- O Caminho da (...) / caminho da mula / caminho do moleiro / caminho de servidão à (...) ia desde o tanque de água até ao Lugar da (...), ou seja, era cerca de 4 ou 5 vezes maior do que o Caminho da (...) classificado em 2012 (cfr. mapa de fls. 104 e 106 dos autos);
- A parte classificada em 2012 abrange única a exclusivamente o terreno do Autor;
- O tal caminho não era utilizado desde 1985, tendo as pessoas do Lugar da (...) um acesso melhor, muito próximo, com infraestruturas públicas (o Caminho da G.);
- Só há placas toponímicas à entrada e à saída do terreno do Autor;
- Em 2007 a Assembleia de Freguesia aprovou um projecto de toponímia no qual não constava o Caminho da (...);
- Em 2008 a Assembleia de Freguesia voltou a deliberar sobre o processo toponímico, para corrigir algumas incorrecções, onde não constava o Caminho da (...);
- Em 2009 a Junta de Freguesia informou o Autor dos caminhos que serviam a sua propriedade, não tendo feito menção ao Caminho da (...); A contraditória explicação dada pelo secretário da Junta de Freguesia à época para a não menção desse caminho - primeiro foi esquecimento, e depois já era por entenderem que o Autor não tiraria utilidade do Caminho da (...);
- As relações entre as pessoas do executivo da Freguesia e o trabalhador contratado pelo Autor;
- O encadeamento destes factos com a oposição do Autor à passagem de caminhadas organizadas pela Junta de Freguesia, noutro seu terreno;
- O aditamento ao projecto de toponímia, em 2011, onde consta Caminho da (...) (novo);
- A remoção da pedra e da rede colocadas pelo Autor a um sábado;
- O Caminho da (...) ainda hoje é muito pouco usado;
- O comentário da testemunha E.;
Estes elementos permitem concluir, face às regras da experiência, que a Junta de Freguesia pretendeu prejudicar o Autor. O hoje denominado Caminho da (...), inaugurado em 2012, no leito de um caminho que não era usado desde 1985, tendo muito próximo outro caminho pavimentado, com infraestruturas públicas, já de si indiciaria uma intenção pouco lícita na “abertura” desse caminho. Entendida essa “abertura” na sequência da oposição do Autor às caminhadas da Junta de Freguesia através dos seus terrenos e percebidas as relações que opõem as várias pessoas do círculo da Junta de Freguesia em 2001-2013 ao trabalhador contratado pelo Autor, e notando o comentário de E., segundo o qual o Autor estaria a pagar pelo empregado que contratou, denota-se um intuito fútil na actuação da Ré.
Que outra explicação há para se ressuscitar um percurso que não era usado há mais de 20 anos, íngreme, que não permite a passagem de veículos automóveis, quando a poucos metros está outro caminho melhor? Por que razão classificá-lo apenas na parcela propriedade do Autor, quando o caminho histórico era mais longo?
E por que motivo só veio este caminho à baila em 2011 e não em 2007, no primeiro projecto de toponímia, em 2008, aquando da rectificação de algumas “incorrecções” ou até em 2009, quando o Autor pediu informação acerca dos caminhos que serviam a sua propriedade?
O secretário da Junta de Freguesia à época começou por afirmar esquecimento. Mas depois já afirmou que não se disse nada por entenderem que o caminho não seria útil para o Autor. Para lá desta contradição, devemos questionar: se o caminho não era útil, então para quê toda a actuação da Junta?
Resultou dos depoimentos das testemunhas arroladas pela Ré que tanto o Sr. Presidente da Junta de Freguesia entre 2001-2013 como o Sr. Secretário durante esses mandatos têm quezílias com o funcionário do Autor. Resultou também que, antes de todo este processo em volta do Caminho da (...), o Autor se opôs a que a Junta de Freguesia organizasse caminhadas nos seus terrenos.
Por isso é que o Caminho da (...) tal como designado em 2012 surge apenas na parcela da propriedade do Autor, quando originalmente era bastante maior; por isso é que só há placas de toponímia antes e no fim da propriedade do Autor, e nenhuma a jusante deste caminho (a testemunha Paulo Luís A. menciona uma outra placa, mas apenas no Caminho da G.). Estes factos levam a concluir que a motivação por detrás da inauguração deste caminho foi prejudicar o Autor, por causa do trabalhador que este contratou.
