Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:01952/11.0BEBRG
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:04/15/2021
Tribunal:TAF de Braga
Relator:Margarida Reis
Descritores:ENEFÍCIO FISCAL; ISENÇÃO DE IRC; DÍVIDA; CESSAÇÃO DE EFEITOS; ART. 14.º EBF
Sumário:O princípio da justiça tem um campo de aplicação residual, estando o seu acionamento reservado para situações de injustiça grave e notória.

Resultando provado que em 31 de dezembro de 2010 os AA. tinham uma dívida fiscal, respeitante ao IMI, nada há a censurar ao ato que, em aplicação do disposto do art. 14.º do EBF, determinou a cessação de efeitos da isenção de IRS relativamente àquele exercício, não justificando a aplicação do princípio da justiça ao caso a circunstância de terem pago a dívida já no âmbito da correspondente execução fiscal, de o valor do IMI em questão ser inferior ao montante de IRS apurado ou de este ser inferior à média do imposto pago pelas famílias portuguesas em 2012, ou ainda de extemporaneamente terem vindo atualizar a morada no cadastro fiscal e constituir representante fiscal em Portugal.*
* Sumário elaborado pela relatora
Recorrente:Autoridade Tributária e Aduaneira
Recorrido 1:F. e Outra
Votação:Unanimidade
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:
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I. Relatório

A Autoridade Tributária e Aduaneira, inconformada com o acórdão proferido em 2016-04-07 pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a ação administrativa interposta por F. e cônjuge C. tendo por objeto a decisão emitida em 2011-08-30 de cancelamento do benefício fiscal referente a IRS de 2010, nos termos do disposto no art. 14.º do EBF, vem interpor o presente recurso.

A Recorrente encerra as suas alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

