Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00386/11.1BECBR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/23/2020
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Rosário Pais
Descritores:OPOSIÇÃO; EFEITO DO RECURSO; CONTRATO DE CONCESSÃO; CONTRATO DE CESSÃO DE EXPLORAÇÃO; FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA;
DL N.º 23/96, DE 26/07; PRAZO DE PRESCRIÇÃO;
Sumário:I – Nos termos do artigo 286.º, n.º 2, do CPPT, a regra é o efeito meramente devolutivo dos recursos.

II - Só excecionalmente poderá o efeito dos recursos ser suspensivo, se tiver sido prestada garantia nos termos do CPPT ou se o efeito devolutivo afetar o efeito útil dos recursos, o que ocorrerá quando possa provocar uma situação irreparável, por não se poder reconstituir a situação existente, no caso de provimento do recurso.

III - O Decreto-Lei n.º 23/96, de 26/07, cria um regime de proteção do utente e estipula as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais, designadamente de fornecimento de energia elétrica; para efeitos deste diploma, considera-se utente a pessoa singular ou coletiva a quem o prestador de serviços se obriga a prestá-lo e prestador dos serviços toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.

IV - Se não resulta dos autos que o Município se obrigou a prestar à Recorrente o serviço de fornecimento de energia elétrica, não pode esta ser considerada utente, para efeito do referido diploma, nem beneficiar do regime ali previsto, mormente no que respeita ao prazo de prescrição da dívida exequenda. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:H., Lda
Recorrido 1:Município de (...)
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Dever ser negado provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:


1. RELATÓRIO

1.1. H., Lda, devidamente identificada nos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, datada de 12/12/2012, pela qual foi julgada improcedente a oposição por ele deduzida à execução fiscal n.º 10/2011, contra si instaurada pelo Município de (...) para cobrança coerciva da quantia de 5.753,15€, proveniente de consumos de eletricidade dos meses de janeiro a outubro de 2010 do Restaurante / Bar C.A.E., cuja exploração lhe fora cedida.
1.2. A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
1. Ao presente recurso, deveria ter sido fixado efeito suspensivo, nos termos do n.º 2 in fine do artigo 286º do CPPT e ainda por força da aplicação do artigo 690º , nº 3, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável "ex vi" artigo 2º , alínea e) do CPPT.
2. A sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao afirmar que a Lei 23/96 de 26 de Julho não é aplicável às relações contratuais entre Recorrente e Recorrida.
3. À Recorrente, no âmbito do contrato de fornecimento de serviços públicos essenciais, como é o de fornecimento de energia eléctrica, terá de ser aplicada a protecção que aquela Lei consagra aos consumidores finais.
4. Acresce que, nos termos da proposta de Lei n.º 20/VII, aprovada em Conselho de Ministros de 28.03.1996 e publicada no DR, 2a Série, n.º 33, de 04.04.1996, a Lei n.º 23/96 não se restringe aos consumidores finais.
5. Veja-se o entendimento expendido no Acordão do Tribunal Central Administrativo sul, de 19.01.2012, proferido no Procº 06933/10;
6. Se ao Tribunal Recorrido assistisse qualquer razão ao não considerar utente a Recorrente H., Lda., sempre teria o Tribunal de ter declarado também a Recorrente parte ilegítima na presente acção porquanto os contratos de fornecimento de electricidade, são contratos obrigacionais, que produzem efeitos inter-partes, não produzindo naturalmente efeitos sobre terceiros não outorgantes do contrato.
7. As facturas que se encontram juntas aos autos, como se extrai das mesmas, são facturas referentes a um contrato celebrado entre o Município de (...) e a EDP, não podendo desta forma vincular terceiros, como a aqui Recorrente;
8. Por último, esteve mal o Tribunal Recorrido ao não fazer prosseguir o processo para julgamento, para que fosse efectuada prova, ou fosse dada a oportunidade de a produzir, quanto aos alegados pagamentos dos valores em dívida, pois que, a Autora poderia ter produzido prova documental ou testemunhal dos pagamentos reclamados até através da compensação por serviços prestados pela Recorrente.
9. A sentença de que se recorre violou, para além de outros, os comandos dos artigos 1º e 10º da Lei 23/96, de 26 de Julho, o n.º 2 in fine do artigo 286º do CPPT, o artigo 690º, n.º 3, alínea e), do Código de Processo Civil, aplicável "ex vi" artigo 2º , alinea e) do CPPT.
10. Violou ainda o princípio da universalidade, igualdade, continuidade, imparcialidade, adaptação às necessidades e bom funcionamento dos serviços públicos.
Assim, nos termos expostos e nos que doutamente forem supridos deve ser dado provimento ao presente recurso nos termos sobreditos como é de inteira
JUSTIÇA!».
1.3. A Recorrida não contra-alegou.
1.4. Foi emitido parecer pelo EPGA junto deste Tribunal considerando, sinteticamente, o seguinte:
«(…)
No caso presente o recorrente nem prestou garantia nem alegou no requerimento de interposição (fls. 91) que o efeito devolutivo afectava o efeito útil do recurso, pelo que bem andou o Tribunal em fixar o efeito regra (devolutivo).
Quanto ao mérito da decisão.
Entendemos que o recorrente carece de razão.
Na verdade, nos autos está em causa um pedido de reembolso do Município de (...) ao abrigo do contrato de cessação de exploração, das importâncias que liquidou com eletricidade e não uma cobrança directa da EDP, tendo como fonte tal dívida o cumprimento de obrigações previstas nas cláusulas do contrato de cessação de exploração assinado pelo oponente e que se encontra junto aos autos e não o pagamento à EDP do serviço de fornecimento de energia eléctrica.
Assim sendo, como provado ficou, não tem aplicação ao caso o regime jurídico da Lei 23/96 de 26/7.
Pelo exposto, é nosso parecer que ao recurso deve ser negado provimento, mantendo-se a sentença recorrida.».

