Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00720/19.6BEPRT
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/26/2019
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Luís Migueis Garcia
Descritores:HABITAÇÃO SOCIAL. ABUSO DE DIREITO
Sumário:
I) – Nas circunstâncias, não resulta abuso de direito na ordem de desocupação de casa para a qual se não tem título. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:JMGO
Recorrido 1:Município P...
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Negar provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes deste Tribunal Central Administrativo Norte:

JMGO (R. G…, Campinas), interpõe recurso jurisdicional de decisão do TAF do Porto, em processo cautelar intentado contra o Município P... (Praça G…), que indeferiu providência de suspensão da eficácia do ato administrativo consubstanciado no despacho proferido pelo Vereador da Câmara Municipal P... com os Pelouros da Habitação, Coesão Social e Educação de 22.12.2018, exarado na Informação/Proposta de decisão n.º DI-GPH-27958-2018, que determinou a notificação do Requerente para proceder à desocupação e entrega voluntária da habitação.
Conclui o recorrente:
1. Contrariamente ao D. decidido, encontra-se consubstanciado, e por conseguinte, verificado, o requisito do fumus boni iuris, por o Requerente da providencia ter invocado razões de facto e de direito que conduzem à invalidade do ato cuja suspensão de eficácia se pretende obter.
2. A D. Sentença, por erro, não tomou em consideração um conjunto de factos alegados, e o teor de documentos, não impugnados, que, se o tivessem sido, teriam conduzido à suspensão da eficácia do ato proferido pelo Senhor Vereador da Camara Municipal P….
3. O Tribunal, igualmente por erro, não tomou em consideração tudo quanto o Requerente havia alegado na providência, constantes do P.A., omitindo-os da matéria dada como assente;
4. O relatório social relativo ao Recorrente, reforçando a necessidade de permanecer a residir no fogo municipal, atendendo à sua situação social e económica, quando igualmente consta que o mesmo vivia com a sua mãe no mesmo agregado, vindo da própria Junta de Freguesia, foi omitido.
5. Não sendo suspensa a desocupação, a mesma originará a produção de prejuízos de muito difícil reparação e uma situação de facto consumado que atira o Requerente para “o meio da rua".
6. Impugnasse, por omissão, a matéria de facto dada como assente, porquanto deveria o Tribunal também ter considerado todos os factos e o teor dos documentos juntos conforme se alegou, estando a sentença enferma de vício;
7. O Tribunal não resolveu todas as questões que as partes lhe submeteram à sua apreciação, designadamente, a questão do Abuso de Direito, na modalidade do venire contra factum próprio:
8. A falta de tal decisão fez com que o Tribunal a quo não tivesse tomado em consideração a alteração do agregado familiar, para efeitos do disposto na al. c) do n. 2 do art.° 16 do Regulamento, e que o Recorrente passasse a fazer parte do agregado familiar de sua mãe, como fazia.
9. O Recorrente não foi elemento autorizado na habitação nem mencionado em qualquer atualização de dados, ou dado como não possuindo os requisitos necessários para a instrução de candidatura a habitação social, porque a própria autoridade municipal resolveu, arbitraria e injustificadamente, não o considerar como tal.
10. O obstáculo da Requerida é que fez que à morte da mãe (a 25 de Dezembro de 2017), do Recorrente este tivesse os direitos dificultados;
11. Ao agir da maneira que o fez a Requerida agiu em manifesto abuso de direito, na dita modalidade de venire contra factum proprium, o que não tido pelo Tribunal, que devia ter apreciado da pretensão do Recorrente como válida.
12. A sentença recorrida incorre em erro de julgamento ao considerar não verificado o requisito do fumus boni iuris, não tendo o Senhor Juiz Cautelar, ao aferir da verificação dos pressupostos para decretação da providência, no. que tange ao critério do fumus boní iuris, tal como previsto no n° 1 do artigo 120º do CPTA, formulado um correto juízo de probabilidade na pretensão formulada no processo principal, desta vir a ser julgada procedente.
