Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00295/17.0BEPNF
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:01/25/2019
Tribunal:TAF de Penafiel
Relator:Rogério Paulo da Costa Martins
Descritores:FUNDO DE GARANTIA SALARIAL; CRÉDITOS SALARIAIS; CESSAÇÃO DO CONTATO DE TRABALHO; SENTENÇA; INTERRUPÇÃO DA PRESCRIÇÃO CRÉDITOS SALARIAIS; ARTIGO 309º DO CÓDIGO CIVIL;
ARTIGO 2.º, N.º 8, DO NOVO REGIME DO FUNDO DE GARANTIA SALARIAL (DECRETO-LEI N.º 59/2015, DE 21.04); INCONSTITUCIONALIDADE.
Sumário:
1. No caso de créditos salariais, embora emergentes da cessação de contrato de trabalho, que foram reconhecidos por sentença aplica-se o prazo geral de prescrição de vinte anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.
2. É inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão - acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2018, de 27.06.2018, no processo 555/2017 (retificado pelo Acórdão nº 447/2018). *
*Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:POBP
Recorrido 1:Fundo de Garantia Salarial
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Especial para Impugnação de Acto Administrativo (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:
Conceder provimento ao recurso
Revogar a decisão recorrida
Julgar a acção procedente
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso
1
Decisão Texto Integral:EM NOME DO POVO
Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

POBP veio interpor o presente RECURSO JURISDICIONAL do saneador-sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, pelo qual foi julgada totalmente improcedente a acção que intentou contra o Fundo de Garantia Salarial para anulação da decisão de indeferimento do pedido de pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho, datado de 24.05.2016 requeridos por cessação de contrato de trabalho e para a condenação da Entidade Demandada ao pagamento de todos os créditos requeridos.
Invocou para tanto, em síntese, que a norma do artigo 2º, nº 8, do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21.04, é inconstitucional.
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O Fundo de Garantia Salarial contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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O Ministério Público neste Tribunal emitiu parecer também no sentido de ser negado provimento ao recurso.
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Cumpre, pois, decidir já que nada a tal obsta.
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I - São estas as conclusões das alegações que definem o objecto do presente recurso jurisdicional:
1. O Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação e aplicação do direito.
2. Por via disso, o recorrente insurge-se contra tal decisão.
3. Porque, a norma do artigo 2º, nº 8, do Decreto-Lei nº 59/2015, de 21.04, é inconstitucional.
4. Inconstitucionalidade que foi decretada pelo Acórdão nº 328/2018, de 27.06.
5. Deve, assim, a referida inconstitucionalidade ser conhecida nos presentes autos.
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II – Matéria de facto.
Na decisão recorrida deram-se como provados os seguintes factos, sem reparos nesta parte:
1. O Autor foi trabalhador da sociedade que girou sob a firma “USCT, Lda.” – cf. documentos de fls. 14/15 do suporte físico dos autos e de fls. 18 do processo administrativo apenso.
2. Correu termos no então Juízo de Comércio de Amarante – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, o processo n.º 532/14.3TBAMT, cuja petição inicial que lhe deu origem foi apresentada em 11.04.2014, visando a declaração de insolvência da sociedade referida no ponto que antecede – cf. certidão de fls. 18 do suporte físico dos autos.
3. E no âmbito desse mesmo processo veio a ser proferida sentença que declarou a insolvência da identificada sociedade, em 07.05.2014, tendo a mesma transitado em julgado a 23.05.2014 – cf. documentos de fls. 18 a 21 do suporte físico dos autos.
4. No dia 16.05.2014, o administrador de insolvência nomeado no processo referido em 2, promoveu o despedimento do Autor, entregando-lhe o respetivo modelo da segurança social relativo à declaração de situação de desemprego – cf. documento de fls. 16 do suporte físico dos autos.
5. Pelo mesmo administrador de insolvência foi reconhecido que o Autor era titular de um crédito no valor de 15.986,79 € sobre a supra referida sociedade, entretanto declarada insolvente – cf. documento de fls. 17 do suporte físico dos autos.
