Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01694/10.4BEPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:01/20/2011
Relator:José Luís Paulo Escudeiro
Descritores:RECLAMAÇÃO DE DECISÃO DE ORGÃOS DE EXECUÇÃO FISCAL
CONHECIMENTO IMEDIATO VERSUS CONHECIMENTO DIFERIDO
PEDIDO DE AFECTAÇÃO DE PAGAMENTOS POR CONTA A MONTANTES EM DÍVIDA QUE CONSUBSTANCIAM PROCESSO-CRIME
PREJUIZO IRREPARÁVEL
PERDA DA UTILIDADE DA APRECIAÇÃO DIFERIDA DA RECLAMAÇÃO
Sumário:I- Em matéria de apreciação de reclamações de decisões de órgão de execução fiscal, em princípio, o tribunal só conhecerá delas quando, depois de realizadas a penhora e a venda, o processo lhe for remetido a final – Cfr. artº 268º-1 do CPPT;
II- O disposto no n.º 1 desse normativo legal não se aplica quando a reclamação se fundamentar em prejuízo irreparável causado, entre outras, por qualquer das ilegalidades enunciadas no nº 3, ainda do artº 268ºdo CPPT;
III- O mesmo deve acontecer em caso perda de utilidade quanto ao conhecimento diferido da reclamação; e
IV- Tal será o caso da reclamação do indeferimento de pedido de afectação de importância por pagamentos por conta já efectuados a montantes em dívida que consubstanciam processo-crime, em que o pagamento constitui condição de punibilidade.*
* Sumário elaborado pelo Relator
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Tributário do TCAN:
I- RELATÓRIO
R…, devidamente id. nos autos, inconformada com a decisão do TAF do Porto, datada de 30.SET.10, que julgou improcedente a RECLAMAÇÃO DE DECISÃO DE ÓRGÃO DA EXECUÇÃO FISCAL, por si apresentada, no âmbito da execução fiscal n° 3581200501002023 e apensos, a correr termos pelo Serviço de Finanças de V. N. Gaia, mais propriamente de despacho do Chefe deste Serviço de Finanças, datado de 20.MAI.10, de indeferimento de pedido de afectação da importância de € 245.491,51 referente a pagamentos por conta já efectuados, aos montantes ainda em dívida que consubstanciam um processo crime, recorreu para o TCAN, formulando as seguintes conclusões:
A) A recorrente alegou e provou factos que consubstanciam a existência de um prejuízo irreparável caso não se conheça da reclamação apresentada;
B) A recorrente alegou e provou factos que justificam a inutilidade da sua apreciação apenas aquando da extinção do processo de execução fiscal;
C) E como tal deveria ter sido expressamente atendidos como factos provados,
D) Desde logo, a simples ameaça, concretizada pelo inquérito (com o n° l5724/09.9IDPRT) aberto pela prática de crime de abuso de confiança fiscal p.p. pelos artigo 105.° n.°s 1, 2 e 5 do RGIT (aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06) e o valor a ele adstrito - que veio a consubstanciar a acusação pelo valor de 210.615,78 € de IVA devido ao Estado, atenta a moldura penal que abstractamente incide sobre tal crime e que pode ser aplicada à ali arguida;
E) Os factos descritas em 3, 6 15 e 16 da “Formulação de conclusões” a que a sentença de que se recorre se refere;
F) O facto superveniente da dedução da acusação, documento nº 1 que se junta e cujo teor se reproduz na íntegra;
G) Que só após apresentação da reclamação foi deduzida;
H) A morosidade já demonstrada pelo documento n.° 3 junto com a reclamação e o tempo que decorreu sem que tenha sido vendido o quinhão hereditário da herança do pai da recorrente;
I) a impossibilidade da ora recorrente afectar os montante pagos preferencialmente a capital, a juros ou a despesas, para efeitos criminais;
J) o pagamento voluntário, em 06-032008, da quantia de 116.613,12 €, entregue às Finanças pela recorrente - doc. 3 junto com reclamação;
K) os factos descritos nos artigos 14 a 19 do requerimento da reclamação;
L) a falta de condições económicas da recorrente;
M) factos estes que, conjugados com os constantes dos pontos 5,6 a 8 da matéria dada como provada,
N) Consubstanciam matéria suficiente para que fosse dado como provada a existência de um prejuízo irreparável para a reclamante e a inutilidade do conhecimento da reclamação em momento ulterior;
DO DIREITO:
O) Estão preenchidos os pressupostos para aplicação do disposto no art.° 278.° n.° 3 do CPPT;
P) A não apreciação da reclamação apresentada, provocará um prejuízo irreparável que poderá, em abstracto, ser demonstrado por duas vias: a própria questão financeira da ora recorrente e a perda da utilidade da reclamação.