13. Decorre do probatório que ao Recorrente foi determinada a desocupação da identificada habitação, com fundamento na circunstância de estar a viver sem autorização da Câmara Municipal P..., sem se atender que este tinha direito à transmissão do direito ao arrendamento, direito consagrado na lei, e de que não se trata de uma ocupação sem titulo, mas com titulo que a Requerida não pretende ver reconhecida.
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O recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O Exmº Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal, notificado nos termos do art.º 146º, nº 1, do CPTA, não emitindo parecer.
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Com legal dispensa de vistos, cumpre decidir.
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Os factos, enunciados como indiciariamente provados na decisão recorrida:
1. Em 30.11.2018, os serviços da Entidade Requerida elaboraram proposta com o seguinte teor:
PROPOSTA
A habitação na Rua G…, Bloco x, Entrada x2, Casa x0, Campinas, propriedade do Município P... e sob gestão da DomusSocial, EM, foi atribuída à arrendatária AG (entretanto falecida), única pessoa inscrita e autorizada a residir na habitação.
No âmbito do processo administrativo, segundo o que se apurou na fase de instrução e averiguação pelos serviços da Direção da Gestão do Parque Habitacional (PRC_DINS-2018-0014), verifica-se que a habitação se encontra ocupada abusivamente por JMGO.
De acordo com os documentos constantes do processo habitacional, confirmamos que a arrendatária, única pessoa inscrita e autorizada a residir na habitação, faleceu a 28 de dezembro de 2017, conforme assento de óbito n.° 896/2017, da ia Conservatória do Registo Civil do Porto.
Assim, com o falecimento da arrendatária, caduca o respetivo arrendamento apoiado, por inexistência de sujeito, extinguindo-se, concomitantemente, o correspondente direito de ocupação do fogo.
Do processo habitacional, verifica-se que a 25/07/2017, foi efetuado pedido de integração do filho, JMGO, que foi indeferido. No entanto, encontrava-se desde julho de 2016 a residir nesta habitação de forma a prestar cuidados à mãe, sem estar legitimado para o efeito.
JMGO nunca foi elemento autorizado na habitação nem mencionado em qualquer atualização de dados. De acordo com documentos apensos ao processo habitacional verifica-se que o interessado não possui os requisitos necessários para a instrução de candidatura a habitação social.
Em exposição escrita remetida a 29/01/2018, JMGO solicitou a sua integração e consequente mudança de titularidade do fogo.
A 14/02/2018, a Junta de Freguesia de Ramalde remeteu relatório social relativo a JMGO, reforçando a necessidade de permanecer a residir no fogo municipal, atendendo à sua situação social e económica.
Em 25/05/2018, a regularização da situação habitacional, de JMGO, foi submetida a Conselho de Administração, tendo sido indeferida. Nesta medida, o interessado foi notificado para proceder à entrega voluntária das chaves da habitação municipal, no prazo de 90 dias. JO procedeu por escrito à contestação de tal decisão, afirmando que reside no fogo municipal há vários anos e que sempre prestou os cuidados necessários à inquilina, sua mãe. O interessado alegou, ainda, não dispor de alternativa habitacional ou rendimentos suficientes para recorrer ao mercado privado de arrendamento.
A Junta de Freguesia de Ramalde, em 17/08/2018, reforçou a necessidade da reanálise da situação, e em agosto de 2018, o Senhor Provedor remeteu ao serviços da DomusSocial parecer no qual solicita, igualmente, a reavaliação da situação habitacional de JMGO, alegando que residiu os últimos 4 anos com a mãe, a quem prestou todos os cuidados; o interessado é doente e com incapacidade e não possui alternativa habitacional ou retaguarda familiar.
Monitorizada a situação habitacional, findo o prazo concedido, verificou-se que o Interessado não procedeu à entrega voluntária do fogo.
Ponderados todos os elementos apresentados, verifica-se o ocupante não tem autorização para residir na habitação, nem possui qualquer documento que legitime esta ocupação, pelo que, esta é considerada sem título e abusiva.
