Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00078/14.0BUPRT
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:05/21/2020
Tribunal:TAF do Porto
Relator:Ana Patrocínio
Descritores:MÉTODOS INDICIÁRIOS, IMPOSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO E QUANTIFICAÇÃO DIRECTA DA MATÉRIA COLECTÁVEL, IRS
Sumário:I - O n.º 1 do artigo 76.º do Código de Processo Tributário (CPT), vigente à data dos factos tributários, determinava que o processo de liquidação se instaurava com as declarações dos contribuintes.
Essas declarações apresentadas pelos contribuintes à Administração Tributária gozam da presunção de veracidade, de acordo com o estatuído no n.º 1 do artigo 32.º da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro (autorização legislativa do CIRS e CIRC): «a administração fiscal só poderá proceder à fixação dos rendimentos colectáveis quando o contribuinte não apresentar declaração ou quando os rendimentos declarados não corresponderem aos efectivos ou se afastarem dos presumidos na lei»; de igual modo, o artigo 78.º do CPT apontava no mesmo sentido quanto ao valor probatório da escrita.

II - A determinação do rendimento real e efectivo será, pois, em primeira linha, o declarado pelo contribuinte; contudo, como forma de controlar e de evitar a fraude e evasão fiscais, são cometidos à Administração Tributária, através dos serviços da DGCI, um poder/dever de fiscalização: artigos 124.º e 125.º do CIRS e 75.º do CPT.

III - Nos termos do, então, disposto no artigo 81.º do CPT, a decisão de tributação por métodos indiciários especificará os motivos da impossibilidade da comprovação directa e exacta da matéria tributável e indicará os critérios utilizados na sua determinação. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Fazenda Pública
Recorrido 1:W. e Outro
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. Relatório

A Excelentíssima Representante da Fazenda Pública interpôs recurso jurisdicional da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, proferida em 25/07/2014, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por W. e W-., entretanto habilitados nos presentes autos, que havia sido apresentada por M. e O., melhor identificados no incidente de habilitação de herdeiros, contra a liquidação oficiosa de IRS, relativa ao ano de 1990, no montante de Esc. 1.690.036$00 - €8.429,86.