Notamos que o ónus da prova dos factos que levam a afirmação do domínio público sobre aquele terreno incumbe à Ré, uma vez que i) a alegação do Autor é essencialmente negatória; ii) a invocação da qualificação do caminho como público em virtude de ser utilizado desde tempos imemoriais pela generalidade das pessoas funciona como exceptio à actio essencialmente negativa do Autor - 342.º/2 do CC.
Veja-se, com maior clareza, a explicação do Tribunal da Relação de Coimbra, em Ac. de 11-09-2012, proc. 113/09.3TBSBG.C2:
A respeito da caracterização do caminho como público, importa sublinhar um elemento central da dinâmica argumentativa desta acção, sendo que é dessa caracterização que emergirá a correcta alocação do ónus da prova (do ónus da prova da natureza do caminho indicado em m) dos factos como caminho público). Referimo-nos à estrutura profunda da presente acção, enquanto verdadeira acção negatória da A. reportada à existência (maxime, à negação da existência) de um caminho público afirmada pelo R. (o que se confirmou plenamente com a contestação deste, v. item 1.1. supra, cfr. fls. 88, artigo 13º dessa contestação), sendo tal circunstância adiantada pela A., como argumento justificativo da reivindicação, logo no articulado inicial (cfr. os respectivos artigos 24º, 25º e 27º a fls. 174/175). É certo que o pedido formulado pela A. foi tipicamente reivindicatório, mas, todavia, para quem se atém à realidade e não à aparência das coisas, a estruturação deste pedido por referência à parcela ou espaço da propriedade da A. ocupada pelo caminho, conjugada com a negação de qualquer dominialidade pública sobre esse espaço e, enfim, com a posterior defesa do R., assente na existência de um caminho público, todos estes elementos conjugados, dizíamos, tornam claro o carácter à partida negatório da acção intentada pela A. relativamente à inexistência desse caminho público.
Vale esta constatação - rectius, vale esta caracterização da dinâmica argumentativa da acção - enquanto alocação do ónus da prova da existência do caminho público atravessando o prédio da A. ao R. (não à A.), sendo que, em função disto, a regra de decisão que se formará no caso de um non liquet probatório traduzir-se-á na não prova da existência desse caminho, afirmado na sua existência pelo Município R., nos termos do artigo 343º, nº 1 do Código Civil (CC). Aliás, à mesma conclusão e resultado - alocação do ónus da prova ao R. e decisão contra este face a um non liquet - chegaremos com base na consideração da afirmação pelo R. da existência do caminho como público, enquanto excepção (facto extintivo do direito transmitido à A. traduzido na dominialidade pública), desta feita por referência ao artigo 342º, nº 2 do CC.
O ponto 1 do probatório foi dado como não provado tendo em conta o depoimento das várias testemunhas.
Em bom rigor, verifica-se que nenhuma delas tem concreta memória de lá passarem animais de transporte de cereais e de farinha para os moinhos. Vejamos o que nos leva a tal conclusão.
As testemunhas não coincidem acerca dos animais de carga utilizados: uma testemunha refere caminho da mula, outra o caminho do moleiro, outra os carros de bois e outra ainda diz que tal caminho se deveria chamar Travessa do Caminho da G., implicando a acessoriedade deste caminho face ao Caminho da G.. Esta diferença entre os animais de carga supostamente utilizados leva a pensar que nenhuma das testemunhas viu e se lembra em concreto dos animais que por lá passavam, provavelmente por o conhecimento dessa travessia não ser directo, mas de lhes advir dos seus antepassados e de vestígios físicos.
A testemunha J. disse inicialmente que não havia nenhum Caminho da (...), o que havia era apenas um caminho de servidão que dava acesso ao Lugar da (...) e à Quinta da (...) – só posteriormente, inquirida sobre qual o motivo pelo qual aquele caminho veio a ser designado Caminho da (...) é que esta disse que seria por aí que passava a burra para levar centeio ao moinho, mas de tal forma que o tribunal ficou com a convicção que a testemunha se referia à motivação por detrás da escolha do nome daquele caminho e não à sua experiência empírica.