Assim sendo, nos termos do n.° 2 do artigo 35.° da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro, o ocupante está obrigado a desocupar a habitação e entrega-la livre de pessoas e bens à DomusSocial, EM, sendo que caso esta determinação não seja voluntariamente cumprida, há lugar à execução do despejo nos termos do disposto no artigo 28.° daquele diploma legal.
Nestes termos, atenta a situação supra descrita, propõe-se:
i) Que o ocupante sem título seja notificado para proceder à desocupação e entrega voluntária da habitação na Rua G…, Bloco x, Entrada x2, Casa x0, Campinas;
ii) Que se fixe em 30 dias o prazo para entrega voluntária da casa;
iii) Que se aprove a minuta, anexa à presente, e que, incorpora a fundamentação supra aduzida;
iv) Que, caso se acolha tal recomendação e, uma vez notificado os interessados, estes não procedam à desocupação e entrega voluntária em 30 dias a contar da receção da notificação de decisão, se ordene a execução do despejo administrativo, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 28.° da Lei n.° 81/2014, de 19 de dezembro;
À Consideração Superior,
- cf. fls. 153 e 154 do processo administrativo;
2. Em 22.12.2018, sobre a proposta referida no ponto anterior, o Vereador do pelouro da Habitação, Coesão Social e Educação, proferiu o seguinte despacho: “Concordo. Proceda-se conforme proposto.” – cf. fls. 155 do processo administrativo;
3. Em 23.01.2019, os serviços da Entidade Requerida expediram, via postal, ofício de notificação relativo ao despacho referido no ponto anterior, dirigido ao Requerente, tendo sido rececionado por este no dia 25.01.2019 cf. fls. 160 a 163 do processo administrativo;
4. O presente requerimento cautelar foi remetido a este Tribunal por email de 22.03.2019 cf. print, a fls. 3 do processo físico;
5. Pelo Alvará n.º 34 896, em 9.07.2010, foi concedida pela Entidade Requerida a AG licença para habitar o Bairro das Campinas, Bloco x, Entrada x2, Casa x0 – cf. alvará, a fls. 40 do processo administrativo;
6. Em 17.02.2014, AG declarou aos serviços da Entidade Requerida que o agregado familiar era constituído apenas pela própria – cf. declaração, a fls. 57 do processo administrativo;
7. Em 9.11.2016, AG declarou aos serviços da Entidade Requerida que o agregado familiar era constituído apenas pela própria – cf. declaração, a fls. 65, do processo administrativo;
8. Por requerimento datado de 25.07.2017, AG solicitou junto dos serviços da Entidade Requerida a integração do seu filho, aqui Requerente, no agregado familiar, tendo, para tal, alegado que este se encontrava divorciado e sem alternativa habitacional, assim como, que a própria se encontrava com problemas de saúde, necessitada de apoio. Mais alegou que o Requerente vive consigo desde julho de 2016 e que anteriormente residiu em Chaves, de onde saiu porque se divorciou – cf. requerimento, a fls. 67 e 68 do processo administrativo;
9. Na sequência do requerimento referido no ponto anterior, os serviços da Entidade Requerida elaboraram, em 25.08.2017, informação com o seguinte teor:
Na sequência do pedido efetuado, em 25 de julho de 2017, para integração do filho JMGO no processo habitacional da mãe AG, somos a informar:
1. O agregado inscrito e autorizado a residir no fogo municipal, de ripo 1, é o infra caracterizado:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
2. Conforme declaração entregue, assinada pelos interessados, é solicitada a integração do filho, devido a falta de alternativa habitacional do mesmo e questões de saúde da Inquilina;
3. Da análise do processo habitacional, e de acordo com os registos constantes nesta empresa: verificamos que:
a. JMGO nunca foi elemento autorizado, nem legalmente inscrito neste agregado familiar;
b. esenta documentos das Finanças com residência em conformidade com o fogo municipal, contudo a declaração da segurança social apresenta morada na Rua dos M… 297, casa 4;
c. Do pedido de integração entregue refere que se encontra a residir na habitação, desde julho de 2016, tendo antes residido em Chaves;
d. Referem ainda que a inquilina se encontra já com uma idade avançada e com alguns problemas de saúde, peio que necessita de apoio no seu dia a dia;