A Recorrente terminou as suas alegações de recurso formulando as conclusões que se reproduzem de seguida:
A. “Relativamente à matéria de facto, é nosso entendimento que, a Meritíssima Juiza a quo não consignou na sentença o teor dos anexos juntos ao relatório da inspeção, anexos 1 a 6, de fls. dos autos, constituídos, respetivamente, por Termo de Declarações do contribuinte fiscalizado; por Termos de Declarações de hóspedes do sujeito passivo nos anos de 1989 e 1990; por fotocópias simples de folhas dos Livros de Serviços Prestados (modelo 5); por fotocópia integral do Livro de Registo de Hóspedes, chancelado e autenticado pelo Comando da P.S.P. de (...); por relações nominativas mensais com a identificação e número de hóspedes do sujeito passivo nos anos de 1989 e 1990; por fotocópias simples de folhas dos Livros de Despesas Gerais (modelo 6); cujo respetivo conteúdo, portanto, não foi vertido para o rol da matéria de facto assente apesar de ser relevante para a apreciação da causa, não se vislumbrando qualquer motivo para tais anexos serem desconsiderados.
B. Por conseguinte, relativamente à matéria de facto, tendo o juiz o dever de consignar na sentença a matéria provada e não provada (cfr. artigo 123.°, n.° 2 do CPPT), verifica-se ter ocorrido no caso presente erro de julgamento na seleção da matéria de facto.
C. A par disto, a Meritíssima Juíza a quo não avaliou nem apreciou corretamente os factos constantes do relatório da inspeção e que levou ao probatório da sentença, padecendo, deste modo, a sentença recorrida de erro de julgamento.
D. Com efeito, o relatório em questão demonstra de forma cabal e sustentada os motivos e a fundamentação do recurso à aplicação de métodos indiretos, destacando-se, em particular os pontos 1), 2), 3), 4) e 5) do mesmo.
E. Efetivamente, a factualidade constante do predito relatório, bem como, dos correspondentes anexos, cujo teor se pretende seja adicionado à factualidade dada como provada em resultado do presente recurso, evidencia a não idoneidade do registo das operações que foi realizado pelos impugnantes, integrando, pois, os pressupostos para aplicação dos métodos indiretos.
F. Ora, a ser assim como é, ocorre impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável que se verifica quando sobrevém alguma das situações previstas nas quatro alíneas do n.° 1 do referido artigo 38.° do CIRS.
G. Decidindo como decidiu, a Meritíssima Juíza do Tribunal a quo não apreciou corretamente a prova produzida nos autos, fazendo, do mesmo modo, errada aplicação dos preceitos legais convocados para sustentar a anulação da liquidação em equação nos autos.
H. Além disso, incorre a sentença recorrida em erro de julgamento quanto à interpretação da lei na medida em que afrontou o artigo 38 °, n.° 1, alíneas a), parte final e d) do CIRS (vigente à data dos factos), bem como, o artigo 51.°, n.° 1 do CIRC (então vigente) e, ainda, o artigo 81.° do CPT (em vigor à data).
I. Cumpre aqui salientar que o registo das operações efetuado pelos impugnantes não corresponde minimamente à realidade, o que foi devidamente evidenciado no referido relatório e nos correspondentes anexos.
J. Derivava dos aludidos artigos 38.° do CIRS e 81.° do CPT que a decisão de recurso a métodos indiciários devia especificar os motivos da impossibilidade de comprovação e quantificação direta e exata da matéria tributável, o que, como demonstrado, sucedeu no caso dos autos.
TERMOS EM QUE, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, deve ser revogada a sentença recorrida, como é de inteira JUSTIÇA.”
****
Os Recorridos contra-alegaram, tendo concluído da seguinte forma:
“1. A Recorrente, com respeito à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, não deu cumprimento ao disposto no art. 640°-1/a/b/c do NCPC.
2. É sabido que ao tribunal de recurso assiste o poder de alterar a decisão de facto fixada pelo tribunal recorrido, desde que se verifiquem os respectivos pressupostos legais e desde que o recorrente dê cumprimento ao citado ónus que se encontra previsto no art. 640° do NCPC.
3. Nos termos dessa norma, quando a impugnação tem por objecto a decisão da matéria de facto, o recorrente deve especificar, sob pena de rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem uma decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, bem como a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
4. Muito embora manifeste o seu desacordo quanto aos termos em que a matéria de facto foi fixada, a Recorrente não identifica os concretos pontos de facto que considera terem resultado provados e que, por isso, deveriam constar do probatório assente.
5. Não basta à Recorrente afirmar, de modo genérico, que "os indicados anexos" deveriam ter sido "atendidos na matéria fáctica", e que, "se tivessem sido devidamente analisados, a decisão final do presente processo teria, necessariamente, de ser outra", competindo-lhe identificar, para além disso, quais eram os específicos factos que, constando nesses "anexos", deveriam ter sido levados à matéria de facto assente, o que manifestamente não foi feito.