IV-Conclusões:
Tudo visto, não podemos conformar-nos com a decisão do tribunal “a quo”, que enferma de erro de julgamento, senão mesmo de nulidade, na interpretação e na aplicação dos princípios da justiça, da confiança e da proporcionalidade ao caso concreto, com o concomitantemente afastamento do princípio da legalidade, porquanto:
a) O erro capital da sentença ora recorrida foi concluir, à revelia da lei, pelo afastamento do artigo 14.º, n.º 5, alínea a) do EBF, como se este procedimento não fizesse parte do regime legal de isenções, com base em argumentos de justiça material que não se revelam no caso concreto.
b) Para a norma do artigo 14.º, n.º 5, alínea a), que é uma norma geral e abstracta, o seu intuito é penalizar os contribuintes incumpridores, de modo a que estes, aferidos a 31 de Dezembro de cada ano, não possam ser simultaneamente faltosos e beneficiários de um qualquer regime de benefícios fiscal. Esta é uma norma que também ela visa prosseguir o princípio da justiça.
c) Sendo este o fim visado na norma não se pode estabelecer uma relação “entre pequenos incumpridores e grandes beneficiários”, fazendo desta relação um princípio de afastamento da norma!
d) De facto, € 181,81, revela o IMI a pagar por aqueles contribuintes em relação ao património imobiliário que detém – não sendo muito elevado, também não é irrisório - e o imposto a pagar pela perda da isenção de IRS € 20.463,30, revela efectivamente capacidade contributiva, ou seja o imposto que estavam a deixar de pagar em virtude de acordo de cooperação, por se encontrarem deslocados no estrangeiro.
e) Comparar colectas de imposto com origem em impostos tão diferentes é comparar aquilo que não é comparável!
f) O argumento de que estes autores têm de pagar um valor de IRS muito superior à média nacional, revela apenas capacidade contributiva- um dos pilares da tributação do rendimento, e não injustiça ou desigualdade ou desproporcionalidade.
g) Também o argumento do caso concreto que a sentença utilizou: que os autores,” após a situação a que se referem os autos terem alterado a sua situação cadastral junto da administração fiscal para residentes no estrangeiro, com a designação” de representante legal”, revela que incumpriram o dever de nomear o seu representante legal, no momento em que passaram a ser residentes no estrangeiro.”, não pode ser aceite, uma vez que os autores vivem no estrangeiro desde 2006 e foi só em 30.12.20111 que nomearam um representante legal.
h) O não cumprimento atempado do artigo 19.º, n.º 6 da LGT não é pois um argumento abonatório desta justiça do caso concreto, mas sim uma agravante, que afasta certamente o princípio da justiça material.
i) A sentença apresenta como abonatória da conduta dos autores conducentes a relevar a falta de cumprimento atempado da prestação tributária de IMI o facto de ter ocorrido a “extinção por pagamento voluntário da quantia em dívida, no inicio do ano imediato a seguir ao exercício em causa, de 2010”. - Ora isto significa que os autores pagaram a dívida cerca de 9 meses depois do terminus do prazo, sendo este o mês de Abril-, pelo que, a falta não foi regularizada atempadamente.
j) Acresce que o IMI é um imposto periódico, cujos prazos de pagamento estão estabelecidos de forma imperativa na lei, e que é do conhecimento de todos os contribuintes que são proprietários de imóveis, além de que o CIMI estabelece a obrigação dos contribuintes pedirem uma segunda via do documento de cobrança, caso não recebam este- artigo 119.º, n.º 3 do CIMI.
k) Em conclusão, vistos os argumentos que a sentença ora recorrida utilizou para afastar a norma que fez cessar os benefícios fiscais, não encontramos em qualquer dos argumentos apresentados um fundamento de peso, que justifique a decisão tomada com base em juízos de justiça e proporcionalidade.
l) A solução da sentença do tribunal “a quo” ao se afastar do princípio da legalidade teria de estar plenamente justificada, o que não é o caso. Isto porque, a regra geral a que está submetida a actuação da administração tributária, deverá ser e só pode ser, o princípio da legalidade e o escrutínio judicial que se faça a essa actividade também só pode ser com base no princípio da legalidade.
m) De acordo com o artigo 266.º da CRP, em primeiro lugar, a administração pública visa a prossecução do interesse público. Ora foi exactamente o contrário que a sentença ora recorrida determinou que a Administração tributária fizesse, sendo certo que o interesse financeiro do Estado se encontra abrangido pelo interesse público: “a administração tributária não está sujeita apenas ao princípio da legalidade, mas também deve respeitar o princípio da justiça previsto no art.º 55.º da LGT. Este princípio obriga a que a administração tributária se norteie por critérios de isenção e imparcialidade no apuramento das situações e ainda que tais diligências sejam contrárias ao interesse financeiro do Estado.”
n) O n.º 2 do 266.º da CRP determina a forma de alcançar o interesse público: a actuação da administração está subordinada à Constituição e à lei.
o) Temos, assim, uma sentença inconstitucional? A factualidade é merecedora de tanta protecção, ao ponto se incorrer no risco da sentença ser inconstitucional?
p) Deve, ainda, a actuação da administração conformar- aos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé.
q) A sentença ora recorrida inverte a ordem constitucional destes princípios ao afirmar: “No caso presente, pese embora o princípio da legalidade estrita determinar a cessação de tais efeitos do benefício fiscal para 2010, o certo é que os valores da proporcionalidade, da confiança e da justiça imporiam outra conduta à administração tributária, que fosse no sentido de relevar a falta dos Autores e aceitar a isenção de IRS para o ano de 2010, decorrente do benefício fiscal conjugado no art.39.º do EBF.”
r) Nenhuma justificação existe nos factos dos autos para esta inversão de princípios, a que acresce o facto não menos importante de que a decisão da administração tributária ter sido proferida com base em poderes vinculados.
s) No caso concreto, atendendo à norma do artigo 14.º, n.º 5 do EBF, encontravam-se reunidos os pressupostos exigidos por lei para que a cessação do benefício ocorresse, como, aliás, o admite a sentença ora recorrida.
t) Estamos convictos que se impunha-se à Administração Tributária a obrigação de efectuar a cessação dos benefícios com base no princípio da legalidade estrita porquanto, estamos perante um acto estritamente vinculado à lei, e a situação daquele que actua na convicção de proceder em conformidade com o Direito é jurídica e autonomamente protegida na ordem jurídica.
u) Mas para se afastar a solução expressamente legal, tem que se apurar se com esta solução legal existe violação de outros princípios relativamente aos quais a administração esteja também adstrita a cumprir.
v) E pergunta-se, no caso dos autos, a solução legal, que a sentença expressamente confirmou ao considerar legal o acto da administração tributária, viola o princípio da justiça e da proporcionalidade? Pelas razões já aduzidas, consideramos que não.
w) Só em casos muitos excepcionais deve o princípio da legalidade ceder perante qualquer outro principio, e o caso dos autos, não é certamente um deles
x) Acresce ainda que com a solução dada pela sentença em que se pugna pela primazia do princípio da justiça material, estar-se-á a violar outro princípio que a administração tributária tem de cumprir: o da indisponibilidade do crédito tributário - artigos 30.º, n.º 2 e 36.º, 2 da LGT.
y) De acordo com este princípio, o credor tributário não pode conformar, por acto de vontade, quer em termos extintivos ou modificativos o objecto da obrigação tributária, afirmando-se esta, como uma obrigação exclusivamente ex legge. Sendo indisponível o crédito tributário, este não permite ao aplicador da lei terminar um litígio mediante o afastamento da prestação tributária, artigo 1248.º n.º 1 do Código Civil.
z) Não existindo indisponibilidade relativamente à existência da obrigação tributária, esta violação resulta clara da sentença que manda a administração tributária relevar a falta de pagamento atempado do IMI, tendo assim que prescindir da colecta de IRS que resulta da aplicação do artigo 14.º do EBF, por ser excessiva.
aa) O princípio da legalidade é o princípio estruturante quer do direito administrativo quer do direito fiscal. A Lei assume, o papel de principal fonte de Direito Fiscal. A interpretação deste princípio que é feita na sentença ora recorrida é uma interpretação que pugna pela submissão do princípio da legalidade que conduz à equidade do julgamento.
bb) Equidade, segundo a qual não se pode jugar, porque o artigo 4.º do Código Civil proíbe a equidade, quando não haja disposição legal que o permita - e não há- e quando a relação jurídica não seja indisponível - o que sucede com o crédito tributários dos presentes autos - o IRS é devido.
cc) Em conclusão: a administração tributária actua com base no princípio constitucional da legalidade e no caso concreto não pode de todo deixar de ser uma administração de legalidade, visto os factos dos autos não merecerem uma protecção superior dos princípios da justiça material e de proporcionalidade.