e. De forma a comprovar o ponto anterior, anexam declaração médica, datada de 02 de junho de 2017, referindo diversos problemas de saúde nomeadamente "déficit cognitivo não pode praticar, com autonomia, os atos indispensáveis à satisfação de necessidades básicas da vida quotidiana"; úlcera recorrentemente infetada; retinopatia hipertensiva; osteoporose geriátrica, deficit de mobilidade, entre outros;
4. Discrimina-se na tabela infra a situação socioeconómica do elemento para quem é requerida a integração:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
5. Consultada a conta corrente, verifica-se que vem a ser cobrada uma renda no valor de 36.16E, sem débitos constatando-se que, caso seja deferida a pretensão do arrendatário, a renda deverá alterar-se para 57.13;
6. No caso em apreço o agregado não se pode candidatar a habitação social, uma vez que não cumpre critério nomeadamente cinco anos de residência no Município P...;
7. Em caso de deferimento da pretensão apresentada, a tipologia da habitação ficará desadequada ao novo número de elementos sendo o tipo 2 o mais indicado.
Face ao exposto, somos a colocar à consideração superior a integração no agregado familiar em apreço do filho JMGO, nos termos constantes do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional.
- cf. informação, a fls. 79 e 80 do processo administrativo;
10. Sobre a informação referida no ponto anterior, o Vereador do pelouro da Habitação, Coesão Social e Educação, em 30.09.2017, proferiu o seguinte despacho: “Indeferido face à informação e a que a tipologia não é adequada” cf. fls. 81 do processo administrativo;
11. Em 12.10.2017, os serviços da Entidade Requerida expediram ofício de notificação do despacho referido no ponto anterior, dirigido a AG, rececionado no dia 13.10.2017 cf. fls. 82 a 84 do processo administrativo;
12. AG faleceu no dia 28.12.2017;
13. Em 29.01.2018, o Requerente requereu junto dos serviços da Entidade Requerida a integração na habitação aqui em questão, tendo, para tal, alegado que nele residiu para tomar conta de sua mãe, tendo deixado de viver em chaves, acrescentando que em face da sua doença oncológica necessita de submeter-se regularmente a tratamentos e consultas externas no IPO e no HSA – cf. requerimento, a fls. 109 do processo administrativo;
14. Sobre o requerimento referido no ponto anterior, o Vereador do pelouro da Habitação, Coesão Social e Educação, em 25.05.2018, proferiu despacho, do qual consta, entre o mais: “Indeferido atendendo a que é elemento não inscrito, não cumpre as regras estabelecidas no Regulamento do Parque Habitacional (…)” – cf. despacho, a fls. 113 do processo administrativo;
15. Em 30.05.2018, os serviços da Entidade Requerida expediram ofício de notificação do despacho referido no ponto anterior, dirigido ao Requerente, rececionado no dia 1.06.2018, no qual fixam o prazo de 90 dias para a desocupação da habitação – cf. fls. 114 a 116 do processo administrativo;
16. Por requerimento datado de 8.06.2018, o Requerente solicitou à Entidade Requerida que revisse a situação e o pedido para ocupar a habitação, a que se refere o ponto 13) – cf. fls. 124 e 125 do processo administrativo;
17. Por ofício de 7.07.2018, dirigido ao Requerente, rececionado em 13.07.2018, a Entidade Requerida reiterou a resposta anterior, de que não foi autorizada a sua permanência na habitação – cf. 126 a 132 do processo administrativo;
18. Por requerimento de 21.08.2018, o Requerente solicitou à Entidade Requerida a prorrogação do prazo de entrega da habitação, a fim de permitir que o seu pedido de manutenção e permanência no locado fosse apreciado – cf. fls. 135 e 136 do processo administrativo;
19. O Requerente é portador de uma incapacidade física permanente, anterior a 1993, de 80% - cf. documento n.º 1, junto com a petição inicial;
20. No ano de 2016, na declaração modelo 3 de IRS, o Requerente declarou, como único rendimento, rendimento de pensões, no valor anual de € 4.262,16 – cf. fls. 99 do processo administrativo;
21. No ano de 2017, a pensão anual auferida pelo Requerente ascendeu a € 4.334,34 – cf. fls. 105 do processo administrativo;
22. O Requerente passou a residir na Rua G…, Bloco x, Entrada x2, Casa x0, Campinas, desde julho de 2016 – cf. fls. 67, 68 e 110 do processo administrativo;
