Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00662/18.2BEBRG
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:02/01/2019
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Frederico Macedo Branco
Descritores:FUNDO GARANTIA SALARIAL; DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE; INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
Sumário:
1 – De acordo com a declaração de inconstitucionalidade em fiscalização concreta, entendeu o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 328/2018, de 27 de Junho de 2018, no âmbito do processo n.º 555/2017, que o artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, que define que o pagamento dos créditos laborais a cargo do FGS segundo o qual o mesmo deverá ser requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, não poderá ser interpretado no sentido de tal prazo não poder comportar a possibilidade de qualquer interrupção ou suspensão.
2 - Perante a referida decisão do Tribunal Constitucional que em fiscalização concreta declarou a inconstitucionalidade da indicada interpretação do Artº 2º nº 8 do DL n.º 59/2015, tal determinou a verificação de uma lacuna em concreto, que correspondentemente determinará a necessidade de, também em concreto, integrar a lacuna assim gerada.
3 - Perante a verificada lacuna, cabe aos tribunais, nomeadamente, criar, com alguma discricionariedade, uma norma “dentro do espírito do sistema” (nº 3 do art.º 10.º do CC), o que envolve para o caso concreto, a “construção” de uma norma segundo critérios de equidade e observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica.
4 - Os tribunais estão vinculados a integrar lacunas, na medida em que não podem abster-se de julgar invocando falta da lei, de acordo com o n.º 1 do art.º 8.º do CC (proibição de juízos de non liquet).
5 – Na integração da lacuna deverá ser respeitada a intenção do legislador constante do Artº 2º nº 8 do DL nº 59/2015, de limitar a um ano o prazo dentro do qual deverá ser requerido ao FGS o pagamento dos créditos reclamados, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
6 - Importa assim colmatar a lacuna que em concreto resultou da declaração de Inconstitucionalidade do TC, aceitando o prazo de caducidade de um ano criado pelo legislador, mas criando “norma (...) dentro do espirito do sistema” conformando-a com o regime constitucional vigente, restrita ao caso concreto, permissiva da interrupção do referido prazo, em decorrência da reclamação da créditos por parte do interessado no processo judicial de insolvência, até à data em que a insolvência venha a ser, definitivamente, decretada. *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:JCSP
Recorrido 1:Fundo de Garantia Salarial
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a decisão recorrida
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer pronunciando-se, a final no sentido "de o presente recurso não dever obter provimento"
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Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

I Relatório
JCSP, no âmbito da Ação Administrativa intentada contra o Fundo de Garantia Salarial, tendente a impugnar o despacho de 12 de dezembro de 2012 do Presidente do Conselho Diretivo do FGS, que lhe indeferiu o pagamento dos créditos emergentes da cessação do seu contrato de trabalho, inconformado com a Sentença proferida em 30 de maio de 2018, através da qual a Ação foi julgada improcedente, veio interpor recurso jurisdicional da mesma, proferida em primeira instância no Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
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Formulou o aqui Recorrente/J….. nas suas alegações de recurso, apresentadas em 10 de julho de 2018, as seguintes conclusões:
A) A douta sentença sob recurso decidiu julgar a ação improcedente e, em consequência, absolveu o Réu do pedido formulado pelo Autor, com fundamento na caducidade, nos termos do disposto no art.º 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 27 de Junho.
B) Com o devido respeito, não pode o recorrente conformar-se com o decido atento todo o por si alegado na sua petição inicial, o qual viu tutelado no recente Acórdão do Tribunal Constitucional, de 27 de Junho de 2018, no âmbito do processo n.º 555/2017, que veio “Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão.”
C) Considerando que existe um facto de extrema relevância na Ordem Jurídica Portuguesa quanto à norma que fundamenta a decisão de caducidade da ação em causa nos autos, atento o Acórdão do Tribunal Constitucional retro identificado, deve a decisão em crise ser alterada, à luz do Principio Constitucional da Legalidade e Igualdade de Tratamento, cumprindo-se o decidido naquele acórdão.
D) Senão vejamos:
A douta sentença em sede de fundamentação de direito vem, e bem, balizar as posição do recorrente e da recorrida identificando que “o ponto da discórdia entre as partes, como avançamos, centra-se no facto de terem entendimentos divergentes quanto ao decurso do prazo de um ano para deduzir pedido de pagamento de créditos junto do FGS a que alude o n.º 8 do art.º 2 do DL n.º 59/2015, de 21.04.”.
E) Concluindo a final que “(…) ao ter dado entrada no FGS do requerimento para pagamento dos créditos laborais emergentes de um contrato de trabalho cessado em 2012, em Julho de 2016, já havia transcorrido o prazo de um ano a que alude o artigo 2.º, n.º 8 do NRFGS.”
F) Contudo, em 28 de Junho de 2018 veio o Tribunal Constitucional no seu Acórdão no Proc. n.º 555/2017 considerar a norma em “discórdia” inconstitucional.
G) E, fá-lo por considerar que a mesma viola os mais elementares princípios constitucionais, designadamente o direito dos trabalhadores consagrado no art.º 59.º da CRP
H) No caso concreto, estando em causa uma situação em tudo idêntica à decidida naquele acórdão do Tribunal Constitucional, uma vez que o recorrente foi, extremamente, diligente na apresentação dos seus dois pedidos junto do Recorrido, sendo prejudicado por a ex empregadora ter tentado, numa fase inicial, um Plano de Recuperação e só, posteriormente, ter avançado para uma Insolvência, não pode o Tribunal “ad quem” ficar indiferente.
I) Num primeiro momento, à data da cessação do seu contrato de trabalho – 11/04/2012 (declaração de insolvência) – o recorrente tendo recebido a declaração da ex. empregadora a reconhecer os seus créditos em 04.06.2012, de imediato deu entrada do seu pedido junto do Recorrido.
J) Vendo, posteriormente, este pedido indeferido por o seu crédito estar abrangido num plano da insolvência.
K) E, quando a ex empregadora vem a ser decretada, definitivamente, insolvente, em 20.06.2016, em 21.07.2016 o Recorrente reclamou o seu crédito, já mais reduzido, atentos os pagamentos parciais que foram sendo realizados, conforme plano da insolvência,
L) E, nesse mesmo dia – 21.07.2016 – apresenta pedido junto do Recorrido FGS.
M) Pelo que e, na senda do decidido no douto Acórdão do Tribunal Constitucional deve o Tribunal “ad quem” considerar a existência de causas interruptivas e suspensivas da caducidade do art.º 2.º, n.º 8 do Decreto Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, designadamente o tempo que mediou entre a cessação do contrato de trabalho e a existência de um plano de insolvência, até à data em que a insolvência veio a ser, definitivamente, decretada.