6. No âmbito do processo de insolvência referido em 2, apenso B, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos em 04.04.2016 – cf. documento de fls. 21 (verso) a 29 do suporte físico dos autos.
7. A 24.05.2016, o Autor apresentou junto do serviço local de Amarante do centro distrital do Porto da segurança social requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho pelo Fundo de Garantia Salarial, solicitando o pagamento das seguintes quantias: 5.098,85 €, relativos a retribuições em atraso; 2.807,03 € relativos a férias, subsídio de férias e proporcionais; 279,27 €, relativos a subsídio de Natal; e 7.801,64 €, relativos a indemnização/compensação pela cessação do contrato de trabalho – cf. documento de fls. 30 a 33 do suporte físico dos autos, e de fls. 20 do processo administrativo apenso.
8. Após a receção deste requerimento, os serviços da segurança social notificaram o Autor por ofício de 28.11.2016, de referência “equipa fundo de garantia salarial”, para que aquele remetesse “documento de rescisão do contrato” – cf. documento de fls. 34 do suporte físico dos autos, e de fls. 15 do processo administrativo apenso.
9. Ofício a que o Autor deu resposta, por carta datada de 12.12.2016, remetida por correio registado – cf. documento de fls. 35/36 do suporte físico dos autos.
10. Após o que, em 19.12.2016, os serviços do centro distrital do Porto da segurança social procederam à análise prévia do requerimento apresentado pelo Autor, elaborando informação na qual se pode ler o seguinte, para o que a esta decisão releva:
“(…)
Da Caducidade
De acordo com a informação constante no SISS verificou-se que o requerente cessou o contrato de trabalho em 31/05/2014.
Apresentou o requerimento para pagamento de créditos emergentes do contrato de trabalho e sua cessação em 24/05/2016.
Analisados os documentos que instruíram o requerimento verificou-se que o requerente não requereu os créditos emergentes do contrato de trabalho dentro do prazo de 1 ano a contar do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.
Sucede, porém, que o Fundo de Garantia Salarial, por força do estatuído no n.º 8, do art. 2.º, do Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21/04, apenas assegura o pagamento dos créditos que lhe tenham sido requeridos no prazo de caducidade supra referido.
(…)”;
Cf. documento de fls. 23/24 do processo administrativo apenso aos autos.
11. Em 21.12.2016, e após a referida análise prévia, os serviços do FGS também elaboraram informação sobre o requerimento apresentado pelo Autor, na qual se lê:
“(…)
3 – O requerimento não foi apresentado no prazo previsto no n.º 8 do artigo 2.º do Anexo ao Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na decorrência do que o FGS não assegura o pagamento dos créditos requeridos.
4 - Assim, o não preenchimento dos requisitos previstos nas disposições legais referidas constitui fundamento para o indeferimento do requerimento apresentado pelo ex-trabalhador.
(…)”;
Cf. documento de fls. 28/29 do processo administrativo apenso.
12. Sobre esta informação recaiu despacho de concordância do presidente do conselho de gestão do FGS, em 21.12.2016 – cf. documento de fls. 30 do processo administrativo apenso.
13. O Autor foi notificado por ofício de 22.12.2016, para, querendo, pronunciar-se sobre a intenção de indeferimento do seu requerimento – cf. documento de fls. 37 do suporte físico dos autos.
14. Por ofício de 11.01.2017, o Autor foi notificado de que o requerimento apresentado por si foi considerado indeferido, de acordo com o despacho referido em 12 – cf. documento de fls. 40 do suporte físico dos autos.
15. O Autor respondeu à missiva referida em 13 por carta registada, datada de 12.01.2017 – cf. documento de fls. 38/39 do suporte físico dos autos.
*
III - Enquadramento jurídico. A inconstitucionalidade da norma constante do nº. 8 do artigo 2.º, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21.04.