Termina pedindo:
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, anulando-se o a sentença recorrida, e, por consequência, mantendo-se o despacho de cessação do benefício fiscal por ser legal e conforme o n.º 5 e 6 do artigo 14.º do EBF.”
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A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais conclui como se segue:

CONCLUSÕES:
1-A decisão recorrida não merece qualquer censura.
2-Considerando os valores da proporcionalidade, da confiança e da justiça material, sempre a Administração Tributária deveria relevar a falia dos Recorridos e aceitar a isenção de IRS para o ano de 2010. 3-É gritante a desproporção entre o valor da divida de IM/ que originou a situação de incumprimento (€181,81) e o montante da liquidação a que a cessação do benefício fiscal deu origem (€20.463,30).
4-A capacidade contributiva dos Recorridos e o seu património, aliás bem modesto, são irrelevantes para o que se discute nos autos.
5-Os Recorridos, após a situação a que se referem os autos, alteraram a sua situação cadastral junto da Administração Fiscal para residentes no estrangeiro, exactamente para salvaguardarem, no futuro, que todas as notificações chegassem ao seu conhecimento.
6~Os Recorridos pagaram voluntariamente a quantia em divida em 27/01/201 /, logo depois de terem tomado conhecimento da sua existência.
7-A regularização foi, assim, célere atento o momento do conhecimento da divida pelos Recorridos.
8-0 argumento da periodicidade do IM/ não convence exactamente pelo facto de a Administração Fiscal notificar os contribuintes para o seu pagamento, não obstante tal periocidade.
9-Ainda que o interesse financeiro do Estado seja um interesse público, é o mesmo interesse público que exige o respeito pelo princípio da justiça.
1 O-Na ponderação dos princípios aqui em causa, nunca o interesse financeiro do Estado poderia prevalecer.
11-Não está em causa o principio da indisponibilidade do crédito tributário. 12-A Administração Tributária não teve qualquer prejuízo no caso.
13- O imposto devido pelos Recorridos foi integralmente pago.
14-A decisão anulada pela sentença recorrida traduz uma injustiça grave e notória para os Recorridos.
15-lnjustiça em que a Recorrente, independentemente de todos os formalismos, não deveria persistir.
16-A sentença aplicou bem o direito aos factos provados.
17-Não ocorre erro de julgamento.
Mantendo a decisão Recorrida, V. Exas. farão JUSTIÇA.”
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O Digno Magistrado do M.º Público junto deste Tribunal foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 146.º, n.º 1 do CPTA.
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Os vistos foram dispensados, com a prévia anuência dos Juízes-Adjuntos.
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Questões a decidir no recurso

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações de recurso.

Assim sendo, importa apreciar se a sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito, por fazer uma interpretação errada do disposto no art. 14.º do EBF, assim como do princípio da justiça.


II. Fundamentação
II.1. Fundamentação de facto

Na sentença prolatada em primeira instância consta a seguinte decisão da matéria de facto, que aqui se reproduz:
III. FUNDAMENTAÇÃO
De facto
Com importância para a decisão da causa, estão assentes por provados os seguintes factos:
1) Os Autores residem em Timor – cfr. fls. 119 a 120 do SITAF;
2) A partir do ano de 2006, os Autores beneficiam do estatuto de agentes de cooperação e do benefício fiscal atribuído a estes – facto admitido por acordo e cfr. documentos n.ºs 1 e 2 juntos com a petição inicial;
3) No período compreendido entre 08/10/2009 e 30/12/2011, os Autores tinham o seu domicílio fiscal na Rua (…) – cfr. fls. 119 a 120 do SITAF;
4) A partir de 30/12/2011, os Autores constam no serviço cadastral da administração fiscal como residentes em Timor, sendo seu representante legal desde essa data, H., com domicílio fiscal em Br (…) – cfr. fls. 119 a 120 do SITAF;
5) Os Autores procederam ao pagamento do IMI respeitante a imóvel de que eram proprietários, referente ao ano de 2010, no valor de 181,81, em 27/01/2011 – facto admitido por acordo;
6) A dívida referente ao IMI do ano de 2010 a que se alude em 5) foi objeto de processo de execução fiscal que correu termos no Serviço de Finanças de Braga – facto admitido por acordo;
7) No âmbito do processo de execução fiscal a que se alude em 6) foi penhorado o saldo bancário da conta do Autor domiciliada na Caixa Geral de Depósitos, no valor de € 181,81 – facto admitido por acordo;
8) Através do ofício n.º 000200952, datado de 21/06/2011, os Serviços de Finanças de Braga comunicaram ao Autor o seguinte: “Por análise sistemática dos dados existentes nos sistemas da DGCI, constatou-se a existência da(s) seguinte(s) dívida(s) à data de 2010-12-31:
[imagem que aqui se dá por reproduzida]