N) E, consequentemente declarar que o prazo de 1 (um) ano, para requerer o fundo, foi cumprido pelo recorrente.
O) Veja-se que o recorrente foi de tal forma diligente que apresentou dois pedidos ao recorrido, em momentos distintos mas quanto ao mesmo objeto – fim do seu contrato de trabalho com a mesma entidade -, tendo este indeferido, os dois, com fundamentos que saem da esfera do recorrente e que ao mesmo não podem ser imputados.
P) Devendo, assim, alterar-se a douta decisão, respeitando-se a declaração de inconstitucionalidade da norma em discórdia.
Q) Por tudo o exposto e, num claro cumprimento dos princípios constitucionais da legalidade e igualdade de tratamento, deve o presente recurso ser julgado procedente com as legais consequências.
R) Do Valor da Ação:
Atento o limite imposto no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, não pode a ação ter o valor de € 24.302,14, como sendo o valor que o recorrente pretende que o FGS seja condenado a pagar-lhe.
S) Pois, havendo aquele limite para pagamento do valor peticionado, ou seja, nunca superior a cerca de € 10.000,00, deve ser este o valor atribuído à presente ação, o que se requer, devendo a sentença “a quo” ser alterada quanto ao valor da ação.
Nestes termos e em tudo quanto V.ªs Ex.ªs mui doutamente suprirão, requer-se a revogação da douta sentença a quo, com as legais consequências.
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Em 28 de setembro de 2018 veio o FGS a apresentar as suas contra-alegações de Recurso, nas quais concluiu:
A. O requerimento do A foi apresentado ao FGS em 18.05.2016, altura em que se encontrava em vigor o novo diploma legal regulador do FGS, DL 59/2015, de 21.04 que entrou em vigor no dia 04.05.2015.
B. Assim, o referido requerimento do A foi apreciado à luz deste diploma legal.
C. Este diploma previa um prazo de 1 ano a contar da cessação do contrato de trabalho para que seja apresentado junto dos serviços da Segurança Social o requerimento para pagamento de créditos emergentes pela cessação do contrato de trabalho.
D. De resto, já o anterior regime legal, previsto na Lei 35/2004, de 29/07, estabelecia no seu art.º 319.º 3, um prazo para a apresentação do requerimento para pagamento de créditos emergentes pela cessação do contrato de trabalho, que era de 3 meses antes do termo do prazo de prescrição, ou seja 1 ano a contar da cessação do contrato de trabalho.
E. Deste modo se verifica que sempre existiu um prazo para apresentação dos requerimentos ao FGS, sendo que o atual regime prevê um prazo de caducidade findo o qual cessa o direito de os ex-trabalhadores das EE insolventes requererem o pagamento dos créditos ao FGS.
F. Não tendo aqui aplicação o art.º 297.º do CC, uma vez que à luz dos dois diplomas já se encontra terminado o prazo para apresentação do requerimento ao FGS.
G. Sendo aplicável o novo regime, temos de considerar como estando ultrapassado o prazo para a apresentação dos requerimentos ao FGS, à luz do diploma DL 59/2015, de 21.04 que entrou em vigor no dia 04.05.2015,
Termos em que, e com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser feita justiça, mantendo-se a decisão de indeferimento proferida pelo Presidente do Conselho de Gestão do Fundo de Garantia Salarial.”
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Em 5 de novembro de 2018 foi proferido Despacho de admissão do Recurso Jurisdicional.
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O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 12 de novembro de 2018, veio a emitir Parecer em 15 de novembro de 2018, pronunciando-se, a final, “no sentido de o presente recurso não dever obter provimento”.
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Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelo Recorrente, mormente no que concerne à invocada inconstitucionalidade da interpretação adotada, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.
III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade:
1. O Autor trabalhou por conta da sociedade EME, SA desde 01.06.1985 até 18.05.2012, data em que o contrato cessou em virtude da declaração de insolvência da empresa em 11.04.2012 no Proc. 724/12.0TBAMT do Tribunal Judicial de Amarante – Cfr. Doc. 1 junto com a PI.
2. Em 04.06.2012 a ex empregadora referida em 01) remeteu ao A. uma declaração a reconhecer os seus créditos laborais para efeitos de reclamar dos mesmos – Cfr. Doc. 2 da PI.
3. O A. reclamou créditos no processo de insolvência referido em 02) e requereu ao Fundo de Garantia Salarial o pagamento de €31.223,08 – Cfr. Doc. 3 a 7 da PI.
4. Em 12.11.2012 o impugnante foi informado pela ex empregadora da aprovação de um plano de insolvência onde foi aprovado o pagamento de 70% dos seus créditos em 120 prestações – Cfr. Doc. 8 junto com a PI.
5. Em 03.05.2013 o Fundo de Garantia Salarial (FGS) comunicou ao Autor que o seu pedido, referido em 03), foi indeferido por estarem os seus créditos abrangidos pelo plano de insolvência – Cfr. Docs. 09 a 12 juntos com a PI.
6. O Autor não impugnou a decisão referida em 05) – Facto não controvertido; Cfr. ponto 10 da PI.
7. A sociedade referida em 01) foi declarada definitivamente insolvente em 20.06.2016 no âmbito do processo 799/16.2T8AMT no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Instância Central de Amarante, Secção de Comércio, J3 – Cfr. Doc. 13 junto com a PI.
8. O Autor reclamou créditos no processo referido em 07) em 21.07.2016 – Cfr. Doc. 14 junto com a PI.
9. Em 21.07.2016 o Autor apresentou junto do Fundo de Garantia Salarial um requerimento para pagamento dos créditos emergentes de contrato de trabalho referidos no total de €24.302,14 – Cfr. Doc. 16 junto com a PI, cujo teor se tem por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.
10. O Autor pronunciou-se em sede de audiência prévia sobre a intenção de indeferimento do pedido referido em 09) – Cfr. Docs. 18 e 19 juntos com a PI.
11. Por despacho de 12.12.2016, o pedido referido em 09) foi indeferido pelo Presidente do Conselho Diretivo do FGS pelo facto do mesmo não ter sido apresentado no prazo de um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho – Cfr. fls. 20/23 do PA cujo teor se tem por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais.
12. Por ofício de 02.01.2017 o FGS comunicou ao Autor o indeferimento referido em 11) e seus fundamentos, constando daquela comunicação entre o mais o seguinte: “(…) O requerimento não foi apresentado no prazo de 1 ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, nos termos do nº 8 do artigo 2º t do Dec. Lei nº 59/2015, de 21 de abril…”– Cfr. Doc. 20 junto com a PI cujo teor se tem por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
13. O A. reclamou da decisão de indeferimento referida nos pontos anteriores, tendo sido mantido o indeferimento com os mesmos fundamentos – Cfr. Docs. 21 a 23 juntos com a PI.