Colhidos os vistos legais junto dos Exm.ºs Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre apreciar e decidir, pois que a tanto nada obsta.

2. QUESTÕES A APRECIAR
Tendo presente que as conclusões das alegações balizam o objeto do recurso e que não existem questões de que oficiosamente importe conhecer, cumpre apreciar e decidir se:
i) deve ser atribuído efeito suspensivo ao presente recurso;
ii) a sentença recorrida enferma de erro de julgamento de direito por ter considerado que a Lei n.º 23/96, de 26/07, não é aplicável à situação dos autos, e
iii) se o processo deve prosseguir para produção de prova do alegado pagamento da dívida exequenda ou da respetiva compensação.

3. Fundamentação de Facto
A sentença recorrida contém o seguinte julgamento de facto:

«3.1. Factos Provados:
1 - Em 26-05-2009 foi celebrado entre a ora Oponente, como segunda outorgante, e a F. como primeira outorgante, um contrato de cessão de exploração dos espaços de cafetaria/restauração do CAE, sito na (...), cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido (fls. 20 a 22 dos autos);
2 - A cláusula nona do contrato a que se refere o ponto anterior preceitua, entre outras situações, que a Oponente “suportará o consumo de gás, energia eléctrica, telefone e água utilizados para o funcionamento do estabelecimento” (fls. 21 e 21 v.º dos autos);
3 - De acordo com o ponto 9. do artigo 4.º do Caderno de Encargos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, “Constituem, ainda, obrigações dos cessionários: d) Todas as despesas de energia eléctrica, ar condicionado e ventilação, água, gás, telefone que venham a instalar e limpeza.” (fls. 24 a 29 dos autos);
4 - No dia 04-01-2010 foi celebrado entre a F., o Município de (...) e a Oponente um contrato de cessão de posição contratual, que aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual a primeira cedeu ao segundo, com o consentimento da terceira, a posição contratual que detinha no contrato a que se refere o ponto 1. supra (fls. 30 a 32 dos autos);
5 - Com data de 09-12-2010 e n.º 345/2010, o Presidente da Câmara Municipal de (...) enviou à Oponente e esta recebeu em 10-12-2010, um ofício, que aqui se dá por integralmente reproduzido, o qual tem, nomeadamente, o seguinte teor: “Considerando que termina no próximo dia 10 de Dezembro o Contrato de Cessão de Exploração dos Espaços de Cafetaria/Restauração do CAE, e que, nos termos da Cláusula Nona do mesmo, constitui encargo de V. Exa. o pagamento das despesas de electricidade, venho pela presente comunicar que deverá, no prazo máximo de 10 (dez) dias úteis regularizar os seguintes montantes devidos:
(…)
- €5.753,15 (cinco mil setecentos e cinquenta e três euros e quinze cêntimos), referentes aos meses de Janeiro de 2010 a Outubro de 2010, os quais deverão ser liquidados a favor da Câmara Municipal de (...), concedente no período referido.
Os montantes referidos poderão ser pagos na Secção de Taxas e Licenças da Câmara Municipal, sita na Av. (...), (…).