O incumprimento do dever de pagamento de dívidas fiscais pode originar a cessação de benefícios fiscais, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 14.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais, excepto nos casos em que essa(s) dívida(s) esteja(m) reclama(s), impugnada(s) ou com oposição, e tenha havido prestação de garantia idónea.
A existência daquela dívida produzirá a cessação ou suspensão dos seguintes benefícios fiscais, procedendo-se, de seguida, à correcção da respectiva liquidação de IRS relativa ao ano/período de 2010: Remunerações auferidas ao abrigo de acordos de cooperação. Desta forma fica notificado para, querendo, exercer o direito de audição (…)” – cfr. documento n.º 2 junto com a petição inicial;
9) Através do ofício n.º 000208458, datado de 30/08/2011, os Serviços de Finanças de Braga comunicaram ao Autor o seguinte: “Fica notificado, nos termos do artigo 36.º do Código do Procedimento e Processo Tributário (CPPT) de que, não tendo sido conhecido até ao momento, o exercício do direito de audição prévia, se mantém o sentido e alcance da proposta de cessação dos benefícios fiscais (…).
A presente decisão determinará a liquidação que se mostrar devida, acrescida dos respectivos juros compensatórios (…)” - cfr. documento n.º 1 junto com a petição inicial;
10) Em 31/08/2011, foi emitida em nome dos Autores a liquidação n.º 2011 4005015094, referente ao ano de 2010, no valor de € 20.463,30, com data limite de pagamento de 12/10/2001 - cfr. documento n.º 3 junto com a petição inicial.
Factos não provados
Não se apuraram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir.
Fundamentação da matéria de facto:
A convicção do Tribunal baseou-se no teor de toda a documentação junta aos autos pelas Partes e que não foi objeto de impugnação a que se fez referência supra em cada um dos pontos da matéria assente e ainda na posição vertida pelas Partes nos respetivos articulados.”
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II.2. Fundamentação de Direito

Importa apreciar se a sentença recorrida padece dos erros de julgamento de direito que lhe são imputados pela Recorrente.

Assim, entende a Recorrente que sentença recorrida padece de erro de julgamento de direito, “senão mesmo de nulidade”, na interpretação e aplicação que faz dos princípios da justiça, da confiança e da proporcionalidade ao caso concreto, assim afastando o princípio da legalidade.

Argumenta que a decisão em crise afastou a aplicação do disposto no art. 14.º, n.º 5, alínea a) do EBF, “com base em argumentos de justiça material que não se revelam no caso concreto”, o que não podia fazer, atendendo a que o ali disposto constitui “norma geral e abstracta, [sendo] o seu intuito … penalizar os contribuintes incumpridores, de modo a que estes, aferidos a 31 de Dezembro de cada ano, não possam ser simultaneamente faltosos e beneficiários de um qualquer regime de benefícios fiscal”, pelo que é “uma norma que também ela visa prosseguir o princípio da justiça”.

Defende ainda que a sentença erra ao tentar estabelecer uma comparação entre contribuintes com diferentes capacidades contributivas, e entre a coleta de IMI e a coleta de IRS, que são impostos diferentes, sendo que a quantia de “€ 181,81, revela o IMI a pagar por aqueles contribuintes em relação ao património imobiliário que detém – não sendo muito elevado, também não é irrisório - e o imposto a pagar pela perda da isenção de IRS € 20.463,30, revela efectivamente capacidade contributiva, ou seja o imposto que estavam a deixar de pagar em virtude de acordo de cooperação, por se encontrarem deslocados no estrangeiro”.

Argumenta ainda que a sentença também erra ao sopesar a favor dos AA o facto de após o sucedido terem alterado a sua situação cadastral junto da Administração fiscal para residentes no estrangeiro e designado um representante legal em Portugal, pois tal só revela que “incumpriram o dever de nomear o seu representante legal, no momento em que passaram a ser residentes no estrangeiro”, o que ocorreu em 2006, apenas tendo nomeado representante em 2011-12-30, pois o não cumprimento atempado do disposto no artigo 19.º, n.º 6 da LGT não é “um argumento abonatório desta justiça do caso concreto, mas sim uma agravante, que afasta certamente o princípio da justiça material”.

Continua salientando que a circunstância de os AA apenas terem pago o IMI cerca de 9 meses depois do prazo de que dispunham para o efeito também não pode pesar a seu favor, mais argumentando que “o IMI é um imposto periódico, cujos prazos de pagamento estão estabelecidos de forma imperativa na lei, e que é do conhecimento de todos os contribuintes que são proprietários de imóveis, além de que o CIMI estabelece a obrigação dos contribuintes pedirem uma segunda via do documento de cobrança, caso não recebam este - artigo 119.º, n.º 3 do CIMI”.

