Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00017/13.5BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:03/05/2020
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Barbara Tavares Teles
Descritores:FALTA DE AUDIÇÃO PREVIA EM PROCEDIMENTOS DE 2º GRAU.
Sumário:1. A falta de audição do contribuinte antes do indeferimento do recurso hierárquico não dispensada nos termos do artigo 60°, no 3 da LGT, constitui um vício de procedimento determinante, em princípio, da anulabilidade do acto.

2. Estando em causa uma nova linha argumentativa e factual na decisão de recurso hierárquico, tal exigiria uma oportunidade para que o contribuinte, no exercício do direito de audiência prévia, pudesse invocar, demonstrar e afastar a factualidade que a Administração Tributária agora considerou.

3. Uma vez verificado tal vício no procedimento, importa verificar se esse vicio apenas afecta a decisão do recurso hierárquico ou conduz à anulação da liquidação impugnada.

4. No caso em concreto não pode dar-se por seguro que o exercício do direito de audiência não teria qualquer relevância na decisão do recurso, posto que o contribuinte, face ao teor da proposta de decisão, podia procurar convencer a Administração da fragilidade da sua retórica argumentativa, induzindo-a a compatibilizar a factualidade aceite com a observância da legalidade que teve de vir defender nesta impugnação. *
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:E., SA
Recorrido 1:Fazenda Pública
Votação:Unanimidade
Decisão:Negar provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

