Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00653/21.6BEAVR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:07/15/2022
Tribunal:TAF de Aveiro
Relator:Ricardo de Oliveira e Sousa
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR – DIREITO À PROVA – FALTA DE APTIDÃO PROBATÓRIA – REGRAS DE EXPERIÊNCIA COMUM
Sumário:I- Detetando-se a existência de matéria de matéria de facto controvertida com interesse para a correta decisão cautelar, não pode ser recusada à parte sobre a qual impede o ónus de prova a possibilidade de a provar, sob pena de se coartar o “direito à prova” dos seus apresentantes.

II- Carece de sustentáculo processual a convocação por parte do Tribunal Recorrido as “regras de experiência comum” para fundar a aquisição processual de que “(…) A exploração pecuária da Contra-interessada gera maus cheiros, danos para o ambiente e qualidade de vida de todos aqueles que vivem e se deslocam à zona, incluindo turistas, especialmente os residentes das urbanizações a cerca de 300 m (…)”.

III- Realmente, se é aceitável conjeturar que uma exploração agropecuária é susceptível de causar maus cheiros nas redondezas, já não é admissível transportar tal construção para o caso versado em face da alegação da existência de outras instalações nas imediações daquela também capazes de gerar maus cheiros.

IV- De igual modo, não é aceitável resolver-se o impasse fáctico em torno da existência de danos para “(…) os residentes das urbanizações a cerca de 300 m (…)” exclusivamente com base numa lógica presuntiva, dado que esta poderá [ou não] mostra-se materialmente correta, dúvida o que a isenta da necessária credibilidade probatória que se impõe neste patamar.*
* Sumário elaborado pelo relator
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Procedimento Cautelar Suspensão Eficácia (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I – RELATÓRIO

S..., LDA, com os sinais dos autos, vem intentar o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença promanada pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro que, em 04.04.2022, julgou procedente a presente providência cautelar e, consequentemente, suspendeu “(…) a eficácia do acto administrativo da autoria da Diretora de Serviços de Desenvolvimento Agro-alimentar, Rural e Licenciamento da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro, datado de 02.09.2021 (…)” e condenou “(…) a Contra-interessada S..., LDA., na adopção, no prazo de 20 dias, de todas as medidas e melhores técnicas disponíveis para obviar aos danos ambientais, a aferir e definir pela entidade terceira independente que o Tribunal nomeará para o efeito, sob pena de encerramento da exploração intensiva de suínos (…)”.
Alegando, a Recorrente formulou as seguintes conclusões: “(…)
O presente recurso jurisdicional foi interposto contra a sentença cautelar proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro em 4 de abril de 2022, que decretou a suspensão da eficácia do despacho da Directora de Serviços de Desenvolvimento da DRAPC - que remetera o processo de regularização para decisão final - e condenou a ora contra-interessada a adotar todas as medidas e melhores técnicas disponíveis para obviar aos danos ambientais, sob pena de encerramento da sua exploração.
Salvo o devido respeito, o aresto em recurso começa por atentar contra a força de caso julgado da decisão do TAF de Aveiro, do TCANORTE e do STA que, na primeira providencia cautelar, haviam decidido que a contra-interessada possuía um “título legítimo para a exploração provisória do estabelecimento”, uma vez que nesta segunda providência as partes e o pedido são exatamente idênticos e a causa de pedir também é a mesma - bastando ler-se o pedido formulado nesta segunda providência para se verificar que se peticionava o encerramento do estabelecimento “...em tudo quanto não tem licença de exploração..:' pelo que a Meritíssima Juiz estagiário a quo deveria ter-se abstido de conhecer do mérito da providência, até para evitar que a justiça tivesse de assistir a que uma Juiz estagiaria desdissesse tudo o que anteriormente o TAF de Aveiro, o TCANORTE e o STA haviam afirmado quanto à causa de pedir - que a contra-interessada tinha um título válido de exploração.
Contra o exposto não se argumente que nesta segunda providência a causa de pedir é diferente por alegadamente se imputarem ilegalidades que apontam para o encerramento do estabelecimento, uma vez que todas as ilegalidades invocadas pelo Município ... requerente se reconduzem a justificar que a contra-interessada não possuía um título que legitimasse a continuidade da exploração, pelo que a causa de pedir é exatamente a mesma em ambas as providências, reconduzindo-se sempre à ausência de título de exploração.
Por outro lado,
O aresto em recurso julgou incorretamente os factos dados por provados nos n°s 78 e 87, seja por tais pontos de facto terem sido considerados assentes com violação do direito à tutela judicial efetiva e do princípio da igualdade das partes (consagrados, respetivamente, no n° 4 do art° 268° da CRP e no art° 6º do CPTA), seja por as regras da experiência não permitirem comprovar que os maus cheiros eventualmente sentidos na localidade provêm da exploração da contra-interessada e não da ETAR municipal ou de qualquer outra unidade industrial ali existente, seja por ser absolutamente temerário e seguramente imprudente que se dê por provada a origem dos maus cheiros sem se constatar in loco a existência desses mesmos maus cheiros e a similitude entre os odores eventualmente sentidos na exploração da contra-interessada e os odores alegadamente sentidos a muitos metros de distância.