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IV – Do Direito
Desde logo e no que concerne ao Valor da Ação, vem a Recorrente afirmar que “atento o limite imposto no art.º 3.º do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, não pode a ação ter o valor de € 24.302,14, como sendo o valor que o recorrente pretende que o FGS seja condenado a pagar-lhe.”
Sem necessidade de acrescida argumentação, refira-se que a Sentença proferida em 1ª instância se limitou a fixar como valor da Ação, exatamente o montante proposto pelo Autor, aqui Recorrente, na sua PI, por ser aquele o valor então peticionado, não se vislumbrando razões para proceder à sua alteração, tanto mais que se desconhece em concreto qual o potencial benefício económico decorrente da procedência da Ação.
No que ao direito concerne, e no que aqui releva, discorreu-se em 1ª instância:
“(...) O Autor instaurou a presente ação administrativa contra o Fundo de Garantia Salarial (FGS) tendo em vista obter a remoção da ordem jurídica o despacho que lhe indeferiu o pagamento de créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho, desde logo porque, se bem vemos, entende que o requerimento é tempestivo e não é de aplicar o prazo de um ano a que alude o artigo 2º nº 8 do DL nº 59/2015, de 21 de Abril, entendendo que os créditos são devidos.
O Autor pretende a anulação do despacho, sendo a sua pretensão material o deferimento do montante que requereu ao FGS a título de créditos laborais (€ 24.302,14).
Podemos afirmar, centrando-nos na pretensão material do Autor que está em causa uma ação de condenação à prática de ato que o Autor entende ser o devido, ou seja o deferimento da sua pretensão em ver paga as quantias que peticionou junto do FGS tendo em conta o limite legal.
É nesta pretensão material do Autor que o Tribunal se deve centrar pois que, nas ações de condenação á prática de ato devido, o Tribunal deve analisar a pretensão material do Autor que, a ser procedente, consome a anulação/nulidade do ato, que assim não atendeu ou não acolheu a sua pretensão em fase administrativa.
Com efeito, atendendo ao objeto da lide, definido pela causa de pedir e pelos pedidos formulados, estamos em presença de uma ação administrativa para condenação à prática de ato devido, no âmbito do qual o Autor cumulou um pedido de declaração de anulação do indeferimento e um pedido condenatório ao recebimento do montante que entende ser devido.
Nas ações de condenação à prática de ato devido, o objeto do processo não é o indeferimento, mas a pretensão material que a Autora pretende fazer valer na ação, sendo, por isso, irrelevantes os vícios imputados ao ato, pelo que ao Tribunal não compete apreciá-los com vista a eventual anulação ou declaração de nulidade do ato, sendo que a eliminação desse ato da ordem jurídica decorre da pronúncia condenatória de prática do ato legalmente devido.
Nessa conformidade, dispõe o art.º 66º, n.º 2 do NCPTA que “ainda que a pratica do ato devido tenha sido expressamente recusada, o objeto do processo é a pretensão do interessado e não o ato de indeferimento, cuja eliminação da ordem jurídica resulta diretamente da pronuncia condenatória”.
Assim, na ação administrativa que nos é trazida, o Tribunal deve pronunciar-se sobre a pretensão material formulada pelo Autor, consoante se adiantou, rejeitando-se, neste tipo de ações, a prolação de sentenças de mera anulação ou declaração de nulidade de atos administrativos.
(...) Vejamos então.
Se bem vemos, o pomo da discórdia entre as partes, como avançamos, centra-se no facto de terem entendimentos divergentes quanto ao decurso do prazo de um ano para deduzir pedido de pagamento de créditos junto do FGS a que alude o nº 8 do artigo 2º do DL nº 59/2015 de 21.04 (NRFGS).
Importa consultar, antes de mais, os normativos que irão nortear a nossa análise e que importa convocar.
Decorre do artigo 336º do CT que: “o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, que não possam ser pagos pelo empregador por motivo de insolvência ou de situação económica difícil é assegurado pelo Fundo de Garantia Salarial, nos termos previstos em legislação específica.”
A legislação especial a que se reporta o normativo transcrito é, in casu, o DL nº 59/2015 de 15.04 (NRFGS), atendendo à data do requerimento apresentado pelo Autor.
Na situação trazida, o Autor reclamou créditos junto do FGS, respeitantes a créditos laborais emergentes da cessação do contrato cessado em 18.05.2012.
Decorre do nº. 1 do artigo 1º do NRFGS que:
“1 - O Fundo de Garantia Salarial, abreviadamente designado por Fundo, assegura o pagamento ao trabalhador de créditos emergentes do contrato de trabalho ou da sua violação ou cessação, desde que seja:
a) Proferida sentença de declaração de insolvência do empregador;
b) Proferido despacho do juiz que designa o administrador judicial provisório, em caso de processo especial de revitalização; (…)”.
Por sua vez, e no mais essencial, prevê o artigo 2º (Créditos abrangidos), nº 8, do DL nº. 59/2015 que: “(…) O Fundo só assegura o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho”.
Está em causa neste prazo de um ano a cessação do contrato de trabalho para fixação do termos inicial (dia seguinte à cessação do contrato) e termo final (data de apresentação do requerimento).
Atenta a data em que o A. apresentou nos serviços do R. o seu requerimento para pagamento dos créditos salariais emergentes da cessação do contrato de trabalho- 21 de Julho de 2016 -, já se encontrava em vigor o Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial (doravante, NRFGS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril.
(...)
Por conseguinte, tendo o mencionado regime entrado em vigor em 04/05/2015, como o estipulado no art.º 5 do mesmo diploma, resulta inequívoco que a pretensão do Autor deve ser apreciada à luz do regime estabelecido pelo NRFGS.
Consultando os factos provados, dão notícia os autos que o contrato do Autor cessou em Maio de 2012 (Cfr. ponto 1) dos factos provados) e que o requerimento para obtenção dos créditos laborais deu entrada no FGS em Julho de 2016 (Cfr. ponto 09) dos factos provados), ou seja, depois de entrada em vigor do DL nº 59/2015, tendo os créditos sido requeridos na data em que estava (também) aquele NRFGS em vigor, sendo o art. 2º nº 8 daquele diploma a convocar e aplicar (primeiro dia útil do mês seguinte ao da sua publicação – cfr. artigo 5º).