I. RELATÓRIO
A Fazenda Publica, interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela que julgou procedente a impugnação judicial instaurada pela sociedade E., SA, contra a as liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado, relativas ao ano de 2008, e respectivos juros compensatórios, com fundamento na preterição do direito de audição, no âmbito do procedimento de recurso hierárquico interposto.
Terminou as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES:
1. Por via da sentença sob recurso, o Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela decidiu anular as liquidações adicionais de IVA do ano de 2008 por considerar a existência de preterição do direito de audição prévia do contribuinte no âmbito do RH interposto a montante da presente impugnação;
2. Na decisão do RG a Fazenda Pública manteve o cerne do discurso fundamentador que havia motivado a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e, antes desta, que subjazeu às correcções operadas no âmbito do procedimento inspectivo, de cujas conclusões resultaram as liquidações impugnadas;
3. Fundamentação que assentou primacialmente na exclusão da dedutibilidade do IVA suportado na realização de despesas que não tinham uma relação directa e imediata com as operações tributáveis realizadas no âmbito do escopo social desenvolvido pela Impugnante (cf. alínea a) do n.º 1 do artigo 20.º do Código do IVA e artigo 23.º do Código do IRC), não conferindo, portanto, o direito à dedução;
4. Não tendo sido invocada nova factualidade na decisão final do RH, afigurou-se dispensável o exercício do direito de audição do contribuinte no aludido procedimento, de harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 60.º da LGT;
5. Sem prescindir, ainda que se considerasse preterido o direito de audição da Impugnante, no âmbito do RH, jamais tal vício – porque de natureza formal e procedimental – teria como consequência a anulabilidade dos actos aqui impugnados, mas sim, eventualmente, a anulabilidade da decisão final proferida na referida instância;
6. Nestes termos, e nos demais de direito que serão por Vossas Excelências doutamente supridos, deverá ao presente recurso ser concedido integral provimento, com a revogação da douta sentença recorrida, e a sua substituição por outra que julgue a presente impugnação totalmente improcedente, por não provada, assim se fazendo a já acostumada Justiça.”
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A Recorrente apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
Por todo o exposto, e o mais que o ilustrado juízo desse Tribunal suprirá, deve o presente recurso ser julgado improcedente, por não provado, mantendo-se a sentença recorrida, assim se cumprindo com o DIREITO e a JUSTIÇA!
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O Exmo. Magistrado do M.P junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
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Colhidos os Vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Objecto do recurso - Questão a apreciar e decidir:
Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo Recorrente, a partir da respectiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
A questão suscitada pela Recorrente Fazenda Publica consiste em saber se a sentença errou ao julgar procedente o vício de violação do direito de audição prévia, antes da decisão de indeferimento do recurso hierárquico.
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II. Fundamentação
II.1. De Facto
Com interesse para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:
1) Ao abrigo da Ordem de Serviço OI201000162, a Divisão de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de (...) levou a cabo uma ação inspetiva de âmbito geral com incidência no exercício de 2008 da impugnante; Doc. 3 junto com a p.i.
2) A impugnante foi notificada do projeto de relatório de inspeção tributária, nos termos do qual eram propostas correções à matéria tributável em sede de IRC, no valor de € 1 865 107,75, e apurado IVA, alegadamente em falta, no montante de € 124 608,02; Doc. 3 junto com a p.i.
3) No que ao IVA diz respeito, a conclusão preliminar da DIT teve por base o IVA incidente sobre custos suportados pela impugnante com publicidade e marketing para promoção e realização de eventos organizados na (…) e com o aluguer de equipamentos, designadamente de stands, pavilhões e de sistemas de som; Doc. 3 junto com a p.i.
4) Estes custos foram levados a cabo para a realização de feiras e atividades promocionais da região do (…) , designadamente: Feira do Fumeiro em Montalegre; Feira Gastronómica do Porco em Boticas; Feira do Folar em Valpaços; Feira do Azeite de Trás-os-Montes em Valpaços; Feira da Castanha em Carrazedo Montenegro; Feira de produtos da Terra e Artesanato em Vidago; Feira das Cebolas em Vila Pouca de Aguiar; Feira do Granito em Vila Pouca de Aguiar; Feira do Mel nas Pedras Salgadas; e Feira do Linho em Ribeira de Pena; Docs. 3, 12 e 13 juntos com a p.i.
5) De acordo com o projeto de relatório de inspeção, os custos em questão não são indispensáveis para a realização de proveitos ou ganhos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora, não cumprindo o previsto no artigo 23.° do Código do IRC; Doc. 3 junto com a p.i.
6) E, tratando-se de custos não aceites fiscalmente, também não poderiam ser deduzidas em sede de IVA por aplicação o disposto na alínea a) do n.° 1 do artigo 20.° do Código do IVA; Doc. 3 junto com a p.i.
7) A impugnante exerceu o seu direito de audição prévia; Doc. 4 junto com a p.i.
8) Foi emitido relatório de inspeção, mantendo, na íntegra, as correções propostas no projeto de relatório de inspeção; Doc. 5 junto com a p.i.
9) A impugnante apresentou respetiva reclamação graciosa; Doc. 6 junto com a p.i.
10) Foi proferida decisão de indeferimento; Doc. 7 junto com a p.i.
11)A impugnante interpôs recurso hierárquico; Doc. 8 junto com a p.i.
12) A Autoridade Tributária, proferiu uma decisão de indeferimento; Doc. 1 junto com a p.i.
13) Esta decisão de indeferimento começa por esclarecer que «não obstante a recorrente possuir capital exclusivamente público e como objeto a exploração de atividades de interesse geral (...) não tem natureza de Empresa Intermunicipal, dado não reunir qualquer das condições referidas, pelo que não lhe poderá ser aplicável o regime previsto para as Entidades Empresariais Locais»; Doc. 1 junto com a p.i.
14) Refere a Autoridade Tributária que «Reportando-nos ao caso sob análise, verifica-se que a recorrente acessoriamente à sua atividade tributada de produção de energia, efetuou, como forma de garantir um bom relacionamento institucional com as comunidades locais, a organização de eventos de acesso público e gratuito (...), tendo deduzido o IVA incluído nos respetivos encargos, ou seja, em gastos de promoção, publicidade, aluguer de material, equipamentos e sistemas de som, montagem e desmontagem de stands, pavilhões e palcos»; Doc. 1 junto com a p.i.
15) E que «afigura-se que esses gastos não conferem direito à dedução por não representarem uma relação direta e imediata com as operações tributadas a jusante»; Doc. 1 junto com a p.i.
16) Concluindo que «não deveria a recorrente ter procedido à dedução do IVA suportado na aquisição dos serviços destinados à organização de tais eventos, em virtude dos mesmos não apresentarem a necessária relação direta e imediata às suas operações tributárias»; Doc. 1 junto com a p.i.
17) A referida decisão dispensou a audiência prévia por a impugnante já ter sido notificada para o exercício desse direito relativamente ao projeto de relatório de inspeção tributária e relativamente ao projeto de decisão da reclamação graciosa, não sendo trazidos elementos novos em sede de recurso hierárquico; Doc. 1 junto com a p.i.
18) A impugnante é uma sociedade constituída em 21.09.1989, tendo como acionistas os municípios de (…), todos com participações sociais de 16,67%; Doc. 9 junto com a p.i.
19) A impugnante tem por objeto social «as atividades de construção, exploração e produção de energia com origem nos recursos renováveis, nomeadamente nos domínios hídrico, eólico, solar, geotérmico, da biomassa e do bio-gás e ainda de aproveitamento dos demais recursos naturais ou outros da região, nomeadamente através da participação e ou organização de eventos de promoção de produtos e serviços da região e, ainda, actividades de recolha, tratamento e valorização de resíduos sólidos urbanos, de fornecimento e tratamento de água para abastecimento urbano e a recolha e tratamento de efluentes, a actividades de aferição metrológica de instrumentos de medição, e de medição de ruído, com vista à promoção do desenvolvimento económico da região ou da sua qualidade de vida»; Doc. 10 junto com a p.i.
20) A principal fonte de proveitos da impugnante é a exploração industrial do aproveitamento hidroelétrico de (…), e a prestação de serviços de assessoria às seguintes empresas: Empreendimento Eólico de (…); Doc. 9 junto com a p.i.
21) Como contrapartida pela cedência dos direitos de exploração dos Municípios, a autora obrigou-se a efetuar o pagamento de contrapartidas financeiras e organizar eventos nesses mesmos Municípios de promoção de produtos da região; Depoimento das testemunhas M., J. e C. .
III.2 – Factos não provados
Inexistem factos, com interesse para a decisão da causa que importe dar como não provados.