Consequentemente, e pelo menos sem a prévia realização de uma inspeção ao local, jamais poderia de forma consciente e com um mínimo de verosimilhança o aresto em recurso dar por provada a matéria de facto constante dos n°s 78° e 87°, razão pela qual deve este douto Tribunal alterar a matéria de facto e eliminar da factologia assente os factos constantes dos referidos números. Acresce que,
O aresto em recurso atentou claramente contra a natureza perfunctória, provisória e instrumental da tutela cautelar, uma vez que enquanto na ação principal apenas se peticiona a anulação do despacho da DRAPC que remeteu o processo para conferência decisória, a decisão cautelar não só decide o que só a ação principal deveria decidir - considerando que o processo não pode ir para decisão sem a declaração de interesse municipal; que o pedido de regularização deveria ser indeferido; quer a DRAPC não tinha competência; que não há título legítimo de exploração provisória; que os maus cheiros existem e que provêm da exploração da contra-interessada, etc-, como seguramente condena a contra interessada a adotar medidas e a realizar obras que nem em sede de ação principal foram requeridas e peticionadas - uma vez que ali apenas se peticionou a anulação do despacho que remeteu o processo para decisão, nunca se tendo sequer peticionado nem o indeferimento do pedido de legalização, nem o encerramento do estabelecimento da contra-interessada ou a realização de determinadas obras ou medidas.
7ª Ora, é pacífico que a provisoriedade determina que o Juiz cautelar não possa antecipar, a título definitivo, a constituição ou reconhecimento de situações que só a decisão a proferir no processo principal pode determinar a titulo definitivo... ” (v. Ac° do TCASUL de 209/1/2006, Proc. n° 727/06.3BEPRT-A), da mesma forma que a instrumentalidade determina que a tutela cautelar seja aferida e decretada em função do pedido formulado na ação principal (v. neste sentido AROSO DE ALMEIDA e CARLOS CADILHA, Comentário ao CPTA, 4a ed. 2017, pág. 930).
Contudo, o aresto em recurso não só decreta uma medida cautelar que em nada se destina a assegurar o efeito útil a obter na ação principal - onde se pede apenas a anulação do despacho que remeteu o processo de regularização para a decisão final e onde, portanto, o efeito útil a obter-se é apenas o de assegurar que tal processo não é decidido sem a pronúncia do Município, daí não decorrendo a imposição de quaisquer obras ou a adoção de quaisquer medidas como antecipa definitivamente obras ou medidas que se a ação principal vier a ser julgada Improcedente já estão realizadas e consumadas definitivamente, que não teriam de ser efectuadas e que até podem vir a ser absolutamente irrelevantes (pois se o pedido de legalização for julgado indeferido as obras ou medidas adotadas não servirão para nada, justamente por a exploração não poder funcionar).
Consequentemente, peticionando-se apenas em sede de ação principal a anulação do despacho que manda o processo para conferência decisória e não se peticionando nem o indeferimento do pedido de legalização nem o encerramento do estabelecimento da contra-interessada, muito naturalmente que o Juiz cautelar não pode mandar encerrar a exploração e, muito menos, em substituição de tal encerramento ordenar a realização de obras ou a adopção de quaisquer medidas, pelo menos para quem queira respeitar a provisoriedade e instrumentalidade da tutela cautelar.
10ª O aresto em recurso incorreu em notório erro de julgamento ao considerar preenchido o fumus boni iuris, seja por da instrumentalidade da tutela cautelar resultar claramente que, face ao pedido formulado na ação principal - anulação do despacho que remeteu o processo de regularização para decisão final - , o Município ... requerente não tinha qualquer direito de condenar a contra-interessada a efetuar obras - e por isso nem sequer solicitou tal condenação em sede de ação principal seja por nem sequer ter o direito de suspender a eficácia do despacho que remete o processo para decisão final, uma vez que este é um acto de tramite e meramente preparatório, que não produz efeitos externos e muito menos lesivos - os quais só se produzirão se e na medida em que a decisão final for no sentido de deferir o processo de regularização
Com efeito,
11ª Do pedido formulado em sede de ação principal apenas resulta, no máximo, a anulação de um despacho que remeteu o processo para decisão final e, consequentemente, o direito a que o processo de regularização só seja decidido após a pronúncia do Município sobre a existência de interesse público municipal, jamais advindo o direito de forçar quem estava a explorar a sua unidade com base num título provisório dado pela lei a efetuar determinadas obras ou a adotar determinadas medidas.
12ª Consequentemente, do pedido formulado em sede de ação principal não advinha o direito do Município encerrar uma exploração que beneficiava ex vi legis de um título provisório de funcionamento, nem de impor a realização de obras ou a adopção de medidas de proteção ambiental que nem o legislador nem a Administração impuseram, razão pela qual é notório o erro de julgamento em que incorreu o tribunal a quo ao considerar preenchido fumus boni iuris justificativo do decretamento da medida cautelar imposta à contra-interessada.
13° O erro de julgamento em que incorreu o aresto em recurso ao considerar verificado o fumus boni iuris sempre decorreria de o despacho cuja suspensão se decretou ser um acto de tramite e meramente preparatório, que nenhum efeito externo e lesivo produzia, razão pela qual não se tratando de um acto impugnável (v., neste sentido, o art.° 268.° da Constituição e o art.° 51.° do CPTA) não poderia ser objecto de suspensão da eficácia, devendo, como tal o Tribunal a quo ter rejeitado liminarmente a providência cautelar ou indeferido a mesma por falta de um dos seus pressupostos.
