Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01023/15.0BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:10/11/2017
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Cristina Travassos Bento
Descritores:REGISTO DA PENHORA
ESCRITURA DE COMPRA E VENDA
REGISTO DA CONTA
MARCAÇÃO DA DATA DA VENDA
RECLAMAÇÃO DO ACTO DO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL
Sumário:I - A penhora de uma fracção, cujo registo on line na Conservatória do Registo Predial foi efectuado 24 m antes do registo da conta (facturação), da escritura da compra e venda da mesma, efectuada no sistema do Cartório Notarial, não prevalece sobre a compra efectuada, dado a hora do registo da conta daquele serviço não ser demonstrador do momento da realização do negócio, uma vez que é um acto externo a esse mesmo serviço.
II - ”Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (…)”- artº. 371º do Código Civil (CC). Por sua vez, estipula o nº 1 do artigo 372º, também do Código Civil, que “A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade”.
III - Encontrando-se atestado na escritura, (documento autêntico nos termos do artigo 363º, nº 2 do C.C) que foi exibido o código de acesso à certidão permanente do registo predial, através do qual foram verificados os elementos registrais, e tendo-se confirmado que no momento da escritura apenas se encontravam registadas, como ónus, duas hipotecas sobre a fracção em causa, é de considerar que a penhora, entretanto registada, não prevalece sobre a transmissão da propriedade para os compradores que outorgaram a escritura, dada a prova plena efectuada pelo documento autêntico.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Manuel... e Maria...
Recorrido 1:Autoridade Tributária e Aduaneira
Decisão:Concedido provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção do Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. Relatório

Manuel… e Maria…, com os NIF 1…e 1…, respectivamente, e residentes na Praça…, Costa da Caparica, vieram interpor recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou improcedente a reclamação, por eles deduzida, ao abrigo do disposto no artigo 276º e seguintes do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), do despacho do Chefe do Serviço de Finanças de Aveiro que designou data para a venda judicial de bem penhorado no âmbito do processo de execução fiscal n.º 0051200801038818.

Os Recorrentes terminaram as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

“1ª - Perante o depoimento da Dra. D…, Notária que celebrou a escritura pública de compra e venda entre Reclamantes e o Executado por reversão e a mulher deste, dever-se-á ter como provada a aquisição por parte dos Reclamantes do imóvel em causa livre de quaisquer ónus ou encargos.
2ª - Apesar de em 18/06/2015, o Serviço de Finanças de Aveiro 1 ter procedido à penhora do artigo urbano n° 2…, fração F, da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, sito na Avenida…, com o valor patrimonial de €48.380,00, tal ónus deverá ser cancelado.
3ª - Pois que, antes da leitura do ato público de compra e venda a senhora notária consultou a certidão predial permanente e certificou-se de que não havia qualquer registo pendente.
4ª - Assim, os reclamantes adquiriram do executado e sua mulher, o direito de propriedade de forma plena sobre o prédio inscrito na matriz urbana sob o artigo n° 2…, fração F da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, sito na Avenida…, com o valor patrimonial de €48.380,00, com a celebração da escritura de compra e venda junta aos autos e registada na Conservatória do Registo Predial no dia 18/06/2015.
5ª - O registo da penhora feito pela Fazenda Nacional minutos antes do registo da compra, não conferiu qualquer direito à exequente par esta não ser terceira para efeitos do registo predial.
6ª - Com efeito, a Fazenda Nacional não celebrou com o executado nenhuma escritura de compra e venda do imóvel em questão nem muito menos o executado nomeou tal bem à penhora, pelo que para efeito de Registo Predial a Fazenda Nacional não é considerada terceiro.
7ª - Terceiros são aqueles que tenham adquirido de um autor comum - neste caso do executado/ vendedor - direitos incompatíveis entre si - cfr. artigo 5°, n° 4 do Código de Registo Predial.
8ª - Pelo que, a transmissão do direito de propriedade operada pela compra e venda, por observância da forma legalmente prevista - artigo 879°, alínea a) do Código Civil e artigo 80° do Código do Notariado é oponível à Fazenda Pública, porque os titulares desse direito são terceiros para efeitos da execução fiscal.
9ª - A douta sentença violou o disposto no artigo 735º, n° 2 do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do artigo 2º do CPPT, ao mandar prosseguir os autos de execução fiscal, com a venda do prédio propriedade dos ora Reclamantes, permitindo que a Fazenda Pública venda um prédio propriedade de terceiros no âmbito de um processo executivo.
10ª - Na verdade, os aqui Reclamantes não figuram no título executivo como executados nem houve reversão da execução contra eles, portanto a penhora de bens de terceiros só poderá ocorrer desde que a execução seja movida contra eles - cfr. artigo 735°, nº 2 do Código de Processo Civil.
11ª - Pelo que, a douda sentença violou tal dispositivo legal, aqui aplicável por força do artigo 2º do CI’PT, ao mandar prosseguir os autos de execução fiscal, com a venda do prédio propriedade dos ora Reclamantes, sem a sua intervenção.
12ª - E, dispõe o artigo 342°, nº 1 do Código de Processo Civil: “Se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.”
13ª - Ora, incompatibilidade entre os direitos de propriedade dos Reclamantes e o direito emergente da penhora da Fazenda Pública é manifesta.
14ª - Portanto, a douta sentença também violou o disposto no artigo 342°, n° 1 do Código de Processo Civil.
Pelo exposto e com o sempre douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência ser revogada a douta sentença recorrida, ordenando-se o cancelamento da penhora e declarando-se nula a decisão da venda do imóvel em causa nos autos, assim se fazendo JUSTIÇA! “

A Fazenda Pública não apresentou contra-alegações.