III.3 – Fundamentação da matéria de facto
A convicção do Tribunal baseou-se na análise dos documentos que foram juntos aos autos e ao P.A., os quais não foram impugnados e são especificados em cada um dos pontos. Teve-se também em consideração o depoimento das testemunhas inquiridas.”
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Ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 1, do CPC, aditam-se ao probatório os seguintes factos, os quais resultam provados por documentos juntos aos autos:
22) No relatório de Inspecção referido nos pontos 2) a 6) vem dito a respeito as liquidações adicionais de IVA de 2008 aqui em causa, o seguinte:
“a E., SA deduziu IVA de despesas de publicidade e Marketing, que correspondem a consumos de bens e serviços ou seja, a utilização de uma despesas sem qualquer relação de casualidade com a obtenção do ganho correspectivo.
Tais custos não cumprem com o princípio da indispensabilidade dos gastos para a realização de créditos pois a E, SA tem como fonte principal de proveitos a exploração de um único empreendimento hidroeléctrico localizado no concelho de (…) sendo toda a energia produzida por esse equipamento seu único cliente a EDP. (…)
Assim, tomando como ponto de partida o principio geral estabelecido no artigo 23º do CIRC, os custos serão dedutíveis desde que: (i) comprovadamente (ii) sejam indispensáveis (iii) para a realização dos proveitos e ganhos sujeitos a imposto ou manutenção da fonte produtora. O que comprovadamente não se verifica no caso concreto, pelo que o IVA suportado com a realização dessas despesas foi indevidamente deduzido à luz do estipulado no nº 1 do artigo 20º do CIVA”, cf. RIT de fls. 78 e 79 dos autos.
23) Os fundamentos da reclamação graciosa referida em 9) foram, em síntese, os seguintes, cf. fls. 45 a 54 dos autos
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

24) A reclamação foi indeferida nos seguintes termos, cf. fls. 45 a 54 dos autos:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