14° Aliás, veja-se que a decisão a tomar em sede de conferência decisória até poderia ser no sentido de indeferir o processo de regularização apresentado pela contra-interessada, pelo que se essa fosse a decisão multo naturalmente a exploração da contra-interessada teria de encerrar - por deixar de ter um título provisório de exploração - e o requerente não teria qualquer prejuízo, ao passo que só se a decisão final fosse no sentido da regularização é que o Município teria um acto que lesava os seus interesses, tendo, nessa altura, a prerrogativa de solicitar a suspensão da eficácia de tal decisão desfavorável aos seus interesses.
15º O Tribunal a quo incorreu igualmente num notório erro de julgamento ao dar por preenchido o periculum in mora, podendo-se dizer que a Sra. Juiz estagiário a quo passa simultaneamente um atestado de menoridade ao legislador e à Administração Pública - que concederam um título válido de exploração provisória do estabelecimento e nunca a condicionaram à realização de quaisquer obras ou medidas por parte da contra-interessada - e, de uma forma verdadeiramente incrível e errada, considera que a simples probabilidade da decisão finai a tomar poder ser num ou noutro sentido constitui um prejuízo irreparável - o que levaria a que o periculum in mora estivesse sempre preenchido - e, como se isso já não fosse suficiente, ainda vem dizer que é de difícil reparação a possível existência de maus cheiros cuja existência e origem nunca se comprovou presencialmente e cuja comprovação assentou apenas numas regras da experiência de quem está a iniciar o seu percurso judicial.
Por fim,
16ª O aresto em recurso incorreu ainda em notório erro de julgamento na ponderação de interesses que efetuou, proferindo uma decisão completamente desproporcional à luz dos interesses em presença, seja por impor à contra-interessada a realização de obras ou a adopção de medidas cujo valor é incerto, que nem o legislador ou a Administração impuseram e que de acordo com a tese da própria sentença serão absolutamente inaproveitáveis - uma vez que se o pedido de regularização for indeferido a exploração não pode funcionar e as obras terão sido realizadas de forma absolutamente inútil -, seja por a gravidade para o interesse público se basear numa mera probabilidade e na existência de maus cheiros cuja existência e origem não se comprovaram presencialmente (…)”.
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Notificado que foi para o efeito, o Recorrido Município da ... produziu contra-alegações, que rematou com o seguinte quadro conclusivo:”(…)
1) O juízo da Meritíssima Senhora Juíza Estagiária contido na sentença recorrida apresenta-se muito bem fundamentado e perfeitamente acertado e conforme à lei e ao Direito, em nada apoucando (bem pelo contrário) a Justiça Administrativa.
2) Já as alegações da Recorrente são um perfeito exercício de mistificação dos factos e do direito que corporizam os autos e a decisão, um conjunto de argumentos-fantasma que só visam impressionar emotivamente quem os lê, sem qualquer sustentação ou sequer pertinência factual e/ou processual, bem demonstrando a olímpica e censurável indiferença daquela ao sofrimento público que provoca e que está perfeitamente indiciado nos autos, mormente os odores nauseabundos e insuportáveis provenientes do seu estabelecimento (como a mesma bem sabe), que inundam o ar e infernizam a vida de todos em redor.
3) No que diz respeito à alegada violação do caso julgado, bem sabe a Recorrente que encetou dois procedimentos ao abrigo do RERAE, o primeiro dos quais foi objeto do processo n.° 1283/16.... e foi considerado deserto pela Entidade Requerida, posto o que a Recorrente apresentou o segundo procedimento de regularização extraordinária. Este segundo pedido de regularização diverge do primeiro, tanto que nele as Contrapartes defendem que é desnecessária a obtenção de deliberação fundamentada de reconhecimento do interesse público municipal na regularização do estabelecimento, para efeitos de instrução do pedido, ao contrário do que foi assumido no primeiro procedimento.
4) Face ao exposto (deserção e segundo pedido), o Recorrido apresentou o articulado superveniente de que se fala na sentença recorrida; negada a admissão do mesmo e ficando o processo n.° 1283/16.... carente de objeto, como foi julgado, o Município intentou os presentes autos, cujo objeto é o segundo procedimento de regularização encetado pela Contrainteressada, o ato administrativo (suspendendo) nele praticado e a atuação omissiva da Entidade Requerida neste segundo procedimento.
5) Logo por aqui falece em absoluto a alegação da Recorrente, pois, como é óbvio, se os processos versam dois procedimentos administrativos distintos, com pedidos materialmente distintos (na ótica das Contrapartes), que seguiram inclusive tramitação distinta, nunca o pedido e a causa de pedir processuais podem ser os mesmos.
6) Depois e na sequência do que expomos, o processo n.° 1283/16.... terminou por decisão que julgou a inutilidade superveniente da lide, face à sobredita deserção e não admissão do articulado superveniente, pelo que não houve, assim, em instância alguma, decisão do mérito da ação - nunca, jamais, em momento algum, o TAF-Aveiro, o TCAN ou o STA decidiram, no âmbito do processo n.° 1283/16...., que a Recorrente possuía um título legítimo para a exploração provisória do estabelecimento.
7) Tal asserção, no sentido de que, no âmbito do processo n.° 1283/16...., foi julgado que a Recorrente possuía um título legítimo para a exploração provisória do estabelecimento, é um perfeito non sense jurídico, tendo em conta, como vimos e como resulta da sentença recorrida e se repisa, que o primeiro pedido de regularização da Recorrente foi considerado deserto pela Entidade Requerida e o conhecimento das ilegalidades atinentes ao segundo pedido foi afastada, naquele processo, pela não admissão do articulado superveniente do Município.