Q) A eventual decisão de reafectação dos valores pagos por conta de capital de IVA condiciona inelutável e indubitavelmente a aplicação ou não, no processo crime, de uma pena de prisão efectiva à ora requerente;
R) Para além de poder manter um valor elevadíssimo em aberto, como dívida fiscal;
S) a não atendibilidade da reclamação feita no âmbito dos factos alegados e prova feita já junta e dos factos notórios ou quiçá factos de que o Tribunal tem conhecimento no âmbito das suas funções, já que sabe o que a lei comina para este tipo de ilícito - art.° 514.° CPC, aplicável subsidiariamente - tratar-se de situação urgente que causará um prejuízo irreparável à reclamante;
T) O elenco do art.° 278.° CPPT é meramente enunciativo;
U) Cabendo no âmbito do mesmo, a situação dos autos;
V) Outro entendimento, será afrontar o princípio constitucional da tutela judicial efectiva;
W) Viola-se, com a decisão de que se recorre, o princípio de que “ninguém é preso por dívidas”;
X) O conhecimento da reclamação apresentada, faz parte do conjunto de “todas as reclamações cuja retenção pode originar prejuízos”;
Y) o prejuízo que se quer impedir (económico e pessoal - liberdade), se o não for, torna impossível a sua reparação;
Z) a eventual aplicação de uma pena de prisão é IMPOSSÍVEL REPARAR;
AA) Sem conhecimento atempado da reclamação perdem-se os benefícios da tramitação do processo crime;
BB) Por exemplo a dispensa de pena ou a suspensão da pena de prisão, sendo que este último está dependente em exclusivo do pagamento do imposto;
CC) O conhecimento da reclamação apresentada pela ora recorrente, dentro dos 30 dias após notificação da sua constituição como arguida, permitiria afastar os requisitos de punibilidade.
DD) Pelo que não se deu cumprimento ao previsto no art.° 105°, n.° 4, al. b) do RGIT;
EE) A recorrente exerceu o ónus da prova como lhe competia;
FF) A recorrente não poderá partir em clara desvantagem no que concerne, por exemplo, a uma decisão de suspensão de pena, uma vez que esta só é decretada quando aquela tenha capacidade financeira para assegurar o pagamento do imposto em falta;
GG) Deveria ter sido conhecida a reclamação apresentada;
HH) E ter sido reconhecida a reafectação das quantias pagas à dívida de IVA;
II) Assim, a sentença do processo crime sempre terá de atender a esse facto;
JJ) O processo executivo não é extinto até efectivo e integral pagamento das quantias em falta;
KK) O processo executivo é moroso veja-se documento n.°3 junto na reclamação;
LL) a falta de apreciação da reclamação poderá resultar num manifesto aumento da moldura penal a aplicar à aqui recorrente, cujo cumprimento integral da pena poderá ocorrer antes da conclusão do processo-crime;
MM) deverá o tribunal fixar os factos que se referiram supra e fazer uma interpretação diferente da aplicação do Direito, considerando que existe prejuízo irreparável e perda de utilidade na sua apreciação “a posteriori”, da reclamação apresentada,
NN) Devendo conhecer do mérito da presente reclamação e respectivo recurso, assumindo a referida reclamação natureza urgente, com todas as consequências legais.
OO) Foram violados os artigos 105°, n.° 4, al. b) do RGIT, 278, n.°a 1 e 3 do CPPT.
Revogando a Douta decisão estarão V. Exa. a fazer JUSTIÇA!
Não foram apresentadas contra-alegações.
O Mº Pº emitiu pronúncia nesta instância, no sentido da procedência do recurso e da improcedência da reclamação.
Com dispensa dos vistos legais, o processo é submetido à Secção do Contencioso Tributário para julgamento do recurso.