25) A decisão de recurso hierárquico constante dos pontos 13), 14), 15 e 16) consta além do que aí vem transcrito, o seguinte:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]
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II.2. O Direito
Face ao decidido na sentença recorrida e ao recurso interposto pela Fazenda Pública verifica-se que a única questão que importa apreciar e decidir é a de saber se a decisão a quo incorreu em erro de julgamento ao concluir pela violação do direito de audição prévia, antes da decisão do recurso hierárquico.
Com efeito, foram invocadas várias ilegalidades como fundamento da impugnação -(i) a violação de lei por entender que a Impugnante, ora Recorrida, tem direito a deduzir ao IVA liquidado pela venda de eletricidade o IVA suportado com a organização de eventos; (ii) vício de falta de fundamentação; (iii) a violação do princípio da participação por não lhe ter sido dada a oportunidade de se pronunciar relativamente à fundamentação que consta apenas no recurso hierárquico – no entanto a sentença recorrida viria a concluir pela improcedência de todas as ilegalidades invocadas, excepto a ilegalidade atinente à audição prévia antes da decisão de indeferimento do recurso hierárquico.
Para assim decidir a senteça utilizou o seguinte discurso fundamentador:
Na decisão de indeferimento do recurso hierárquico fundamentou-se a não notificação da impugnante para o exercício do direito de audiência prévia, porque esta já havia sido notificada em sede de inspeção, relativamente ao projeto de relatório, e em sede de reclamação, relativamente ao projeto de indeferimento da reclamação, referindo que nenhum elemento novo havia surgido em sede de recurso hierárquico.
Repare-se, no entanto, que o artigo 60.º, n.º 3 da LGT não faz referência a novos fundamentos, mas a novos factos. Não é o mero tratamento legal dos elementos considerados que obsta à dispensa, mas a existência de novos factos que a Administração Tributária não havia considerado anteriormente e que, portanto, o contribuinte não havia podido pronunciar-se relativamente aos mesmos.
No entanto, a interpretação deste normativo não pode ser muito restrita, sob pena de permitir a subversão completa do direito de audiência prévia nas situações em que o enquadramento jurídico dado em decisão do 2º grau seja de tal forma diverso que, em concreto, constitui um obstáculo efetivo ao princípio da participação, desde logo porque pode constituir um impedimento a que o contribuinte pudesse alegar factualidade relevante que suportasse outro entendimento.
Se atendermos à diferença na fundamentação supra referida, é possível facilmente constatar que está em causa uma alteração relevante na fundamentação, em termos que impedem um exercício efetivo do direito de participação. Inicialmente é referido que a impugnante não podia deduzir os montantes em causa porque não estava demonstrado custos não eram indispensáveis para a obtenção dos proveitos sujeitos a imposto ou manutenção da respetiva fonte produtora, nos termos do artigo 23.° do Código do IRC.
Evidentemente que a audiência prévia da autora foi dirigida a demonstrar tal indispensabilidade. Mas, num segundo momento, é referido que a impugnante não demonstrou a existência de relação direta e imediata dos custos com as operações tributáveis realizadas. Num primeiro momento estava em causa a indispensabilidade dos custos para a obtenção dos proveitos ou para a manutenção da fonte produtora. Num segundo momento está em causa a relação entre os custos e as operações tributáveis.
A questão que subjaz às liquidações adicionais reporta-se à dedutibilidade de montantes que a impugnante deduziu referentes a várias despesas que teve relativas à realização de feiras e atividades promocionais da região do (…) . Ora, quanto ao fundamento invocado no recurso hierárquico, a impugnante nunca teve oportunidade de se pronunciar quanto ao mesmo, designadamente alegando e juntando meios de prova que demonstrassem tal relação, que só é questionada em sede do recurso hierárquico, sem que a impugnante alguma vez tivesse tido oportunidade de se pronunciar quanto a este aspeto.
Assim, sendo pacífica a existência da referida alteração na fundamentação inicialmente adotada, afigura-se que essa alteração introduz a necessidade de uma nova audiência prévia, já que a questão deixa de ser a mesma que era colocada inicialmente, assim como os factos subjacentes (os que a nova decisão refere terem sido omitidos no procedimento administrativo).
Conforme alega a impugnante subjacente a esta alteração está «uma nova linha argumentativa e factual», o que exigiria uma oportunidade para que ela, no exercício do direito de audiência prévia, pudesse invocar a factualidade que a Administração Tributária considerou não existir e justificar a não demonstração de relação direta entre os custos e as operações tributáveis. (destaque nosso)
Assim, procede a presente questão, sendo de anular as liquidações impugnadas.”