8) De seguida, a Recorrente insurge-se contra os factos indiciariamente provados nos pontos 78 e 87 da sentença recorrida, esquecendo os factos decorrentes dos pontos 11, 14, 24, 57, 80, 81, 82, 85, nos quais se alicerçam, também, aqueles, como resulta da motivação de facto da sentença: falamos das enormes lagoas (de 5.000 m2) existentes na propriedade da Recorrente, a céu aberto, que recebem efluentes dos suínos; do depósito de efluentes, sólidos e líquidos, nos terrenos, de inverno e de verão; da enormidade de animais albergada (na ordem dos milhares), comparativamente com o número para o qual a Recorrente detém licenciamento prévio ao RERAE; das queixas incessantes da população, que sabe bem distinguir o tipo e proveniência dos cheiros que a incomoda; da contaminação do Rio Cértima que foi constatada pela própria Secção SEPNA da GNR...
9) É esta a realidade em que labora a Recorrente e que vem inequivocamente plasmada nos documentos administrativos constantes dos autos, como aquela bem sabe e que não é capaz de contrariar, tendo tudo isso alicerçado, e bem, os factos indiciariamente dados por provados nos pontos 78 e 87 da sentença recorrida.
10) Se a Recorrente entendia que era essencial qualquer outro meio de prova, mormente uma inspeção ao local (e temos francas dúvidas sobre a sua adequação ao caso, pois a Contrainteressada saberá o que fazer para, momentaneamente, controlar os odores), não só para provar o que alega no sentido de que os cheiros advêm da ETAR pública e de outros estabelecimentos, como para fazer contraprova dos factos que resultam à evidência dos documentos juntos aos autos, podia e devia tê-lo requerido, sobre si recaia tal ónus, não foi impedida de o fazer e, assim, não tem qualquer sentido a invocada violação do direito à tutela judicial efetiva e do princípio da igualdade das partes.
11) É falso que o pedido deduzido na ação principal seja meramente o de anulação do despacho da DRAPC que remeteu o processo para conferência decisória - basta ler-se o pedido a final da petição inicial apresentada no âmbito do processo n.° 896/21...., ao qual os presentes autos correm por apenso: "(...) condenar-se o R., na pessoa daquela DRAPC, a indeferir liminarmente o pedido de regularização da Contrainteressada no âmbito do processo 23689/01/C, com o consequente encerramento parcial do respetivo estabelecimento pecuário (em tudo quanto não tem licença de exploração anteriormente concedida) (.)”, pelo que naufraga, logo por aqui, a argumentação da Recorrente quanto à afronta da instrumentalidade e provisoriedade da tutela cautelar.
12) Depois, a sentença recorrida não fala nem determina, em lado algum, a realização de obras; se a Recorrente entende que serão precisas obras para obviar, provisoriamente, aos danos ambientais que provoca, então é porque a situação em que labora é ainda mais grave e mesmo estrutural e só de si se pode queixar.
13) As medidas determinadas pelo Tribunal a quo são provisórias e são perfeitamente legítimas ao abrigo do n.° 3 do art. 120.° do CPTA (expressamente invocado na decisão recorrida), e, nessa medida, em nada contendem com a provisoriedade e instrumentalidade da ação cautelar, contendo-se dentro dos limites do objeto da ação principal e sendo compatíveis com os objetivos visados pelo Requerente - neste sentido, para além do alegado no ri. da presente ação cautelar acerca dos danos ambientais gerados pela Recorrente e que a motivam também, veja-se, a propósito, o alegado nos arts. 17.° a 22.° e 42.° a 45.° da p.i. da ação principal, além do pedido aí formulado.
14) Acresce que as mesmas medidas foram desde logo e em perfeita boa-fé requeridas (a título subsidiário e naturalmente no âmbito da referida norma legal) pelo Município em sede de requerimento inicial, nunca tendo merecido qualquer oposição por parte da Contrainteressada no decurso do processo, não se percebendo a posição agora esgrimida pela mesma.
15) Prosseguindo, em relação à pretensa insuscetibilidade de suspensão do ato suspendendo, temos que o mesmo encerra definitivamente um subprocedimento do procedimento de regularização, pondo termo à fase de saneamento e apreciação liminar do pedido de regularização (cfr. arts. 8.° e 9.°, n.° 1 do RERAE), o que significa que as questões aí decididas não voltarão a ser apreciadas nas subsequentes fases procedimentais; determinantemente, prescinde-se a título definitivo da deliberação fundamentada de reconhecimento do interesse público municipal na regularização do estabelecimento (art. 5.°, n.° 4, al. a) do RERAE), questão que não mais será discutida no procedimento (arts. 8.°, 9.° e ss. do RERAE).
16) Falamos, pois, de um ato parcial ou uma pré-decisão, que tem efeitos externos e lesivos dos interesses do Município ... Requerente, ao impedir que o mesmo venha, no procedimento e como é legalmente devido, emitir deliberação, pela Assembleia Municipal, acerca do interesse público municipal na regularização do estabelecimento, face às desconformidades de índole urbanística e de ordenamento do território que o pedido encerra e do respetivo impacto ambiental para os Munícipes e para os interesses concelhios económicos e turísticos.