Sobre este tema pronunciou-se o recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 328/2018, de 27.06.2018 (rectificado pelo Acórdão nº 447/2018), no processo 555/2017:
“(…)
3. Face ao exposto, na improcedência do recurso, decide-se:
A) julgar inconstitucional a norma contida no artigo 2.º, n.º 8, do Novo Regime do Fundo de Garantia Salarial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 59/2015, de 21 de abril, na interpretação segundo a qual o prazo de um ano para requerer o pagamento dos créditos laborais, certificados com a declaração de insolvência, cominado naquele preceito legal é de caducidade e insuscetível de qualquer interrupção ou suspensão;
(…)”
Discorrendo, para chegar a esta decisão, o seguinte:
“(…)
2.4.1. A proteção da retribuição inclui, nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição, a previsão de “garantias especiais”, cuja modelação cabe ao legislador, que, para o efeito, goza de “ampla liberdade” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2.ª ed., Coimbra, 2010, p. 1166). Não obstante, a instituição do mecanismo do Fundo de Garantia Salarial (para além de – como vimos – consistir numa obrigação para o Estado Português decorrente do Direito da União) não pode deixar de ser vista como concretização de uma das garantias a que se refere aquele n.º 3 (nesse sentido, v. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 2014, p. 777).
Não é inócua a apontada ligação entre o mecanismo do FGS e a norma do n.º 3 do artigo 59.º da CRP. Tratando-se de uma das garantias ali previstas, ao escolher (apesar de, nessa escolha, se encontrar vinculado pelo Direito da União) instituir o FGS como uma das garantias especiais da retribuição, o legislador está vinculado à construção de um regime que lhe assegure um mínimo de efetividade, sem a qual resultaria esvaziada de sentido a norma constitucional, com respeito pela igualdade (artigos 13.º e 59.º, n.º 1, da CRP). Por outro lado, tratando-se de atribuir, no apontado contexto, um direito a uma prestação pecuniária, e de limitar no tempo a efetividade desse direito pelo não exercício, tal atribuição deve operar, na compaginação destas duas vertentes, segundo regras claras, certas e objetivas – exigência decorrente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5. Tendo presentes as linhas essenciais do NRFGS – em particular a norma objeto do presente recurso (cfr. itens 2.1. e 2.2., supra) – verificam-se aporias que o afastam do padrão de efetividade e certeza acabado de traçar.
De acordo com o sentido das normas relevante para a presente decisão (cfr. item 2.2., supra), a declaração de insolvência faz nascer o direito ao acionamento do FGS. Sucede que a declaração judicial constitui um momento num processo judicial contraditório, de cujos termos o trabalhador tem (ou pode ter) unicamente o domínio do impulso processual inicial, sendo que, subsequentemente, o desenvolvimento do processo como que lhe “sai das mãos”, sendo muito limitada a respetiva capacidade de determinar no elemento tempo os ulteriores passos processuais até à efetiva declaração do devedor em estado de insolvência. De facto, basta pensar que, não sendo um dos casos excecionais de dispensa da audiência do devedor (artigo 12.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, doravante CIRE), há lugar à citação deste, que poderá ser mais ou menos demorada, podendo ser apresentada oposição e realizada audiência de julgamento, gerando-se uma dilação assinalável entre o pedido de declaração da insolvência e essa mesma declaração – circunstâncias das quais o caso dos autos constitui, aliás, exemplo vivo, tendo a declaração de insolvência ocorrido cerca de seis meses e meio após ter sido requerida pelo primeiro Recorrente. Ou seja, pegando precisamente no exemplo que os autos ilustram, observamos que se consumiu mais de metade do prazo de acionamento do FGS em vicissitudes processuais que o trabalhador credor da insolvente não esteve em condições de dominar, sendo certo que a declaração de insolvência foi pedida decorridos que foram menos de seis meses do prazo de um ano previsto no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS.