O acórdão proferido por este TCAN, em 27.10.2016, que negou provimento ao recurso dado ter julgado verificada a nulidade de erro na forma de processo, com impossibilidade de convolação foi revogado por acórdão do STA, de 21.06.2017.

Após a descida dos autos a este Tribunal Central Administrativo Norte, foram os autos com vista à Exma Procuradora-Geral Adjunta, que renovou o parecer, emitido anteriormente, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Foram dispensados os vistos legais, atenta a natureza urgente do processo (cf. artigo 657º, nº 4 do CPC e artigo 278º, nº 5 do CPPT), vindo os autos a esta Secção do Contencioso Tributário do TCA Norte para julgamento do recurso.

Objecto do recurso - Questões a apreciar e decidir

A questão suscitada pelos Recorrentes, delimitadas pelas conclusões das alegações de recurso - artigos 635º, nº4 e 639º CPC, ex vi” artigo 2º, alínea e) e artigo 281º do CPPT - é a de saber se a sentença incorreu em erro ao julgar que a transmissão para os recorrentes do direito de propriedade sobre o imóvel não prevalece sobre a penhora registada pela Fazenda Pública.

II. Fundamentação

II.1 Dos Factos


II.1.1 No Tribunal a quo, o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

“Com relevância para a decisão da causa, consideram-se provados, os seguintes factos:

A) Em 31/05/2008, foi autuado no Serviço de Finanças (SF) de Aveiro-1 o processo de execução fiscal (PEF) com o n.º 0051200801038818, em que é executada originária O…, LDA, NIPC 5…, por dívidas de IVA/2005, no montante global de €176.531,16, cfr. pef junto aos autos fls . 26 e ss do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

B) Em 14/01/2013, foi proferido despacho de reversão da execução referida em A), contra os responsáveis subsidiários J… NIF 1…e A…, NIF 1…, cfr. pef junto aos autos, fls. 103/104 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

C) Em 18/06/2015, o Serviço de Finanças de Aveiro 1 procedeu à penhora de um bem do revertido J…, mais concretamente, do artigo urbano n.º 2…, fracção F, da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, sito na Avenida…, com o valor patrimonial de € 48.380,00., cfr. fls. 121/127 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

D) Da certidão permanente do registo predial, datada de 25/06/2015, consta que a penhora da Autoridade Tributária foi registada em sistema no dia 18/06/2015, às 13:10:24 UTC, cfr. fls. 129/130 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

E) No mesmo dia, 18/06/2015, entre os Reclamantes e o executado J… e mulher, foi celebrada escritura de compra e venda no cartório notarial “D…”, relativamente ao imóvel referido em C), cfr. fls. 7/10 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

F) Relativamente à escritura referida em E), foi emitida a Factura recibo n.º 2015001/1150, tendo o registo no sistema de facturação sido efectuado no mesmo dia, às 13:34:14 UTC, cfr. fls. 219/223 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

G) Da certidão permanente do registo predial, datada de 25/06/2015, consta que a compra a favor dos aqui Reclamantes apenas foi registada em sistema, no mesmo dia, às 13:54:09 UTC, cfr. fls. 129/130 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

H) A conta referente à factura da escritura referida em E) foi efectuada logo após a leitura da mesma, cfr depoimento da testemunha Dra. D…;

I) A entrega das chaves da fracção referida em C), foi apenas entregue aos Reclamantes após a celebração da escritura referida em E), à saída do Cartório Notarial, cfr. depoimento da testemunha J…;

J) Pelo Serviço de Finanças de Aveiro-1, mediante ofício n.º 275, foi declarado o seguinte:
- imagem omissa -
[cfr. fls. 223/241 dos autos (p.f.)];

K) Em 15/09/2015, por despacho do OEF, foi designada a venda do bem penhorado e referido em C), cujo teor aqui se dá por reproduzido e donde consta o seguinte:
- imagem omissa -
[cfr. fls. 139 do p.f., que aqui se dá por integralmente reproduzida];


L) Em 16/09/2015, através do ofício n.º 0003404, foi a Reclamante MARIA… notificada na qualidade de proprietária, da data e modalidade da venda, cfr. fls 142/143 do p.f.;

M) Em 16/09/2015, através do ofício n.º 0003405, foi o Executado J…, da data e modalidade da venda, cfr. fls 144/v do p.f.;

N) Em 28/10/2015, foi apresentada pelos Reclamantes a presente reclamação, cfr. fls. 4 dos autos.

*
III. 2 FACTOS NÃO PROVADOS
Da que era relevante para a discussão da causa não há matéria de facto que importe registar como não provada.
*
III. 3 MOTIVAÇÃO
O Tribunal julgou provada a matéria de facto relevante para a decisão da causa com base na análise crítica e conjugada dos documentos e informações junto ao PEF, e dos documentos juntos aos autos que não foram impugnados, e bem assim na parte dos factos alegados pelas partes que não tendo sido impugnados – art. 74º da LGT - também são corroborados pelos documentos juntos aos autos – art. 76º nº 1 da LGT e arts. 362º e ss do Código Civil (CC) – identificados em cada um dos factos provados. E, ainda no depoimento das testemunhas apresentadas pelos Reclamantes, conjugados com as regras da experiência comum.