Não obstante não ser de imputar ao Autor as vicissitudes evidenciadas pelo probatório, como seja a cessação do contrato, o incumprimento dos pagamentos no âmbito da insolvência, etc., tal factualidade não impede o decurso do prazo de um ano a que alude o art. 8º nº 2 do NRFGS.
De resto, o pagamento em causa foi solicitado no âmbito da insolvência ocorrida em 2016, como decorre do requerimento apresentado junto do FGS em Julho de 2016, e com base num contrato que havia cessado em 2012.
Na situação que nos é colocada, estamos perante um Fundo estritamente limitado, quer em termos quantitativos, quer temporais no que tange quer ao período de referência quer ao prazo para requerer o pagamento dos créditos.
Falar-se em Fundo de Garantia Salarial requer atender-se à finalidade social do mesmo, a qual justifica que sejam adotados limites à sua intervenção, não só temporais quanto ao período de referência e quanto ao prazo de 1 ano para apresentação dos requerimentos ao FGS, que decorrem do enquadramento comunitário que lhe está subjacente, como também os atinentes às importâncias a pagar.
O disposto no DL nº 59/2015 e respetivo anexo (que institui o NRFGS) constitui norma de carácter especial onde se encontra o regime legal de que depende o deferimento pelo FGS dos pedidos de pagamento de créditos emergentes de contrato de trabalho no caso de insolvência das entidade empregadoras, sendo certo que no NRFGS também não se prevê qualquer causa suspensiva ou interruptiva do prazo para apresentação do requerimento para pagamento de tais créditos, designadamente, por via da instauração de qualquer processo judicial, quer de natureza laboral, quer de insolvência ou de verificação de créditos, inexistindo qualquer interrupção do prazo previsto no art. 2º nº 8 do NRFGS, por estarmos perante um prazo de caducidade e não de prescrição.
Regressando à factualidade dada como provada, designadamente a supra anotada, bom de ver está que, efetivamente, ao ter dado entrada no FGS do requerimento para pagamento dos créditos laborais emergentes de um contrato de trabalho cessado em 2012, em Julho de 2016, já havia transcorrido o prazo de um ano a que alude o artigo 2º nº 8 do NRFGS (Cfr. ponto 01) e 03) dos factos provados).
Por vontade do legislador o Fundo em causa é limitado, como se disse, não se trata de um Fundo sem Fundo.
Como se disse, de acordo com o NRFGS, o FGS só assegura o pagamento dos créditos laborais que lhe sejam requeridos, caso estejam preenchidos os requisitos legais (designadamente os previstos no art. 1º a 3º do NRFGS), até um ano a partir do dia seguinte àquele em que a trabalhadora cessou o contrato de trabalho, estando em causa um prazo de caducidade, sendo irrelevantes, por isso, as vicissitudes factuais que impediriam o seu curso se em causa estivesse um prazo de prescrição.
Em causa está um prazo de caducidade e não de prescrição. (...)
Revertendo ao caso concreto, emerge com clareza que o prazo estipulado no art.º 2.º, n.º 8 do NRFGS pretende impor o exercício de um direito até um certo momento temporal, motivado por razões de segurança e certeza jurídica. Anote-se, que não está em causa um prazo do qual dependa a subsistência de um direito substantivo, uma vez que a existência do crédito salarial não se extingue pelo facto do seu pagamento não ser requerido ao R.. O que está em causa é, meramente, um prazo impositivo e certo para o exercício do direito de requerer o pagamento do crédito ao R.. O que quer dizer, portanto, que devendo tal direito ser exercido naquele prazo de um ano, este prazo assume, cristalinamente, a natureza de prazo de caducidade. (...)
Os prazos de caducidade não se suspendem nem se interrompem, a não ser que a lei assim o determine, prevendo, nomeadamente, causas de interrupção ou suspensão, conformemente ao estipulado no art.º 328.º do Código Civil.
Em bom rigor, tendo o contrato de trabalho da A. cessado em 2012, grassa à evidência que na data em que o A. requereu ao R. o pagamento dos seus créditos salariais em 2016, o sobredito prazo de um ano se encontrava decorrido, consoante avançamos.
Deste modo, assomando como manifesto que o prazo estabelecido no art.º 2.º, n.º 8 do NRFGS constitui um prazo de caducidade e que, por essa razão, não comporta causas de interrupção ou suspensão, impera concluir que, no momento em que o A. apresentou o seu requerimento para pagamento dos créditos emergentes da cessação do contrato de trabalho, há muito se encontrava decorrido e esgotado o prazo de um ano contado desde a data da cessação do contrato de trabalho em causa. Por conseguinte, a decisão do R. não merece qualquer censura no que concerne a este fundamento que escora o indeferimento, o que basta para não ser acudida a pretensão material do Autor.
Mercê de tudo o quanto ficou exposto, atinge-se a conclusão que não assiste razão ao Autor na pretensão condenatória que dirige a este Tribunal e que pretendia ver reconhecida, devendo, por isso, a sua pretensão naufragar.
Falar-se em Fundo de Garantia Salarial requer atender-se à finalidade social do mesmo, a qual justifica que sejam adotados limites à sua intervenção, não só temporais, que decorrem do enquadramento comunitário que lhe está subjacente, como também os atinentes às importâncias a pagar. (...)
Ante o exposto, conforme se avançou, terá a presente ação de naufragar, desde logo por não merecer censura a decisão do R. no que concerne ao fundamento que escora o indeferimento, devendo a presente ação naufragar.”
Vejamos:
Independentemente das questões relacionadas com a constitucionalidade do indicado normativo do atual regime jurídico relativo ao FGS, instituído pelo DL 59/2015 de 21/04, que se analisará em pormenor infra, há uma questão incontornável e que se consubstancia no facto do aqui Recorrente ter tempestivamente requerido ao Fundo de Garantia Salarial em 11 de junho de 2012 (Facto 3) o pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, relativamente ao contrato que havia cessado em 18 de maio de 2012 (Facto 1).
Acontece que o requerido veio a ser indeferido pelo FGS em 3 de maio de 2013 (Facto 5) “por estarem os seus créditos abrangidos pelo plano de insolvência”.
Assim, e desde logo, mal se compreende que o FGS tenha recusado a atribuição das prestações tempestivamente requeridas, a pretexto das mesmas estarem incluídas no plano de insolvência, para depois, e perante a efetivação da insolvência, vir afirmar que o pedido de atribuição de prestações, então reiterado, se mostrar já intempestivo, por já ter passado mais de um ano sobre a cessação do contrato.