Não estamos – deve sublinhar-se – perante a questão, sucessivamente apreciada pela jurisprudência europeia, de saber se o legislador pode fixar prazos mais ou menos alargados para o exercício do direito ao acionamento do FGS, sob pena de caducidade ou prescrição: ninguém aqui discute a existência de prazos nem o prazo em concreto estabelecido na norma referenciada na decisão.
O que está em causa é saber se, na contagem desse prazo, é possível incluir um período temporal (que, como vimos, pode ser assinalável) especificamente determinado e tendente à criação de um pressuposto essencial do direito ao acionamento do FGS (o período entre o pedido de declaração da insolvência e a sua efetiva declaração pelo tribunal competente), cujos termos escapam por completo ao controlo do trabalhador-credor, de tal forma que o mero decurso do tempo nessa fase processual provoque a extinção do direito. Assim se cria uma evidente antinomia: o trabalhador-credor de um empregador insolvente que queira ver tutelado o direito à prestação pelo FGS vê-se obrigado a pedir a declaração de insolvência e, a partir desse momento, as vicissitudes próprias do processo que fez nascer com essa finalidade, comprometem o exercício desse mesmo direito, sem que um comportamento alternativo lhe seja exigível – rectius, possa por ele ser adotado – no sentido de evitar essa preclusão.
Ao fazer nascer, ainda que potencialmente, na própria condição de realização de um direito a causa da sua extinção, à qual o respetivo titular se vê impossibilitado de obstar, o legislador deixa de conferir à retribuição – e ao “remédio” (talvez mais até ao paliativo) para a sua perda – a tutela que lhe era devida nos termos do artigo 59.º, n.º 3, da Constituição. Sendo certo que o sistema do FGS “pressupõe um nexo entre a insolvência e os créditos salariais em dívida” (acórdão do TJUE de 28 de novembro de 2013, cfr. supra 2.3.2.3.), seria o próprio processo judicial com aptidão para estabelecer o referido nexo que constituiria causa da preclusão do direito.
Geram-se, por outro lado, diferenciações arbitrárias na concessão (na realização) daquele direito a distintos titulares, subordinado que fica este à duração maior ou menor da fase inicial dos processos de insolvência, em função de ter sido deduzida oposição, da duração das audiências de julgamento, das diferentes capacidades de resposta dos tribunais, etc. Tudo fatores alheios à vontade do trabalhador-credor e que, por isso mesmo, não suportam a afirmação de existência de algo semelhante a um “domínio do facto” por este, cujo efeito de condicionamento do respetivo direito não encontra justificação na tutela de qualquer outro valor que possamos considerar relevante no confronto com a necessidade de tutela da retribuição que se verifica no contexto apontado.
A este respeito, não releva, propriamente, de forma direta, a qualificação do prazo como de caducidade ou de prescrição – questão que, na ausência de uma opção legal expressa, se prefigura como de âmbito fundamentalmente doutrinário que, em todo o caso, nos aparece aqui ligada a uma opção interpretativa do direito infraconstitucional –, relevando antes a circunstância de, no contexto descrito, a contagem de tal prazo ocorrer sem qualquer suspensão ou interrupção, gerando um sinal – rectius, potenciando um efeito – de valor contrário ao próprio direito.