17) Não pode essa pronúncia da competência da Assembleia Municipal (órgão que aprova os instrumentos de gestão territorial municipais) ser emitida na conferência decisória ou na deliberação final, tanto mais que, como é óbvio, aquele órgão autárquico nem sequer tem ulterior intervenção no procedimento, o qual é legalmente tipificado nos termos evidenciados nos arts. 9.° e ss. do RERAE.
18) Note-se ainda que esta fase procedimental de saneamento e apreciação liminar do pedido de regularização, regulada no art. 8.° do RERAE, pode, nos termos do n.° 8 dessa norma, terminar com um indeferimento liminar do pedido e consequente encerramento imediato do estabelecimento ou exploração (como devia ter sucedido no caso vertente), pondo assim termo ao título provisório de exercício da atividade decorrente do mero recibo comprovativo da apresentação do pedido de regularização - cfr. art. 7.°, n.° 1 e n.° 7, al. a) do RERAE.
19) Assim, o título provisório de exploração facultado ex lege à Contrainteressada não é passível de cessar apenas com a decisão final do procedimento, pode (e deve) cessar com a decisão final deste subprocedimento ou fase procedimental, sendo assim inegável o caráter externo e lesivo do ato suspendendo, que não decidiu neste sentido, como devia e se propugna, mas em sentido diverso (prosseguir a tramitação procedimental). Portanto, o ato suspendendo é um ato impugnável nos termos do art. 51.°, n.°s 1 e 2, al. a) do CPTA, sendo também um ato suscetível de ser suspenso.
20) No que diz respeito ao periculum in mora, ao contrário do que decorre da alegação da Recorrente, é evidente que o mesmo nada tem a ver com o facto de a lei, numa visão perfeitamente terceiro-mundista face ao Ambiente, instituir um título provisório de exploração para estabelecimentos que não têm quaisquer condições de laborar sem ferir os interesses ambientais, que é um título obtido na secretaria mediante a entrega de um simples papel;
21) A que acresce a interpretação verdadeiramente deprimente que a Administração Central faz do regime jurídico em questão, eternizando um procedimento que se quer (até pela sobredita natureza e modo de obtenção do título) ultra célere, e ainda as tentativas de impedir que, no âmbito do mesmo, outras Entidades com interesses mais alargados em intervir, por força do substrato territorial (as Autarquias), o façam.
22) Se assim fosse, como pretende a Recorrente, nunca haveria periculum in mora... - na sua tese, detendo o sobredito título provisório, tudo lhe seria permitido fazer, estaria legitimada a laborar em quaisquer condições, rectius, sem quaisquer condições.
23) Quanto aos factos dados indiciariamente por provados nos autos, já nos pronunciámos supra sobre a matéria, dando aqui por reproduzido tudo o concluído, para todos os efeitos legais.
24) A propósito da ponderação de interesses, o que apraz dizer, face à verificação dos requisitos legais para a concessão da tutela cautelar, que a Recorrente não consegue contrariar, é que se a mesma entende que lhe é mais favorável ou menos desfavorável encerrar o estabelecimento, ao invés de adotar as medidas provisórias que venham a ser apuradas como adequadas pelo Senhor Perito nomeado nos autos, naturalmente que, quanto a nós, pode fazê-lo.
25) Do encerramento provisório da exploração pecuária, por opção exclusiva da Recorrente face ao teor da decisão judicial (que, repise-se, dá por verificados os requisitos para a concessão da tutela cautelar), não advém, segundo cremos, o incumprimento da sentença; aliás, o encerramento é a consequência determinada para o caso de incumprimento das medidas provisórias, pelo que está na disponibilidade da Contrainteressada não adotar essas medidas e assumir aquela consequência.
26) O que a Recorrente não pode, isso é que é verdadeira e abusivamente desproporcional, é manter-se indefinidamente a laborar como bem entende e nas condições documentadas e indiciadas nos autos, ao abrigo de um mero papel que entregou à Entidade Requerida.
27) Por todos os motivos expostos, o recurso interposto carece total e ostensivamente de fundamento e muito bem andou a sentença recorrida ao decidir nos termos em que decidiu, sendo isenta de mácula e devendo manter-se na ordem jurídica. (…)”.
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O Tribunal a quo proferiu despacho de admissão do recurso, fixando os seus efeitos e o modo de subida.
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O/A Digno[a] Magistrado[a] do Ministério Público junto deste Tribunal Superior não exerceu a competência prevista no nº.1 do artigo 146º do CPTA.
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Com dispensa de vistos prévios, cumpre, pois, apreciar e decidir, já que nada a tal obsta.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, de acordo com o disposto nos artigos 144.º n.º 2 e 146.º n.º 4 do C.P.T.A. e dos artigos 5.º, 608.º n.º 2, 635.º n.ºs 4 e 5 e 639.º do novo CPC ex vi dos artigos 1.º e 140.º do CPTA.
Neste pressuposto, as questões essenciais a dirimir traduzem-se em saber se a sentença recorrida, ao julgar nos termos e com o alcance descritos no ponto I) do presente Acórdão, incorreu em (i) erro de julgamento de facto, por errada apreciação da matéria de facto, e, bem assim, (ii) em erro de julgamento de direito, por (ii.1) violação da força de caso julgado; (ii.2) por violação da instrumentalidade e provisoriedade da tutela cautelar; e ainda (ii.3) por não verificação dos legais pressupostos de que depende a concessão da tutela cautelar requerida nos autos.
É na resolução de tais questões que se consubstancia a matéria que a este Tribunal Superior cumpre solucionar.