Ou seja, entende a Recorrente que os argumentos de que a sentença recorrida lançou mão para afastar a aplicação ao caso do disposto no art. 14.º, n.º 5, alínea a) do EBF não são válidos, nem justificam “a decisão tomada com base em juízos de justiça e proporcionalidade”, pois assim afastou-se do princípio da legalidade, sem qualquer justificação, o que não é correto, tanto mais que “a regra geral a que está submetida a actuação da administração tributária, deverá ser e só pode ser, o princípio da legalidade e o escrutínio judicial que se faça a essa actividade também só pode ser com base no principio da legalidade”.

Argumenta ainda que de acordo com o artigo 266.º da CRP, a atuação da administração pública visa a prossecução do interesse público, mas o resultado a que chegou a sentença obrigaria a Administração a fazer precisamente o contrário, concretizando uma interpretação incorreta dos princípios de que lançou mão, pois no caso estavam reunidos os pressupostos previstos no art. 14.º, n.º 5 do EBF para que a cessação do benefício ocorresse, como, aliás, foi expressamente admitido na sentença recorrida.

Acrescenta ainda que, além do mais, a pretexto da aplicação ao caso do princípio da “justiça material” a sentença põe em causa o princípio da indisponibilidade do crédito tributário, previsto nos artigos 30.º, n.º 2 e 36.º, 2 da LGT, que não permite “ao aplicador da lei terminar um litígio mediante o afastamento da prestação tributária, artigo 1248.º n.º 1 do Código Civil”

Conclui defendendo que a sentença foi proferida com recurso à equidade, o que é vedado pelo artigo 4.º do Código Civil.

Vejamos então.
No caso em apreço, os AA, que residem em Timor (cf. ponto 1, da fundamentação de facto), e beneficiavam desde 2006 do estatuto de agentes de cooperação e do correspondente benefício fiscal (cf. ponto 2, da fundamentação de facto), apenas em 2011-01-27 procederam ao pagamento do IMI (cf. ponto 5, da fundamentação de facto), já após instauração do correspondente processo de execução fiscal, no âmbito do qual foi penhorado o saldo bancário da conta do Autor (cf. pontos 5 e 6, da fundamentação de facto).

Subsequentemente, e porque em 31 de dezembro de 2010 o IMI se encontrava em dívida, o benefício fiscal de que beneficiavam foi cancelado relativamente a esse exercício de 2010, nos termos do disposto no n.º 5 do art. 14.º do EBF, tendo em 2011-08-31 sido emitida a liquidação de IRS referente àquele ano, da qual resultou o montante a pagar de EUR 20.463,30 (cf. pontos 8 a 10, da fundamentação de facto).

Ficou ainda provado que apenas em 30 de dezembro de 2011 os AA nomearam representante fiscal em Portugal, e que também nessa data declararam uma residência fiscal diferente da que até aí constava no cadastro fiscal (cf. pontos 3 e 4, da fundamentação de facto).

A sentença Recorrida, depois de ter concluído que “ao contrário do defendido pelos Autores, o ato impugnado não violou o disposto no art.º 14.º, n.º 5, alínea a) do EBF, nem qualquer outro número daquele normativo, pelo que, falece, nesta parte, a pretensão daqueles”, concluí que pela respetiva anulação, com a seguinte fundamentação:
(…)
Da violação do princípio da justiça material
Sustentam também os Autores que a cessação dos efeitos do benefício fiscal nos termos em que ocorreu, viola o princípio da justiça material, uma vez que o valor em dívida é diminuto face ao valor que terão que liquidar a título de IRS e que efetuaram o pagamento logo que tomaram conhecimento do valor em dívida.

Vejamos.
O art.º 266.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) dispõe:
“1. A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
2 - Os órgãos e agentes administrativos estão subordinados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções, com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.”

Significa isto, desde logo, e como expressamente refere o art.º 3.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA/91), que “os órgãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito, dentro dos limites dos poderes que lhes estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhes forem conferidos.”

Como salientam Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, 3.ª edição, nota 2 ao art.º 55.º, pág. 236, referindo-se ao preceito citado: “Desta norma resulta que o princípio da legalidade, consubstanciando-se na obediência à lei e ao direito, não se limita ao dever de acatamento da lei em sentido estrito, abrangendo também a subordinação a todos os valores jurídicos, normativos ou não, como as normas e princípios de direito internacional e comunitário, as normas regulamentares, as situações definidas judicial ou administrativamente e as obrigações contratualmente assumidas.
Por outro lado, por força daquela norma constitucional a actuação da administração, para ser legal, terá de estar em sintonia com os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé que, tendo um conteúdo próprio, não deixam de fazem parte do bloco de legalidade que tal actuação deve respeitar.
Assim, o dever de actuar de harmonia com o princípio da legalidade não se traduz numa mera subordinação formal às normas que especificamente prevêem a actuação da administração, abrangendo o dever de a administração ter em conta os reflexos práticos da actividade administrativa que levar a cabo. Por isso, a administração tributária deverá abster-se de concretizar os comandos legais quando, em face das particularidades do caso, não se verifiquem as razões de interesse público que justificam a sua actuação ou quando se produza um resultado manifestamente injusto (...).