Dos depoimentos prestados pelas testemunhas ressalta ao Tribunal, o seguinte:

O depoimento da testemunha D…, notária que celebrou a escritura pública de compra e venda relativa ao imóvel em crise, afigurou-se assaz decisivo, por se ter mostrado credível, isento, coerente e com conhecimento directo dos factos. A referida testemunha conseguiu descrever os vários actos relativos à celebração da mesma, desde a chegada dos compradores e vendedores ao Cartório Notarial e do problema relativo à emissão das liquidações de Imposto de selo e IMT, bem como da deslocação daqueles ao Serviço de Finanças respectivo a fim de aí serem liquidados tais impostos. Pôde asseverar, ainda, que pese embora não tivesse presente a hora de celebração da referida escritura, sabia que logo após a leitura daquela foi de imediato elaborada a respectiva conta, que é registada no sistema informático de facturação do Cartório Notarial.
Ora, tal depoimento, permitiu ao Tribunal, ao abrigo do princípio do inquisitório, proceder às diligências instrutórias necessárias, a fim de precisar com relativa segurança a hora em que foi celebrada a escritura de compra e venda do imóvel em crise.

Por outro lado, o depoimento do executado J…, também foi relevado pelo Tribunal, no sentido de se apurar que bem sabia que contra si, corria um processo de execução fiscal, porém desconhecendo qualquer penhora por parte da AT relativamente ao imóvel em causa, declarações que se mostram corroboradas pela documentação junta aos autos.
Bem assim, esclareceu o Tribunal que os Reclamantes apenas após a celebração da escritura, tomaram posse do imóvel e lhes foram entregues as respectivas chaves, já na saída do Cartório Notarial.

* *

II.1.2 Ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 2º, alínea e), e 281º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), acorda-se em alterar a alínea E) da matéria de facto dada como provada, por decorrer do documento que a suporta, e aditar as alíneas O), P) e Q), em face dos documentos existentes nos autos, nos termos que se seguem:

E) No mesmo dia, 18/06/2015, entre os Reclamantes e o executado J… e mulher, foi celebrada escritura de compra e venda no cartório notarial “D…”, relativamente ao imóvel referido em C), cfr. fls. 7/10 do p.f., onde, para além do mais se exarou o seguinte:
Disseram os primeiros outorgantes: que pelo preço, já recebido de sessenta mil euros, vendem à segunda outorgante, o seguinte imóvel:” Fracção autónoma designada pela letra “F” correspondente ao segundo andar direito destinado a habitação(…) do prédio urbano, sito em…, freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, inscrito na matriz sob o artigo 2..., com o valor patrimonial correspondente à fracção (…), descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa(…) cujo direito de propriedade se encontra ali registado a favor dos vendedores pela inscrição Ap.4, de 1997/11/17, e com duas hipotecas registadas a favor da Caixa Económica Montepio Geral, pela Ap, de 2007/11/12 e Ap., de 2007/12/19, cujo cancelamento se encontra assegurado.
Disse a segunda outorgante: Que aceita esta venda nos termos exarados.
Exibiram: o código PP-1115-36596-011204-001790, de acesso à certidão permanente com validade até 2015-12-09, através da qual verifiquei os elementos registrais(…)”- cfr. folhas 8 a 10 dos autos;

O) Em 09.07.2015, foi, pelo Serviço de Finanças de Aveiro 1, expedido por correio postal registado, com aviso de recepção, o ofício nº 0002561 dirigido a Maria…, no processo de execução fiscal de que estes autos são incidente, com o seguinte teor: “(…) Tendo este Serviço de Finanças tomado conhecimento da aquisição do artigo urbano nº 2…, fracção F, da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, e existindo uma penhora a favor da Fazenda Nacional, anterior ao registo da compra por si efectuada, informo que o prédio em causa responde pela dívida assegurada através da referida penhora.
Mais informo que a curto prazo, se irá proceder à marcação da venda do referido imóvel” – cfr. folhas 134 dos autos;

P) Em 14.07.2015, no aviso de recepção a que se aludiu na alínea anterior, no campo “ a completar no destino” foi redigido manualmente o seguinte: ”BI (…) Maria… 2015/7/14” – cfr. folhas 134 v. dos autos.

Q) O preço de sessenta mil euros, a que se refere a alínea E) deste probatório foi pago em 17.06.2015, através dos cheques do Novo Banco 5244821.6 e 5244822.4, à ordem da Caixa Económica Montepio Geral e da Caixa de Crédito Agrícola do Baixo Vouga, respectivamente – cfr. folhas 16 (cópia dos cheques) e escritura de compra e venda, a folhas 7 e ss, todas dos autos.

R) No dia 18.06.2015, a celebração da escritura pública referida nas alíneas antecedentes estava marcada para o final da manhã – cfr. depoimento da testemunha D…, notária que celebrou a escritura.

S) Devido a problemas na emissão das guias “on line“ no portal das finanças, para pagamento das liquidações de Imposto de Selo e Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), no Cartório Notarial, aquando da celebração da escritura pública já identificada, os intervenientes no negócio deslocaram-se ao Serviço de Finanças respectivo a fim de aí serem liquidados tais impostos. – depoimento da testemunha D….