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III- DO MÉRITO DA INSTÂNCIA DE RECURSO
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III.1 – DO ERRO DE JULGAMENTO DE FACTO
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1. Esta questão está veiculada nos pontos 4) a 5) das conclusões de recurso supra transcrita, substanciando-se, no mais essencial, na alegação de que “(…) O aresto em recurso julgou incorretamente os factos dados por provados nos n°s 78 e 87, seja por tais pontos de facto terem sido considerados assentes com violação do direito à tutela judicial efetiva e do princípio da igualdade das partes (consagrados, respetivamente, no n° 4 do art° 268° da CRP e no art° 6o do CPTA), seja por as regras da experiência não permitirem comprovar que os maus cheiros eventualmente sentidos na localidade provêm da exploração da contra-interessada e não da ETAR municipal ou de qualquer outra unidade industrial ali existente, seja por ser absolutamente temerário e seguramente imprudente que se dê por provada a origem dos maus cheiros sem se constatar in loco a existência desses mesmos maus cheiros e a similitude entre os odores eventualmente sentidos na exploração da contra-interessada e os odores alegadamente sentidos a muitos metros de distância (…)”.
2. Ou seja, defende a Recorrente que (i) lhe foi coartada o “direito de prova”, ademais e especialmente, no que tange à alegada proveniência dos maus cheiros, bem como que (ii) resulta manifesta a falta de aptidão probatório das “regras de experiência comum” convocadas pelo Tribunal a quo para dar como provado que “(…) A exploração pecuária da Contra-interessada gera maus cheiros, danos para o ambiente e qualidade de vida de todos aqueles que vivem e se deslocam à zona, incluindo turistas, especialmente os residentes das urbanizações a cerca de 300 m (…)” [cfr. ponto 87) do probatório].
3. Vejamos, sublinhando, desde já, que os dois esteios argumentativos invocados conexionam-se, pelo que serão objeto de análise conjunta.
4. Assim, e entrando no conhecimento da primeira questão decidenda, importa que se comece por sublinhar que, nos casos de comprovada ausência de factualidade controvertida, maxime, por se encontrar documentalmente fixada, a situação de dispensa de um período de produção de prova não consubstancia nenhuma violação de qualquer ato ou formalidade imposta por lei, já que é a própria lei que expressamente atribui ao juiz a faculdade de dela poder prescindir.
5. De facto, estabelece o nº. 1 do artigo 118º do CPTA: “(…) Juntas as oposições ou decorrido o respetivo prazo, o processo é conclusão ao juiz, podendo haver lugar a produção de prova, quando este a considere necessária (…)”.
6. Assim, e nestas situações, não se vislumbra compatível que, de um passo, se confira ao juiz o poder de não produzir prova requerida pelas partes litigantes, designadamente a testemunhal e por depoimento de parte, e, em simultâneo, se sancione a utilização de tal poder com a invalidade mais gravosa.
7. O mesmo, todavia, já não se pode afirmar quando nos defrontemos com a comprovada situação de existência de tecido fáctico controvertido essencial à boa decisão da causa.
8. A este propósito, ressalte-se o teor da jurisprudência firmada por este Tribunal Central Administrativo Norte promanado no processo nº. 00593/18.6BECBR, datado de 15.02.2019, porque esclarecedora desta temática:“(…)
2.3 A respeito da produção de prova em sede cautelar dispõe o artigo 118º do CPTA o seguinte:
“Artigo 118.º
Produção de prova
1 - Juntas as oposições ou decorrido o respetivo prazo, o processo é concluso ao juiz, podendo haver lugar a produção de prova, quando este a considere necessária.
2 - Na falta de oposição, presumem-se verdadeiros os factos invocados pelo requerente.
3 - O juiz pode ordenar as diligências de prova que considere necessárias, não sendo admissível a prova pericial.
4 - O requerente não pode oferecer mais de cinco testemunhas para prova dos fundamentos da pretensão cautelar, aplicando -se a mesma limitação aos requeridos que deduzam a mesma oposição.
5 - Mediante despacho fundamentado, o juiz pode recusar a utilização de meios de prova quando considere assentes ou irrelevantes os factos sobre os quais eles recaem ou quando entenda que os mesmos são manifestamente dilatórios.
6 - As testemunhas oferecidas são apresentadas pelas partes no dia e no local designados para a inquirição, não havendo adiamento por falta das testemunhas ou dos mandatários.
7 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, e estando a parte impossibilitada de apresentar certa testemunha, pode requerer ao tribunal a sua convocação.”
2.4 A final do respetivo requerimento inicial o autor, além da prova documental que juntou (num total de 38 documentos), havia requerido a produção de prova testemunhal arrolando cinco (5) testemunhas, que ali identificou.
Também o requerido requereu a produção de prova testemunhal, arrolando na sua oposição cinco (5) testemunhas, que ali identificou.
2.5 Mas a mera circunstância de ter sido requerida pelas partes, em sede de processo cautelar, a produção de prova testemunhal, não implica que necessariamente o Tribunal a quo esteja adstrito à realização da respetiva diligência de inquirição de testemunhas, como claramente decorre do disposto no artigo 118º nº 1 do CPTA.
2.6 É consabido que ao requerente de uma providência cautelar incumbe desde logo o ónus de alegação dos factos integradores dos elementos constitutivos do direito à obtenção da tutela cautelar, o que implica que deve ser feita no requerimento inicial do processo cautelar a alegação de factos concretos que, uma vez provados, permitam ao tribunal extrair as conclusões de que a lei faz depender a procedência da pretensão, mais do que a alegação dos pressupostos normativos.
