Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01160/13.6BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:09/30/2014
Tribunal:TAF do Porto
Relator:José Vital Brito Lopes
Descritores:COMPENSAÇÃO.
FONTE DA OBRIGAÇÃO DE IMPOSTO.
LIQUIDAÇÕES CORRECTIVAS.
Sumário:1. A fonte da obrigação tributária radica no facto tributário (art.º36.º, da LGT), que tanto pode ser instantâneo, como reportado a um determinado período;
2. A liquidação não é fonte da obrigação tributária, apenas torna certa e exigível a pré-existente obrigação tributária;
3. A compensação prevista no art.º89.º do CPPT não pode operar entre liquidações correctivas reportadas à mesma obrigação de imposto (IRC/2008), geradoras de reembolso umas e de pagamento outras, por faltar o requisito essencial da existência de dois créditos recíprocos reportados a obrigações distintas que a compensação exige.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:B..., SA
Recorrido 1:Fazenda Pública
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO NORTE

1 – RELATÓRIO

B…, S.A., recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto que julgou improcedente a reclamação interposta do “acto de compensação” praticado pelo órgão da execução fiscal no processo n.º1910201301009761, contra si instaurado no serviço de finanças de Vila Nova de Gaia-1.

Com a interposição do recurso, apresentou alegações e formulou as seguintes «Conclusões:

1. Ao contrário do indicado na Sentença, houve uma comprovada, verdadeira e ilegal compensação: em lugar da extinção do crédito que a B...tem sobre o Estado (209.767,69€) através de pagamento (devolução de dinheiro), efetuou-se, ao invés (e ilegalmente), a extinção deste crédito via compensação com dívidas fiscais (no valor de 645.273,84€) – por diminuição correspondente da dívida fiscal que a B...tem sobre a AT, dívida esta que está contestada (graciosa e judicialmente) e garantida.

2. O documento das finanças (n.º 1 junto com a PI) autointitula-se de “compensação”;

3. O seu conteúdo dispositivo, por análise linha a linha, confirma que se efetuou uma compensação;

4. A B..., apesar do deferimento da reclamação da autoliquidação, nada recebeu (em dinheiro); mas viu a sua dívida no outro processo (impugnado e garantido) ser diminuída pelo valor do deferimento da autoliquidação.

5. A Sentença erra quando indica “que não houve qualquer compensação, mas antes uma anulação do reembolso a restituir que era de 645.273,845€, tendo sido corrigida para 409.138,63€, por via da anulação de 236.135,21€”.

6. O valor de 645.273,84€ não é o valor do reembolso a restituir – é antes o valor de liquidação adicional de IRC de 2008 em resultado de hétero-liquidação por parte da AT, objeto de impugnação judicial e coberta por garantia idónea (estando, por isso, suspenso o processo executivo).

7. O IRC de 2008 desdobrou-se em dois processos e liquidações totalmente diversos: o deferimento parcial da reclamação da autoliquidação de 2008 não resulta de anulação parcial da outra liquidação (de valor total inicial de 645.273,84€).

8. A Sentença andaria bem se o objeto e natureza das duas (segunda e terceira) liquidações fosse o mesmo: se fosse parcialmente anulada – então, em sua execução manter-se-ia essa liquidação apenas no remanescente (e extinguindo-se a garantia em excesso).

9. Mas não é isso o que sucede in casu: uma decorre de liquidação adicional fruto de inspeção pela AT; está 100% viva (não foi anulada parcialmente) – e existem garantias sobre o total desse valor em dívida;

10. O outro processo tributário, deferido parcialmente, resulta de uma reclamação da autoliquidação, sobe matéria diversa da liquidação adicional, tendo a reclamante o direito de receber 209.767,69€, sem juros (como decidido pela própria AT).

11. Existe, pois, um ato de compensação: o qual é totalmente ilegal (bem como a Sentença) por violação do art. 89.º, 169.º e 199.º do CPPT e 40.º e 59.º da LGT.

12. A compensação viola o art. 89.º, n.º 1, al. a), do CPPT: quando foi efetuada (10/4/2013), corria o prazo para deduzir impugnação judicial, com base no indeferimento expresso da Reclamação Graciosa (que ocorreu em 9/4/2013).