6. Não tendo a Recorrente cumprido o acima mencionado ónus de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e da decisão que, no seu entender, devia ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, deve o recurso, nessa parte, ser rejeitado.
Sem conceder,
7. Ainda que se entendesse que a Recorrente deu cumprimento ao ónus previsto no art. 640° do NCPC (no que não se concede e apenas se admite por cuidados de patrocínio), sempre teria de se concluir que não lhe assiste qualquer razão no que respeita ao alegado erro de julgamento na selecção da matéria de facto.
8. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, nos autos não constam quaisquer "anexos juntos ao relatório da inspecção, anexos 1 a 6, de fls. dos autos, constituídos, respectivamente, por Termo de Declarações do contribuinte fiscalizado; por Termos de Declarações de hóspedes do sujeito passivo nos anos de 1989 e 1990; por fotocópias simples de folhas dos Livros de Serviços Prestados (modelo 5); por fotocópia integral do Livro de Registo de Hóspedes, chancelado e autenticado pelo Comando da P.S.P. de (...); por relações nominativas mensais com a identificação e número de hóspedes do sujeito passivo nos anos de 1989 e 1990; por fotocópias simples de folhas dos Livros de Despesas Gerais (modelo 6)".
9. Assim sendo, e uma vez que, por esse motivo, jamais os mesmos poderiam ter sido "atendidos na matéria fáctica", improcede a alegação da Recorrente no sentido de que a Sentença recorrida padece de erro de julgamento na selecção da matéria de facto.
10. Igualmente de forma contrária ao preconizado pela Recorrente nas suas alegações, do "relatório da inspeção" não resultam os motivos concretos que fundamentaram o recurso à aplicação dos métodos indirectos, pelo que andou bem a Sentença recorrida ao concluir pela ilegalidade do recurso a esses mesmos métodos indirectos para a fixação da matéria colectável de IRS dos ora Recorridos.
11. A falta de especificação desses motivos concretos que levaram a Administração Fiscal a recorrer a métodos indiciários para determinar o rendimento colectável dos ora Recorridos fez com que estes nem sequer pudessem aferir da sua justeza.
12. Se, na parte final da previsão da norma do art. 38°-1/a CIRS (na redacção vigente à data dos factos), se referem várias hipóteses (falta, atraso ou irregularidades na execução, escrituração ou organização dos livros de registo exigidos pelos arts. 11° e 112° do mesmo diploma), o mesmo acontecendo na previsão da norma do art. 38°-1/d do CIRS (erros ou inexactidões no registo das operações ou indícios seguros de que a contabilidade ou os livros de registo não reflectem a exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido), não era possível aos Recorridos saberem qual(is) da(s) hipóteses ou tipos legais contidos nestas normas é que terão servido de fundamento à determinação do rendimento colectável por métodos indiciários.
13. Se, enquanto fundamentos da sua decisão, a Administração Fiscal pura e simplesmente refere "Que a presente correcção do volume de negócios da categoria C, declarado pelo S. passivo, baseia-se na aplicação de métodos indiciários, dado verificarem-se as condições previstas na parte final da alínea a)-, e na alínea d)- do n°. 1 do art° 38°. do Código do IRS", sabendo-se que a previsão destas normas integra várias hipóteses ou tipos legais, os ora Recorridos ficaram sem saber quais, de entre esses factos, a Administração Fiscal considerou verificados, para que tenha julgado impossível a comprovação e quantificação directa e exacta da sua matéria colectável.
14. Para além de aos ora Recorridos não ser dado a conhecer qual ou quais as hipóteses previstas nas alíneas a) e d) do n° 1 do art. 38° que levaram a Administração Fiscal a recorrer aos métodos indiciários - isto é, quais os motivos concretos daquela, o que por si só a torna ilegal -, em parte alguma surgem alegados factos que, a verificarem-se, impediriam que a Administração Fiscal pudesse determinar directamente o rendimento colectável dos contribuintes.
15. Pelo exposto, ex vi do disposto no art. 21°-2 do C.P.T. - que veio contrariar a orientação dominante do S.T.A., antes e mesmo após a entrada em vigor do n° 2 do art. 30° da L.P.T.A. (vid. Ac. da 1a Secção de 9/12/82, in Acórdãos Doutrinais, n° 255, pág. 343, e ss, e Ac. da 2a Secção, de 16/11/88, in Ciência e Técnica Fiscal, n° 353, pp. 226 e ss.), que ia no sentido de que, na notificação dos actos tributários, seria suficiente a indicação do conteúdo e sentido do acto notificado, dispensando-se a reprodução dos respectivos fundamentos - e no art. 67°-2 do CIRS, verifica-se uma manifesta insuficiência de fundamentação.
16. Em consequência, tratando-se de matéria que afecta os direitos legalmente protegidos dos ora Recorridos (desde logo os previstos nos arts. 27° e 62° da C.R.P.), foi violado o preceituado nos arts. 268°-3 da C.R.P., 124° e 125° do CPA, 21° e 22° do C.P.T., e 67°-2, do CIRS.
17. A Sentença recorrida, ao anular a liquidação impugnada, não merece, pois, qualquer reparo.
*
Termos em que deverá ser mantida a douta Sentença recorrida, assim sendo feita Justiça.
****
O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de dever ser negado provimento ao recurso.
****
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
****