II – QUESTÕES A DECIDIR NO RECURSO
a) O erro de julgamento de facto, por desconsideração de factualidade provada documentalmente, que consubstanciam matéria suficiente em ordem à demonstração da existência de um prejuízo irreparável para a Reclamante e da inutilidade do conhecimento da reclamação em momento ulterior;
b) O erro de julgamento de direito quanto à apreciação dos critérios de subida da reclamação constantes dos nºs 1 e 3 do artº 278º do CPPT; e
c) O erro de julgamento de direito decorrente da falta de conhecimento da reclamação com incumprimento do disposto no artº 105º-4-b) do RGIT.
III – FUNDAMENTAÇÃO
III-1. Matéria de facto
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:
1) No Serviço de Finanças de Vila Nova de Gaia 3 foi instaurado em 23.02.2005 o processo de execução fiscal n.° 3581200501002023, contra a executada I… - Comércio de Utilidades Domésticas, Lda., por dívidas IVA, IRS e Coimas, Juros e Custas, no montante global naquela data de 434.661,12 € (cfr. fls. 77 e ss. e 108 dos autos) e actualmente de 719.380,15 €;
2) Aquela execução, por despacho datado de 21.03.2007 reverteu contra R… (cfr. fls. 168 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
3) Por sentença datada de 18.02.2009 foi a I… - Comércio de Utilidades Domésticas, Lda. declarada Insolvente (cfr. fls. 516 a 530 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido), tendo sido enviada certidão de dívidas ao DMMP junto do Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia (cfr. fls. 586 a 589 dos autos, que aqui se dão por reproduzidas);
4) À ordem dos presentes autos de execução fiscal encontra-se actualmente penhorado o quinhão hereditário da executada por reversão ora reclamante (cfr. informação de fls. 613 e 614 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzida);
5) A revertida/reclamante apresentou requerimento dirigido ao Chefe de Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia 3, em 17 de Maio de 2010, requerendo que os pagamentos voluntários que foram ocorrendo até a declaração da Insolvência da I…, no valor de 245.491,00 €, esse valor deve ser afecto aos montantes em dívida relativos a IVA liquidado e recebido nos períodos de 2005 (Janeiro, Fevereiro, Abril, Junho, Agosto a Outubro e Dezembro), 2006 e 1° trimestre de 2008, no valor de 27.205,134 €, objecto do inquérito criminal supra identificado, em detrimento de outros valores mais antigos, de juros ou de coimas devidas (cfr. fls. 686 a 699 dos autos);
6) Foram efectuados pagamentos no valor total de 247.191,51€, anteriores à data da apresentação do requerimento pela executada revertida/reclamante de 12.05.2010 (último pagamento Fevereiro de 2009) - (cfr. fls. 668 e 669 dos autos e 673 a 684 dos autos);
7) No processo de Execução Fiscal n.° 3581200501058258, respeitante a IVA de Janeiro, Março, Abril, Maio e Fevereiro de 2005, foi efectuado um pagamento no valor de 20.515,58 €, em 06 de Março de 2008, imputado a Juros de Mora e Custas (cfr. fls. 678 dos autos);
8) No processo de Execução Fiscal n.° 3581200601020706, respeitante a IVA de Janeiro de 2006, Outubro, Dezembro, Novembro, Setembro, Junho, Julho e Agosto de 2005 e Março, Abril, Maio e Fevereiro de 2005, foi efectuado uma pagamento no valor de: 27.331,79 €, em 06 de Março de 2008, imputado a Juros de Mora e Custas (cfr. fls. 680 dos autos);
9) Dá-se aqui por integralmente reproduzida a informação prestada a fls. 673 a 684 dos autos;
10) Recaiu despacho sobre o requerimento da revertida/reclamante, proferido pelo Chefe de Finanças de Vila Nova de Gaia em 20 de Maio de 2010, com o seguinte teor que se transcreve: “Em face da informação que antecede, indefiro o pedido de afectação da importância de 245.491,51 € referente a pagamentos por conta já efectuados, aos montantes ainda em dívida que consubstanciam um processo crime, porquanto todos os pagamentos são anteriores à data da primeira notificação efectuada nos termos do artigo 105° do RGIT, em 12 de Fevereiro de 2009. Informe-se a requerente que todos os pagamentos de valores em dívida pela executada I… - COMÉRCIO DE UTILIDADES DOMÉSTICAS, LDA., NIPC – 5…, foram efectuados através do sistema informático de pagamentos e seguiram a ordem de prioridade de aplicação prevista nos artigos 262° e 264° ambos do CPPT. Notifique-se o presente despacho, dando conhecimento à requerente que este é passível de reclamação para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, nos termos do art. 276° e seguintes do CPPT, no prazo de 10 dias a contar da notificação.” - cfr. fls. 685 dos autos;
11) Em 20.05.2010 a executada/reclamante foi notificada daquele despacho, tudo nos termos constantes de fls. 700 e 701 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas;
12) Em 01.06.2010 foi apresentada a presente reclamação (cfr. fls. 7 a 17 dos autos).