II.1.3 Do erro de julgamento de facto

Os recorrentes iniciam as suas conclusões de recurso invectivando contra o julgamento de facto efectuado em 1ª Instância, assacando-lhe erro, pugnando pela alteração de três dos factos dados como provados e o aditamento de um outro facto. [conclusão 1].
A alteração pelo TCA da decisão da matéria de facto pressupõe que, para além da indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, sejam indicados os concretos meios de prova constantes do processo ou de gravação realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida - artº 640º e 662º CPC.
Só se esses meios de prova determinarem e forçarem decisão diversa da proferida se pode concluir ter a 1ª instância incorrido em erro de apreciação das provas legitimador da respectiva correcção pelo Tribunal Superior.
Assim, e tal como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas - cfr. art. 607º. O juiz a quo, na decisão sobre a matéria de facto, aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que, na formação dessa convicção, não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que, em caso algum, podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio.
Daí que a convicção do tribunal se forme de um modo dialéctico.
É, pois, pela fundamentação invocada para a decisão que normalmente se afere a correcção do juízo crítico sobre as provas produzidas.
Assentando a decisão da matéria de facto, no presente caso, na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância, na respectiva apreciação.
Como se aponta no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 05/05/11 (processo 334/07.3 TBASL.E1), “O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este.
Não basta, pois, que as provas permitam dentro da liberdade de apreciação das mesmas, uma conclusão diferente, a decisão diversa a que aludem os artºs690-A nº 1 al. b) e 712º nº 1 al. a) e b), terá que ser única ou, no mínimo, com elevada probabilidade e não apenas uma das possíveis dentro da liberdade de julgamento. (destacado nosso)
Sublinhe-se que no que tange à apreciação pelo tribunal de recurso da prova gravada, como é o caso do presente recurso, deve ter-se em conta, por um lado, que “O tribunal colectivo aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art. 655º, nº1 do CPC), pelo que, sob pena de pôr em causa os princípios da oralidade e da livre convicção que informam a nossa lei processual civil, o tribunal de recurso deve reservar a modificação da decisão de facto para os casos em que a mesma seja arbitrária por não se mostrar racionalmente fundada ou em que for evidente, segundo as regras da ciência, da lógica e/ou da experiência que não é razoável a solução da 1ª instância” (acórdão STA de 27.1.10, proferido no recurso 358/09). Mas por outro, que “No caso de gravação da audiência de julgamento o tribunal superior deve agir com cautela já que se encontra privado da oralidade e da imediação que foram determinantes da decisão em 1.ª instância,…” – vide, acórdão do STA, de 9/2/2012 (processo nº 967/11).
E, tal como refere Abrantes Geraldes em Recursos em Processo Civil. Novo Regime, pag 268 e ss. a gravação dos depoimentos por registo áudio (…) não consegue traduzir tudo quando pôde ser observado no tribunal a quo. (…)
Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância. Na verdade existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores.(…)
Por certo que as circunstâncias anteriormente apontadas ou outras que podiam ser enunciadas terão de ser ponderadas na ocasião em que o tribunal da relação proceda à apreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações na decisão da matéria de facto quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível, concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro na apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.(…)
Nestas circunstâncias, se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à modificação da decisão, (…).”

Sobre o entendimento do duplo grau de jurisdição, também já o Tribunal Constitucional se pronunciou(...):A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2.ª instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1.° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..).
É pois de concluir do expendido que a modificação quanto à valoração da prova, tal como foi captada e apreendida pela 1ª instância, só se justificará se, feita a reapreciação, fosse evidente a grosseira análise e valoração que foi efectuada na instância recorrida.
Tendo presente esta singela introdução, apreciemos o caso concreto.

Analisadas as alegações de recurso, constata-se, desde logo, que os recorrentes cumpriram as regras impostas pelo artigo 640º do CPC, condição indispensável para que este Tribunal possa apreciar o erro de julgamento da matéria de facto.

Iniciaremos a nossa apreciação sobre a alteração da matéria de facto, pelo facto, elencado em segundo lugar, que os recorrentes pretendem ver alterado, porquanto o facto referido em primeiro lugar (alínea C) do probatório), de acordo com os recorrentes resulta da prova dos segundo e terceiro factos (alíneas E) e H), cuja alteração também é pedida pelos recorrentes.

II.1.3.1 Pretendem os recorrentes a alteração do facto constante da alínea E) do probatório.

Releia-se o que ali se fixou, “No mesmo dia, 18/06/2015, entre os Reclamantes e o executado J… e mulher, foi celebrada escritura de compra e venda no cartório notarial “D…”, relativamente ao imóvel referido em C), cfr. fls. 7/10 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;”

Os recorrentes consideram que a redacção do facto fixado na alínea E) deveria ser a seguinte: No mesmo dia, 18/06/2015, entre as 12h45m e as 13h15m, no Cartório Notarial D… foi celebrada escritura de compra e venda, tendo como vendedores o executado por reversão J… e mulher R… e como compradores os aqui Reclamantes.”- que decorre da presunção judicial que adiante se enunciará.”

A alteração visada encontra-se no aditamento do intervalo temporal em que a escritura se teria realizado.