Em complemento do cotejo doutrinal e legal expendido, importa ainda, atender ao disposto no art.º 55.º da LGT que determina: “A administração tributária exerce as suas atribuições na prossecução do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da celeridade, no respeito pelas garantias dos contribuintes e demais obrigados tributários.”

Verifica-se, in casu, que o valor em dívida pelos Autores à data de 31/12/2010, referente ao IMI do ano de 2010, era de € 181,81 e que foi pago voluntariamente (e não com a execução da penhorada efetuada no processo de execução fiscal) em 27/01/2011.

O caráter diminuto da dívida em causa e a extinção por pagamento voluntário da quantia em dívida, no início do ano imediatamente a seguir ao exercício em causa, de 2010, conjugado com o valor liquidado aos Autores, a título de IRS decorrente da cessação dos efeitos do benefício fiscal, que consideramos ser elevado - € 20.463,30 – [quando, por exemplo, no ano de 2012, o valor médio pago por cada família portuguesa, em sede de IRS, foi de € 1.830,00 (informação disponibilizada pelo Orçamento do Cidadão, em www.portugal.gov.pt)], aliado ao facto dos Autores, após a situação a que se referem os autos, terem alterado a sua situação cadastral junto da administração fiscal para residentes no estrangeiro, com designação de representante legal (o que, face às regras da experiência comum, nos permite firmar que os Autores quiseram salvaguardar serem devidamente notificados e informados de todas as questões que se suscitassem no âmbito fiscal enquanto residissem em Timor), permite-nos concluir que a cessação dos efeitos do benefício fiscal para o ano de 2010 em apreço se mostra excessiva, face aos interesses em presença.

Importa ter presente que a administração tributária não está sujeita apenas ao princípio da legalidade, mas também deve respeitar o princípio da justiça, previsto no art.º 55.º da LGT. Este princípio obriga a que a administração tributária se norteie por critérios de isenção e imparcialidade no apuramento das situações, ainda que tais diligências sejam contrárias ao interesse financeiro do Estado.

Como referem Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado Matos, in Direito Administrativo Geral, Tomo III, 2009, pág. 198: “A justiça identifica-se com o conjunto de valores supremos do ordenamento jurídico e, portanto, em princípio objecto de consagração constitucional, de entre os quais os direitos fundamentais assuem primazia: o juízo de justiça material, absoluta e relativa, comutativa e redistributiva, integram mesmo as ideias de proporcionalidade e de igualdade.”

No caso presente, pese embora o princípio da legalidade estrita determinar a cessação dos efeitos do benefício fiscal para o ano de 2010, o certo é que os valores da proporcionalidade, da confiança e da justiça imporiam outra conduta à administração tributária, que fosse no sentido de relevar a falta dos Autores e aceitar a isenção de IRS para o ano de 2010, decorrente do benefício fiscal consagrado no art.º 39.º do EBF.

Do exposto se conclui que, quanto a este fundamento, assiste razão aos Autores.

Antes de mais, e ainda que a Recorrente não seja clara na sua alegação, não circunstanciando os motivos pelos quais entende que a sentença padece de nulidade, nos termos do disposto no art. 668.º, n.º 1, alínea c) do CPC, a que corresponde o atual art. 615.º, n.º 1, alínea c), aplicável ex vi art. 2.º, alínea e) do CPPT, cumpre referir que não se vislumbra que se verifique tal nulidade.

A nulidade só ocorre “(…) se a construção lógica da decisão se apresentar como viciosa, em manifesta colisão com os fundamentos em que ostensivamente se apoia, isto é quando os fundamentos invocados no aresto hajam de conduzir logicamente não ao resultado nele expresso mas a resultado oposto” (cf. neste sentido o Acórdão proferido pelo STA em 10-02-2005, no proc. 04B4574, disponível para consulta em www.dgsi.pt).

Ora, e independentemente da bondade dos fundamentos coligidos para o efeito, a sentença recorrida explicita os motivos pelos quais entende que foi violado o princípio da justiça, estando os mesmos em total consonância com o decidido a final.

Não existe por isso incongruência lógica ou oposição entre os fundamentos e a decisão, como pretende a Recorrente.

Já quanto ao erro de julgamento de direito que imputa à decisão recorrida, desde já se adianta que não pode deixar de se lhe dar razão.

Senão, vejamos.
Tal como resulta do trecho que acaba de se transcrever, a sentença recorrida entendeu que os AA têm razão na invocação do princípio da justiça material, e que, não devendo a Administração fiscal atuar somente em obediência ao princípio da legalidade, o ato impugnado seria ilegal por este motivo, ou seja, por violar o referido princípio da justiça.