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa decidir se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito ao considerar não estarem reunidos os pressupostos para aplicação de métodos indiciários.

III. Fundamentação
1. Matéria de facto

Da sentença prolatada em primeira instância, consta decisão da matéria de facto com o seguinte teor:
“FACTOS PROVADOS:
1 - Os impugnantes foram objeto de uma ação inspetiva relativamente ao exercício de 1990 por parte dos Serviços de Inspeção Tributária de Aveiro.
2 - A inspeção referida em 1), deu lugar às correções em sede de IRS daquele período e ora impugnadas.
3 - Os fundamentos de facto e de direito para as correções em causa são os constantes do relatório de fls. 29 a 31 destes autos e que aqui se dão por reproduzidas, mas cujos extratos a seguir se transcrevem:
“(...) Que, da analise, em particular do Livro de Serviços Prestados, (..)verifica-se que o SP apenas registou o apuro mensal e/ou trimestral dos Serviços prestados no ano de 1990, e sem qualquer apoio documental, (..)Que, não obstante o S.Passivo registar globalmente os apuros(mensal e/ ou trimestralmente), estes últimos não correspondem minimamente à realidade dos factos verificados, porquanto consultado o Livro de Registo de Hóspedes, (...)relativamente às entradas e saídas de hóspedes nos meses de Janeiro a Dezembro do ano de 1990, constata-se que no referido período, o contribuinte em análise prestou serviços(aluguer de camas em quartos) a 484(...)clientes permanentes(hóspedes, na sua esmagadora maioria estudantes); (...)que o apuramento do volume de negócios, (...)é efetuado e fundamentado com base exclusivamente, quer nos elementos de escrita do contribuinte, quer nos elementos oficiais exigidos legalmente, (..)e em declarações, reduzidas a Termo, de alguns hóspedes e/ou beneficiários dos serviços prestados, (..)Que a presente correcção do volume de negócios da categoria C, declarado pelo s.passivo, baseia-se na aplicação de métodos indiciários, dado verificarem-se as condições previstas na parte final da alínea a) e na alínea d)-do n° 1 do art° 38° do Código do IRS. (...)".
4 - As correções referidas em 2), resultam da aplicação dos métodos indiretos.
5 - Da fixação da matéria tributável por métodos indiretos a impugnante apresentou pedido de revisão, cfr.fls.38 a 42 destes autos e que aqui se dão por reproduzidas.
6 - O pedido de revisão identificado em 5) não foi atendido, cfr. fls. 47 a 73 destes autos.
*
Alicerçou-se a convicção do Tribunal nos documentos acima identificados e nos factos invocados e não impugnados.
*
FACTOS NÃO PROVADOS:
Inexistem com interesse para a presente decisão.
*
2. O Direito

