Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00828/12.9BEAVR
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/26/2018
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Cristina Travassos Bento
Descritores:DIREITO DE AUDIÇÃO
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
LIQUIDAÇÃO ADICIONAL
PRINCÍPIO DE APROVEITAMENTO DO ACTO
Sumário:1. O direito de audição de que gozam os contribuintes, consignado no artigo 60ª da LGT constitui um direito constitucional aplicado ao procedimento tributário, enquanto corolário do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações da Administração Pública que lhe digam respeito, visando assegurar uma tutela preventiva contra qualquer lesão dos seus direitos ou interesses, de acordo com o disposto no artigo 267º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
2. A liquidação impugnada não é uma liquidação adicional, correctiva da autoliquidação de IRC, em ordem a corrigir ou rectificar uma liquidação anterior viciada por erro de facto ou de direito ou por omissões ou inexactidões praticadas nas declarações prestadas para efeitos de liquidação, mas sim uma liquidação oficiosa. Ou seja, uma primeira liquidação decorrente, não da declaração apresentada pela impugnante, mas sim baseada em elementos de que a Autoridade Tributária (AT) disponha.
3. Daqui resulta que a violação do dever de audiência nunca se poderia ter como sanada no caso em apreciação, desde logo, por os elementos em que a tal liquidação se fundou não terem sido elementos apresentados pela impugnante, agora Recorrida, mas sim em elementos oficiosos da AT.*
* Sumário elaborado pelo Relator.
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:J..., S.A.
Decisão:Negado provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Fazenda Pública veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou procedente a impugnação, deduzida por “J…, SA”, melhor identificada nos autos, contra a liquidação de IRC do ano de 2009.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:
“I. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença proferida nos autos em epígrafe, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por J..., S.A. contra a liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 2009, pretendendo a Fazenda Pública a sua revogação e substituição por decisão que considere tal impugnação totalmente improcedente.
II. O douto Tribunal a quo entendeu anular a liquidação com fundamento em vício de preterição de formalidade legal, por não ter sido a impugnante notificada para exercer o direito de audição previamente à liquidação de IRC.
III. Assim, as questões decidendas a submeter ao julgamento do Tribunal ad quem consistem em saber se, na situação sub judice:
a) a preterição da audição prévia se pode converter em formalidade não essencial e, em caso negativo,
b) se deveria ter sido aplicado o “princípio do aproveitamento do acto administrativo”.
II – O entendimento do douto Tribunal a quo
IV. A liquidação adicional ficou a dever-se ao facto de, por força da desconsideração dos prejuízos fiscais apurados em 2005, na declaração modelo 22 de IRC de 2009 não poderem os mesmos ser deduzidos, porque inexistentes.
V. Face a esta factualidade, entendeu o douto Tribunal a quo que a AT deveria, previamente à referida liquidação de IRC, ter notificado a impugnante para o exercício do direito de audição.
III – Da degradação em formalidade não essencial
VI. Conquanto o direito de audição constitua uma importantíssima garantia de defesa dos administrados, não deixa de ser um direito instrumental podendo, em certos casos, ser dispensado.
VII. Desde logo, importa abordar a questão sob o prisma da relevância limitada dos vícios de forma, i.e., saber se, numa situação concreta como a dos presentes autos, a prática daquele acto (o exercício do direito de audição) reveste ou não um carácter de essencialidade.
VIII. Entende a recorrente que a falta de notificação da impugnante para a audiência prévia constitui uma formalidade que se degradou em não essencial, porquanto
IX. Não deverá ser ordenada a anulação do acto quando “se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final”.
X. É que a liquidação adicional de IRC de 2009 resultou da correcção da declaração modelo 22 ao nível dos prejuízos fiscais deduzidos, os quais haviam sido gerados em 2005, pelo que
XI. Se tratou de uma liquidação que decorre expressa e inequivocamente da lei (artigo 52.º n.ºs 1 e 3 [anterior artigo 47.º] do CIRC).
XII. Destarte, deixando de existir prejuízos a ser deduzidos, não restaria outra possibilidade à AT que não promover a impugnada liquidação adicional, nos termos do artigo 99.º do CIRC.
XIII. Logo, trata-se de um caso em que, por um lado, a AT se encontrava obrigada, por força da lei, a efectuar aquela liquidação e, por outro, atendendo a que em momento algum a recorrida manifestou qualquer discordância sobre o quantum da liquidação, a sua participação no procedimento decisório redundaria num acto totalmente inútil.
XIV. Por conseguinte, cremos que o acto consubstanciado na liquidação não deveria ter sido considerado inválido e anulado por preterição de formalidade legal.
XV. Porém, mesmo que assim se não entendesse, sempre haveria lugar à aplicação
IV – Do princípio do aproveitamento do acto administrativo
XVI. Com efeito, se atendermos à conexão entre o vício procedimental e o resultado, não faz qualquer sentido anular o acto, visto que, por força da vinculação a que a AT se encontra adstrita neste particular, o novo acto a ser praticado não poderia divergir do anterior (acórdão do STA, de 31-01-2012, processo n.º 017/12).
XVII. Deste modo, “se o tribunal não tiver dúvidas que a decisão tomada pela Administração corresponde à solução imposta pela lei, então, em aplicação dos princípios da eficiência e da «economia de actos públicos», tem o dever de não o anular”.
XVIII. Logo, concluindo-se que, in casu, a reinstrução do procedimento para efeito de audição da recorrida não vai ditar um acto de conteúdo diferente do impugnado ou que, mesmo com conteúdo idêntico, possa haver qualquer vantagem resultante da anulação do acto, tem aqui plena aplicabilidade o invocado princípio do aproveitamento do acto administrativo, o qual conduzirá a que a liquidação ora impugnada seja mantida na ordem jurídica.
XIX. Deste modo, em face do exposto, incorreu o douto Tribunal a quo em erro de julgamento da matéria de direito, tendo sido violado o disposto no artigo 60.º da LGT, bem como o artigo 135.º do CPA, devendo tais normas ser aplicadas e interpretadas no sentido de que a falta de notificação para o direito de audição pode degradar-se em formalidade não essencial ou, ainda que assim não seja, tal não impede a aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo.
Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser considerado procedente, revogando-se a douta decisão por erro de julgamento de direito e substituindo-a por outra que considere a impugnação totalmente improcedente, assim se fazendo JUSTIÇA. “