23. A habitação sita na Rua G…, Bloco x, Entrada x2, Casa x0, Campinas, corresponde à tipologia T1.
*
O mérito da apelação
O recorrente imputa erro de julgamento por inconsideração de factos e teor de documentos; debalde o faz; o recorrente faz tal imputação na serventia de demonstração de um “periculum in mora”, o que é de inútil indagação, pois que esse foi pressuposto de concessão da providência que a decisão recorrida adquiriu em favor do recorrente, que no ponto não ficou vencido; e para a decisão de direito também não vemos que de entre as específicas e mais pormenorizadas referências circunstanciais feitas advenha melhor julgamento, quando o tribunal “a quo” até pressupôs o seu essencial.
Foi quanto ao “fumus iuris” que lhe não foi dada razão.
Depois de repudiar tese avançada pelo recorrido de uma suposta aceitação do acto, o tribunal “a quo” avançou que:
«(…)
Pugnando pela ilegalidade do despacho suspendendo, o Requerente alega que a Entidade Requerida agiu em abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, porquanto fundamenta a ordem de desocupação da habitação na circunstância do Requerente não se encontrar inscrito no agregado familiar, o que lhe é imputável, uma vez que tal inscrição foi requerida por sua mãe. Mais sustenta a violação do art.º 1106, n.º 1, al. c), do Código Civil e dos art.ºs 19º e 50º, n.º 1, al. c), do Regulamento de Gestão do Parque habitacional, porque deveria ter sido considerado como ocupante autorizado, assim como a violação dos princípios da legalidade, da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, justiça e razoabilidade e boa fé, previstos nos art.ºs 3º, 4º, 7º, 8º e 10º do CPA, e, ainda, a violação do conteúdo essencial do direito à habitação, estabelecido no art.º 65º da Constituição.
O Requerente sustenta o seu direito à ocupação da habitação invocando que é titular do direito à transmissão do arrendamento da casa, em face do falecimento da anterior titular, sua mãe, com quem coabitava.
Acontece que, conforme resulta do probatório, o reconhecimento do direito à integração na habitação foi peticionado pelo Requerente junto da Entidade Requerida, tendo esta indeferido o pedido por decisão do Vereador do Pelouro da Habitação, Coesão Social e Educação, de 25.05.2018, notificada ao Requerente em 1.06.2018; o Requerente ainda reiterou o pedido por requerimento datado de 8.06.2018, tendo a Entidade Requerida confirmado a decisão anterior, por notificação realizada em 13.07.2018.
Na verdade, perscrutando o conteúdo do ato suspendendo, constata-se que encontra o seu fundamento, por um lado, nos atos de 30.09.2017 e 25.05.2018, que indeferiram as pretensões do Requerente à integração no agregado familiar e à integração na habitação, respetivamente, e, por outro lado, inovatoriamente, no facto de o Requerente continuar sem ter, à data, autorização nem qualquer documento que legitime esta ocupação, concluindo que a ocupação é considerada sem título e abusiva, fixando o prazo de trinta dias para a desocupação da habitação.
É consabido que os atos de execução são, em parte, confirmativos do ato exequendo e, noutra parte, introduzem uma decisão dirigida a modificar a ordem jurídica, acrescentando novos efeitos jurídicos àqueles que já tinham resultado do ato anterior.