Caso os referidos montantes não sejam liquidados no prazo previsto, não restará outra alternativa que não seja acionar judicialmente V. Exa., caso em que serão exigidos juros de mora referentes aos aludidos montantes.” (fls. 60 a 62 dos autos);
6 - Em 10-12-2010, o Município de (...) emitiu a “Guia de Recebimento” n.º 312 de 2010, em nome da ora Oponente, no valor total de € 5.753,15, com o seguinte descritivo: “Reembolso de despesas de electricidade Diversas
Reembolso de despesas com os consumos de electricidade referente aos meses de Janeiro a Outubro de 2010 do Bar do CAE” (fls. 7 dos autos);
7 - Em 04-03-2011 foi instaurada a “execução fiscal administrativa” n.º 10 de 2011, para cobrança do valor a que se refere o ponto 6. supra, em nome da Oponente (fls. 3 dos autos);
8 - A instauração do PEF a que se refere o ponto 7. supra teve por base Certidão de Dívida n.º 12/2011, emitida pela Câmara Municipal, Município de (...), de 01-03-2011, que aqui se dá por integralmente reproduzida, a qual tem, nomeadamente, o seguinte teor: “(...) Certifico que, por este Serviço, é devedor a esta Câmara Municipal. H., Lda., Contribuinte Fiscal n.º (...), com sede em/morador em Rua (…), (…) — (…) da quantia de 5753,15 € (cinco mil setecentos e cinquenta e três euros e quinze cêntimos), proveniente de Consumos de electricidade dos meses de Janeiro/Outubro 2010 Bar C.A.E., e porque a não satisfez no prazo de cobrança voluntário, nem ainda no dos avisos legais que lhe foram expedidos, e como se achem preenchidas todas as formalidades legais, passo a presente certidão nos termos do art.º 88° e 163° do Código de Procedimento e do Processo Tributário para se proceder executivamente contra o referido devedor, de conformidade com o mesmo código, a qual vai por mim, Responsável do Serviço Emissor, assinada por extenso e chancelada nos termos.
Rendimentos que serviram de base à liquidação, com indicação das fontes, nos termos das alíneas b) e c) do n.º 2 do art° 88°.
O último dia da cobrança voluntária, 11-02-2011.
Juros de mora a partir de 12-02-2011 (...) “ (fls. 4 dos autos);
9 - Em 31-03-2011 a ora Oponente foi citada da execução fiscal a que se referem os pontos 7. e 8. supra, através de ofício com a referência “B/4.2.3., de 04-03-2011 (fls. 15 e 16 dos autos);
10 - Em 02-05-2011 foi recebida na Câmara Municipal de (...) a presente Oposição (fls. 13 dos autos).

3.2. Factos não Provados
1 - A Oponente pagou os consumos de electricidade dos meses de Janeiro a Outubro de 2010 do Bar CAE (apesar de alegar, a Oponente não fez prova de que tenha pago os valores em causa, sendo que, no caso, dada a natureza da questão, a prova tinha que ser documental).

Inexistem outros factos não provados com interesse pata a decisão da causa.

A decisão da matéria de facto assenta na análise crítica dos documentos constantes dos autos, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório.».