13. A consumação de compensação antes de esgotado o prazo de impugnação viola o princípio da boa-fé na atuação do Estado (art. 59.º da LGT e art. 268.º da CRP). É este igualmente o pacífico entendimento da Doutrina e da Jurisprudência.

14. A compensação viola o art. 89.º, n.º 1, al. b) do CPPT: foi efetuada (10/4/2013), num momento em que o processo executivo estava suspenso, porque existia (existe) garantia idónea e contestava-se a liquidação subjacente: em sede de Reclamação Graciosa e atualmente, via impugnação judicial, interposta na sequência do expresso indeferimento da Reclamação.

15. A compensação é ainda ilegal porque não cumpre o formalismo descrito no art. 89.º, n.º 5, do CPPT.

Termos em que se solicita que a presente Recurso seja julgado provado e procedente, anulando-se, em consequência, a Sentença recorrida, com todas as consequências legais, nomeadamente com a anulação do Despacho reclamado e reembolso ao contribuinte da quantia objeto de compensação (209.767,69€) acrescida de juros de lei a favor do contribuinte desde a data da compensação (10/4/2013) até integral reembolso.

O recurso foi admitido com subida imediata nos próprios autos e efeito suspensivo.

A recorrida não apresentou contra-alegações.

Remetidos os autos a este tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu mui douto parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa dos vistos legais (artigos 36.º, n.º2, do Código de Processo dos Tribunais Administrativos e 657.º, n.º4, do Código de Processo Civil), cumpre agora apreciar e decidir, visto que nada a tal obsta.

2 – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões das alegações apresentadas pela Recorrente, as questões a decidir reconduzem-se a indagar se a sentença enferma de erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa e erro de direito ao entender que os factos não se subsumem no conceito normativo de compensação previsto no art.º89.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário.

3 – DA MATÉRIA DE FACTO

Em 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

«1. Para o exercício de 2008 houve três liquidações;
2. Houve uma primeira liquidação, resultante de autoliquidação, da qual resultou um reembolso devido à reclamante no montante de €1.501.160,25;
3. O reembolso foi recebido pela reclamante em 03.09.2009;
4. A segunda liquidação adicional resultou de inspecção tributária da qual resultou uma redução do valor a reembolsar à reclamante, que deveria ter sido no montante de €855.886,41;
5. Desta segunda liquidação resulta que a reclamante teria de pagar €645.273,84, correspondente ao valor indevidamente recebido;
6. A reclamante deduziu reclamação graciosa;
7. Em 24.01.2013, no Serviço de Finanças (SF) de VNGaia, foi instaurada a execução fiscal n.º1910201301009761, contra a reclamante B… SA C…, Lda., contribuinte fiscal n.º 5…, pela falta do pagamento referido em 5;
8. Que veio a ser indeferida, tendo a reclamante deduzido impugnação judicial em 18.04.2013, com prestação de garantia;
9. A reclamante deduziu ainda reclamação graciosa contra a autoliquidação de IRC;
10. Que veio a ser parcialmente deferida, tendo sido considerada a dedução à colecta no valor de €209.767,69, antes não considerada;
11. Houve uma terceira liquidação, resultante do deferimento parcial da referida reclamação, que veio substituir o valor a receber de €855.886,41, resultante da diferença pela consideração do valor de €209.767,69, acrescido de €72.016,33 (juros pela recebimento indevido de €573.928,56 e deduzidos dos juros de €45.648,81».