13) Dá-se aqui por reproduzido o teor dos documentos juntos pela executada revertida/reclamante constantes de fls. 688 a 698, nomeadamente a notificação efectuada pela Divisão de Processos Criminais Fiscais para efectuar o pagamento do IVA no valor de € 27 205,134, respectivos juros e coimas aplicáveis, pelo atraso no pagamento da prestação tributária, nos termos do disposto no art. 105° n.° 4 al. b) do RGIT.
III-2. Matéria de direito
Constitui objecto do presente recurso jurisdicional, indagar dos invocados erros de julgamento de facto, por desconsideração de factualidade provada documentalmente, que consubstanciam matéria suficiente em ordem à demonstração da existência de um prejuízo irreparável para a Reclamante e da inutilidade do conhecimento da reclamação em momento ulterior; e de direito quer quanto à apreciação dos critérios de subida da reclamação constantes dos nºs 1 e 3 do artº 278º do CPPT 147º do CPPT quer decorrente da falta de conhecimento da reclamação com incumprimento do disposto no artº 105º-4-b) do RGIT.
III-2-1. Do erro de julgamento de facto
Sustenta a Recorrente ter alegado e provado factos que consubstanciam a existência de um prejuízo irreparável caso não se conheça da reclamação apresentada bem como ter alegado e provado factos que justificam a inutilidade da sua apreciação apenas aquando da extinção do processo de execução fiscal.
Desde logo, a simples ameaça, concretizada pelo inquérito (com o n° 15724/09.9IDPRT) aberto pela prática de crime de abuso de confiança fiscal p. e p. pelo artº 105°, n°s 1, 2 e 5 do RGIT (aprovado pela Lei 15/2001, de 05/06) e o valor a ele adstrito - que veio a consubstanciar a acusação pelo valor de 210.615,78 € de IVA devido ao Estado, atenta a moldura penal que abstractamente incide sobre tal crime e que pode ser aplicada à ali arguida.
E, por outro lado, os factos descritas em 3, 6, 15 e 16 da “Formulação de conclusões” a que a sentença de que se recorre se refere, bem como o facto superveniente da dedução da acusação, a qual só após apresentação da reclamação foi deduzida, a par da morosidade já demonstrada pelo documento n° 3 junto com a reclamação e o tempo que decorreu sem que tenha sido vendido o quinhão hereditário da herança do pai da recorrente, da impossibilidade da ora recorrente afectar os montante pagos preferencialmente a capital, a juros ou a despesas, para efeitos criminais, do pagamento voluntário, em 06-03-2008, da quantia de 116.613,12 €, entregue às Finanças pela recorrente - doc. 3 junto com reclamação - bem como dos factos descritos nos artigos 14 a 19 do requerimento da reclamação, a que acresce a falta de condições económicas da recorrente.
Todos estes factos, conjugados com os constantes dos pontos 5 e 6 a 8 da matéria dada como provada, consubstanciam matéria suficiente para que fosse dado como provada a existência de um prejuízo irreparável para a reclamante e a inutilidade do conhecimento da reclamação em momento ulterior.
Cumpre decidir.