A incongruência da atuação do FGS resume-se no facto de em 2013 ter recusado o pedido tempestivo do trabalhador, em virtude dos créditos estarem abrangidos pelo plano de insolvência, para em 2016 vir a recusar o reiterado pedido, a pretexto de ser o mesmo intempestivo, sendo que foi exatamente o FGS que contribuiu para essa extemporaneidade em decorrência da recusa do originário pedido.
Seria pois expectável que o trabalhador que viu recusado o seu originário pedido de atribuição de prestações pelo FGS, atento o plano de insolvência, e perante a concretização da insolvência, viesse então a reiterar o seu pedido.
Importa, em qualquer caso, aferir das consequências decorrentes de todo o enquadramento de facto e de direito da controvertida situação.
É certo que o Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04, atual lei reguladora do Fundo de Garantia Salarial, fixa no artigo 2.º, nº 8, um prazo de caducidade de um ano, o qual, por não ter sido excecionado (Artº 328º CC), se consubstanciaria, em princípio, num prazo insuscetível de suspensão ou interrupção.
Determina, por outro lado, o artigo 3º do mesmo Decreto-Lei n.º nº 59/2015, de 21.04 que ficam sujeitos ao novo regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado em anexo ao diploma, os requerimentos apresentados após a sua entrada em vigor.
O segundo requerimento do Autor junto do FGS foi apresentado em 21.07.2016, ou seja, depois de 4 de Maio de 2015, data da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º nº 59/2015, de 21.04 – artigo 5º do mesmo diploma legal, pelo que, por força do artigo 3º do mesmo, ser-lhe-á aplicável o prazo de caducidade do novo diploma legal.
No entanto, já a anterior legislação regulamentadora do Fundo de Garantia Salarial estabelecia requisitos temporais para apresentação do requerimento junto do Fundo de Garantia Salarial, dispondo o artigo 319.º da Lei 35/2004, de 29.07, no seu n.º 3, que o Fundo de Garantia Salarial só assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até 3 meses da respetiva prescrição.
A prescrição prevista no artigo 337º nº 1 do anexo da Lei nº 7/2009, de 12.02, que aprovou a revisão do Código do Trabalho dispõe:
“O crédito do empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”
O contrato de trabalho do Autor cessou como se viu em 18/05/2013, pelo que prescreveria, se não se verificasse interrupção, seguida de alteração do prazo, em 19/05/2014.
No entanto, a prescrição interrompe-se pela citação ou notificação judicial de qualquer ato que exprima, direta ou indiretamente, a intenção de exercer o direito – artigo 323º, nº 1, do Código Civil.
A interrupção inutiliza para a prescrição todo o tempo decorrido anteriormente, começando a correr novo prazo a partir do ato interruptivo, sem prejuízo do disposto nos nºs 1 e 3 do artigo seguinte – artigo 326º nº 1 do Código Civil.
A nova prescrição está sujeita ao prazo de prescrição primitiva, salvo o disposto no artigo 311º, nos termos do disposto no artigo 326º, nº 2, ambos do Código Civil.
Estabelece o artigo 311º, nº 1, do Código Civil que o direito para cuja prescrição, ainda que só presuntiva, a lei estabelecer um prazo mais curto do que o prazo ordinário fica sujeito a este último, se sobrevier sentença transitada em julgado que o reconheça, ou outro título executivo.
Mostrando-se provado que o aqui Recorrente (Facto 3) reclamou os seus créditos laborais, no âmbito do Processo de Insolvência (Ação nº 724/12.0TBAMT – Tribunal Judicial de Amarante), em 4 de junho de 2012, esse facto interrompeu o prazo de prescrição, o que determinou que a mesma só viria a ocorrer passados vinte anos, como resulta do artigo 311º nº 1, conjugado com o artigo 309º, ambos do Código Civil.
É assim notório que à face da lei antiga faltava muito tempo para ocorrer a prescrição dos créditos cujo pagamento é requerido ao Réu e, consequentemente, sendo o prazo de caducidade da reclamação desses direitos ao Fundo de Garantia Salarial, de três meses antes da respetiva prescrição, faltariam muitos anos para ocorrer essa caducidade.
Em qualquer caso, a nova lei estabelece um prazo mais curto de caducidade – um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho - artigo 2.º nº 8 do Decreto-Lei n.º nº 59/2015, de 21.04.
Perante um prazo mais longo de caducidade ao abrigo da lei antiga e um prazo mais curto de caducidade ao abrigo da nova lei, impõe-se o recurso ao artigo 297º para determinar a contagem desse prazo.
Determina este artigo que a lei que estabelecer, para qualquer efeito, um prazo mais curto do que o fixado na lei anterior é também aplicável aos prazos que já estiverem em curso, mas o prazo só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que segundo a lei antiga, falte menos tempo para o prazo se completar.
Já vimos que segundo o artigo 319º nº 3 da Lei nº 35/2004, de 29.07, faltavam vários anos para a caducidade do direito de reclamar o pagamento dos créditos dos Autores e que segundo o artigo 2º, nº 8, do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21.04, o prazo de um ano de caducidade só começou a contar a partir da entrada em vigor desse diploma legal – 4 de Maio de 2015, caducando em 4 de Maio de 2016.
Não tendo o Recorrente impugnado a originária recusa do pagamento dos créditos emergentes do contrato de trabalho, e tendo o segundo requerimento dado entrada no FGS em 21/07/2016 (Facto 9), é patente que aparentemente se teria verificado já a caducidade do direito do Autor, uma vez que o pedido não estava dependente da declaração definitiva da insolvência da Sociedade.
Em qualquer caso, e tal como recorrido, importa agora apreciar a suscitada questão à luz do Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 328/2018, de 27 de Junho de 2018, no âmbito do processo n.º 555/2017, que veio “Julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão.”
Aqui chegados, importa escalpelizar o expendido no referido Acórdão do Tribunal Constitucional.
Em bom rigor, o TC não põe em causa a existência do prazo de um ano “para requerer o pagamento dos créditos laborais”, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, mas tão só o facto desse prazo ser de “caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão.”
Mais se afirma no mesmo Acórdão do TC que “Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa).”
Sintomaticamente afirma-se ainda no identificado Acórdão do Tribunal Constitucional que “(...) não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.”
O sinal dado pelo TC vai pois singelamente no sentido de, na situação em apreciação, não dever ser fixado um prazo de caducidade sem que o mesmo comporte potencialmente “qualquer suspensão ou interrupção”.
O importante é que aquando da fixação de um qualquer prazo, seja o mesmo estabelecido antecipadamente, com certeza e sem ambiguidades. Como se afirmou no nº 39 do Acórdão do Tribunal de Justiça de 11 de julho de 2002, M&S (C-62/00, Colect., p. I-6325), “para cumprir a sua função de garantia da segurança jurídica, um prazo de prescrição deve ser fixado antecipadamente. Uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza” (acórdão de 24 de Março de 2009, Danske Slagterier, C-445/06).