O que decorre desde logo do princípio do dispositivo, ínsito no artigo 5º do CPC novo, aqui aplicável ex vi do artigo 1º do CPTA, nos termos do qual cabe à parte interessada a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir.
O que não deixa de ser também explicitado no artigo 114º nº 3 alínea g) do CPTA nos termos do qual deve o requerente de uma providência cautelar, no seu requerimento inicial, especificar os fundamentos do pedido.
2.7 O que significa que cabe ao requerente alegar os factos concretos e as razões de direito que constituem a causa de pedir da concreta pretensão cautelar que deduza, e que em sua opinião demonstram o preenchimento dos requisitos de que depende a procedência do pedido cautelar formulado, e por conseguinte, a adoção da providência requerida.
Deste modo, recai sobre o requerente o ónus de alegação, não podendo o Tribunal substituir-se ao requerente, a não ser na atendibilidade de factos complementares ou instrumentais que resultem da instrução e bem assim, claro está, daqueles que sejam de seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 5º nºs 1 e 2 alíneas a), b) e c) do CPC novo), (neste sentido, vide Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, pág. 114 ss.).
2.7 Por outro lado, da conjugação do ónus, a cargo do requerente de uma providência cautelar, de no seu requerimento inicial especificar os fundamentos do pedido cautelar, alegando os factos integradores da causa de pedir da concreta pretensão cautelar, nos termos do princípio do dispositivo e do especificamente disposto no artigo 114º nº 3 alínea g) do CPTA, com o efeito cominatório previsto no artigo 118º nº 2 do CPTA de acordo com o qual “na falta de oposição presumem-se verdadeiros os factos invocados pelo requerente”, fazendo corresponder, assim, à falta de impugnação à admissão, por acordo, dos factos alegados, tem que considerar-se que as diligências de prova necessárias, à luz do disposto do artigo 118º nº 3 do CPTA hão de incidir desde logo sobre os factos que se mostrem controvertidos, designadamente por terem si alvo de impugnação na oposição, e dentro desses os que importem para a decisão da causa em conformidade com os critérios decisórios insertos no artigo 120º do CPTA.
2.8 Isto sem prejuízo de não ter o juiz cautelar que se satisfazer com as provas carreadas ou requeridas pelas partes, podendo ordenar a produção de outros meios de prova que considere necessárias em face das questões suscitadas e a decidir, à luz do princípio da inquisitoriedade na averiguação da verdade material, como também decorre do disposto no artigo 118º nº 3 do CPTA (vide a este respeito Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Almedina, 2005, pág. 597 ss. e José Manuel Santos Botelho, in, Contencioso Administrativo – Anotado – Comentado - Jurisprudência, Almedina, 2002, pág. 664).
2.9 Assim, apenas cumpre ao juiz cautelar levar a cabo as diligências de prova relativamente a factos concretos que se mostrem controvertidos, designadamente por terem si alvo de impugnação na oposição, e dentro desses os que importem para a decisão da causa em conformidade com os critérios decisórios insertos no artigo 120º do CPTA – (entre muitos outros, vide, a título ilustrativo os acórdãos do TCA Sul de 10/08/2015, Rec. n.º 12.424/15 (Proc. nº 232/15.7BECTB-A), e de 06/10/2016, Rec. nº 13.590/16 (Proc. nº 53/16.0BEBJA), de que fomos relatores) (…)” [destaque nosso].
9. Acompanhando e acolhendo a interpretação assim declarada por este Tribunal Superior, tem-se, portanto, por assente, no mais fundamental para o que ora importa julgar, que a produção da prova oferecida pelas partes poderá ser recusada pelo juiz a quo, por desnecessária, se inexistir factualidade controvertida essencial para a boa e correta decisão da causa cautelar.
10. Assente o que se vem de expor, e volvendo ao caso concreto, importa determinar se estamos [ou não] perante uma situação de comprovada ausência de tecido fáctico controvertido essencial para a boa e correta decisão da causa cautelar, aqui sob censura.
11. Neste particular conspecto, dir-se-á que não oferece controvérsia que o Município de ... intentou a presente ação visando a suspensão de eficácia do “(…) do ato administrativo da autoria da Exma. Sra. Diretora de Serviços de Desenvolvimento Agroalimentar, Rural e Licenciamento da Direção Regional de Agricultura e Pescas do Centro, datado de 02/09/2021, que determinou que a regularização da exploração pecuária da Contrainteressada não carece de deliberação fundamentada de reconhecimento do interesse público municipal, aprazando a conferência decisória para deliberação final sobre o pedido de regularização para o dia 01/10/2021 – cfr. doc. 1 que se junta –, e de encerramento provisório parcial (em tudo quanto não tem licença de exploração anteriormente concedida) do estabelecimento pecuário da Contrainteressada nos autos (…)”.
12. É também consensual que o Município ... Requerente fundou a verificação do requisito de periculum in mora, de entre outras realidades, na alegação de que “(…) das instalações da Contra-interessada provêm, com regularidade, cheiros nauseabundos, característicos da atividade de suinicultura, que empestam o ar de toda a cidade (…)”, “(…) sendo o cheiro especialmente insuportável e incomportável para os residentes nas urbanizações situadas nas redondezas da exploração pecuária, compostas por moradias e edificações coletivas (até quatro pisos), a cerca de 300 e 600 metros da propriedade da Contrainteressada, bem como para os trabalhadores e utentes do Centro de Saúde ... e do Hospital ... da ..., ambos situados a cerca de 600 metros dos limites da exploração (…)” [cfr. artigos 45º e 46º do requerimento inicial].