E mais se deixou consignado na sentença:

«Factos não provados:
1. A AF procedeu à compensação do crédito no montante de €236.135,21, no âmbito da execução fiscal n.º 1910201301009761.
*
MOTIVAÇÃO

A convicção do tribunal baseou-se no correlacionamento e análise critica de toda a prova produzida nestes autos, com especial destaque para os documentos juntos aos autos, não impugnados, nomeadamente de fls. 1 a 4, 17 a 24, 31 a 36, 44 a 55 e ainda nas reclamações graciosas em apenso, bem como naqueles factos em que as partes estão de acordo.
A testemunha arrolada pela reclamante, TOC da mesma desde 2008, referiu as operações efectuadas, tendo declarado ter percebido ali na audiência como chegaram àqueles valores».
* * *

A Recorrente imputa à sentença recorrida erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa, que reconduz a três pontos nucleares. Diz a recorrente a propósito:

«Ao contrário do indicado na Sentença, a terceira liquidação (na nomenclatura da Sentença) encerra uma verdadeira e real compensação. A AT, em lugar extinguir o crédito (certo, incontestado e incondicionado) que a B...tem sobre o Estado (209.767,69€) através de pagamento (com a devolução ou entrega dessa quantia ao contribuinte); optou, ao invés (e ilegalmente) por o extinguir, via compensação – por diminuição correspondente da dívida fiscal que a B...tem sobre a AT, impugnada e garantida, no valor de 645.273,84€»;

«A Sentença (p. 5) indica “que não houve qualquer compensação, mas antes uma anulação do reembolso a restituir que era de 654.273,845€, tendo sido corrigida para 409.138,63€, por via da anulação de 236.135,21€” (há uma gralha no primeiro número, onde se diz 654.273,84€, quer dizer-se 645.273,84€). Mas isso é rotundamente falso»;

«Como se viu, o IRC de 2008 desdobrou-se em dois processos totalmente diversos entre si. O deferimento parcial da reclamação da autoliquidação de 2008 não resulta de anulação parcial da outra liquidação (de valor total inicial de 645.273,84€)».

Os vícios que a Recorrente imputa à sentença não consubstanciam erro na fixação dos factos ou erro de julgamento de facto, porquanto, quer a “anulação”, quer a “compensação” são conceitos normativos e devem ser tratados como questões de direito, não fazendo sentido integrá-los na sentença na parte em que enuncia a matéria de facto, como pretenderá a Recorrente.

No entanto, é manifesto que a sentença incorreu no mesmo tipo de vício ao integrar na matéria de facto conceitos normativos, nomeadamente, ao dar como facto não provado que “a administração fiscal procedeu à compensação do crédito no montante de €236.135,21, no âmbito da execução fiscal n.º 1910201301009761”.

Como assinala Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, 2014, a págs.248, “Outro vício que pode detectar-se, mas cuja identificação merece uma mais cuidada reflexão em face do NCPC, pode traduzir-se n integração na sentença, na parte em que se enuncia a matéria de facto provada (e não provada), de pura matéria de direito e que nem sequer em termos aproximados se possa qualificar como decisão de facto”.

Ao abrigo do disposto no art.º662.º, n.º1, do CPC, altera-se a decisão de facto, na parte relativa aos factos provados e não provados, que passa a ser a seguinte, toda ela suportada documentalmente, como se indica:

1. Com referência ao exercício de 2008 da Reclamante foi efectuada autoliquidação de IRC – liquidação n.º2009 2500388988 - , de que resultou montante a recuperar de 1.501.160,25€ (cf. fls.220 do apenso instrutor e fls.15 da reclamação graciosa nele incorporada);
2. O montante a recuperar foi reembolsado à Reclamante em 03/09/2009 (cf. fl.229 do apenso instrutor e informação executiva, a fls.41 dos autos);
3. Em 03/10/2012, foi deduzida reclamação graciosa da autoliquidação de IRC – processo n.º1910201204001745 - , que foi deferida parcialmente, originando dedução à colecta no montante de 209.767,69€ (cf. fls.30 dos autos e fls.3 e 220 do apenso instrutor);
4. Com referência ao exercício em causa de 2008 e em resultado de acção inspectiva, foi efectuada uma outra liquidação de IRC – liquidação n.º2012 8500014998, de 07/11/2012 – que originou imposto e juros compensatórios a pagar no valor de 645.273,84€ (cf. fls.19 e 20 do atinente processo de reclamação graciosa, incorporado no apenso instrutor);
5. A Reclamante deduziu, em 21/12/2012, reclamação graciosa da liquidação referida supra, em 4 (cf. fls.3 e 4 do atinente processo de reclamação graciosa, incorporado no apenso instrutor);
6. A reclamação graciosa – processo n.º1910201204002350 – foi indeferida por despacho de 28/03/2013, notificado à Reclamante em 09/04/2013 (fls.24 a 26 do atinente processo de reclamação graciosa, incorporado no apenso instrutor);
7. Entretanto, em 24/01/2013, foi instaurada contra a Reclamante a execução fiscal n.º1910201301009761 para cobrança da dívida de 645.273,84€, correspondente ao valor da liquidação referida supra, em 4 (cf. capa do PEF e certidão de dívida, fls. 1 a 4 dos autos);
8. Da liquidação n.º2012 8500014998, referida supra, em 4, e no seguimento do indeferimento da reclamação graciosa dela deduzida (vd. ponto 6, supra), foi apresentada impugnação judicial e prestada garantia para suspender a execução, aceite pela administração fiscal em 15/03/2013 (cf. informação executiva a fls.41 e despachos a fls.93 e 95, todas dos autos);
9. Da informação executiva que constitui fls.40/42, que damos por integralmente reproduzida, consta, nomeadamente, o seguinte:
«Relativamente ao IRC de 2008:
O reclamante recebeu um reembolso de 1.501.160,25€.
No final de todas as liquidações o reembolso apurado foi de 1.092.021,62€.
Assim, o processo executivo relativo a reembolso indevidamente recebido de IRC 2008 existe no valor de 409.138,63€.
Como o valor de instauração calculado com base na 2.ª liquidação era de 645.273,84€, foi efectuada a anulação da diferença (236.135,21€).
Todo este procedimento reflectiu as sucessivas liquidações relativas ao mesmo imposto e ao mesmo período, não existindo qualquer compensação, que, aliás, seria impossível de operar com o processo executivo suspenso, como está».

Factos não provados:

Com relevância para a decisão, não há.

4 – APRECIAÇÃO JURÍDICA

Insurge-se a Recorrente contra a sentença recorrida, porquanto, ao contrário do que nela se concluiu e se encontra suportado factualmente, se verificou uma verdadeira e própria compensação de um crédito seu com a dívida exequenda e não uma mera anulação da dívida exequenda pela diferença correspondente ao valor do crédito. E essa compensação não podia legalmente operar na pendência da impugnação judicial da liquidação exequenda por se achar garantida a dívida e suspensa a execução. Vejamos.

Com referência ao exercício de 2008, a Recorrente efectuou a liquidação de IRC (cf. art.º82.º, do Código do IRC).

Desse acto de autoliquidação - liquidação n.º2009 2500388988 - , em que apurou um montante a recuperar de 1.501.160,25€, a Recorrente deduziu reclamação graciosa (cf. art.º131.º, do CPPT).

Essa reclamação, autuada com o n.º1910201204001745, veio a ser deferida parcialmente, originando dedução à colecta no montante de 209.767,69€.

Entretanto e com base em acção inspectiva, veio a ser efectuada uma outra liquidação de IRC com referência ao ano de 2008 – liquidação n.º2012 8500014998, de 07/11/2012 – de que resultou imposto e juros compensatórios a pagar de 645.273,84€, encontrando-se a dívida impugnada judicialmente e o processo executivo instaurado com vista à sua cobrança suspenso mediante prestação de garantia.

Como refere Alberto Xavier, “Conceito e Natureza do Acto Tributário”, Almedina, 1972, a págs.127, «A anulação é o acto pelo qual a Administração Fiscal revoga, total ou parcialmente, o acto tributário que, em virtude de erro de facto, erro de direito ou omissão, tenha definido uma prestação tributária individual superior à que decorre directamente da lei (…).
… a liquidação definitiva excessiva (ou infundada) padece de um vício em sentido próprio, de uma nulidade: os seus efeitos cessam de se produzir mercê de um acto jurídico que os constata e que consequentemente os destrói retroactivamente.
(…)
O acto tributário adicional (…), é o acto pelo qual a Administração, verificando que mercê de omissão foi definida uma prestação inferior à legal, fixa o quantitativo que a esta deve acrescer para que se verifique uma absoluta conformidade com a lei. Ao invés do que sucede com a anulação, o acto adicional não revoga o acto tributário viciado: porque se trata de uma nulidade simplesmente parcial, a lei mantém todos os efeitos do acto primitivamente praticado, limitando-se a exigir que a Administração, pela prática de um novo acto, titule juridicamente o excedente ou diferença que não fora previamente objecto de declaração. Longe de o destruir, o novo acto “adiciona-se” ao primeiro, concorrendo ambos para a definição da prestação legalmente devida».