A agora Recorrida não apresentou contra-alegações.

Após a subida dos autos a este TCAN, foram os mesmos com vista ao Exmo Procurador Geral-Adjunto do Ministério Público que emitiu Parecer, a fls. 182 e ss, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais junto das Exmas. Juízes-Adjuntas vem o processo à Conferência para julgamento.


I.I Objecto do Recurso: Questão a apreciar e decidir:

A questão suscitada pela Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões (nos termos dos artigos 660º, nº 2, 684º, nº s 3 e 4, actuais 608, nº 2, 635º, nº 4 e 5 todos do CPC “ex vi” artigo 2º, alínea e) e artigo 281º do CPPT) é a de saber saber se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao decidir que existiu violação do direito de audição e em caso afirmativo se se pode aplicar o princípio de aproveitamento do acto.

II. Fundamentação

II.1. De Facto
No Tribunal a quo, o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

“FACTOS PROVADOS:
1 - A impugnante foi objeto de inspeção tributária relativamente ao exercício económico de 2005 e 2006.
2 - O lucro tributável dos referidos exercícios foi fixado com recurso aos métodos indiretos nos termos constantes de fls.3 a 9 destes autos e que aqui se dão por reproduzidos.
3 - Dá-se aqui por reproduzida a declaração modelo de IRC respeitante ao ano de 2005 e constante do PA de fls. 16 a 19.
4 - Com data de 11.05.2012 foi emitida a liquidação de IRC do ano de 2009, cfr. fls. 10 e 11 destes autos e que aqui se dão por reproduzidas.
5 - Com data de 25.06.2012 foi a impugnante notificada do pedido de fundamentação do ato de liquidação do IRC do ano de 2009 nos seguintes termos: "(...) Conforme solicitado no seu requerimento apresentado neste Serviço de Finanças, (...) informo V.Exa. de que a liquidação de IRC do ano de 2009(...) teve a sua origem na declaração oficiosa (...) cujo extracto informático com 9 folhas, se anexa (...)".
6 - Dão-se aqui por reproduzidos os documentos juntos com a notificação referida em 5), e que se encontram de fls. 16 a 26 destes autos.
*
Alicerçou-se a convicção do Tribunal na consideração da matéria de facto dada como assente, nos factos alegados e não impugnados e na análise dos documentos acima identificados e não impugnados.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Inexistem, com interesse para a presente decisão. “