Em concreto, o aqui Recorrente, perante a publicação do referido Acórdão do Tribunal Constitucional, veio afirmar que “(...) na senda do decidido no douto Acórdão do Tribunal Constitucional deve o Tribunal “ad quem” considerar a existência de causas interruptivas e suspensivas da caducidade do art.º 2.º, n.º 8 do Decreto Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril”.
Mais afirmou o Recorrente no seu Recurso que deverá ser considerada “a existência de causas interruptivas e suspensivas da caducidade do art.º 2.º, n.º 8 do Decreto Lei n.º 59/2015, de 21 de Abril, designadamente o tempo que mediou entre a cessação do contrato de trabalho e a existência de um plano de insolvência, até à data em que a insolvência veio a ser, definitivamente, decretada (...) e consequentemente declarar que o prazo de 1 (um) ano, para requerer o fundo, foi cumprido pelo recorrente.”
Importa pois, em decorrência da referenciada inconstitucionalidade declarada pelo Tribunal Constitucional em termos de fiscalização concreta, encontrar solução interpretativa adequada e compatível com o declarado, para a controvertida questão.
Assim, e não obstante a condicionante imposta ao n.º 8 do artigo 2.º do DL n.º 59/2015, de 21 de Abril, pelo Tribunal Constitucional, há, em qualquer caso, que limitar no tempo o exercício do direito ao pagamento de créditos salariais pelo FGS, a um ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato (cfr. artº 337.º, n.º 1, do CT), considerando, no entanto, as vicissitudes decorrentes da tramitação do Processo de Insolvência, junto do qual foram reclamados os créditos laborais, por forma a acautelar que os atrasos processuais e procedimentais não se venham negativamente a refletir-se na esfera jurídica do trabalhador.
Como decorre da Diretiva 80/987, não há qualquer impedimento à aplicação de um prazo de prescrição ou de caducidade de um ano (princípio da equivalência). Todavia, compete ao órgão jurisdicional nacional apreciar se a configuração deste prazo não torna impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício dos direitos reconhecidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade).
Como de algum modo decorre do acórdão do Tribunal Constitucional aqui em análise, importa predominantemente que o trabalhador não veja o prazo que lhe é atribuído para recorrer ao FGS, substancialmente diminuído em resultado de questões colaterais que vão consumindo o prazo.
Independentemente da interpretação que se adote no que respeita à suspensão ou interrupção do prazo para exercício do direito, não se poderá subverter a intenção do legislador de acordo com a qual o FGS só deverá assegurar o pagamento dos créditos quando o pagamento lhe seja requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
O que se vem referido, encontra acolhimento na filosofia que presidiu ao Acórdão do TC nº 257/2008 em cujo ponto 13 se afirma lapidarmente que:
“[…]
Na verdade, a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, quer na sua destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é a contrapartida da disponibilização da sua energia laborativa, posta ao serviço da entidade patronal. Ela é também, por outro lado, o único ou principal meio de subsistência do trabalhador, que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais.
É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas.
É, na verdade, esta perspetiva valorativa que levou à consagração do direito à retribuição do trabalho entre os direitos dos trabalhadores enumerados no n.º 1, alínea a), do artigo 59.º da CRP, por forma a ‘garantir uma existência condigna’ – direito este já expressamente considerado pelo Tribunal Constitucional como um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (Acórdão n.º 379/91). Por outro lado, no n.º 3 do mesmo preceito estabelece-se que ‘os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei’.
Esta previsão constitucional de garantias especiais para créditos salariais seguramente que, não só justifica, como impõe, regimes consagradores da sua discriminação positiva, em relação aos demais créditos sobre os empregadores (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 777).
[…]
Como a norma [da alínea a) do n.º 1] expressamente acentua – nos seus próprios termos, tem-se em vista ‘garantir uma existência condigna’ –, o reconhecimento de tal direito exprime o valor básico da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), constituindo, no seu específico âmbito de proteção, um instrumento do preenchimento das condições materiais da realização deste valor. E o relevo nuclear do direito à (justa) remuneração do trabalho é atestado pela vinculação do legislador ao estabelecimento de garantias especiais para os salários (n.º 3 do artigo 59.º).
[…]”.
É pois manifesto que “é pacífico na doutrina, e este Tribunal tem também afirmado, que o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos liberdades e garantias (v., entre muitos, os Acórdãos n.ºs 620/2007 e 396/2011), que, de resto, o Estado tem o dever de proteger (cfr. artigo 59.º, n.º 2, da Constituição) ” (Acórdão TC n.º 510/2016).
Como se afirmou relevantemente no Acórdão nº 328/2018, do TC, “Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
Pela sua relevância transcrevem-se ainda a seguintes passagens do referido Acórdão do Tribunal Constitucional (Sublinhados do original):
“De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS.
Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
(...)
O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito.
Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.
Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição.
Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.
Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.
(...)
Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (...), que a configuração do prazo pode tornar “[…] impossível na prática ou excessivamente difícil” o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – “[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza”.
(...)
A isto acresce – como segunda nota complementar acima indicada (...) a seguinte observação. Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa).
Assim, na falta de uma opção legislativa expressa, caberá aos tribunais comuns a solução das questões que o presente julgamento deixa em aberto (designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo (...)”
Assim sendo, acolhe-se o entendimento plasmado no identificado Acórdão do Tribunal Constitucional, o qual, em síntese, decidiu que o artigo 2.º, n.º 8 do Decreto-Lei n.º 59/2015, que define que o pagamento dos créditos laborais a cargo do FGS deve ser requerido até um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho, não poderá ser interpretado no sentido de tal prazo não poder comportar a possibilidade de qualquer interrupção ou suspensão.
Estamos pois perante uma decisão do Tribunal Constitucional que em fiscalização concreta declara a inconstitucionalidade do Artº 2º nº 8 do DL n.º 59/2015, e que como tal determina a verificação de uma lacuna em concreto, que correspondentemente determinará a necessidade de, também em concreto, integrar a lacuna assim gerada.
Com efeito, a lacuna é uma falha de legislação, na regulação de uma situação da vida que exige uma disciplina normativa.
A existência de lacunas é inevitável, pois as leis são impotentes para prever todas as situações que carecem de ser disciplinadas pelo Direito. Tal ocorre, seja pelo facto de existirem matérias não reguladas, seja porque o conteúdo da lei é incompleto pois não contempla certos domínios de uma determinada matéria, seja porque a mesma lei, abarcando os referidos domínios, não é suficientemente pormenorizada para reger determinados efeitos jurídicos que neles emirjam.