4. Fundamentação de Direito

4.1. Do efeito do recurso
No requerimento de interposição de recurso, a Recorrente pediu que ao mesmo fosse fixado efeito suspensivo (cfr. pág. 133-135), mas, no respetivo despacho de admissão, a Meritíssima Juíza a quo atribuiu-lhe efeito devolutivo (cfr. pág. 139-140).
Já nas alegações de recurso, sustenta a Recorrente que deve ser corrigido o efeito atribuído ao recurso porquanto (i) requereu a atribuição de efeito suspensivo, (ii) o efeito devolutivo afeta o efeito útil do recurso e (iii) até por força da aplicação do artigo 690.º, n.º 3, al. e) do CPC.
Vejamos, então:
Nos termos do artigo 286.º, n.º 2, do CPPT, os recursos têm efeito meramente devolutivo, salvo se for prestada garantia nos termos do presente Código ou o efeito devolutivo afetar o efeito útil dos recursos.
Da leitura do preceito transcrito ressalta que a regra é o efeito meramente devolutivo dos recursos. Só excecionalmente poderá o efeito dos recursos ser suspensivo se tiver sido prestada garantia nos termos do CPPT ou se o efeito devolutivo afetar o efeito útil dos recursos.
Não havendo notícia nos autos de ter sido prestada garantia, resta verificar se estamos perante a hipótese de o efeito devolutivo afetar o efeito útil do recurso. Enquadram-se nesta hipótese as situações em que a execução imediata da decisão “possa provocar uma situação irreparável, o que acontecerá quando não se possa reconstituir a situação existente, no caso de provimento do recurso” (cfr. Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, Vol. IV, 6ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 509), o que aqui não se verifica, nem a Recorrente esclarece em que medida ocorreria tal afetação.
Tenhamos presente, como é salientado na pág. 508 da obra citada, “que o que está em causa, na atribuição de efeito devolutivo ou suspensivo e na apreciação do efeito útil do recurso, é a própria suspensão de efeitos da decisão recorrida e não do processo em que ela foi proferida. O efeito suspensivo do recurso também não implica suspensão do processo de execução fiscal que esteja pendente para cobrança da dívida cuja legalidade esteja a ser discutida no processo em que o recurso for interposto”, já que a suspensão da execução fiscal só tem lugar nos casos previstos na lei, concretamente no artigo 52.º da LGT e 169.º e 170.º do CPPT. Quer isto dizer, como refere ainda o mesmo autor, que “pelo facto de ser atribuído efeito suspensivo a um recurso jurisdicional, por se entender que a atribuição de efeito devolutivo afecta o seu efeito útil, o processo de execução fiscal não fica suspenso, se não se verificarem os requisitos de que depende a sua suspensão”.
Em suma, não se verifica qualquer fundamento que, nos termos da lei, permita, excecionalmente, atribuir efeito suspensivo ao presente recurso, motivo pelo qual se mantém o efeito devolutivo fixado em 1ª instância.

4.2. Da aplicação do Decreto-Lei n.º 23/96, de 26/07
A sentença recorrida afastou a aplicação deste diploma legal com base no seguinte entendimento:
«Nos presentes autos está em causa uma divida relativa a um reembolso de despesas com consumo de electricidade suportadas pelo Município de (...), mas devidas, de acordo com a cláusula nona do contrato de cessão de exploração, pela ora Oponente.
Ou seja, trata-se aqui de uma dívida de natureza contratual e não tributária, a qual não segue o regime da prescrição previsto na LGT, sendo que o facto de a mesma ser cobrada coercivamente não lhe muda a natureza transformando-a em dívida tributária.
Por outro lado, tendo a dívida em causa como fonte o contrato de cessão de exploração, ou seja, o cumprimento das obrigações ali previstas, e não qualquer contrato celebrado com a EDP, ou o pagamento à EDP do serviço de fornecimento de energia eléctrica, também não lhe é de aplicar o regime previsto na Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que prevê, no seu art. 10.º, a prescrição do direito ao recebimento do preço do serviço prestado no prazo de 6 meses após a prestação.
Isto porque tal Lei, que consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente, tem como alvo o referido utente, definido no n.º 3 do art. 1.º, como “a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo”, considerando o n.º 4, prestador de serviços “a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos”. Ou seja, a Oponente não é utente no sentido ali indicado, já que, como ela própria refere, não outorgou qualquer contrato com a EDP, não se tendo esta obrigado a prestar-lhe quaisquer serviços, sendo que apenas de forma indirecta o pagamento dos consumos lhe está a ser exigido (no caso, quem os pagou é que é o utente para os efeitos ali previstos).