Para almejar o seu objectivo, os recorrentes invocaram o depoimento da testemunha que presidiu à escritura de compra e venda, tendo precisado os minutos do seu depoimento, transcrevendo-os, que fundamentariam tal alteração.

Na sentença recorrida, e quanto à matéria relativa a este ponto de facto em concreto, afirmou-se, na “motivação da decisão de facto”, que:” O depoimento da testemunha D…, notária que celebrou a escritura pública de compra e venda relativa ao imóvel em crise, afigurou-se assaz decisivo, por se ter mostrado credível, isento, coerente e com conhecimento directo dos factos. A referida testemunha conseguiu descrever os vários actos relativos à celebração da mesma, desde a chegada dos compradores e vendedores ao Cartório Notarial e do problema relativo à emissão das liquidações de Imposto de selo e IMT, bem como da deslocação daqueles ao Serviço de Finanças respectivo a fim de aí serem liquidados tais impostos. Pôde asseverar, ainda, que pese embora não tivesse presente a hora de celebração da referida escritura, sabia que logo após a leitura daquela foi de imediato elaborada a respectiva conta, que é registada no sistema informático de facturação do Cartório Notarial.

Ora, tal depoimento, permitiu ao Tribunal, ao abrigo do princípio do inquisitório, proceder às diligências instrutórias necessárias, a fim de precisar com relativa segurança a hora em que foi celebrada a escritura de compra e venda do imóvel em crise.”

Não têm razão os recorrentes. Desde logo, dado o que ficou dito quanto à força probatória dos depoimentos testemunhais ser apreciada livremente pelo tribunal – artigo 396º do Código Civil. Por outro lado, relembre-se o que supra se salientou: “se a decisão do julgador estiver devidamente fundamentada e for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção Vide Acordão do TCA Sul de 27.11.2014, in processo 06191/12.. “

Por outro lado, atento os precisos momentos do depoimento invocados pelos recorrentes, e após a audição do depoimento, não é possível inferir que a escritura tenha decorrido exactamente naquele intervalo temporal. A senhora Notária, não o diz, referindo apenas que a escritura estava marcada para o final da manhã, e que terá sido lida durante a hora de almoço ”não sei precisar horas e minutos” ”sic”.

Ora, entendendo este tribunal que a decisão da M. juiz a quo se encontra fundamentada, sendo uma das soluções plausíveis segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, só pode claudicar o pretendido pelos recorrentes.

É, assim, de concluir pelo não aditamento do facto fixado na alínea E).

II.1.3.2 O segundo facto que os recorrentes pretendem ver alterado é o constante da alínea H) da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida.

Consta daquela alínea H) que “A conta referente à factura da escritura referida em E) foi efectuada logo após a leitura da mesma”.

Os recorrentes consideram que a redacção daquela alínea H) devia ser a seguinte: ” A conta referente à fatura da escritura referida em E) foi efetuada após a leitura, a assinatura e a tiragem de cópias da mesma”

Dando por reproduzido o acima apreciado quanto à fundamentação da sentença feita pela M Juiz a quo, importa referir que analisado o depoimento da testemunha, este confirma e comprova a factualidade dada como provada pelo tribunal recorrido.

Também aqui se indefere a alteração do facto assente na alínea H) do probatório.

II.1.3.3 Os recorrentes almejam, ainda, ver alterado o facto dado como provado na alínea C) do probatório.

Relembremos o que nos diz a alínea C) da matéria de facto fixada na sentença recorrida:

Em 18/06/2015, o Serviço de Finanças de Aveiro 1 procedeu à penhora de um bem do revertido J…, mais concretamente, do artigo urbano n.º 2…, fracção F, da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, sito na Avenida…, com o valor patrimonial de € 48.380,00., cfr. fls. 121/127 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;”

Pretendem os recorrentes que a redacção daquela alínea C) seja a seguinte:

Em 18/06/2015, o Serviço de Finanças de Aveiro 1 procedeu à penhora do artigo urbano n° 2…, fração F, da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, sito na Avenida…, com o valor patrimonial de €48.380,00.”

Consideram os recorrentes que este facto resulta da alteração efectuada aos factos acima apreciados – alínea E) e H) da matéria de facto.

Não tendo tais factos sido alterados, por maioria de razão se indefere o pretendido.

II.1.3.4 Por último, os recorrentes pedem que seja aditada à matéria de facto, dada como provada na sentença recorrida, o seguinte facto:

antes do início da leitura da escritura pública, a notária consultou a certidão predial permanente e não havia nenhum pedido de registo pendente.”

Saliente-se que a testemunha, «...é chamada a referir as suas percepções de factos passados (o que viu, o que ouviu, o que sentiu, o que observou)» cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, «Manual de Processo Civil», Coimbra Editora, 2ª edição, pág. 609., ou seja, a testemunha depõe sobre factos.

Analisado o depoimento da testemunha, resulta que do mesmo é impossível retirar o pretendido pelos recorrentes. Não é feito, no depoimento, qualquer referência à consulta da certidão predial permanente. O depoimento da testemunha sobre os ónus que recaiam sobre o prédio vendido resultou das afirmações feitas pela mandatária dos recorrentes quanto à existência de duas hipotecas. Do depoimento da testemunha invocado, nada se diz sobre o pretendido pelos recorrentes.
Não procedendo o invocado pelos recorrentes, é de concluir, também, pelo não aditamento do facto agora pretendido.