É o seguinte o teor dos factos descritos em 3, 6, 15 e 16 da “Formulação de conclusões” a que a sentença recorrida se refere, no seu relatório, ao sintetizar as conclusões da Reclamação judicial apresentada pela Reclamante/Recorrente:
“ 3º Nomeadamente, entregou ao estado a sua casa de morada de família;
6º A reclamante ficou em situação económica precária;
15º A requerente vive em situação de clara e grave carência económica; e
16º Está desempregada, não auferindo qualquer subsídio ou subvenção ou rendimento estatal”
Por outro lado, o teor dos artigos 14 a 19 do requerimento da reclamação, repete, no essencial, o teor dos factos atrás relatados.
Ora, acontece que, por um lado, a Reclamante em parte alguma da Reclamação judicial alega, enquanto fundamento da afectação de verbas pagas aos montantes de IVA em dívida que consubstanciam crime fiscal, a existência de prejuízo irreparável.
E, por outro lado, os factos atrás enunciados, para além de não parecerem relevar em sede de apreciação do pressuposto existência de prejuízo irreparável, os mesmos ou não se mostram provados ou se configuram como meramente conclusivos e não como factos concretos, de cuja prova se pudesse depreender a verificação daquele requisito - existência de prejuízo irreparável - de que a lei faz depender a apreciação imediata da Reclamação, sendo certo, em todo o caso que o teor do doc. nº 3 junto com a reclamação, respeitante à penhora do quinhão hereditário da herança do pai da recorrente, consta já da matéria de facto dada como assente na sentença recorrida.
Termos em que improcedem as conclusões de recurso quanto ao invocado erro de julgamento de facto.
III-2-2. Do erro de julgamento de direito quanto à apreciação dos critérios de subida da reclamação constantes dos nºs 1 e 3 do artº 278º do CPPT.
Alega a Recorrente encontrarem-se preenchidos os pressupostos para aplicação do disposto no art.° 278.° n.° 3 do CPPT.
A não apreciação da reclamação apresentada, provocará um prejuízo irreparável que poderá, em abstracto, ser demonstrado por duas vias: a própria questão financeira da ora recorrente e a perda da utilidade da reclamação.
Com efeito, a eventual decisão de reafectação dos valores pagos por conta de capital de IVA condiciona a aplicação ou não, no processo crime, de uma pena de prisão efectiva à ora requerente, pelo que a não atendibilidade da reclamação feita no âmbito dos factos alegados e provados para além de factos notórios ou de que o Tribunal tem conhecimento no âmbito das suas funções, designadamente o que a lei comina para este tipo de ilícito causará um prejuízo irreparável à reclamante, sendo que o elenco do art.° 278.° CPPT é meramente enunciativo, cabendo no âmbito do mesmo, a situação dos autos, sob pena de afrontação do princípio constitucional da tutela judicial efectiva.
Sem conhecimento atempado da reclamação perdem-se os benefícios da tramitação do processo crime, tal como a dispensa de pena ou a suspensão da pena de prisão, sendo que este último está dependente em exclusivo do pagamento do imposto.
Vejamos.
O quadro legal da figura jurídica das Reclamações das decisões de órgão de execução fiscal encontra-se regulado pelos artºs 276º a 278º do CPPT.
Estabelecem tais normativos legais, o seguinte:
Artº 276.º
(Reclamações das decisões do órgão da execução fiscal)
As decisões proferidas pelo órgão da execução fiscal e outras autoridades da administração tributária que no processo afectem os direitos e interesses legítimos do executado ou de terceiro são susceptíveis de reclamação para o tribunal tributário de l.ª instância.
(Lei n.º 109-B/2001 de 27 de Dezembro)
Artº 277.º
(Prazo e apresentação da reclamação)
1 - A reclamação será apresentada no prazo de 10 dias após a notificação da decisão e indicará expressamente os fundamentos e conclusões.
2 - A reclamação é apresentada no órgão da execução fiscal que, no prazo de 10 dias, poderá ou não revogar o acto reclamado.
3 - Caso o acto reclamado tenha sido proferido por entidade diversa do órgão da execução fiscal, o prazo referido no número anterior é de 30 dias.
(Lei n.º 109-B/2001 de 27 de Dezembro)
Artº 278.º
(Subida da reclamação. Resposta da Fazenda Pública e efeito suspensivo)
1 - O tribunal só conhecerá das reclamações quando, depois de realizadas a penhora e a venda, o processo lhe for remetido a final.