Assim, dúvidas não restam que ao caso é de aplicar o regime geral da prescrição e o respectivo prazo, previstos nos artigos 300.º e ss. do Código Civil, mais concretamente, o prazo de 20 anos (art. 309.º).
Pelo que, tratando-se de consumos dos meses de Janeiro a Outubro de 2010, é evidente que não prescreveu tal dívida.».
A Recorrente insurge-se contra este entendimento, sustentando que o DL n.º 23/96 é aplicável no caso vertente, designadamente no que respeita ao prazo de prescrição de 6 meses ali previsto.
Vejamos, então, se a razão está do seu lado.
O Decreto-Lei n.º 23/96, de26/07, criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, dentre os quais aqui releva o serviço de fornecimento de energia elétrica, consagrando as «regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente.» - cfr. artigo 1.º, n.ºs 1 e 2 do diploma em referência, sendo o sublinhado da nossa autoria.
Por força do n.º 3 do seu artigo 1.º, «Considera-se utente, para os efeitos previstos neste diploma, a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.» e, nos termos do n.º 4, «considera-se prestador de serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.».
De salientar que a noção de “consumidor”, (que nos é dada pelo artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 24/96, de 31/07) como «todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios.», não coincide com o conceito de “utente” constante do DL 23/96. Esta última é mais abrangente, pois o “utente” pode destinar os serviços prestados a uso profissional (o que não acontece com o consumidor, que só os pode destinar a uso não profissional).
Assim, já podemos ter por assente que o DL n.º 23/96 (i) define as regras a que deve obedecer a prestação de serviços essenciais, designadamente o fornecimento de energia elétrica, tendo em vista a proteção do “utente”; para efeito deste diploma e das aplicação das regras nele previstas, considera-se (ii) “utente” a pessoa a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo, independentemente do destino que dê aos serviços, e (iii) como prestador dos serviços toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.
Resulta da factualidade apurada nos autos que a Recorrente outorgou, na qualidade de cessionária, um contrato de cessão de exploração do Restaurante/Bar do C.A.E., sito na (...), nos termos do qual (cfr. cláusula 9.ª) se obrigou a suportar «o consumo de gás, energia elétrica, telefone e água utilizados para o funcionamento do estabelecimento». Aliás, também já resultava do artigo 4.º, n.º 9, alínea d), do Caderno de Encargos que constituía obrigação do cessionário «Todas as despesas de energia elétrica, ar condicionado e ventilação, água, gás, telefone que venham a instalar e limpeza».
O que, porém, não resulta do contrato é que o cedente da exploração se tenha obrigado a prestar à ora Recorrente o serviço de fornecimento de energia elétrica. Aparentemente, o cedente limitou-se a permitir que a Recorrente usasse a energia elétrica que lhe era fornecida pela EDP, contada através de contador registado em nome do Município e por este paga enquanto titular/utente do contrato de fornecimento, contra o reembolso dos valores correspondentes aos consumos efetuados pela Recorrente.
Nesta medida, não pode a Recorrente ser qualificada como “utente”, nos termos e para efeitos do regime especial consagrado pelo DL n.º 23/96, pois só cabe nesta definição «... a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo ...».
Conclui-se, assim, que a Recorrente não detém a qualidade de “utente” para efeitos do DL n.º 23/96, não sendo, por isso, possível aplicar-lhe o regime excecional ali consagrado, mormente no que respeita ao prazo de prescrição do direito ao recebimento do preço do serviço prestado.
É sustentado na conclusão 7 que as faturas emitidas pela EDP, no âmbito de contrato estabelecido entre esta entidade e o Recorrido, não vinculam terceiros, designadamente a Recorrente.
Sucede que, desde logo, a Recorrente não alega nem demonstra que, por um lado, não efetuou consumos de energia elétrica ou, por outro lado, que os seus consumos não são os que constam das ditas faturas.
Certo é que se obrigou, por força do contrato de cessão de exploração e do atinente Caderno de Encargos, a pagar os seus consumos, designadamente, de energia elétrica e, por isso, está vinculada a pagar os valores reclamados pelo Município a tal título, uma vez que não coloca em causa que o valor peticionado corresponde aos consumos que lhe são imputados.
Improcedem, por isso, as conclusões 3 a 7 das alegações de recurso.