13. Apresenta-se também pacífico que esta materialidade, de entre outra, foi expressamente impugnada pela Recorrente no decurso do pleito [cfr. artigo 15º da oposição].
14. É também indiscutível que, com reporte aos invocados maus cheiros e sua proveniência, a Recorrente alegou que o Requerente omite a existência de uma ETAR pública que “(…) começa cada vez a dar mais problemas e fazer sentir os maus cheiros dela emergentes em toda a localidade da ..., tanto mais que frequentemente transborda e descarrega para o rio (…)”, assim como omite “(…) que junto ao rio funciona um estábulo de animais (…) E que à volta da propriedade da Requerida e até mais próximo do Hospital e do Centro de Saúde ... existem diversas outras unidades/explorações com animais estabulados, pertencentes a outras pessoas, (…)” [cfr. artigos 15º 40º e seguintes da oposição], na esteira do que concluiu “(…) não é da propriedade da contra-interessada a causa dos eventuais e não comprovados prejuízos que o Requerente alega sofrer o interesse público (…)”. [cfr. artigos 40º e seguintes da oposição].
15. No quadro em apreço, assoma evidente que a materialidade em torno da existência de maus cheiros imputáveis à exploração da Recorrente desembocou em matéria controvertida.
16. Assim, não sendo notória, na aceção do disposto no artigo 412º, nº.1 do CPC, nem derivando das “regras da experiência comum ou constituindo presunção judicial”, é de manifesta evidência que a existência e proveniência dos alegados maus cheiros carecia de ser determinada em juízo por forma a habilitar o Tribunal a quo a decidir se aqueles eram [ou não] provenientes da exploração da Recorrente.
17. De facto, carece de sustentáculo processual a convocação por parte do Tribunal Recorrido as “regras de experiência comum” para fundar a aquisição processual da realidade plasmada no ponto 87º do probatório coligido, ou seja, que “(…) A exploração pecuária da Contra-interessada gera maus cheiros, danos para o ambiente e qualidade de vida de todos aqueles que vivem e se deslocam à zona, incluindo turistas, especialmente os residentes das urbanizações a cerca de 300 m (…)”.
18. Realmente, se é aceitável conjeturar que uma exploração agropecuária é susceptível de causar maus cheiros nas redondezas, já não é admissível transportar tal construção para o caso versado em face da alegação da existência de outras instalações nas imediações daquela também capazes de gerar maus cheiros.
19. De facto, no contexto processual conformado pelas partes, trata-se de materialidade que carece de efetiva comprovação instrutória, em nada compaginável com a convocação das regras de experiência comum.
20. De igual modo, não é aceitável resolver-se o impasse fáctico em torno da existência de danos para “(…) os residentes das urbanizações a cerca de 300 m (…)” como foi na sentença recorrida, exclusivamente com base numa lógica presuntiva, dado que esta poderá [ou não] mostra-se materialmente correta, dúvida o que a isenta da necessária credibilidade probatória que se impõe neste patamar.
21. Refira-se que a objeção aventada pelo Tribunal a quo no sentido da afirmação das “regras de experiência comum” em detrimento da prova pericial por razão de celeridade processual em nada não obstaculizava o recurso a outros meios de prova [cfr. último paragrafo da motivação da matéria de facto].
22. De facto, que melhor forma de se apurar [ou não] o quadro material definido no artigo 87º do probatório senão por intermédio de uma inspeção ao local, e, eventualmente, a audição das testemunhas oferecidas pelas partes.
23. Assim, e porque esta definição da realidade fáctica controvertida poderá importar a extração de importantes ilações ao nível da repercussão no desfecho da causa, impunha-se a possibilidade de produção de prova neste desígnio.
24. Realmente, se cabe ao interessado o ónus da prova dos factos que alega, não lhe pode ser recusada a possibilidade de os provar, sob pena de se coartar o “direito à prova” dos seus apresentantes.
25. De facto, este “direito à prova” postula a ideia as partes têm o direito (i), por via de ação e da defesa, de utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal, de (ii) contradizer as provas apresentadas pela parte contrária ou suscitadas oficiosamente pelo tribunal, bem como o (iii) direito à contraprova.
26. Assim deriva, naturalmente, que se antolha a existência de erro de julgamento na questão tratada, impondo-se conceder provimento ao recurso da sentença recorrida, devendo ser anulado o todo o processado praticado até à sua prolação para que se proceda à instrução dos autos seguida da legal tramitação processual e oportuna prolação de sentença.
27. Ao que se provirá no dispositivo, o que determina a prejudicialidade do conhecimento dos demais argumentos aduzidos no presente recurso jurisdicional [artigo 95º, nº. 1 in fine do C.P.T.A. e 608º nº.2 do CPC].
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IV – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Administrativa deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo artigo 202º da CRP, em CONCEDER PROVIMENTO ao recurso jurisdicional “sub judice”, e anular o todo o processado praticado desde a prolação da sentença recorrida para que se proceda à instrução dos autos seguida da legal tramitação processual e oportuna prolação de sentença.
Custas pelo Recorrido.
Registe e Notifique-se.
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Porto, 15 de julho de 2022,

Ricardo de Oliveira e Sousa
Rogério Martins
Luís Migueis Garcia