Significa, portanto, que o ato suspendendo, que ordenou a desocupação da habitação, consubstancia um ato de execução do ato que indeferiu o pedidos de integração do Requerente na habitação, de 25.05.2018, pelo que, apenas poderá ser anulado por vícios próprios, na medida em que tenham um conteúdo decisório de caráter inovador, de acordo com o art.º 53º, n.º 3, do CPTA.
O Requerente não imputa vícios próprios ao ato suspendendo, não pondo em causa a falta de título para ocupar a habitação, mas sim àqueloutro, proferido em 25.05.2018, relativamente aos pressupostos subjacentes ao indeferimento do pedido de integração no agregado familiar de sua mãe e de integração na habitação, cujas invalidades se repercutirão, naturalmente, no ato suspendendo.
O Requerente vem invocar o seu direito à ocupação da habitação, por via da transmissão do arrendamento por morte de sua mãe, ao abrigo do referido art.º 19º do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional do P….
É que, de acordo com o art.º 19º do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional do P… (em vigor em dezembro de 2017), a morte do concessionário determina a caducidade de licença de ocupação no prazo de 90 dias após a verificação da ocorrência, salvo se, naquele prazo, for requerida e autorizada a transmissão da mesma, para o cônjuge e, na falta deste, na linha reta, ficando a transmissão dependente do resultado da avaliação da carência económica, à luz dos requisitos constitutivos do direito à transmissão.
Para o que aqui interessa, a previsão da transmissão da concessão do arrendamento para parente na linha reta, na falta de cônjuge, do referido art.º 19º do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional do P…, não pode deixar de estar condicionado quer pela verificação das condições de insuficiência económica do transmissário, quer pela verificação da coabitação em economia comum há mais de um ano, prevista no art.º 1106, n.º 1, al. c), do Código Civil.
Neste âmbito, nos termos do art.º 16º do referido regulamento, apenas o concessionário e o agregado familiar inscrito podem residir na habitação concessionada e qualquer modificação na composição do agregado familiar inscrito terá que ser previamente autorizada pelo Município, razão pela qual, a mãe do Requerente requereu junto da Entidade Requerida a inscrição do Requente no seu agregado familiar.
Acontece que a inscrição do Requerente no agregado familiar de sua mãe, para efeitos do art.º 16º do Regulamento do Parque Habitacional do P…, foi recusada pela Entidade Requerida, com fundamento na inadequação da habitação, por se tratar de uma habitação de tipologia T1.
Em face daquela recusa de integração no agregado familiar, materialmente fundamentada, ao Requerente passou a estar vedada a possibilidade de habitar na referida habitação conjuntamente com a sua mãe.
Ao assim ser, não é admissível que a situação de facto consubstanciada na coabitação não autorizada do Requerente com sua mãe, porque contrária às normas em vigor, constitua na esfera jurídica do Requerente o direito à transmissão do contrato de arrendamento.
Pelo que não será de concluir pela violação do art.º 19º do Regulamento de Gestão do Parque Habitacional do Município P... (em vigor em dezembro de 2017).
Por outro lado, é consabido que a Constituição estabelece na Parte I, dois tipos de direitos fundamentais: os direitos, liberdades e garantias que integram o Título II da Parte I, bem como os direitos de carácter análogo (art.º 17º) e os direitos económicos, sociais e culturais, vulgo “direitos sociais” que integram o Título III da Parte I, a que faz corresponder regimes jurídicos diferentes.
No âmbito desta distinção dos direitos fundamentais previstos na Constituição e segundo os ensinamentos de GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. Revista, págs. 344/345, o direito à habitação apresenta uma dupla natureza, consistindo, por um lado, no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; neste sentido, o direito à habitação reveste forma de direito negativo, ou seja, de direito de defesa, determinando um direito de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos direitos, liberdades e garantias (cf. art.º 17º). Por outro lado, o direito à habitação consiste no direito a obtê-la, traduzindo-se na exigência de medidas e prestações estaduais adequadas a realizar tal objetivo. Neste sentido, o direito à habitação apresenta-se como verdadeiro e próprio direito social.