Assim, a lacuna pode envolver quer uma falha de previsão (a lei não contempla uma situação que deve ser regulada juridicamente) ou de estatuição (a lei prevê a referida situação mas não determina as correspondentes consequências jurídicas).
As razões que conduzem à existência de lacunas prendem-se a fatores tão diversos como, a intenção do legislador em não regular; falhas técnicas do legislador ou incapacidade de o mesmo encontrar uma solução jurídica adequada para uma dada situação; o aparecimento de situações imprevistas; ou, finalmente, uma declaração de inconstitucionalidade de uma norma, ainda que concreta.
Na medida em que a lacuna é uma falha normativa que desafia exigências de completude reclamadas pelo sistema jurídico, este prevê mecanismos de integração do vazio jurídico.
A integração de lacunas pode envolver institutos normativos, como é o caso da emissão de uma lei ou o efeito automático de uma declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, que determina, de acordo com o nº 1 do art.º 282.º da Constituição, a reposição em vigor (repristinação) de uma lei revogada por aquela que foi julgada inconstitucional.
Em qualquer caso, os tribunais podem proceder à integração de lacunas através do recurso à analogia, nos termos dos nºs 1 e 2 do art.º 10º do Código Civil (CC), aplicando-se aos casos que a lei não preveja outra legislação que regule situações análogas, caracterizadas por uma identidade de razão com a situação não regulada.
Na falta de caso análogo, o intérprete deve criar, com alguma discricionariedade, uma norma “dentro do espírito do sistema” (nº 3 do art.º 10.º do CC), o que envolve para o caso concreto, a “construção” de uma norma segundo critérios de equidade e observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica.
Os tribunais estão vinculados a integrar lacunas, na medida em que não podem abster-se de julgar invocando falta da lei, de acordo com o n.º 1 do art.º 8.º do CC (proibição de juízos de non liquet).
Como por outro lado se afirmou no Acórdão do STA nº 0292/16, de 08-09-2016, “Com efeito, a ideia do juiz como mero intérprete - uma espécie de “correia de transmissão do legislador” - e, portanto, sem um poder criativo da própria ordem jurídica não corresponde à realidade.
O juiz também cria Direito, designadamente, nos termos do artigo 10º, nº3, do CC, devendo nesse caso criar uma norma “dentro do espírito do sistema”. Espírito do sistema acolhe a ideia que corresponde aos “juízos de valor legais a que se referia ao artigo 110º do Estatuto Judiciário, mas aperfeiçoada. Nomeadamente, já se não limita aos juízos de valor legais, antes busca os que são próprios de todo o sistema jurídico” - OLIVEIRA ASCENSÃO, O Direito, Introdução e Teoria Geral, página 413.
É consensual, por outro lado, que o “julgador apreende certos elementos e decide, criativamente, em termos finais. Por certo que o quantum da criatividade não é uniforme: atingindo um máximo quando da aplicação de conceitos vazios ou da integração de lacunas rebeldes à analogia e extra-sistemáticas, ele surge reduzido perante normas rígidas ou mesmo típicas. Mas existe sempre, desde a apreensão dos factos à localização das fontes.” - MENEZES CORDEIRO, prefácio ao Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, Claus - Wilhelm Canaris, por si traduzido, páginas CVI/CVII.
Em termos mais expressivos CASTANHEIRA NEVES, ressalta o papel do juiz, numa visão que recusa ao Direito a natureza de “[…] um simples meio técnico de quaisquer estratégias, mas validade em que a axiologia e a responsabilidade do homem se manifestem. Para se assumir e realizar esse direito, vimos como é indispensável o juiz. Por isso mesmo é eminente a sua tarefa e nobre o papel que dele se espera. […] Negar-se-á esse seu sentido se for mero funcionário, funcionalmente enquadrado e nisso comprazido, servidor passivo de qualquer legislador, simples burocrata legitimante da coação” - Entre o Legislador, a Sociedade e o Juiz, ou entre Sistema, Função e Problema - Os modelos alternativos da realização jurisdicional do Direito, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, volume LXXIV, página 43.
“Hart acentua repetidamente a função do direito como meio de controlo social que só pode ser defendido se entrarem também no direito – ao interpretar regras jurídicas carecidas de interpretação nas suas zonas obscuras ou ao adaptá-las a relações sociais novas – ideais sociais, ou ideais éticos, que vinculem a argumentação e a decisão” - Teoria Analítica do Direito por MAZUREK, SAARBRYCKEN, Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas, pág. 378.
É de resto uma evidência, que a grande maioria das regras jurídicas carece de interpretação. Como sublinha OLIVEIRA ASCENSÃO a posição enunciada no brocardo “in claris non fit interpretatio…” é contraditória nos seus próprios termos, pois mesmo para concluir que uma deposição legal é evidente foi necessário um trabalho de interpretação, embora quase instantâneo, e é com base nele que se afirma que o texto não suscita problemas particulares”. Por isso, considera o mesmo autor, “são absurdas certas posições hermenêuticas que se repetem, do imperador Justiniano a autocratas modernos, e pelas quais se proíbe a interpretação da lei. Efetivamente, conclui o autor, “a interpretação jurídica não se destina a uma recognição de um qualquer conteúdo já pensado, mas destina-se a formular princípios para a ação, regras.” - O Direito, Introdução e Teoria Geral, páginas 345/346.
Note-se, a propósito, que “a letra da lei e o que ela exige num caso concreto podem ser perfeitamente claros; contudo, pode haver dúvidas sobre se o legislador tem o poder para legislar desse modo” - HART, o Conceito de Direito, página 161. Nestas condições o julgador, nos casos que lhe são colocados, averigua a validade constitucional da lei, de acordo com os parâmetros que racionalmente vinculam o próprio legislador, existindo, como refere o mesmo autor, “…vários tipos de raciocínio que os tribunais usam caracteristicamente, ao exercer a função criadora que lhes é deixada pela textura aberta do direito contido na lei ou no precedente” [obra citada, página 161].