Esclareça-se todavia, que resulta dos autos que a notária consultou a certidão predial permanente do prédio, como resulta da alteração da alínea E), por este Tribunal de recurso, ao se ter exarado na escritura de compra e venda que “Exibiram: o código PP-1115-36596-011204-001790, de acesso à certidão permanente com validade até 2015-12-09, através da qual verifiquei os elementos registrais(…)”(sublinhado nosso).

II.2. Do Direito


II.2.1 Do erro de julgamento de Direito

Estabilizada a matéria de facto avancemos para apreciação do erro de direito imputado à sentença.

A questão a decidir é saber se a sentença errou ao decidir que a transmissão, para os recorrentes, do direito de propriedade sobre o imóvel não prevalece sobre a penhora registada pela Fazenda Pública.

A sentença recorrida apreciou, como se transcreve:

….O direito de propriedade ou outro direito real sujeito a registo prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes (artigo 6º do Código de Registo Predial) (…)

(…) atenta a matéria de facto apurada em sede de probatório, somos de concluir que na hora em que foi efectuada a penhora pela Autoridade Tributária, ainda não tinha sido ultimada a transmissão da propriedade de coisa ou de titularidade do direito, pois estaria a decorrer a escritura pública de compra e venda pertencendo, assim, ainda, ao executado J…, o bem em causa [cfr. alíneas D), E), F), G) e H) dos factos provados].

Na verdade, resultou apurado que logo a seguir à ultimação da escritura procedeu-se, in casu, de imediato ao registo da conta, sendo que, pela hora do registo da mesma (esta foi lançada e cobrada às 13:24:40), somos de concluir que à hora da efectivação do registo da penhora - 13:10: 24, no mesmo dia 18/06/2015, ainda não tinha sido transmitida para os Reclamantes a propriedade da fracção em causa, a qual, constituía, pois, por isso e ainda, repita-se, um bem na titularidade do executado.

Outrossim, a própria a entrega das chaves do imóvel aos Reclamantes apenas ocorreu após a celebração da referida escritura pública, à saída do Cartório Notarial (cfr. alínea I) do probatório).

Assim, verifica-se o registo da penhora incidente sobre o imóvel no processo de execução (a favor e para garantia do pagamento do crédito da Fazenda Pública) e a venda e o registo posterior da aquisição por compra deste mesmo prédio (operada fora da execução) aos Reclamantes.

Ora, o registo da penhora sobre o imóvel penhorado tem como essencial e único efeito jurídico que o credor/exequente, com este acto beneficiado, fique protegido em relação aos restantes credores, de modo que o produto da sua venda possa satisfazer o seu crédito com preferência em relação aos restantes e a contar do registo dessa mesma penhora.

Este privilégio creditório assim concedido ao exequente (Fazenda Pública) que fez penhorar e registar a penhora sobre o imóvel projectado para posteriormente ser vendido na execução, não tem outro significado e alcance do que o de atribuir ao exequente se entretanto não for paga a quantia exequente e custas a prerrogativa de poder exigir que o produto da sua efectiva alienação se destine ao pagamento do seu crédito reconhecido na execução.

Desta feita, se é assim, estando sempre assegurado este seu direito de garantia, mesmo após a sua venda fora da execução (…são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados art. º 819.º do C. Civil), de mais nenhuma outra regalia se conta poder usufruir o exequente em relação ao prédio penhorado, sendo irrelevante quanto a ele tudo o que na execução exorbitar deste quadro jurídico-factual.

O registo da penhora não concorre, absoluta e directamente, com o registo da aquisição do imóvel penhorado ou, dito de outro modo, em relação à execução as aquisições que envolvam o prédio penhorado são “res inter alios” (coisa entre terceiros).

Queremos com isto dizer que o conteúdo do disposto no art.º 819.º do C. Civil sem prejuízo das regras do registo, são inoponíveis à execução os actos de disposição, oneração ou arrendamento dos bens penhorados sistematicamente inserido na secção da realização coactiva da prestação, há-de ser interpretado no sentido de que a penhora de um bem não importa a indisponibilidade jurídica dele por parte do executado; o que acontece é que, se o executado o fizer, essa alienação não produz efeitos em relação ao exequente, que continua a gozar da garantia resultante da penhora anteriormente materializada a penhora não retira ao executado a propriedade dos bens, a qual só cessará pelos futuros actos executivos, como decorre do próprio princípio da livre disposição jurídica do direito, apenas sob a ineficácia da disposição para com a execução; se quanto à disposição material dos bens o princípio é o de indisponibilidade absoluta, quanto à disposição jurídica rege o princípio oposto da livre disponibilidade do direito, apenas com a limitação da ineficácia dos respectivos actos para com a execução… (Acórdão do STJ de 2.11.2004; C.J/STJ, 2004, 3.º, pág. 100).(…) Em face do exposto, julga-se improcedente a presente Reclamação, mantendo-se em consequência o despacho em “crise”.”