Para tanto, suporta-se a decisão (i) no “caráter diminuto” da dívida de IMI em causa e (ii) “[n]a extinção por pagamento voluntário da quantia em dívida, no início do ano imediatamente a seguir ao exercício em causa”; (iii) na circunstância de o montante de EUR 20.463,30 liquidado aos Autores, a título de IRS em consequência da cessação dos efeitos do benefício fiscal, ser “elevado” por comparação ao valor médio de EUR 1.830,00 pago por cada família portuguesa, em sede de IRS, no ano de 2012, (iv) no facto dos Autores, após a situação a que se referem os autos, terem alterado a sua situação cadastral junto da administração fiscal para residentes no estrangeiro, com designação de representante legal, concluindo em face destas circunstâncias que “a cessação dos efeitos do benefício fiscal para o ano de 2010 em apreço se mostra excessiva, face aos interesses em presença”.

Termina afirmando que “os valores da proporcionalidade, da confiança e da justiça imporiam outra conduta à administração tributária, que fosse no sentido de relevar a falta dos Autores e aceitar a isenção de IRS para o ano de 2010, decorrente do benefício fiscal consagrado no art.º 39.º do EBF”.

Ora, como é referido na sentença em apreço, em causa está um benefício fiscal, que tal como resulta da respetiva definição legal, constituí uma medida de carácter excecional (cf. art. 2.º, n.º 1, do EBF), pois não só implica uma correlativa despesa fiscal, como comporta uma derrogação ao princípio da igualdade fiscal, do qual decorre que todos os contribuintes devem pagar os impostos que lhes são devidos, na medida da respetiva capacidade contributiva, admitida pelo sistema apenas e na medida em que estejam em causa interesses extrafiscais relevantes, “superiores aos da própria tributação”.

Assim, e atendendo ao seu caráter excecional, não surpreende que o legislador exija aos beneficiários uma conduta exemplar e imaculada em termos fiscais, impondo-lhes o cumprimento atempado das respetivas obrigações fiscais sob pena de os benefícios fiscais não produzirem os seus efeitos no ano ou período de tributação em que deixe de se efetuar o pagamento de qualquer imposto, tal como resulta do disposto nos n.ºs 5 e 6 do art. 14.º do EFB.

Nesse sentido, é totalmente irrelevante o montante do imposto que deixou de ser atempadamente pago, como aliás, resulta da citada norma, pois seria inconcebível admitir que um qualquer contribuinte, beneficiário num determinado ano de uma medida excecional, como é o caso, que implica uma despesa para o Estado – no caso, o IRS que em função da atribuição do benefício, deixaria de ser cobrado – e encerra em si uma derrogação ao princípio da igualdade fiscal, pudesse, no mesmo ano, ter outros imposto(s) em falta.

Não tem por isso razão a sentença ao valorar o alegado “caráter diminuto” da dívida de IMI.

Por outro lado, também é incorreta a valoração do montante de IRS liquidado aos AA, que na sentença se considera ser “elevado” por comparação ao valor médio de pago por cada família portuguesa, em sede de IRS, no ano de 2012.

De facto, e como refere corretamente a Recorrente, o montante em causa não reflete senão a capacidade contributiva dos AA, não comportando, como parece estar subjacente à decisão recorrida, qualquer caráter sancionatório.

Com efeito, da definição de imposto está excluída qualquer finalidade sancionatória, estando em causa uma prestação pecuniária unilateral, definitiva e coativa, exigida a ou devida por detentores, individuais e coletivos, de capacidade contributiva, a favor de entidades que exerçam funções ou tarefas públicas, para a realização dessas funções, conquanto não tenham caráter sancionatório (cf. NABAIS, José Casalta - Direito fiscal. 11.ª edição. Coimbra: Almedina, 2019, págs. 34 a 42).

Não faz por isso qualquer sentido a comparação que se tenta estabelecer na sentença, entre o montante devido pelos AA, resultante da sua capacidade contributiva, e o valor pago em média pelas famílias portuguesas, no exercício de 2012, o que, para além do mais, encerra uma imprecisão, na medida em que o exercício em causa era o de 2010 e não o de 2012.
De facto, a única conclusão que a sentença poderia retirar desta comparação, e tão só se a mesma partisse de pressupostos corretos (o que não é o caso, pois estabelece-se uma comparação tendo por referência exercícios fiscais distintos) seria, como refere a Recorrente, que os AA. disporiam no dito exercício de uma capacidade contributiva superior à da média das famílias portuguesas.

Tem igualmente razão a Recorrente ao alegar que o pagamento do IMI depois de 31 de dezembro de 2010, que na sentença, de forma imprecisa, se refere ter sido “voluntário”, pois foi efetuado após o prazo de pagamento voluntário (cf. art. 84.º do CPPT), motivando a extinção do PEF, entretanto instaurado, “por pagamento” da dívida [cf. alínea a) do n.º 1 do art. 176.º do CPPT], não pode ser valorado a favor dos AA, pois que para que não se verificasse a cessação dos efeitos do benefício fiscal, os AA. não poderiam ter qualquer dívida no final do exercício, o que não sucedeu.