Nas suas conclusões, a Recorrente sustenta que a sentença recorrida errou ao concluir pela violação do princípio de audiência prévia antes da decisão de indeferimento do recurso hierárquico, já que a audiência foi dispensada pelo órgão decisor de harmonia com o disposto no art. 60.º, no 3 da LGT, face à idêntica factualidade invocada pelo sujeito passivo na anterior reclamação graciosa e à circunstância do mesmo ter sido ouvido anteriormente sobre os factos em discussão.
Vem dito nas conclusões o seguinte:
“Não tendo sido invocada nova factualidade na decisão final do RH, afigurou-se dispensável o exercício do direito de audição do contribuinte no aludido procedimento, de harmonia com o disposto no n.º 3 do artigo 60.º da LGT”
Posto isto, vejamos.


Estabelece-se na norma do artigo 600 da LGT:
"1. A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas: (…)
b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições; (…)
3. Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases cio procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.o 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado. (...) "

Com esta disposição legal teve-se em vista dar concretização, no âmbito do procedimento tributário, ao princípio constitucional da participação dos cidadãos na formação das decisões administrativas que lhes digam respeito, pelo que estamos na presença de um direito legal - procedimental.
O exercício desse direito constitui uma importante manifestação do princípio do contraditório e uma sólida garantia de defesa dos direitos do administrado, sendo reconhecido pela doutrina e peia jurisprudência como um princípio estruturante da actividade administrativa cuja violação ou incorrecta realização se traduz na violação de uma formalidade essencial que, em princípio, é determinante da ilegalidade do próprio acto (acórdão do STA de 23/1/2008, processo 837/07).
Deste modo, a falta de audição do contribuinte antes do indeferimento do recurso hierárquico (artigo 60°, n° 1, alínea b) da LGT) não dispensada nos termos do artigo 60°, no 3 da LGT, constitui um vício de procedimento determinante, em princípio, da anulabilidade do acto.
Ou seja, o contribuinte tem direito a ser ouvido antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, não se consagrando, sequer, para essas hipóteses, "a dispensa de audição no caso de já ter havido pronúncia do contribuinte, a exemplo do que está previsto na al. a), do n0 2, do art. 103° do CPA, com excepção do caso particular da audição antes da liquidação previsto no n° 3 do mesmo art. 600, onde, no entanto, se afasta essa dispensa na hipótese de invocação de factos novos" (cf, ac. do STA, de 15/10/2008, proc. no 0542/08).
Assim, a audição do contribuinte só deve verificar-se, mais uma vez, quando haja factos novos no âmbito de um procedimento gracioso que tenha diversas fases. É o caso dos procedimentos de segundo grau (v.g. reclamações graciosas e recursos hierárquicos), quando não existam factos novos capazes de influenciar a decisão final e o contribuinte já tenha sido ouvido sobre a factualidade em causa em procedimento anterior. Nessa situação, em que não está em causa factualidade nova, não existe qualquer obstáculo à dispensa do direito de audição, uma vez que o direito de participação já foi assegurado anteriormente e a realidade factual não foi alterada - assim, ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 17/9/2013, proc.1510/06; Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, p.424 e seg.; Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4ª. Edição, 2012, p.508 e seg.
Este entendimento é também o do STA, tal como resulta dos recentes acórdãos de 30/10/2019, processo 0492/18, 08/05/2019, 01446/17, e 26/09/2018 no processo 1506/17.8BALSB, sendo este ultimo do Pleno, e ondo se pode ler o seguinte:
“(….) Ou seja, entre as situações em que se admite que não se produza o efeito anulatório da preterição do direito de audiência prévia, a par daquelas em que se demonstre que o exercício desse direito não poderia influenciar de modo algum a decisão, contam-se também aquelas em que, tendo sido omitida a audiência no procedimento de primeiro grau, o interessado teve a oportunidade de se pronunciar em procedimento de segundo grau. (destaque nosso). O n.º 5 do art. 163.º do novo CPA veio mesmo consagrar expressamente esse entendimento, pois na sua alínea b) consagra como situações em que não se produz o efeito anulatório aquelas em que «[o] fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via».(…)
No caso sub judice, a ora Recorrente interpôs reclamação graciosa da liquidação adicional e neste meio de reacção administrativa teve a oportunidade de se pronunciar, como efectivamente se pronunciou, sobre todas as questões relativamente às quais lhe deveria ter sido previamente concedida a faculdade de se pronunciar previamente à liquidação. Por isso, devemos considerar que ficou sanado o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação. (destaque nosso)
Parafraseando os citados Autores, podemos afirmar que a decisão administrativa final acaba por ser o acto de segundo grau (por que foi decidida a reclamação graciosa), pelo que deverá ser em relação a este acto que deverá aferir-se se o contribuinte teve ou não oportunidade de participar na sua formação.”