A testemunha A. de A. esclareceu que o Caminho da (...) era por onde antes iam até aos moinhos, mas também disse que no seu tempo, quando andava na escola, ninguém usava aquele caminho. Aliás, a própria testemunha preferia atravessar os campos agrícolas por outro trajecto até à escola.
J. foi a única testemunha que disse que passava lá com o moleiro, quando era pequeno. Todavia, o seu depoimento não se afigurou credível: esta soube explicar onde se iniciava o dito caminho do moleiro, mas não onde terminava. Apenas mais adiante no seu depoimento, vem a dizer que este caminho terminava no Lugar da (...) e que os moinhos ainda ficavam a jusante.
Por outro lado, quando se referiu ao caminho, a testemunha colocou enfâse no muro que o ladeava numa parte e nas marcas dos carros de bois (para dizer que é um caminho antigo, a testemunha afirma que vê as marcas dos carros de bois na fraga), não tendo feito qualquer menção a experiências passadas, o que leva o Tribunal a considerar que a testemunha não passou lá, com o moleiro, quando era pequeno, mas que em face dos vestígios materiais (o muro e as marcas dos carros de bois na fraga) e dos eventuais relatos de antepassados associou aquele sítio à passagem de animais de carga para o moinho.
E. também diz que o tal caminho «tinha utilidade para o moleiro», mas em momento algum referiu a sua experiência. Antes, o foco da testemunha foi nas marcas dos carros de bois, que teriam determinados centímetros de profundidade. Novamente, a incidência do depoimento nos elementos físicos presentes leva à conclusão de que foi com base nestes e não com base na experiência que associou aquele caminho ao moleiro.
A testemunha Paulo Luís A. disse expressamente nunca ter visto qualquer transporte de farinha ou cereais por ali, dizendo que não era do seu tempo. Isto também reforça a ideia de que a referência que o irmão (A. de A., apenas 3 anos mais velho) fez ao Caminho da (...) era apenas uma referência a conhecimento indirecto e não a uma concreta percepção de animais de carga naquela via.
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Do erro de julgamento de Direito -
Neste domínio sustenta a Recorrente:
-Como se extrai do respetivo relatório, a sentença começa por referir os pedidos principais formulados pelo Apelado, quais sejam:
“ - a condenação da Ré “ao restabelecimento de direitos e interesses violado, retirando as placas toponímicas, devolvendo os materiais que retirou e reconhecendo o A. como único e legítimo proprietário da faixa indevidamente apossada;”
- a condenação da Ré “em litigância de má-fé face ao abuso de poder, ao incumprimento das disposições administrativas em vigor e ao prejuízo causado ao A. Sem que o interesse público o justificasse e a lei o fundamentasse”.”
Todavia, o Senhor Juiz condenou (apenas) a Apelante:
- a restituir ao Apelado a pedra, os três metros de rede e os seis metros de cabo de aço retirados da sua propriedade em 21-01-2012;
- a retirar as placas toponímicas contendo a designação “Caminho da (...)” colocadas à entrada e à saída da propriedade do Autor, e
- a abster-se de obstar a que o Autor exerça o seu direito de propriedade sobre aquela parcela de terreno.
Ou seja, para além de não se ter pronunciado sobre o segundo pedido formulado pelo Apelado, condenou apenas parcialmente a Apelante, pelo que, coerentemente, não podia senão julgar a ação parcialmente provada e procedente e condená-la em 50% das custas.
Não vemos que assim seja.
Com efeito, atento o disposto no artigo 527º/1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito”.
Por seu turno, o seu nº 2 estabelece que “Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for”.
Assim sendo, a Apelada foi, e bem, condenada nas custas do processo, já que decaiu na totalidade do pedido (principal), tendo-se apenas livrado da sanção/condenação como litigante de má fé.
Em suma:
-O aresto recorrido, contrariamente ao invocado, apreciou de forma correcta a prova exibida e fez a devida subsunção dos factos ao direito, razão pela qual improcedem as alegações, quer no que tange ao apontado erro de julgamento de facto, quer no que respeita à suposta violação dos artigos 349º do CC, 527º/1 e 2 do CPC, 17º e 18º do DL 280/2007 de 07/08.
DECISÃO
Termos em que se nega provimento ao recurso.
Custas pela Recorrente.
Notifique e DN.
Porto, 15/07/2021
Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Helena Canelas