2 - Antes do conhecimento das reclamações, será notificado o representante da Fazenda Pública para responder, no prazo de 8 dias, ouvido o representante do Ministério Público, que se pronunciará no mesmo prazo.
3 - O disposto no n.º 1 não se aplica quando a reclamação se fundamentar em prejuízo irreparável causado por qualquer das seguintes ilegalidades:
a) Inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão com que foi realizada;
b) Imediata penhora dos bens que só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda;
c) Incidência sobre bens que, não respondendo, nos termos de direito substantivo, pela dívida exequenda, não deviam ter sido abrangidos pela diligência;
d) Determinação da prestação de garantia indevida ou superior à devida.
4 - No caso previsto no número anterior, caso não se verificar a circunstância dos nºs 2 e 3 do artigo 277.º, o órgão da execução fiscal fará subir a reclamação no prazo de oito dias.
5 - A reclamação referida no presente artigo segue as regras dos processos urgentes, tendo a sua apreciação prioridade sobre quaisquer processos que devam ser apreciados no tribunal que não tenham esse carácter.
6 - Considera-se haver má fé, para efeitos de tributação em sanção pecuniária por esse motivo, a apresentação do pedido referido no n.º 3 do presente artigo sem qualquer fundamento razoável.
(Lei n.º 109-B/2001 de 27 de Dezembro)
Resulta de tais comandos jurídicos, maxime do artº 278º, que, em princípio o tribunal só conhecerá das reclamações quando, depois de realizadas a penhora e a venda, o processo lhe for remetido a final.
Tal regime, todavia, comporta as excepções constantes do nº e do mesmo normativo, quais sejam a da reclamação se fundamentar em prejuízo irreparável decorrente quer da inadmissibilidade da penhora dos bens concretamente apreendidos ou da extensão da mesma, quer da penhora imediata de bens que apenas respondam subsidiariamente pela satisfação da divida exequenda, quer de se abranger em tal diligência de bens que, do ponto de vista substantivo, não respondam pela dívida exequenda, quer, ainda, da determinação da prestação de garantia indevida ou superior à devida — Cfr. alíneas a) a d) do referido n° 3 do artº 278° do CPPT.
Entretanto, conforme vem sendo entendimento quer da jurisprudência quer da doutrina, o elenco das situações elencadas no n° 3 do artº 278° do CPPT tem natureza meramente enunciativa, no sentido de que a excepção ao regime regra operará sempre que a reclamação tenha por base situações susceptíveis de acarretarem um prejuízo irreparável para o reclamante ou tornem absolutamente inútil essa mesma reclamação, sob pena de se afrontar o princípio constitucional da tutela judicial efectiva – Cfr. neste sentido o Ac. do STA, de 24.OUT.10, in Rec. nº 0102/10.
Ora, no caso dos autos, temos que a Recorrente/ Reclamante/Revertida, após ter sido notificada, em 21.ABR.10, no âmbito do Proc. de Inquérito nº 15724/09.9IDPRT, para no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento do IVA liquidado e recebido relativo aos períodos de 2005 (Janeiro, Fevereiro, Abril, Junho, Agosto a Outubro e Dezembro), 2006 e 1° trimestre de 2008, no valor de 27.205,134 , pelo atraso no pagamento da prestação tributária, apresentou requerimento dirigido ao Chefe de Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia 3, em 17.MAI.10, requerendo que os pagamentos voluntários que foram ocorrendo até a declaração da Insolvência da I…, no valor de 245.491,00 €, esse valor deve ser afecto aos montantes em dívida relativos a IVA liquidado e recebido nos períodos de 2005 (Janeiro, Fevereiro, Abril, Junho, Agosto a Outubro e Dezembro), 2006 e 1° trimestre de 2008, no valor de 27.205,134 €, objecto do inquérito criminal supra identificado, em detrimento de outros valores mais antigos, de juros ou de coimas devidas (cfr. fls. 686 a 699 dos autos), tendo, sobre tal requerimento recaído despacho proferido pelo Chefe de Finanças de Vila Nova de Gaia em 20 de Maio de 2010, com o seguinte teor: “Em face da informação que antecede, indefiro o pedido de afectação da importância de 245.491,51 € referente a pagamentos por conta já efectuados, aos montantes ainda em dívida que consubstanciam um processo crime, porquanto todos os pagamentos são anteriores à data da primeira notificação efectuada nos termos do artigo 105° do RGIT, em 12 de Fevereiro de 2009. Informe-se a requerente que todos os pagamentos de valores em dívida pela executada I… - COMÉRCIO DE UTILIDADES DOMÉSTICAS, LDA., NIPC – 5…, foram efectuados através do sistema informático de pagamentos e seguiram a ordem de prioridade de aplicação prevista nos artigos 262° e 264° ambos do CPPT. Notifique-se o presente despacho, dando conhecimento à requerente que este é passível de reclamação para o Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, nos termos do art. 276° e seguintes do CPPT, no prazo de 10 dias a contar da notificação.” - cfr. fls. 685 dos autos.