Presentemente, a revisão dos actos tributários – nestes se incluindo também os de liquidação – está prevista no art.º79.º, n.º1, da Lei Geral Tributária, segundo o qual, “O acto decisório pode revogar total ou parcialmente acto anterior ou reformá-lo, ratificá-lo ou convertê-lo nos prazos da sua revisão”.

Por outro lado, o Código do IRC, no seu art.º91.º, expressamente se refere à liquidação adicional, dispondo o seu n.º1 que: “A Direcção-Geral dos Impostos procede à liquidação adicional quando, depois de liquidado o imposto, seja de exigir, em virtude de correcção efectuada nos termos do n.º10 do artigo 83.º ou de fixação do lucro tributável por métodos indirectos, imposto superior ao liquidado”.

Este n.º10 do art.º83.º, do Código do IRC, dispõe o seguinte: “A liquidação prevista no n.º1 pode ser corrigida, se for caso disso, dentro do prazo a que se refere o artigo 93.º, cobrando-se ou anulando-se então as diferenças apuradas”.

Na liquidação prevista no n.º1 do art.º83.º do Código do IRC se inclui, nos termos da sua alínea a), a autoliquidação, ou a liquidação feita pelo contribuinte na declaração periódica a que se refere o art.º112.º, do Código do IRC.

Como se vê, a doutrina de Alberto Xavier, elaborada embora sobre pretérito enquadramento normativo, mantém-se válida no regime actualmente vigente, consistindo o acto de anulação (parcial) em expurgar os vícios da liquidação primitiva, mantendo os restantes efeitos por ela produzidos; já a liquidação adicional mantém todos os efeitos da liquidação primitiva, é um novo acto que acresce ao acto tributário inicial, concorrendo ambos para a definição da prestação legalmente devida.

Exactamente porque a liquidação adicional consubstancia um acto novo só pode efectuar-se dentro do prazo de caducidade do direito à liquidação do tributo respectivo, que se conta a partir da ocorrência do facto tributário (cf. art.º93.º, do Código do IRC); ao passo que a anulação, na medida em que faz cessar, no todo ou em parte, os efeitos de um acto tributário anterior, pode ser efectuada dentro do prazo de revisão do acto tributário e, concretamente, do acto de liquidação (cf. artigos 78.º e 79.º, n.º1, da Lei Geral Tributária).

No caso dos autos, o que se constata é que a primitiva liquidação de IRC de 2008, n.º2009 2500388988 (autoliquidação), de que resultou montante a receber de 1.501.160,25€, foi anulada parcialmente em consequência do deferimento parcial da reclamação graciosa autuada com o n.º1910201204001745, originando uma dedução à colecta de 209.767,69€.

A liquidação n.º2012 8500014998, de 07/11/2012, consubstancia uma liquidação adicional consequente de acção inspectiva, que originou prestação a pagar de 645.273,84€.

Esta liquidação adicional foi impugnada judicialmente pela Recorrente, que prestou garantia para suspender a execução entretanto instaurada para a sua cobrança.

Tem portanto razão a Recorrente quando insiste na existência de dois procedimentos de liquidação reportados ao IRC do exercício de 2008, que originaram duas liquidações distintas: a autoliquidação revista n.º2009 2500388988 que está na origem do crédito de 209.767,69€ e a liquidação adicional n.º2012 8500014998, resultante de acção inspectiva, que está na origem da dívida exequenda impugnada de 645.273,84€.

Mas aqui chegados, não acompanhamos a Recorrente quando advoga que teve lugar uma compensação parcial do montante de reembolso com a dívida exequenda.