II.2. De Direito

II.2.1 A Recorrente pugna pela existência de erro de julgamento, da sentença recorrida, ao ter decidido que a liquidação de IRC do exercício de 2009 se encontrava eivada de vício de forma, porquanto não tinha sido dada a possibilidade à impugnante, aqui Recorrida, de se pronunciar em sede de audição prévia, previamente a tal liquidação.
Sinteticamente, alega a Recorrente que a liquidação impugnada é uma liquidação adicional de IRC. Que resultou da correcção da declaração mod 22 ao nível dos prejuízos fiscais deduzidos, os quais haviam sido gerados em 2005, pelo que se trata de uma liquidação que decorre expressa e inequivocamente da lei. E que atendendo a que em momento algum a recorrida manifestou qualquer discordância sobre o quantum da liquidação, a sua participação no procedimento decisório redundaria num acto inútil. Que a reinstrução do procedimento para efeito da audição da recorrida não vai ditar um acto de conteúdo diferente do impugnado ou que, mesmo com conteúdo idêntico, possa haver qualquer vantagem resultante da anulação do acto, tem aqui plena aplicabilidade o invocado princípio do aproveitamento do acto administrativo, o qual conduzirá a que a liquidação ora impugnada seja mantida na ordem jurídica.
Incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento de direito tendo sido violado o artigo 60º da LGT, bem como o artigo 135º do CPA, devendo tais normas ser aplicadas e interpretadas no sentido de que a falta de notificação para o direito de audição pode degradar-se em formalidade não essencial, ou ainda que assim não seja, tal não impede a aplicação do princípio do aproveitamento do acto administrativo. (Conclusões I a XIX)
O discurso fundamentador da sentença recorrida foi o seguinte:
Há que referir que só haverá dispensa de audição prévia quando a liquidação for efetuada exclusivamente com base na declaração do contribuinte e por aplicação dos mesmos princípios ou normas jurídicas invocadas decorrentes da declaração do contribuinte, mas já não haverá direito de audição se, na liquidação, for dado um enquadramento jurídico diferente do que decorreria daquela declaração.
De salientar que a Administração Tributária só pode dispensar a audição prévia do contribuinte nas situações taxativamente enunciadas na lei e acima referidas, não lhe sendo permitido dispensá-la por subjetivamente entender, que aquele não poderá trazer quaisquer elementos novos, tanto mais que a audição não tem apenas um objetivo de informação e de prova em função da verdade material, mas também de proporcionar uma defesa antecipada dos interesses dos contribuintes.
Ora, no caso em apreço, estamos perante uma situação que respeita a uma liquidação oficiosa de IRC, ou seja, não estamos perante uma autoliquidação de imposto.
Da análise efetuada aos elementos constantes destes autos, concluímos que a impugnante não foi notificada para o exercício do direito de audição.
Assim, e atento o que acima se encontra formulado, concluímos que foi preterido o exercício do direito de audição com violação do preceito legal acima enunciado.
Face ao descrito, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões suscitadas.”

E concordamos com explanado na sentença.
Expliquemos.
O artigo 60º da Lei Geral Tributária (LGT), nomeadamente nos seus nºs 1 a 3 determina que:
“1 - A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:
a) Direito de audição antes da liquidação;
b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;
c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;
d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;
e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

2- É dispensada a audição:
a)No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;
b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado.”