Vários tipos de raciocínio e de argumentação que não se reconduzem necessariamente a uma busca de critérios objetivos da decisão, mas apelam a um paradigma justificativo que “não pretende de forma alguma encontrar princípios evidentes, mas sim descobrir, através de um trabalho de autorreflexão, as pressuposições que são indiscutíveis se desejarmos formular argumentos intersubjectivamete válidos” – ver, neste sentido, ADELA CORTINA, Ética da Discussão e Fundamentação Última da Razão, As Filosofias Políticas Contemporâneas [após 1945], página 171. A racionalidade da decisão há-de decorrer, nesta conceção, do desenvolvimento de uma argumentação séria, a qual depende de várias regras ou condições - ética da discussão: “1- Todo o sujeito capaz de falar e de agir deve poder tomar parte em discussões; 2.1. Cada um deve poder problematizar toda a afirmação, qualquer que ela seja; 2.2. Cada um deve poder fazer com que seja admitida na discussão toda a afirmação, qualquer que ela seja; 2.3. Cada um deve poder exprimir os seus pontos de vista, os seus desejos e as suas necessidades; 3. Nenhum locutor deve ser impedido por uma pressão autoritária, quer ela se exerça no interior quer no exterior da discussão de aproveitar dos seus direitos, tal como eles estão estabelecidos em 1 e 2”.
Não é, assim, possível reconduzir a função do juiz, essencialmente concretizadora e criadora da Ordem Jurídica [em maior ou menor grau] a uma função predominantemente técnica [axiologicamente neutra] face a uma necessária e sempre presente relação de compromisso ético do juiz com o Direito que interpreta, aplica em concreto, faz cumprir e, desse modo, também vai construindo. Outro entendimento contribuiria para a “deslegitimação do poder judicial”, enquanto “poder soberano” como nota ORLANDO AFONSO - Poder Judicial In Dependência, página 202. “Deslegitima-se” - diz o autor, entre outras maneiras – “quando a pretexto de apregoadas desburocratizações ou de modernizações tecnológicas se reconduz o papel do Juiz ao de um mero operador judiciário, adulterando-se-lhe a função”. Por isso o autor [nota 271] entende como deslegitimadora a tentativa de “…reduzir o Poder Judicial a uma função burocrática sem qualquer outra dimensão que não seja a da prestação de um mero serviço administrativo”.
Podemos concluir, portanto, que no pensamento jurídico atual, não é acolhido o entendimento que vê o Juiz como um mero operador judiciário, um mero prestador de serviço administrativo ou, nas palavras de Castanheira Neves, um mero instrumento técnico de legitimação da coação. Podemos afirmar com toda a segurança que as funções exercidas pelo Juiz são funções públicas, mas não são predominantemente técnicas, porque predominantemente exercem um poder público, sendo o exercício desse poder o núcleo essencial do conteúdo das respectivas funções»
Correspondentemente, a questão da desaplicação da referida norma ou da sua concreta declarada inconstitucionalidade, já foi tratada, desde logo na Sentença do TAF de Coimbra, proferida no Procº 585/16.0BECBR de 7 de fevereiro de 2017 que veio a determinar a declaração de inconstitucionalidade que se tem vindo a apreciar.
Na referida Sentença do TAF de Coimbra a solução resultante da verificada lacuna foi encontrada por recurso à “norma geral da prescrição dos créditos laborais, precisamente um ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato – cf. artigo 337 nº 1 do CT – esta, sim, suscetível das interrupções constituídas pela ação laboral e pela reclamação dos créditos na insolvência, interrupções indispensáveis pata a reposição da justiça em face de um anormal atraso das decisões no processo de insolvência que são pressuposto da obrigação do Fundo.”
Já neste Tribunal a referida questão foi já tratada em diversos Acórdãos, a saber: Processo n.º 1777/17.0BEPRT de 21.12.2018; Processo n.º 61/17.3BEBRG de 11.01.2019; Processo n.º 295/17.0BEPNF de 25.01.2019; Processo nº. 232/17.2BEBRG de 21.12.2018; Processo n.º 2492/16.7BEPRT de 07.12.2018.
Nos referenciados Acórdãos do TCAN se tem afirmado que “Dispõe o artigo 282º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”.
1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.
Não vemos razão para não aplicar esta norma, dirigida à hipótese de “declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral” ao caso, como o presente, em que temos uma declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ainda sem força obrigatória geral.
Na verdade é a solução que mais segurança e certeza traz para a solução de casos similares, dada a sedimentação que o antigo regime jurídico já tinha alcançado.”
Se bem que a base do entendimento jurídico que se preconizará tenha ponto de partida idêntico àquele que determinou as precedentemente referenciadas decisões deste TCAN, o sentido decisório que se adotará, passará antes pela integração da lacuna por recurso à criação no caso concreto de norma “dentro do espírito do sistema” (nº 3 do art.º 10.º do CC), “construindo-se” uma norma segundo critérios de equidade e observância dos princípios estruturantes da ordem jurídica, correspondente àquele que se presume ser a vontade do legislador.
Na realidade, é incontornável que era intenção do legislador no Artº 2º nº 8 do DL nº 59/2015, limitar a um ano o prazo dentro do qual deverá ser requerido ao FGS o pagamento dos créditos reclamados, a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
Por outro lado, o próprio Tribunal Constitucional não questiona aquele prazo, apenas se “opondo”, por via de declaração concreta de inconstitucionalidade, a que esse prazo não seja suscetível de suspensão ou interrupção.
Em face de tudo quanto supra ficou expendido e em conformidade com o entendimento plasmado no Acórdão, que se tem vindo a referenciar, nº 328/2018 do Tribunal Constitucional que em apreciação concreta, julgou inconstitucional o artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, importa colmatar a lacuna que em concreto daí resultou, aceitando o prazo de caducidade de um ano criado pelo legislador, mas criando “norma (...) dentro do espirito do sistema” conformando-a com o regime constitucional vigente, restrita ao caso concreto, permissiva da interrupção do referido prazo, em decorrência da reclamação da créditos por parte do interessado no processo judicial de insolvência, até à data em que a insolvência venha a ser, definitivamente, decretada.
Assim, sendo, em conformidade com o comando normativo criado para a situação concreta, quando em 21.07.2016 o aqui Recorrente requereu pela segunda vez junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos créditos emergentes de contrato de trabalho devidos, ainda estava em prazo.
* * *
Deste modo, em conformidade com o precedentemente expendido, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Norte, conceder provimento ao Recurso, revogando-se a Sentença Recorrida, mais se julgando procedente a Ação, no limite dos montantes devidos.
Custas pela Recorrida, sem prejuízo da isenção de que goza.
Porto, 1 de fevereiro de 2019
Ass. Frederico de Frias Macedo Branco
Ass. Nuno Coutinho
(Declaração de voto) Acompanho a declaração de voto do Sr. Desembargador Ricardo de Oliveira e Sousa
Ass. Ricardo de Oliveira e Sousa
(Declaração de voto) Voto a decisão, por ser a mais justa, mas discordo do segmento que aplica a norma do Artº 337º do CT, com recurso à integração de lacunas.