Na verdade, a relação jurídica tributária constitui-se com o facto tributário – cf. art.º36.º, da Lei Geral Tributária. Facto tributário que, temporalmente, é continuado, no caso dos impostos sobre o rendimento.

Em anotação ao referido artigo, escrevem Leite de Campos, Benjamim Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, “Lei Geral Tributária – Anotada e Comentada”, Ed. Encontro de Escrita, 4ª edição, 2012, o seguinte: “A liquidação, como qualquer acto tributário, sendo um acto definidor da posição da Administração tributária perante os particulares, não constitui a obrigação. Torna-a certa e exigível (…). Ou seja, a liquidação do imposto vem só definir ou, se quisermos, tornar certa e exigível, a obrigação tributária que já existia”.

É assim também com a autoliquidação, cuja natureza de acto tributário, ao menos na vertente da exigibilidade, não difere substancialmente da hétero-liquidação, ou liquidação administrativa.

Na verdade e como decorre do disposto no art.º101.º, do Código do IRC, “Havendo lugar a autoliquidação de imposto e não sendo o pagamento efectuado até ao termo do respectivo prazo, começam a correr imediatamente juros de mora e a cobrança da dívida é promovida pela Direcção-Geral dos Impostos nos termos previstos no artigo seguinte”.

É, portanto, a liquidação, nesta se incluindo a autoliquidação, o acto tributário que define o conteúdo da prestação tributária, dando expressão numérica ao valor pecuniário da correspondente obrigação tributária.

Todavia, embora a compensação seja uma forma de extinção da prestação tributária, como decorre do n.º2 do art.º40.º, da Lei Geral Tributária – prestação tributária definida (tornada certa e exigível) na liquidação - , ela nunca pode operar entre liquidações correctivas, de sentido favorável ou desfavorável ao contribuinte (ou geradoras de reembolso ou pagamento), praticadas no domínio da mesma obrigação de imposto (IRC/2008), exactamente porque falta o requisito da existência de dois créditos recíprocos reportados a obrigações distintas, que a compensação exige.

Nos termos do n.º1 do art.º847.º, do Código Civil, “Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com obrigação do seu credor…”.

Diz-se que há compensação quando um devedor que seja credor do seu próprio credor, se libere da dívida à custa do seu crédito – Menezes Cordeiro, “Direito das Obrigações”, 2.ºVol., a págs.219.

Mas obviamente esse crédito compensante não pode emergir da mesma obrigação (tributária), ou da mesma relação jurídica (de imposto – IRC/2008), a que está reportada a dívida.

Nessas situações, o que ocorre é a anulação parcial da dívida (titulada pela liquidação adicional) pelo valor do crédito (resultante da autoliquidação revista), tal como, aliás, sustenta a Administração tributária.

Por isso que o acima citado n.º10 do art.º83.º, do Código do IRC, prescreve que havendo liquidações correctivas, nomeadamente de autoliquidação, cobram-se ou anulam-se as diferenças apuradas.

Não se verifica, pois, ter havido compensação entre a dívida exequenda de 645.273,84€ resultante de liquidação adicional e o crédito de 209.767,69€ da liquidação inicial revista, uma vez que ambos os actos tributários em causa se reportam à mesma obrigação de imposto, não constituindo eles próprios a fonte da obrigação de imposto.

A circunstância de se referir na “demonstração do acerto de contas” a fls.17 dos autos, que o apuramento do saldo se fez por compensação de valores, para além da discutível interpretação da Recorrente de reconduzir aquela expressão ao conceito normativo de compensação do art.º89.º do CPPT, não altera substancialmente a natureza do acto como anulação de dívida, que se traduziu no plano das operações de cobrança, numa redução do saldo da dívida exequenda para 409.138,63€.

Consequentemente, improcede o vício de lei assacado ao acto reclamado, no pressuposto entendimento de que consubstancia materialmente um acto de compensação sujeito ao regime previsto no art.º89.º, do CPPT, não incorrendo em erro de direito a sentença recorrida que no mesmo sentido o entendeu.

5 - DECISÃO

Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Porto, 30 de Setembro de 2014
Ass. Vital Lopes
Ass. Fernanda Esteves
Ass. Ana Patrocínio