Assim sendo, o direito à habitação, que na veste de direito de defesa, análogo aos direitos liberdades e garantias, é diretamente aplicável, nos termos do art.º 18º, n.º 1, da Constituição, implica para o Estado a obrigação de se abster de adotar condutas que, de modo arbitrário, privem o cidadão do acesso a uma habitação.
Já no que se refere à vertente da obtenção de uma morada decente ou condigna, o direito à habitação assume essencialmente uma dimensão social de “um direito a prestações, de conteúdo não determinável ao nível das opções constitucionais, a pressupor, antes, uma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, cuja efetividade está dependente da reserva do possível, em termos políticos, económicos e sociais” (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 374/2002).
A Lei n.º 81/2014 concretiza legislativamente uma certa dimensão do direito à habitação, uma vez que contempla um regime de habitação social, que permite a ocupação de fogos por parte de agregados familiares com menores rendimentos, mediante o pagamento de uma renda “social” ou “apoiada”, ou seja, inferior à de mercado.
Acontece que a habitação social é, em si mesma, “um bem escasso e que visa acudir à satisfação das necessidades básicas da população mais carenciada, pelo que, a ocupação da mesma deve ser atribuída após uma ponderação concreta das necessidades dos indivíduos e famílias elegíveis para o efeito, de modo a que se possa equilibradamente proceder a uma distribuição correta das habitações existentes” (cf. Acórdão do TCAN, de 01.02.2007, processo n.º 01321/04.9BEPRT).
E como se conclui no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.03.2006, processo n.º 01203/05, “o direito à habitação, assegurado pelo art.º 65º da CRP, é um direito da generalidade dos cidadãos, que não é necessariamente afetado quando é retirado a determinado agregado familiar o direito a ocupar uma habitação social para o atribuir a outro agregado”.
Por isso mesmo, porque está em causa a atribuição de um bem escasso (habitação social) a um determinado agregado familiar, o que é feito necessariamente em detrimento de outras famílias com idênticas necessidades, o legislador prevê um conjunto de exigências de que faz depender o direito a utilizar a habitação social.
Ora, não se vislumbra ao Tribunal que a exigência de condições mínimas que a habitação deva possuir para acolher familiares do arrendatário constitua uma qualquer arbitrariedade, porquanto o número de pessoas a habitar determinada habitação terá de se coadunar com as características desta, de modo a permitir aos seus ocupantes condições de habitação condignas.
Pelo que, ao recusar a inscrição do Requerente no agregado familiar da habitação com o fundamento na inadequação da tipologia e, consequentemente, ao recusar a integração do Requerente na habitação, a Entidade Requerida não incorreu na violação do direito fundamental à habitação consagrado no art.º 65º da Constituição.
As considerações acima expostas valem, mutatis mutandis, e por maioria de razão, para o conhecimento da probabilidade de verificação da violação da proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da proporcionalidade, justiça e razoabilidade e boa fé.
Apenas cumpre acrescentar que as medidas exigíveis ao Estado na prestação de uma morada decente ou condigna, não podem implicar o incumprimento das regras de acesso ao arrendamento apoiado para habitação financiadas por entidades públicas, mormente as regras que garantem condições de igualdade dos cidadãos no acesso a essas habitações que, como é sabido, visam acudir situações de carência económica cuja gravidade importa hierarquizar.
Assim sendo, o Tribunal fica impossibilitado de concluir pela probabilidade de na ação principal vir a ser reconhecido o direito à transmissão do arrendamento da habitação em causa.
Constata-se desta forma que o Requerente vem ocupando a habitação em questão sem qualquer título que a legitime, na medida em que, segundo o art.º 35º da Lei n.º 80/2014, de 19.12, que estabelece o regime de renda condicionada dos contratos de arrendamento para fim habitacional, são considerados sem título as situações de ocupação de habitações sociais por quem não detém contrato ou documento de atribuição ou de autorização que a fundamente (n.º 1), pelo que, o ocupante sem título está obrigado a desocupar a habitação e a entregá-la até ao termo do prazo para o efeito fixado (n.º 2), sendo que, caso não seja cumprida voluntariamente a obrigação de desocupação e entrega de habitação, há lugar a despejo, nos termos do art.º 28º (n.º 3).