Vem o presente recurso interposto da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que julgou procedente a impugnação da liquidação oficiosa de IRS, relativa ao ano de 1990, e, em consequência, anulou o acto de liquidação impugnado.
Com o assim decidido não se conforma a Recorrente por entender que a decisão de recurso a métodos indiciários especifica os motivos da impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria colectável.
A questão central a dirimir consiste, portanto, em apreciar a legalidade do acto de liquidação de IRS, referente ao ano de 1990, não perdendo de vista o vício invocado pelos impugnantes e julgado procedente na sentença recorrida, contendente com violação de lei, por não estarem reunidos os pressupostos que serviram de base à tributação, por falta de fundamentação do acto que fixou definitivamente a matéria colectável.
Começaremos por apreciar a questão de saber se se encontram reunidos os pressupostos necessários de fixação da matéria colectável por métodos indiciários.
Por facilidade, socorrer-nos-emos do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 22/10/2015, proferido no âmbito do processo n.º 2464/08, para efectuar o enquadramento prévio:
“(…) O nº 1 do artigo 76º do CPT, vigente à data dos factos tributários, determinava que o processo de liquidação se instaurava com as declarações dos contribuintes.
Essas declarações apresentadas pelos contribuintes à Administração Tributária gozam da presunção de veracidade, de acordo com o estatuído no nº 1 do artigo 32º da Lei 106/88, de 17 de Setembro (autorização legislativa do CIRS e CIRC): «a administração fiscal só poderá proceder à fixação dos rendimentos colectáveis quando o contribuinte não apresentar declaração ou quando os rendimentos declarados não corresponderem aos efectivos ou se afastarem dos presumidos na lei»; de igual modo, o artigo 78º do CPT apontava no mesmo sentido quanto ao valor probatório da escrita.
Todavia, face, também, ao princípio da tributação dos rendimentos reais, pressupõe-se a cooperação entre a Administração Tributária e o contribuinte, devendo este facultar todos os elementos que viabilizem o correcto apuramento daqueles rendimentos e prevendo a lei que, se do controlo efectuado pela Administração Tributária resultar que a matéria colectável apurada na declaração ou com base nos elementos por ela fornecidos não corresponde à realidade, o apuramento deixe de fazer-se com base apenas na declaração do contribuinte, mas, possa, então, fazer-se através do recurso a meios alternativos de apuramento: com recurso a correcções técnicas ou a métodos indiciários.
A utilização de tal método presuntivo ou indiciário traduz-se no recurso, por banda da Administração Tributária, a elementos de facto conhecidos que, utilizados segundo as regras da experiência, pautados por critérios de razoabilidade e normalidade, conduzem à extrapolação de outros desconhecidos que sirvam de suporte ao juízo valorativo extraído pela mesma.
Compete, por isso, à Administração Tributária o ónus de prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua actuação, isto é, o ónus de provar que a liquidação não pode assentar nos elementos fornecidos pelo contribuinte e que o recurso aos métodos indiciários se tornou a única forma de calcular o imposto a liquidar, externando os elementos que a levaram a concluir nesse sentido, incumbindo ao Tribunal analisar se ela enunciou factos objectivos e concretos, verificados, donde possa concluir-se pela existência dos pressupostos legais dos quais depende o apuramento do imposto pelo método presuntivo.
Conforme referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa; «Assim, nestes casos, se a administração tributária não demonstrar a falta de correspondência entre o teor de tais declarações, contabilidade ou escrita e a realidade, o seu conteúdo terá de considerar-se verdadeiro». (in Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 2ª edição, 2000, a pág. 309
A jurisprudência aponta no mesmo sentido: «Cabe à Fazenda Pública, tanto no recurso administrativo como na impugnação junto dos Tribunais, o ónus da prova da existência dos pressupostos de facto e de direito do acto de liquidação oficiosa, seja por correcções técnicas ou métodos indiciários e presuntivos, constantes do relatório dos serviços de fiscalização» (Acórdão deste TCA de 22.05.2001, proferido no processo 3216/00).
Só depois de especificados e demonstrados tais pressupostos pela Administração Tributária, passa a competir ao contribuinte o ónus de prova da ilegitimidade do acto, seja por erro nos pressupostos para a avaliação por métodos indiciários, seja por erro na quantificação da respectiva matéria colectável. (…)”
Como resulta da concatenação dos artigos 38.º do CIRS e 52.º do CIRC (para o qual remete o artigo 38.º mencionado), a utilização de métodos indiciários assume uma dupla vertente:
Em primeiro lugar, torna-se necessário demonstrar a verificação de um qualquer dos factos previstos nas diversas alíneas do artigo 38.º, n.º 1 do CIRS e que constituem aqueles que são tidos legalmente como determinando a impossibilidade de tributação pelo sistema do lucro real.