Perante tal despacho apresentou Reclamação judicial, alegando violação de princípios de direito, tais como, a justiça, a igualdade, a legalidade e a boa-fé.
Em parte alguma, invoca a existência de prejuízo irreparável, em ordem à sua apreciação imediata, nos termos do disposto nos nºs 1 e 3 do artº 268º do CPPT.
Perante isto, a sentença recorrida, foi do entendimento que a Reclamação não assume natureza urgente, por falta de subsunção no âmbito do nº 3 do artº 268º do CPPT, não sendo, por isso de conhecimento imediato.
É a seguinte a fundamentação constante da sentença recorrida:
“(…)
É que nenhuma prova a ora reclamante veio juntar ou requerer no sentido de demonstrar que por força dos pagamentos que foram afectado até Fevereiro de 2009 às dívidas mais antigas, lhe advenha um prejuízo irreparável, qual seja a decorrência da prossecução do processo de inquérito e eventual acusação que venha a ser deduzida.
Sendo que, a prossecução do procedimento criminal contra a Reclamante na qualidade de legal representante da I…— Comércio de Utilidades, Lda, até uma eventual condenação, se situa no campo das hipóteses e não pode ser tido como um dado adquirido, a equacionar como “prejuízo irreparável”.
Mais se refira, que não se vislumbra como pretende a reclamante contornar, o facto de o prazo a que se alude no art. 105°, n.° 4, al. b) do RGIT, de 30 dias para efectuar o pagamentos do imposto em falta, dos juros respectivos e das coimas aplicáveis, subjacente ao «processo de crime fiscal”, à muito ultrapassado, Só por si este facto, afasta o alegado “prejuízo irreparável” de se constituírem os requisitos de punibilidade da prática do crime de Abuso de confiança fiscal.
A emanação de tal ónus da prova para a ora reclamante resultava, quer da norma geral do art.° 342.° n.°1 do Código Civil, quer da norma do art.°74.° n°1 da LGT, que dispõe que, o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos da administração ou dos contribuintes recai sobre quem os invoque.
(…)
Por outro lado, é também de fazer subir imediatamente a reclamação naqueles casos em que, sem ela, toda a utilidade do recurso se quede perdida, conforme se tem defendido em jurisprudência do STA nesse sentido e bem assim a anotação de Jorge Lopes de Sousa no Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado, 2.ª Edição, VISLIS, pág. 106411065, nota 6., por aplicação, subsidiária, da norma do art.° 734.° n°2 do CPC.
Esta norma do CPC para a subida imediata do recurso apenas tem por objecto aqueles casos de inutilização absoluta do recurso em si, que não para a inutilização eventual de actos processuais praticados e que depois vêm a ser anulados por efeito da decisão, ou seja apenas vale para os casos em que a retenção faça perder a razão de ser do recurso; a sua utilidade e a eficiência deste depende da subida imediata, como se pronunciou o Prof. Alberto dos Reis, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 86.°, pág. 41.
Ora não foi neste âmbito, que a ora reclamante veio alegar tendo em vista obter a subida imediata da reclamação, continuando sempre a ser possível apreciar se tal não afectação” ofende qualquer principio legal, com o que de tal decisão, se favorável à reclamante, poder dimanar na mesma ficar sem efeito, não se mostrando assim, também, preenchido este requisito para que este recurso pudesse subir imediatamente.