Por tudo o que vai dito, afigura-se ao Tribunal que não é provável que a pretensão formulada no processo principal venha a ser julgada procedente, não se dando, por essa via, verificado o requisito do fumus boni iuris.
Em face de todo o exposto, resta indeferir concessão da providência requerida.
(…)».
O acto suspendendo é o despacho proferido pelo Vereador da Câmara Municipal P... com os Pelouros da Habitação, Coesão Social e Educação de 22.12.2018, exarado na Informação/Proposta de decisão n.º DI-GPH-27958-2018, que determinou a notificação do Requerente para proceder à desocupação e entrega voluntária da habitação (item 2. do elenco factual.
Na decisão recorrida não verte qualquer omissão de pronúncia a respeito de um abuso de direito.
Como resulta, logo depois de se propor enfrentar tal alegação e em motivação a refutar a sua viabilidade, o tribunal “a quo” imediatamente encarou e afirmou o acto suspendendo como “um ato de execução do ato que indeferiu o pedidos de integração do Requerente na habitação, de 25.05.2018, pelo que, apenas poderá ser anulado por vícios próprios”, o que não sucederá.
Pronúncia também implícita também quando - mesmo ultrapassando a afirmação de ausência de vícios próprios -, avançou defesa de conformidade constitucional.
Pois se como resulta do art. 334.º do CCivil, o abuso do direito só releva quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito (seguindo toda a produção jurisprudencial e doutrinária, o abuso de direito só existe em casos verdadeiramente excepcionais, em casos de todo em todo gritantes, clamorosamente ofensivos do sentimento ético-jurídico dominante), a encontrada adequação ao valor constitucional arreda afirmação de tal abuso.
Pelo menos num primeiro olhar, o bastante.
Cfr. Ac. deste TCAN, de 25-01-2019, proc. n.º 00889/18.7BEBRG:
A apreciação do fumus boni iuris a que alude o nº 1 do artigo 120º do CPTA impõe, assim, um juízo cautelar que se satisfaz com a verosimilhança ou probabilidade, mas com subsistência bastante para fundar um juízo de probabilidade de procedência ou improcedência da pretensão impugnatória a deduzir no processo principal, estando excluída uma análise de tal forma detalhada que venha a desembocar na antecipação da decisão para a causa principal.
De resto, como refere Mário Aroso de Almeida, Medidas Cautelares no Ordenamento Contencioso – Breves Notas, Direito e Justiça, XI, 2, pág. 147, a propósito da necessidade da consagração deste critério do fumus boni iuris no âmbito da suspensão da eficácia de actos administrativos, «a consagração desde critério pressupõe o permanente respeito pela lógica da tutela cautelar, sendo, por isso, incompatível com a indagação exaustiva de questões cuja solução cabe no processo principal».
E seguramente sem êxito; «aquilo que verdadeiramente se visa no venire é tão-só a protecção da confiança criada, melhor, a tutela do investimento do sujeito feito na convicção de um comportamento alheio» (cfr. Manuel Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, Coimbra, Almedina, 2004, p. 420); e das circunstâncias apuradas está ausente uma tal tutela.
Sem que se perspective erro de julgamento no modo como o tribunal “a quo” encarou não se ter transmitido direito ao arrendamento.
O tribunal não olvidou que essa transmissão estaria dependente de uma coabitação autorizada e/mas que a inscrição do recorrente no agregado familiar de sua mãe foi recusada pela Entidade Requerida.
Produzindo-se efeitos dessa recusa, com certeza que obstaculiza pretensão do recorrente, sem título de ocupação.
(Mas) sem que se possa apodar tal recusa de arbitrária e injustificada, ou abusiva.
***
Acordam, pelo exposto, em conferência, os juízes que constituem este Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.
Custas: pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.
Porto, 26 de Julho de 2019.
Ass. Luís Migueis Garcia
Ass. Frederico Branco
Ass. Conceição Silvestre