4.3. Do prosseguimento dos autos para prova do pagamento ou da compensação
Por último, a Recorrente alega na conclusão 8 que esteve mal o Tribunal ao não fazer prosseguir o processo para que fosse efetuada prova do alegado pagamento dos valores em dívida, pois a A. poderia ter produzido prova documental ou testemunhal dos pagamentos, até através de compensação por serviços por si prestados.
Não sobram dúvidas em como o pagamento e a anulação da dívida exequenda constituem fundamento de oposição à execução fiscal, nos termos do artigo 204.º, n.º 1, alínea f) do CPPT. Como refere Jorge Lopes de Sousa, «o pagamento e a anulação que se têm em vista serão, assim, os que tiverem ocorrido antes da instauração do processo de execução fiscal» - cfr. CPPT anotado e comentado, volume III, 6.ª edição, 2011, Áreas Editores, pp. 493.
Na perspetiva deste autor, «Equiparáveis a «pagamento» e enquadráveis na alínea f) por interpretação extensiva daquela expressão, são as outras formas de extinção da obrigação tributária que se reconduzam a uma transferência patrimonial para o credor, designadamente a dação em pagamento e a compensação, regulados nos arts. 87.º, 89.º e 90.º do CPPT. Se se entender que não é viável uma interpretação extensiva abrangendo a compensação neste conceito de pagamento, ela será fundamento de oposição enquadrável na alínea i) do n.º 1 do art. 204.» - cfr. obra citada, pp. 492.
No que respeita ao alegado pagamento da dívida exequenda, foi fixado como facto não provado que «1 - A Oponente pagou os consumos de electricidade dos meses de Janeiro a Outubro de 2010 do Bar CAE (apesar de alegar, a Oponente não fez prova de que tenha pago os valores em causa, sendo que, no caso, dada a natureza da questão, a prova tinha que ser documental).».
Uma vez que a Recorrente não impugna o julgamento de facto nesta parte, deve o mesmo considerar-se assente. Ainda que assim não fosse de considerar, o certo é que a sentença recorrida devia ser mantida nesta parte porquanto, como nela bem se refere, a prova do pagamento é, necessariamente, documental.
Acresce que, por despacho de 20.09.2011 foi dispensada a produção de prova testemunhal requerida na p.i., considerando que «em face dos elementos constantes dos autos e bem assim as questões de direito em análise, não carece de prova testemunhal (…)»- cfr. pp. 70 SITAF.
Este despacho foi regularmente notificado a ambas as partes, sendo que a Recorrente se conformou com o respetivo teor, uma vez que não apresentou recurso interlocutório contra o mesmo, nem o questionou no presente recurso. Ademais, não se nos afigura necessária qualquer ampliação da prova.
É sabido que a compensação é uma forma de extinção das obrigações em que, no lugar do cumprimento, como subrogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito liberando-se do seu débito, por uma espécie de acção directa (cfr. PIRES DE LIMA e A. VARELA, Código Civil Anotado, II Volume, 4.ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Coimbra, p.130).
Assim, prevê o artigo 847.º, n.º 1, do CC, que: “quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:
a) ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção, perentória ou dilatória, de direito material;
b) terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.”
Mas, de acordo com o disposto no artigo 853.°, n.º 1, al. c), do CC, não podem extinguir-se por compensação os créditos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, exceto quando a lei o autorize.
Ora, a Recorrente não invoca nem este Tribunal vislumbra qualquer lei que autorize os Municípios, designadamente o da (...), a proceder à compensação de créditos, daí a irrelevância da produção de prova tendente a demonstrar que a Recorrente é credora do Município (...) e o montante dos seus alegados créditos.
Atento o que vem considerado, deve ser mantida a sentença recorrida, improcedendo totalmente o presente recurso.

5. DECISÃO

Em face do exposto, acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao presente recurso e manter a sentença recorrida.

Custas a cargo da Recorrente, dispensando-se o Recorrido do pagamento da taxa de justiça devida nesta sede, uma vez que não contra-alegou.


Porto, 23 de abril de 2020


Maria do Rosário Pais
António Patkoczy
Ana Patrocínio