No caso dos autos, não é controvertido que foi concedido à Recorrida o direito de audição prévia na reclamação graciosa.
Vejamos então se resulta demonstrado, no processo em questão, que a Recorrida, teve conhecimento de uma fundamentação – a proferida em sede de inspecção tributária –, mas essa mesma fundamentação foi integralmente alterada aquando da decisão do recurso hierárquico. Significa isto que, ao contrário do explicitado na decisão de indeferimento do recurso hierárquico, com esta decisão passou a ser exigido ao contribuinte um novo ónus probatório que deverá assentar em novos factos que poderiam ter sido, desde logo, apresentados em sede de direito de audição. Da análise de novos factos/argumentos que pudessem ter sido trazidos pela ora Recorrida em sede de direito de audição, poderiam ter influenciado a decisão final do recurso hierárquico, permitindo uma decisão de deferimento total ou, até, parcial. Mas, mais importante do que ter influenciado decisivamente ou não a decisão do recurso hierárquico, a Autoridade Tributária deveria ter permitido que a Recorrida, ao abrigo do artigo 60.º da LGT, se tivesse pronunciado sobre esta nova fundamentação das liquidações adicionais de IVA.
Ora, analisado o que resulta da decisão de reclamação graciosa resulta o seguinte:
“não são de considerar os custos com a publicidade, marketing e alugar de equipamento e consequentemente a não aceitação do IVA dedutível, uma vez que a assunção de tais custos não tem qualquer tipo de conexão com a obtenção dos proveitos ainda que de forma indirecta ou não imediata (artigo 23º do CIRC e artigo 20º nº 1 do CIVA); (…)
Nestes termos e face ao exposto, conclui-se que:
(…) não deverá merecer provimento”.

Compulsados os factos constantes da matéria assente, quer pela 1ª instância (que não foi impugnada), quer agora aditada nesta sede recursiva, resta-nos concordar com a sentença sob analise e com o que vem alegado pela Recorrida, na sua PI de impugnação.
No momento de decisão quer da reclamação graciosa, quer do relatório de inspecção para o qual ela remete, está em causa a indispensabilidade dos custos em publicidade, marketing e aluguer de equipamento e consequentemente a não aceitação do IVA dedutível, uma vez que tais custos não tem qualquer tipo de conexão com a obtenção dos proveitos ainda que de forma indirecta ou não imediata – ou seja, o RIT e a reclamação graciosa decidiram pela falta de prova da indispensabilidade.
Já na decisão do recurso hierarquico esta em causa, assim como vem concluido no parecer/decisão sobre o mesmo, que a Recorrida não devia ter procedido à dedução do IVA suportado nas aquisições dos serviços destinados à organização de tais eventos em virtude dos mesmos não apresentarem relação directa e imediata com as suas operações tributáveis, vem dito na decisão que esses gastos não conferem direito à dedução por não apresentarem uma relação directa e imediata com as operações tributadas a jusante.
Vem expressamente dito na decisão de recurso hierarquico que, “(…) as operações efectuadas a montante devem ter relação directa com as operações tributáveis a jusante com direito à dedução.” – mas tal decisão não se refere nunca à indespensabilidade dos custos para a realização dos proveitos, usando outro fundamento.
Mais, vem dito ainda na decisão de recurso hierarquico o seguinte:
“Não obstante a recorrente possuir capital exclusivamente público e como objecto a exploração de atividades de interesse geral (…) não tem natureza de Empresa Intermunicipal, dado não reunir qualquer das condições referidas, pelo que não lhe poderá ser aplicável o regime previsto para as Entidades Empresariais Locais” – fundamento que não tinha sido invocado até então.
Verifica-se assim que andou bem a sentença a quo quando considerou que está em causa uma nova linha argumentativa e factual, o que exigiria uma oportunidade para que a Recorrida, no exercício do direito de audiência prévia, pudesse invocar, demonstrar e afastar a factualidade que a Administração Tributária agora considerou.
Alem do mais no seu recurso, a Fazenda Publica limita-se a reiterar que a fundamentação da administração tributária na decisão do recurso hierárquico não foi diferente ou não foi outra relativamente àquela aduzida em sede de inspecção, voltando a enunciar o teor das referidas decisões, e não cuida de evidenciar ou demonstrar em que medida é que considera então que a fundamentação é sempre a mesma e única.
Em face de todo o exposto, não logrando as alegações de recurso infirmar a conclusão a que chegou o Tribunal Recorrido, deve julgar-se improcedente nessa parte.