Invocam os Recorrentes, no presente recurso, que adquiriram do executado e mulher o direito de propriedade, de forma plena, sobre o prédio penhorado no processo executivo. E que apesar do Serviço de Finanças ter procedido à penhora do dito prédio, tal ónus deverá ser cancelado, pois antes da leitura da escritura a senhora notária consultou a certidão predial permanente e certificou-se que não havia qualquer registo pendente. O registo da penhora, momentos antes do registo da compra não confere qualquer direito à exequente, Fazenda Pública, por esta não ser terceira para efeitos de registo predial. A transmissão do direito de propriedade operada pela compra e venda, por observância da forma legalmente prevista –artº 879º, alínea a) do Código Civil e artº 80º do Código do Notariado é oponível à Fazenda Pública, porque os titulares do direito são terceiros para efeitos de execução fiscal. E ainda que a sentença violou o artigo 735º, nº 2 do CPC ao mandar prosseguir a execução com a venda do prédio, propriedade dos ora Reclamantes, permitindo que a Fazenda Pública venda um prédio propriedade de terceiros no âmbito de um processo executivo. Dada a incompatibilidade entre os direitos de propriedade dos Recorrentes e o direito emergente da penhora da Fazenda Pública ser manifesta, a sentença violou o disposto no artigo 342º, nº 1 do CPC. [conclusões 2ª a 14ª]
Apreciemos.

Recorde-se que os presentes autos são uma reclamação do acto do órgão de execução fiscal, nomeadamente do despacho de designação de data da venda da fracção penhorada.
Importa para a apreciar a questão que se nos coloca, a de saber se a sentença incorreu em erro ao julgar que a transmissão para os recorrentes do direito de propriedade sobre o imóvel não prevalece sobre a penhora registada pela Fazenda Pública, relembrar as alíneas D) a I) (com a alteração oficiosa, agora efectuada, da alínea E), e as alíneas Q), R) e S) por nós aditadas, onde se consignou que:

C) Em 18/06/2015, o Serviço de Finanças de Aveiro 1 procedeu à penhora de um bem do revertido J…, mais concretamente, do artigo urbano n.º 2…, fracção F, da freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, sito na Avenida…, com o valor patrimonial de € 48.380,00., cfr. fls. 121/127 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

D) Da certidão permanente do registo predial, datada de 25/06/2015, consta que a penhora da Autoridade Tributária foi registada em sistema no dia 18/06/2015, às 13:10:24 UTC, cfr. fls. 129/130 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

E) No mesmo dia, 18/06/2015, entre os Reclamantes e o executado J… e mulher, foi celebrada escritura de compra e venda no cartório notarial “D…”, relativamente ao imóvel referido em C), cfr. fls. 7/10 do p.f., onde, para além do mais se exarou o seguinte:

Disseram os primeiros outorgantes: que pelo preço (…) vem à segunda outorgante, o seguinte imóvel:” Fracção autónoma designada pela letra “F” correspondente ao segundo andar direito destinado a habitação(…) do prédio urbano, sito em…, freguesia da Torreira, concelho da Murtosa, inscrito na matriz sob o artigo 2..., com o valor patrimonial correspondente à fracção (…), descrito na Conservatória do Registo Predial da Murtosa(…) cujo direito de propriedade se encontra ali registado a favor dos vendedores pela inscrição Ap.4, de 1997/11/17, e com duas hipotecas registadas a favor da Caixa Económica Montepio Geral, pela Ap, de 2007/11/12 e Ap., de 2007/12/19, cujo cancelamento se encontra assegurado.

Disse a segunda outorgante: Que aceita esta venda nos termos exarados.

Exibiram: o código PP-1115-36596-011204-001790, de acesso à certidão permanente com validade até 2015-12-09, através da qual verifiquei os elementos registrais(…)”- cfr. folhas 8 a 10 dos autos;

F) Relativamente à escritura referida em E), foi emitida a Factura recibo n.º 2015001/1150, tendo o registo no sistema de facturação sido efectuado no mesmo dia, às 13:34:14 UTC, cfr. fls. 219/223 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

G) Da certidão permanente do registo predial, datada de 25/06/2015, consta que a compra a favor dos aqui Reclamantes apenas foi registada em sistema, no mesmo dia, às 13:54:09 UTC, cfr. fls. 129/130 do p.f., que aqui se dão por integralmente reproduzidas;

H) A conta referente à factura da escritura referida em E) foi efectuada logo após a leitura da mesma, cfr depoimento da testemunha Dra. D…;”

I) A entrega das chaves da fracção referida em C), foi apenas entregue aos Reclamantes após a celebração da escritura referida em E), à saída do Cartório Notarial, cfr. depoimento da testemunha J…;

Q) O preço de sessenta mil euros, da venda a que se refere a alínea E) deste probatório, foi pago em 17.06.2015, através dos cheques do Novo Banco 5244821.6 (€32.532,97) e 5244822.4 (€27.467,03), à ordem da Caixa Económica Montepio Geral e da Caixa de Crédito Agrícola do Baixo Vouga, respectivamente – cfr. folhas 16 (cópia dos cheques) e escritura de compra e venda, a folhas 7 e ss, todas dos autos.

R) No dia 18.06.2015, a celebração da escritura pública referida nas alíneas antecedentes estava marcada para o final da manhã – cfr. depoimento da testemunha D…, notária que celebrou a escritura.