Note-se, todavia – sublinhando o sentido atuante que a qualificação jurídica do prazo aqui acabou por assumir –, que o Fundo, na fundamentação da respetiva posição de indeferimento da pretensão dos ora Recorridos (cfr. item 1.2.1. supra) – e sublinha-se, pois, que foi nesse quadro que a decisão recorrida, como não podia deixar de ser, se forjou –, qualificou expressamente o prazo em causa no artigo 2.º, n.º 8, do NRFGS como de caducidade, referindo-lhe expressamente a circunstância, que é própria do regime da caducidade nos termos do artigo 328.º do CC, de só comportar suspensão ou interrupção mediante previsão legal, no caso inexistente. E, de facto, é neste contexto que se afirma que, “[e]m matéria de contagem do prazo de caducidade[,] aplicam-se, em princípio, tal como na prescrição, as regras gerais, com uma importante diferença. Na caducidade vale muito mais plenamente o princípio segundo o qual o tempo se conta ininterruptamente”, já que, “[…] como resulta do artigo 328.º do CC, ‘o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe, senão nos casos em que a lei o determine’. Assim, se a lei, em cada caso concreto, não admitir, expressamente, a suspensão e a interrupção do prazo de caducidade (ou algum destes institutos), o prazo corre sempre sem intermitências de qualquer ordem” (Luís A. Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2007, p. 703). Ora, tendo sido a invocação, por parte do FGS, desta característica do regime da caducidade que conduziu à construção do indeferimento (por inexistir previsão legal a permitir a suspensão ou a interrupção do decurso do prazo), não poderia a decisão recorrida, ao sindicar esse indeferimento, deixar de pressupor essa interpretação e construir em função dela a questão de inconstitucionalidade que constituiu a respetiva ratio decidendi.
Porém, não é irrelevante a pouca clareza do regime legal, espelhada na norma em causa, considerada em si mesma ou sistematicamente inserida no diploma que a contém. O elemento de incerteza deste regime (evidenciado à saciedade, nestes autos, pelas posições assumidas na decisão recorrida, nas alegações e contra-alegações de recurso e no item 2.2., supra) compromete seriamente a efetividade da tutela que corresponde ao mecanismo do FGS, apresentando-se o complexo normativo do NRFGS, ao gerar estas interpretações díspares, com uma consistência pouco definida – para não dizer insuportavelmente ambígua –, cuja interpretação muito dificilmente assumirá um sentido minimamente claro, gerador de segurança nos destinatários beneficiários do seu âmbito de proteção. Isto ao ponto destes não disporem, consistentemente, da possibilidade de, agindo com normal diligência, anteverem com suficiente segurança o comportamento que devem adotar para formular atempadamente a sua pretensão junto do FGS, assim se comprometendo as exigências mínimas de certeza decorrentes do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição).
2.5.1. Aliás, em hipóteses como a dos presentes autos, pode mesmo dizer-se, tomando de empréstimo as palavras do acórdão do TJUE de 16 de julho de 2009, no caso Visciano (referido supra no item 2.3.2.1.), que a configuração do prazo pode tornar “[…] impossível na prática ou excessivamente difícil” o exercício do direito do trabalhador credor, além de que – como justamente se assinalou naquela decisão – “[…] uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica pode constituir uma violação do princípio da efetividade, uma vez que a reparação dos danos causados a particulares por violações do direito comunitário imputáveis a um Estado-Membro pode, na prática, ser extremamente dificultada se estes não puderem determinar o prazo de prescrição aplicável, com um razoável grau de certeza”.
2.6. As razões que antecedem são, pois, aptas a fundar um juízo de censura constitucional à norma sub judicio, confirmando a esse respeito a decisão recorrida. Complementarmente, justificam-se duas observações adicionais, referidas à incidência na situação do Direito da União e à referenciação da intervenção do Tribunal Constitucional exclusivamente à questão de inconstitucionalidade.
2.6.1. Assim, como primeira nota, respeitante às incidências do caso relativas ao Direito da União, cumpre-nos salientar, quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal no quadro referencial do artigo 8.º, n.º 4 da CRP (aqui relevante no trecho que estabelece que “[…] as normas emanadas das […] instituições [da União Europeia], no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos no Direito da União […]”), a ausência de justificação para que equacionemos (neste recurso) um reenvio prejudicial de interpretação ao TJUE, nos termos do artigo 267.º do Tratado sobre o funcionamento da União Europeia (TFUE).