Vejamos agora se, uma vez verificado tal vício no procedimento, esse vicio apenas afecta a decisão do recurso hierárquico ou conduz à anulação da liquidação impugnada (como se decidiu na sentença recorrida).
A audiência dos interessados destina-se essencialmente a permitir a sua participação nas decisões que lhes dizem respeito, contribuindo para um cabal esclarecimento dos factos e uma mais adequada e justa decisão, a omissão dessa audição constitui a preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade dessa decisão, a menos que seja manifesto que a decisão viciada só podia, em abstracto, ter o conteúdo que teve em concreto.
Com efeito, a jurisprudência do STA tem formado uma sólida orientação no sentido de que os vícios de forma não impõem, necessariamente, a anulação do acto a que respeitam, e que as formalidades procedimentais essenciais se degradam em não essenciais se, apesar delas, foi dada satisfação aos interesses que a lei tinha em vista ao prevê-las – veja-se acórdão do STA de 27/1/2016, Processo 0174/15.
Consequentemente, a formalidade em causa (essencial) só se degrada em não essencial, não sendo, por isso, invalidante da decisão, nos casos em que a audiência prévia não tivesse a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, o que impõe o aproveitamento do acto.
O que daí resulta é que, por força do princípio geral de aproveitamento do ato administrativo e por razões de segurança jurídica e economia processual, o ato administrativo, apesar de inválido, não deve ser anulado quando, designadamente, o seu conteúdo não podia ser outro e não haja interesse relevante na sua anulação e, bem assim, quando se comprove, sem margem para dúvidas, que o vício formal não teve qualquer influência na decisão e que a decisão tomada era a única concretamente possível.
Todavia, no caso dos autos, não pode dar-se por seguro que o exercício do direito de audiência não teria qualquer relevância na decisão do recurso, posto que a Recorrida, face ao teor da proposta de decisão, podia procurar convencer a Administração da fragilidade da sua retórica argumentativa, induzindo-a a compatibilizar a factualidade aceite com a observância da legalidade que teve de vir defender nesta impugnação.
Até porque, como se verifica pelo teor da fundamentação da decisão proferida no recurso, nela trouxeram-se à colação argumentos que não constavam da reclamação ou relatório que suporta liquidação impugnada não é, pois, possível a formulação de um juízo de prognose póstuma que leve o tribunal a concluir que sempre seria o mesmo o conteúdo da decisão caso tivesse havido lugar à audição da reclamante.
Nesta perspectiva, tem de concluir-se que o direito de audiência não podia deixar de ser assegurado e que não o tendo sido se preteriu formalidade essencial, o que acarreta a anulação da decisão final do citado recurso hierárquico, de modo a permitir que seja assegurada a reponderação da concreta situação tributária à luz dos elementos e das considerações que a recorrente possa eventualmente trazer nos termos do art. 60º da LGT.
Face ao exposto, resta concluir pela total improcedencia do recurso da Fazenda Publica.
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III. Decisão
Termos em que, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em negar provimento ao recurso e em consequência manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Porto, 5 de março de 2020.


Barbara Tavares Teles
Paula Moura Teixeira
Maria da Conceição Soares