S) Devido a problemas na emissão das guias “on line“ no portal das finanças, para pagamento das liquidações de Imposto de Selo e Imposto Municipal sobre Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT), no Cartório Notarial, aquando da celebração da escritura pública já identificada, os intervenientes no negócio deslocaram-se ao Serviço de Finanças respectivo a fim de aí serem liquidados tais impostos. – depoimento da testemunha D….

Da leitura do probatório, antecipe-se, desde já que a sentença não se poderá manter.

Expliquemos.

A sentença sob recurso concluiu que na hora em que foi efectuada a penhora pela Autoridade Tributária ainda não tinha sido ultimada a transmissão da propriedade de coisa ou de titularidade do direito, pois estaria a decorrer a escritura pública de compra e venda, pertencendo, assim, ainda o bem ao executado, e não aos aqui Recorrentes. Para tal, considerou provado que à hora da efectivação do registo da penhora da fracção supra identificada [13:10:24, do dia 18.06.2015], ainda não tinha sido transmitida para os agora recorrentes a propriedade daquela mesma fracção, porquanto o registo da conta da escritura de compra e venda, apenas ocorreu às 13:34:40. E que a entrega das chaves apenas ocorreu após a celebração da referida escritura, à saída do Cartório Notarial.

Ou seja, resulta da sentença que a penhora da fracção foi registada 24 m antes da outorga da escritura da compra e venda da mesma, em face do momento do registo da conta daquela, e como tal era oponível aos agora reclamantes.

Mas, como bem referiu a Ilustre Procuradora-geral Adjunta junto deste TCAN no parecer emitido, a decisão não pode valer-se apenas de factores aleatórios como seja o registo electrónico da hora da prática de actos. Com efeito, a hora do registo da conta por um serviço não é demonstrador do momento da realização do negócio.

Sempre será de sublinhar que o registo da conta é um acto posterior e externo à realização do serviço (ao acto) em si. E se a conta da escritura pública de compra e venda foi registada às 13.34h, de 18.06.2015, é incontornável que a exteriorização do contrato de compra e venda através da escritura com a elaboração, leitura, explicação do seu conteúdo, assinatura, pagamento e extracção de cópias do acto de escritura teve de ser realizada em momento temporal anterior ao registo da respectiva conta.

É a própria sentença que na motivação da matéria de facto o deixa antever, ao se exarar que ….a referida testemunha (leia-se a notária que celebrou a escritura pública de compra e venda) conseguiu descrever os vários actos relativos à celebração da mesma, (…).Pôde asseverar, ainda, que pese embora não tivesse presente a hora de celebração da referida escritura, sabia que logo após a leitura daquela foi de imediato elaborada a respectiva conta (…)…”.

Acresce ainda que, decorre do ínsito na escritura de compra e venda, que aquando da celebração da escritura, esta foi conferida, entre outros, pelos elementos registrais, constantes da certidão permanente do registo predial feita na hora, pela notária através da sua consulta “online “– cfr. alinea E) da matéria de facto “Exibiram: o código PP-1115-36596-011204-001790, de acesso à certidão permanente com validade até 2015-12-09, através da qual verifiquei os elementos registrais (...)”. Ora, se foram verificados os elementos registrais e se confirmou que no momento da escritura apenas se encontravam registadas como ónus duas hipotecas sobre a fracção em causa, é de concluir que o registo da penhora ainda não tinha sido efectuado, aquando da outorga da escritura. É importante não olvidar que a força probatória da escritura pública, enquanto documento autêntico – arts. 363º, n.º2, e 369º, n.º1, do Código Civil (CC) – abrange os factos que são referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo e os que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora.

A força probatória dos documentos autênticos é determinada pelo ínsito no artigo 371º, nº 1 do CC que nos diz: ”Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (…)”. Por sua vez, estipula o nº 1 do artigo 372º, também do Código Civil, que “A força probatória dos documentos autênticos só pode ser ilidida com base na sua falsidade”.

Assim, não constando da escritura a existência do registo da penhora, efectuada pela Autoridade Tributária (AT), sobre a fracção vendida, e não tendo sido suscitada a falsidade da escritura, também haverá que concluir que a escritura foi celebrada antes do registo da penhora.

A sentença evidencia ainda o facto da entrega das chaves aos compradores ter acontecido apenas após a realização da escritura. Todavia, encontra-se provado nos autos que o preço da fracção já se encontrava pago antes da realização da escritura pública de compra e venda – cfr. alíneas E) e Q), o que se nos afigura bastante para considerar que a entrega das chaves foi apenas uma consequência da transmissão da propriedade e não um facto determinante naquela transmissão, (quando muito poderia ser um elemento a ter em conta se estivéssemos em face de uma discussão sobre a posse da fracção, o que não é o caso), pelo que a sentença não poderia ter relevado tal facto como determinante para a determinação da transmissão da propriedade, sem ponderar sequer que o pagamento do valor da compra havia ocorrido no dia anterior à data da escritura pública.

Concatenando todo o exposto supra é de concluir que a penhora efectuada sobre a fracção em causa nos autos, é inoponível aos agora Recorrentes.

Em face do exposto é de conceder provimento ao recurso, julgar a reclamação procedente e anular o despacho recorrido, com as legais consequências.

III. Decisão


Termos em que, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e anular o despacho recorrido, com as legais consequências.
Sem Custas.
Porto, 11 de Outubro de 2017

Ass. Cristina Travassos Bento

Ass. Paula Moura Teixeira

Ass. Mário Rebelo