Vale esta opção – como adiante explicitaremos – em função da constatação de não se prefigurar aqui, na sequência da jurisprudência do TJUE referida ao longo deste Acórdão, uma dúvida quanto à interpretação do Direito da União que apresenta relevância no caso concreto, designadamente quanto ao sentido prescritivo dos artigos 3.º sucessivamente incluídos nas Diretivas 80/987/CEE e 2008/94/CE, referidas no item 2.3.1 supra. Estas, consubstanciando “atos jurídicos da União” vinculativos do Estado português “[…] quanto ao resultado a alcançar […]”, na aceção do terceiro parágrafo do artigo 288.º do TFUE (“[a] directiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios”), mostram-se já devidamente esclarecidas pela jurisprudência do TJUE, no seu sentido operante relativamente à norma de Direito interno aqui sujeita à apreciação do Tribunal Constitucional (o artigo 2.º, n.º 8 do NRFGS na interpretação em causa na decisão recorrida).
Aliás, conforme indicámos no item 2.5.1. supra, o ora decidido encontra-se, assumidamente, em linha com o sentido evidente dessa jurisprudência relevante na matéria aqui em causa – referimo-nos às decisões, todas proferidas em processos de reenvio, do TJUE referenciadas no item 2.3.3. supra e respetivas subdivisões (2.3.3.1 a 2.3.3.4.) –, concretamente com o ponto 46. acima transcrito, no item 2.3.3.1., constante do acórdão Visciano c. INPS, de 16 de julho de 2009 (processo C-69/08).
Com efeito, estando em causa uma obrigação de reenvio, nos termos do terceiro parágrafo do artigo 267.º do TFUE, “[…] para os órgãos jurisdicionais que julguem sem hipótese de recurso judicial previsto no direito interno” [Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1982 – Processo 283/81 Srl Cilfit et Lanificio di Gavardo SpA c. Ministero della sanità”, in Princípios Fundamentais de Direito da União Europeia. Uma Abordagem Jurisprudencial, Sofia Oliveira Pais (coord.), 3.ª ed., Coimbra, 2014, p. 223], verifica-se neste caso uma das circunstâncias nas quais, segundo o TJUE no acórdão Cilfit, está o tribunal nacional dispensado desse reenvio.
Referimo-nos em concreto, seguindo o ponto 14. desse acórdão de 1982 (que é invariavelmente assumido como precedente de forte valor persuasivo), às situações em que exista “[…] uma orientação jurisprudencial do Tribunal que esclareça o ponto de direito em causa, qualquer que seja a natureza do procedimento que deu lugar a esta jurisprudência, mesmo na ausência de uma estrita identidade das questões em litígio”. Nestes casos, o esclarecimento anterior pelo TJUE de uma situação equivalente, em termos aptos a suportar, consistentemente, um juízo de identidade de razão, confere à norma interpretada a natureza de “ato clarificado” (Inês Quadros, “Acórdão do Tribunal de Justiça de 6 de outubro de 1982…”, cit. p. 229).
2.6.2. A isto acresce – como segunda nota complementar acima indicada no item 2.6. – a seguinte observação. Cabe ao Tribunal Constitucional a última palavra sobre a inconstitucionalidade da norma em questão, não lhe cabe, porém, determinar qual a melhor interpretação do direito infraconstitucional na sequência do afastamento dessa norma (dessa construção normativa). Assim, na falta de uma opção legislativa expressa, caberá aos tribunais comuns a solução das questões que o presente julgamento deixa em aberto (designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção).
Cinge-se, pois, a presente decisão, à questão de inconstitucionalidade, nos termos em que esta emergiu da decisão de recusa do Tribunal a quo.
2.7. Pelas razões que antecedem, improcede o recurso, devendo confirmar-se a decisão recorrida.
É o que nos resta afirmar, conferindo-lhe expressão decisória.
(…)”
Decisão com a qual se concorda vistos os fundamentos.
A configuração do prazo para reclamar créditos ao Fundo de Garantia Salarial contante da norma em apreço, como prazo de caducidade insusceptível, como tal, de suspensão ou interrupção, pode tornar impossível na prática ou excessivamente difícil o exercício do direito do trabalhador credor, além de que, face à divergência de interpretações doutrinárias e jurisprudenciais, conduz a uma situação caracterizada por uma considerável incerteza jurídica o que pode constituir uma violação do princípio da efetividade.