Assim, porque se não mostra preenchido o pressuposto legal de prejuízo irreparável para a ora reclamante e com a subida ao tribunal da reclamação em causa após a prossecução dos actos com vista a execução coerciva em curso, eventuais pagamentos que venham a ocorrer e nem ser completamente inútil a reclamação se só conhecida a final, não se conhece por ora, do objecto do reclamação, devendo os autos baixarem ao órgão da execução fiscal para aí prosseguirem os ulteriores termos, se a tal não sobrevierem outras questões que o impeçam.
Pelo exposto, considerando não se estar perante qualquer uma das situações previstas nas diversas alíneas do art. 287° n.° 3 do CPPT, o processo não assume natureza urgente é, não é este o momento para se conhecer do recurso.
(…)”.
Que dizer da bondade da decisão recorrida?
Ora, como atrás se deixou dito, no caso dos autos não foi expressamente invocado pela Reclamante/Recorrente qualquer prejuízo irreparável, em ordem à apreciação imediata da Reclamação.
Porém, apesar da omissão de alegação e prova do eventual prejuízo irreparável derivado do não conhecimento imediato da Reclamação, afigura-se-nos que, no caso sub judice, caso não se proceda ao seu conhecimento imediato, pode a mesma perder a sua utilidade.
Com efeito, uma vez efectuada, a notificação da Reclamante, para os efeitos do disposto no artº 105º-4-b) do RGIT, que teve lugar em 21.ABR.10, a Reclamante, em 17.MAI.10 a afectação da importância de € 245 491,51 respeitante a pagamentos por conta já efectuados, com vista ao pagamento dos montantes ainda em dívida a que se reporta o processo crime fiscal.
Com isto pretendia a reclamante beneficiar do regime estabelecido por aquela norma, qual seja a de que, em caso de pagamento das importâncias a que respeita o processo crime fiscal, deixariam de estar reunidas as condições de punibilidade pela prática do crime de abuso de confiança fiscal.
De tal circunstancialismo, parece resultar que o não conhecimento imediato da Reclamação poderá redundará na susceptibilidade de causar à Reclamante um prejuízo irreparável e/ou do mesmo modo, o conhecimento diferido da Reclamação poderá tornar-se inútil em virtude de não afastar a punibilidade dos factos integradores do crime fiscal.
Assim sendo, tendo a Reclamação por base situações susceptíveis de acarretarem um prejuízo irreparável para a Reclamante ou que tornem absolutamente inútil o conhecimento diferido dessa mesma reclamação, a situação dos autos, parece poder subsumir-se ao âmbito da aplicação do enunciado no nº 3 do artº 268º do CPPT, o que exige a sua imediata apreciação.
Com efeito e tal como se refere no Ac. do STA, de 24.OUT.10, in Rec. nº 0102/10, atrás citado, “Não obstante o carácter taxativo do disposto no art.º 278.º, n.º 3 do CPPT, deve ter subida imediata, sob pena de inconstitucionalidade material do preceito, por violação do princípio da tutela judicial efectiva (art.º 268.º da CRP), a reclamação de qualquer acto do órgão de execução fiscal que cause prejuízos irreparáveis ao executado, que não sejam os inerentes a qualquer execução, ou em que, com a subida diferida, a reclamação perca toda a utilidade.”.
Procedem deste modo, as conclusões de recurso atinentes ao invocado erro de julgamento da sentença quanto à apreciação dos critérios de subida da reclamação constantes dos nºs 1 e 3 do artº 278º do CPPT, impondo-se, em consequência a sua revogação.
E procedendo tal fundamento de recurso, mostra-se prejudicada a apreciação dos demais fundamentos de recurso invocados.
Assim sendo, em função de tudo quanto se deixa expendido, impõe-se, pois, a revogação da sentença recorrida, devendo os autos baixar ao tribunal a quo, com vista ao conhecimento imediato e não diferido da reclamação.
IV- CONCLUSÃO
Termos em que acordam os juízes da Secção do Contencioso Tributário do TACN em decidir o seguinte:
a) Conceder provimento ao recurso;
b) Revogar a sentença recorrida; e
c) Ordenar a baixa dos autos à 1ª instância para efeitos de apreciação imediata da reclamação apresentada.
Sem Custas.
Porto, 20.JAN.11
José Luís Paulo Escudeiro
Francisco António Pedrosa de Areal Rothes
Paula Fernanda Cadilhe Ribeiro