Em segundo lugar, a utilização efectiva de métodos indiciários ou presunções na determinação do lucro tributável, por recurso aos elementos que são indicados no artigo 52.º do CIRC, de forma meramente exemplificativa.
Os Recorridos, como exerciam uma actividade comercial e não estariam obrigados a dispor de contabilidade organizada, deveriam, porém, possuir os livros de registo mencionados no artigo 50.º do Código do IVA – cfr. artigo 111.º do CIRS – sendo com base nesses livros que a determinação do lucro tributável das actividades comerciais se fará – cfr. artigo 37.º do CIRS.
A principal diferença entre a aplicação dos métodos indiciários no IRS e no IRC reside no facto de no IRS a contabilidade e os seus possíveis vícios terem um papel menor do que no IRC, uma vez que os sujeitos passivos do IRS, ainda com um dever de documentação e registo, não estão obrigados, salvo em casos excepcionais, a ter uma contabilidade organizada, a não ser que ultrapassem um determinado volume de negócios. Assim, regra geral, a especificidade no IRS reporta-se à ideia de veracidade das declarações, que não têm o suporte do balanço da empresa, baseando-se apenas no cumprimento de deveres de cooperação menos exigentes (do que no IRC).
Por este motivo (como as faltas poderão não ser tão evidentes), a identificação dos factos que possam consubstanciar vícios no registo das operações ou reflectir uma inexacta situação patrimonial e não espelhar o resultado efectivamente obtido deve ser mais cuidada e motivada, com o reporte preciso às circunstâncias elencadas nas alíneas do artigo 38.º, n.º 1 do CIRS, por forma a fundamentar cabalmente a aplicação de métodos indiciários.
No que tange à apreciação dos requisitos para o recurso a métodos indiciários, tudo assentará na fundamentação constante da decisão final proferida pela Comissão de Revisão, aludida no ponto 6. da factualidade assente, tendo sido emitida e enviada certidão do seu teor aos impugnantes.
Nessa decisão final não se realizou qualquer enquadramento legal, remetendo-se para o teor do laudo do vogal da Fazenda Pública. Neste laudo retoma-se, recupera-se e sintetiza-se a motivação factual que constava da informação da fiscalização.
Desde logo, não se mostra indicada a norma ao abrigo da qual se decidiu tributar por recurso a métodos indiciários, tão-pouco se referenciam as eventuais omissões a qualquer alínea do artigo 38.º, n.º 1 do CIRS. Somente na informação prévia da fiscalização se menciona, de forma conclusiva e sem precisão, que a correcção se baseia na aplicação de métodos indiciários, dado verificarem-se as condições previstas na parte final da alínea a) e na alínea d) do n.º 1 do artigo 38.º do Código de IRS.
Nessa informação identifica-se o sujeito passivo, enquadrado para efeitos de IRS na categoria C – sem contabilidade organizada. Pela fiscalização foi analisado, em particular, o Livro de Serviços Prestados modelo 5, a que se refere o artigo 50.º do CIVA, verificando-se que o sujeito passivo apenas registou o apuro mensal e/ou trimestral dos serviços prestados no ano de 1990, sem qualquer apoio documental, já que não emitiu facturas ou documentos equivalentes pelos serviços.
No entanto, dando de barato que se detectaram anomalias e incorrecções nos livros de registo e que não terão sido emitidas facturas ou documentos equivalentes (factura/recibo ou recibo) pela prestação de serviços, através de aluguer de camas em quartos, só poderá verificar-se a aplicação de métodos indiciários quando não seja possível a comprovação e a quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria colectável – cfr. artigo 38.º n.º 2 do CIRS.
A verdade é que nenhuma menção é efectuada a esta impossibilidade de comprovação directa, tão-pouco é feita sequer qualquer alusão à mesma, muito menos na decisão final da Comissão de Revisão. Restando sem saber se seria possível a quantificação do volume de negócios através de métodos directos, tanto mais que a fiscalização se refere à existência de elementos de escrita do contribuinte.
Efectivamente, na sequência de uma denúncia, os serviços de fiscalização da AT procederam ao exame dos elementos de escrituração (livros do artigo 50.º do CIVA), visitaram 10 ex-clientes da casa de hóspedes, os quais confirmaram pagar valores idênticos aos denunciados e também consultaram, na Polícia de Segurança Pública, o livro de registo de hóspedes.
Na verdade, a administração tributária não demonstrou a razão pela qual, mesmo dando de barato que a contabilidade apresentava as irregularidades apontadas, resultava inviável a determinação da matéria tributável com base em métodos de avaliação directa, pois, tudo indica, existiria o livro de registo de serviços prestados e o livro de registo de despesas mencionados no artigo 50.º do CIVA ex vi artigo 111.º do CIRS [(na decisão final indica-se que a fiscalização procedeu ao competente exame dos elementos de escrituração (livros do artigo 50.º do CIVA)].