Dispõe o artigo 282º da Constituição da República Portuguesa sob a epígrafe “Efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade”.
“1. A declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das normas que ela, eventualmente, haja revogado”.
Não vemos razão para não aplicar esta norma, dirigida à hipótese de “declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade com força obrigatória geral” ao caso, como o presente, em que temos uma declaração de inconstitucionalidade ou de ilegalidade ainda sem força obrigatória geral.
Na verdade é a solução que mais segurança e certeza traz para a solução de casos similares, dada a sedimentação que o antigo regime jurídico já tinha alcançado.
E porque, por outro lado, tendo em conta a multiplicidade de situações idênticas que correm nos tribunais administrativos, mantendo-se a declaração de inconstitucionalidade, com o recurso obrigatório pelo Ministério Público para o Tribunal Constitucional, é previsível que venha a surgir essa declaração com força obrigatória geral, pelo que, com esta posição, já estará preparado o caminho pela jurisprudência dos tribunais administrativos para tal declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, reforçando a certeza e segurança jurídicas.
Apenas não vemos razão para nos embrenharmos nas questões que aqui se deixam em aberto, designadamente, se deve tratar-se de interrupção ou suspensão do prazo, se o efeito interruptivo ou suspensivo em relação a todos os credores pode depender do pedido de declaração de insolvência de um só credor ou de um credor de certa categoria ou até quando se deve verificar a suspensão ou interrupção.
Questões cuja resolução poderá manter ou até acentuar a insegurança e incerteza na interpretação e aplicação da norma.
Dispunha o artigo 319º, nº 3, da Lei nº 35/2004, de 29.07, norma anteriormente em vigor, que o Fundo de Garantia Salarial só assegurava o pagamento dos créditos que lhe fossem reclamados até 3 meses da respectiva prescrição.
No caso concreto os créditos, embora emergentes da cessação do contrato de trabalho, ocorrida em 16.05.2014, foram reconhecidos por sentença de 04.04.2016.
Pelo que ao caso se aplica o prazo geral de vinte anos, previsto no artigo 309º do Código Civil.
Assim sendo, quando a Autora reclamou junto do Fundo de Garantia Salarial o pagamento dos seus créditos salariais, no dia 24.05.2016, estava longe de caducar o seu direito porque também estavam longe de prescrever os créditos salariais.
Pelo que se deve concluir que é totalmente procedente a pretensão do autor, ao contrário do decidido.
Solução que se adoptou nos acórdãos deste Tribunal Central Administrativo Norte, de 07.12.2018, processo 2492/16.7 PRT, de 21.12.2018, processo 232/17.2 CBR, de 21.12.2018, processo 1777/17.0 PRT, e de 11.01.2019, processo 61/17.3 BRG.
Merece, pois, provimento o presente recurso, impondo-se revogar a decisão recorrida e julgar a acção totalmente procedente.
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IV - Pelo exposto, os juízes da Secção Administrativa do Tribunal Central Administrativo Norte, acordam em CONCEDER PROVIMENTO ao presente recurso jurisdicional pelo que:
A) Revogam a decisão recorrida.
B) Julgam a acção totalmente procedente e condenam o Réu nos termos peticionados.
Custas pelo Réu, ora Recorrido, em ambas as Instâncias.
Porto, 25.01.2019
Ass. Rogério Martins
Ass. Luís Garcia, com declaração de voto
Ass. Conceição Silvestre, com declaração de voto
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Declaração de voto
Não dissentindo do fundamento de inconstitucionalidade presente no citado Ac. do Tribunal Constitucional, tenho que a sua transposição para o caso não passa por aplicar a norma do art.º 282º, n° 1, da CRP; antes, sem essa intermediação, cabe mesma solução de direito final por desaplicação, e sem repristinação.
Porto, 25 de Janeiro de 2019.
Ass. Luís Garcia
Ass. Conceição Silvestre