O direito de audição de que gozam os contribuintes, consignado neste artigo 60ª da LGT constitui um direito constitucional aplicado ao procedimento tributário, enquanto corolário do princípio da participação dos cidadãos na formação das decisões ou deliberações da Administração Pública que lhe digam respeito, visando assegurar uma tutela preventiva contra qualquer lesão dos seus direitos ou interesses, de acordo com o disposto no artigo 267º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Como se afirma no Parecer emitido pelo Exmo Procurador Geral Adjunto do Ministério Público junto deste Tribunal, «quando estão em causa vícios procedimentais geradores de mera anulabilidade, como é o caso da violação do artigo 60º da LGT, admite-se, por força de segurança jurídica e, sobretudo de economia processual, o acto administrativo, apesar de inválido, não deve ser anulado quando, designadamente, o seu conteúdo “não possa ser outro e não haja interesse relevante na anulação” ou “ quando se comprove sem margem para dúvidas que o vício formal não teve qualquer influência na decisão(Cfr. VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, 2ª ed., Coimbra, 2011, p.179)»
Também a jurisprudência assim o entende, veja-se por todos o mui recente acórdão do STA de 18.10.2017, pro 095/16 onde se apreciou: ”A doutrina e a jurisprudência têm vindo a acolher o princípio do aproveitamento do acto – princípio que não tem suporte directo em disposição legal alguma, mas que assenta no entendimento de que não se justifica a anulação de um acto administrativo que foi praticado no exercício de poderes vinculados e está de acordo com os pressupostos fixados na lei –, nos termos do qual se admite que a falta de audiência dos interessados, quando obrigatória, possa não conduzir à anulação do acto final do procedimento, que seria a consequência desse vício, de acordo com o previsto no n.º 1 do art. 163.º do CPA («São anuláveis os actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção».). Essa omissão nem sempre conduzirá à anulação, «designadamente não a justificando nos casos em que se apure no processo contencioso que, se ela tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem deixou de pronunciar-se sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final, ou acabou por ter oportunidade de pronunciar-se, em procedimento de segundo grau (reclamação graciosa ou recurso hierárquico), sobre questões sobre as quais foi indevidamente omitida a audiência no procedimento de primeiro grau» (Cfr. DIOGO LEITE DE CAMPOS, BENJAMIM SILVA RODRIGUES e JORGE LOPES DE SOUSA, Lei Geral Tributária Anotada e Comentada, Encontro da Escrita, 4.ª edição, anotação 15 ao art. 60.º, págs. 516 e segs.).
«Com efeito, a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se podem degradar em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las. Consequentemente, e tendo em conta que a audiência prévia dos interessados não é um mero rito procedimental, a formalidade em causa (essencial) só se podia degradar em não essencial (não invalidante da decisão) se essa audiência não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, e se se impusesse, por isso, o aproveitamento do acto – utile per inutile non viciatur. O que exige um exame casuístico, de análise das circunstâncias particulares e concretas de cada caso» (Cfr. os seguintes acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:
- de 22 de Janeiro de 2014, proferido no processo n.º 441/13, também disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/212bcafe7f4d180f80257c6f004ea9c0;
de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/29e75cff6637cdef80257d7800526d92.).
«À luz de tal princípio [do aproveitamento do acto], deverá entender-se que não se justifica a anulação, apesar da preterição do direito de audição, nos casos em que se apure no processo contencioso que, se a audiência tivesse sido realizada, o interessado não teria possibilidade de apresentar elementos novos nem de se pronunciar sobre questões relevantes para determinar o conteúdo da decisão final sobre as quais não tivesse já tido oportunidade de se pronunciar. Mas, apenas nessas situações em que não se possam suscitar quaisquer dúvidas sobre a irrelevância do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto pode ser efectuada aplicação daquele princípio» (Cfr. o seguinte acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 15 de Fevereiro de 2007, proferido no processo n.º 1071/06, disponível em
http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/3d268a41bfe236798025728f0050532e.).(...)”
No caso que nos ocupa, resulta do ponto 5 do probatório, que a liquidação impugnada “teve a sua origem na declaração oficiosa (...) cujo extracto informático com 9 folhas, se anexa (...)".(sublinhado nosso)