Como vimos, na lógica do sistema, mesmo quando a presunção de veracidade é abalada, a prevalência deverá ser dada aos métodos directos de avaliação, constituindo os métodos indiciários uma ultima ratio só utilizável quando aqueles se mostrem imprestáveis e, por outro lado, o dever de fundamentação, previsto no artigo 81.º do CPT, expressamente impõe a especificação dos motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directas e exactas da matéria tributável: A decisão da tributação por métodos indiciários ou por presunções, nos casos e com os fundamentos expressamente previstos em leis tributárias, especificará os motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável e indicará os critérios utilizados na sua determinação.
O recurso a métodos indiciários de tributação exige, pelas consequências gravosas para o património dos contribuintes que pode assumir, um acrescido esforço de fundamentação não só formal mas, sobretudo, material através de uma inequívoca e segura demonstração probatória dos pressupostos justificativos do recurso a tais métodos por parte da administração tributária – cfr. Acórdão deste TCAN, de 12/02/2015, proferido no âmbito do processo n.º 503/06.3BEBRG.
O que, efectivamente, não ocorreu in casu, pelo que a dúvida quanto à verificação dos pressupostos de determinação da matéria tributável por métodos indiciários tem de ser resolvida contra quem tem esse ónus probatório, ou seja, a Administração Tributária.
Destarte, impera concluir pela ilegalidade da liquidação decorrente da ilegal determinação da matéria tributável que lhe subjaz, por a administração tributária não ter demonstrado, como lhe competia, a verificação dos pressupostos de que a lei faz depender o recurso aos métodos indiciários de avaliação.
Por conseguinte, o acto de liquidação impugnado enferma de vício de violação de lei, devendo, por isso, ser anulado e confirmar-se a procedência da impugnação judicial apontada pelo tribunal “a quo”, ficando prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no recurso.
Não olvidamos que o presente recurso vem, ainda, dirigido contra a decisão da matéria de facto, por inconformismo com a selecção da factualidade. Alerta a Recorrente não ter ficado consignado na sentença o teor dos anexos juntos ao relatório da inspecção, anexos 1 a 6, constituídos, respectivamente, por Termo de Declarações do contribuinte fiscalizado; por Termos de Declarações de hóspedes do sujeito passivo nos anos de 1989 e 1990; por fotocópias simples de folhas dos Livros de Serviços Prestados (modelo 5); por fotocópia integral do Livro de Registo de Hóspedes, chancelado e autenticado pelo Comando da P.S.P. de (...); por relações nominativas mensais com a identificação e número de hóspedes do sujeito passivo nos anos de 1989 e 1990; por fotocópias simples de folhas dos Livros de Despesas Gerais (modelo 6); cujo respectivo conteúdo, portanto, não foi vertido para o rol da matéria de facto assente, apesar de ser relevante para a apreciação da causa.
Desde logo, não vislumbramos como poderia constar nestes elementos a fundamentação do acto que destacámos em falta, uma vez que se trata somente de documentos que serviram de apoio e sustentação a alguns factos vertidos na decisão final de determinação da matéria colectável por métodos indiciários.
Por outro lado, o motivo para tais anexos terem sido desconsiderados na sentença recorrida reside na vicissitude de os mesmos nunca terem sido juntos aos autos. Acresce que a 1.ª Repartição de Finanças de Aveiro, em 12/04/1996, de harmonia com o preceituado no artigo 129.º do CPT, afirmou não possuir “mais quaisquer elementos oficiais relacionados com a matéria controvertida” – cfr. fls. 74 do processo físico.
Todavia, foram os próprios impugnantes que tomaram a iniciativa de juntar aos autos fotocópias de excertos do livro de registo de hóspedes, mencionado na informação da fiscalização e no laudo do perito da Fazenda Pública, de que se apropriou a decisão final da Comissão de Revisão de fixação da matéria colectável – cfr. fls. 105 a 110 do processo físico. Mas, resulta à saciedade não ser através deste documento que se permitirá verificar a fundamentação omissa, ou seja, que resultava inviável a determinação da matéria colectável com base em métodos de avaliação directa.
Sem prejuízo do que ficou dito, não podemos deixar de acrescentar que a Recorrente não indica no recurso qualquer facto simples que devesse ser aditado à decisão da matéria de facto, inviabilizando a apreciação da alegada deficiente selecção da matéria de facto. É verdade que, frequentemente, os tribunais optam por reproduzir parcialmente o texto de documentos na decisão da matéria de facto; porém, tal assume, essencialmente, pertinência para melhor colher a fundamentação em que se baseou a prolação do acto que possa estar em crise. A factualidade assente na sentença recorrida, em articulação ponderada com os respectivos documentos integrais sustentadores da mesma, mostra-se bastante para detectar o vício indicado e a violação do disposto no artigo 81.º do CPT. O dever de fundamentação, previsto neste artigo 81.º, reiteramos, impõe a especificação dos motivos da impossibilidade da comprovação e quantificação directas e exactas da matéria colectável, o que in casu não se verificou.
Por tudo o exposto, impõe-se negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

Conclusões/Sumário

I - O n.º 1 do artigo 76.º do Código de Processo Tributário (CPT), vigente à data dos factos tributários, determinava que o processo de liquidação se instaurava com as declarações dos contribuintes.
Essas declarações apresentadas pelos contribuintes à Administração Tributária gozam da presunção de veracidade, de acordo com o estatuído no n.º 1 do artigo 32.º da Lei n.º 106/88, de 17 de Setembro (autorização legislativa do CIRS e CIRC): «a administração fiscal só poderá proceder à fixação dos rendimentos colectáveis quando o contribuinte não apresentar declaração ou quando os rendimentos declarados não corresponderem aos efectivos ou se afastarem dos presumidos na lei»; de igual modo, o artigo 78.º do CPT apontava no mesmo sentido quanto ao valor probatório da escrita.
II - A determinação do rendimento real e efectivo será, pois, em primeira linha, o declarado pelo contribuinte; contudo, como forma de controlar e de evitar a fraude e evasão fiscais, são cometidos à Administração Tributária, através dos serviços da DGCI, um poder/dever de fiscalização: artigos 124.º e 125.º do CIRS e 75.º do CPT.
III - Nos termos do, então, disposto no artigo 81.º do CPT, a decisão de tributação por métodos indiciários especificará os motivos da impossibilidade da comprovação directa e exacta da matéria tributável e indicará os critérios utilizados na sua determinação.

IV. Decisão

Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em negar provimento ao recurso.

Sem custas, por a Fazenda Pública delas estar isenta – cfr. artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 29/98, de 11 de Fevereiro.

Porto, 21 de Maio de 2020


Ana Patrocínio
Cristina Travassos Bento
Paulo Ferreira de Magalhães