A liquidação impugnada não resultou, por isso, de uma autoliquidação de IRC de 2009. Dito por outras palavras, a liquidação impugnada não se trata de uma liquidação adicional, correctiva da autoliquidação de IRC de 2009, em ordem a corrigir ou rectificar uma liquidação anterior viciada por erro de facto ou de direito ou por omissões ou inexactidões praticadas nas declarações prestadas para efeitos de liquidação.
Trata-se sim de uma liquidação oficiosa de IRC de 2009. Ou seja, uma primeira liquidação decorrente, não da declaração apresentada pela impugnante, mas sim baseada em elementos de que a Autoridade Tributária (AT) dispunha.
Acresce referir que a matéria de facto fixada na sentença recorrida não foi impugnada, no presente recurso, motivo pela qual, e tendo presente que toda imputação jurídica feita pela sentença tem de ter como base o probatório fixado e não de qualquer outros factos que não os ali fixados é por si só bastante para levar à falta de provimento do presente recurso.
Efectivamente, a premissa de que a Recorrente parte para expor toda sua discordância com a sentença, ou seja, que estávamos perante uma liquidação adicional, e como tal perante uma correcção dos elementos apresentados pela contribuinte, não é correcta. Mas, como já referido, a Recorrente não imputou erro à sentença ao fixar como provado que a liquidação se baseou em elementos oficiosos. E tal distinção faz toda a diferença na apreciação da questão suscitada.
Como ficou dito no acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13, “o direito de audiência não tem como única finalidade a possibilidade de participar na fixação da matéria colectável, antes podendo essa participação (que o direito de audiência visa assegurar) assumir muitos outros domínios da formação da decisão final».)”.
Ora, a premissa para a aplicação do princípio do aproveitamento do acto, é a insusceptibilidade da participação do interessado influenciar a decisão final, seja no seu sentido seja nos seus fundamentos.
A audiência prévia destinando-se a assegurar o direito constitucionalmente consagrado do direito à participação, como acima já explicado, deve poder exercer-se não só sobre a quantificação da matéria tributável, mas também sobre todas as outras questões de facto e de direito susceptíveis de influir na decisão do procedimento. (neste sentido, o acórdão do STA de 18.10.2017, já acima citado).
Daqui resulta que a violação do dever de audiência nunca se poderia ter como sanada no caso em apreciação, desde logo, por os elementos em que a tal liquidação se fundou não terem sido elementos apresentados pela impugnante, agora Recorrida, mas sim em elementos oficiosos da AT.
Como se afirmou no acórdão de 18.10.2017, acima citado, (e note-se, estávamos perante uma liquidação adicional, por maioria de razão será de aplicar à presente situação, pois analisa-se a preterição do direito de audição numa liquidação oficiosa):
“Note-se ainda que nem sequer pode argumentar-se a favor do aproveitamento do acto com a natureza dos vícios invocados em sede de impugnação judicial ou sequer com a sorte que tal invocação venha a merecer. Como também já disse este Supremo Tribunal Administrativo, «[n]ão será pelos fundamentos invocados em sede de impugnação contenciosa do acto que se poderá aferir da relevância ou não do exercício do direito de audiência sobre o conteúdo decisório do acto, mas antes pela sua susceptibilidade de influir sobre o conteúdo decisório do acto, motivo por que aquele direito não poderá deixar de ser assegurado sempre que não seja de afastar a possibilidade de a decisão do procedimento tributário ser influenciada pela intervenção do interessado» e, se é certo que a aplicação do princípio do aproveitamento do acto implica necessariamente um juízo a posteriori, «este deve ser um juízo de prognose póstuma, pelo que não pode nem deve ser influenciado pela improcedência dos demais vícios (para além da preterição do direito de audiência) invocados no processo em que o acto foi impugnado, sob pena de esvaziamento do direito de participação e de impossibilidade prática de verificação do vício resultante da preterição desse direito» (Cfr. o já citado acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Outubro de 2014, proferido no processo n.º 1374/13.).
A nosso ver, não pode invocar-se com sucesso o princípio do aproveitamento do acto para recusar a anulação das liquidações impugnadas com fundamento em preterição de formalidade legal por não ter sido concedida à sociedade originária devedora a possibilidade de exercer o direito de participação mediante audiência prévia.(…)”


Em face de todo o exposto, não tendo a sentença errado ao considerar que a formalidade preterida não pode ser degradada em não essencial, nem mesmo ser aplicado o princípio de aproveitamento do acto, sucumbem as conclusões de recurso, sendo de lhe negar provimento.

III. DECISÃO

Termos em, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Porto, 26 de Abril de 2018
Ass. Cristina Travassos Bento
Ass. Paula Moura Teixeira
Ass. Fernanda Esteves