Por último, e no que diz respeito à regularização, também ela extemporânea, da sua condição de residentes no estrangeiro e da constituição tardia de representante fiscal (os AA residem em Timor desde 2006, mas apenas em 2011-12-30 constituíram representante fiscal em Portugal), são também circunstâncias que não podem sopesar a seu favor, pois na verdade, o que estes factos indicam, é que os AA não cumpriram com o disposto no art. 19.º da LGT, nos termos do qual, é obrigatória a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária, sendo ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária, e estando os sujeitos passivos residentes no estrangeiro, obrigados, para efeitos tributários, a designar um representante com residência em território nacional (cf. n.ºs 2, 3 e 4 do art. 19.º, na redação em vigor à data).

De facto, o que se constata, é que na PI da ação administrativa interposta perante o TAF de Braga, os AA ensaiam uma justificação para o pagamento extemporâneo do IMI, sem que, no entanto, se tenha provado qualquer dos factos que alegaram nesse sentido.

Por outro lado, como é também corretamente referido pela Recorrente, e vem, aliás, sendo (re)afirmado pelos nossos Tribunais superiores, “(…) quando a liquidação do IMI ocorre no prazo normal, definido no n.º 2 do artigo 113.º, dando lugar ao pagamento do imposto nos prazos fixados no n.º 1 do artigo 120.º, a lei apenas impõe que seja enviado ao sujeito passivo o documento de cobrança a que se refere o artigo 119.º, n.º 1, sendo que a falta de recepção desse documento de cobrança não afasta a obrigação de pagamento do imposto no prazo legal fixado, já que, nesta circunstância, incumbirá ao sujeito passivo solicitar uma segunda via desse documento, como determina o n.º 3 do artigo 119º(cf. Acórdão proferido pelo STA em 18-11-2015, no proc. 0319/14, destacado nosso; no mesmo sentido, designadamente, os acórdãos do STA proferidos em 16-12-2015, no proc. 01218/13, e em 05-07-2017, no proc. 0729/16, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).

Donde há que concluir que a sentença em apreço padece efetivamente de erro de julgamento de direito, pois não só, dentro do circunstancialismo que rodeou a sua emissão, se constata nada haver a censurar ao ato impugnado pelos AA, como nela se fez uma incorreta interpretação do princípio da justiça.

Com efeito, o princípio da justiça tem um âmbito de aplicação desde logo residual relativamente a outros princípios aplicáveis ao procedimento administrativo e à atuação das entidades administrativas, apenas se justificando, por isso, em situações de que se provem ser de injustiça grave e notória o que não é, manifestamente, o caso, pois o que resulta da factualidade provada é que a cessação do benefício fiscal no ano de 2010 se deveu à conduta dos AA, que não cuidaram, como deviam, pagar o IMI devido em tempo, como era sua obrigação, independentemente de qualquer notificação para o efeito, e, que em qualquer caso, não cumpriram atempadamente com as obrigações decorrentes do disposto no art. 19.º da LGT.

De facto, e ainda que a Administração tivesse alguma margem de livre decisão no caso em apreço, o que atendendo o circunstancialismo provado, não tinha, não lhe restando senão fazer cessar o benefício fiscal, sempre haveria que concluir pela diminuta relevância deste princípio (da justiça), pois “sob pena de anulação constante de condutas administrativas com base em conceitos emocionais e subjectivos de justiça, o princípio da justiça enquanto tal só pode considerar-se violado nas situações cuja qualificação como injustas é susceptível de alcançar um consenso intersubjectivo” (cf. SOUSA, Marcelo Rebelo de, e MATOS, André Salgado de - Direito Administrativo Geral - Tomo I Introdução e princípios fundamentais. 3.ª edição. Lisboa: D. Quixote, 2008, págs. 228-229), devendo por isso reservar-se a sua aplicação, como foi já suprarreferido, e independentemente de estarmos perante o domínio da atividade administrativa vinculada, ou não, para o “controlo de injustiças graves e notórias” [cf. SILVA, Suzana Tavares da – O Princípio da Razoabilidade. In GOMES, Carla Amado Gomes; NEVES, Ana; SERRÃO, Tiago (Coord.) - Comentários ao Código do Procedimento Administrativo. Vol. I. 5.ª edição. Lisboa: AAFDL, pág. 368].

Importa ainda esclarecer que, e atendendo ao circunstancialismo em causa, o ato foi adequado, não comportando qualquer violação dos princípios da proporcionalidade, da confiança – as consequências da falta de pagamento de tributos estão patentes na norma aplicada – ou da igualdade, nada resultando provado que pudesse levar a esta conclusão.

Assim sendo, e em face do exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente.
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No que diz respeito à responsabilidade pelas custas do presente Recurso, a mesma cabe à Recorrida, atendendo ao seu decaimento [cf. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, aplicável ex vi art. 1.º, do CPTA], na primeira instância e no presente recurso.
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Conclusão:
Preparando a decisão, formulamos a seguinte síntese conclusiva:

O princípio da justiça tem um campo de aplicação residual, estando o seu acionamento reservado para situações de injustiça grave e notória.

Resultando provado que em 31 de dezembro de 2010 os AA. tinham uma dívida fiscal, respeitante ao IMI, nada há a censurar ao ato que, em aplicação do disposto do art. 14.º do EBF, determinou a cessação de efeitos da isenção de IRS relativamente àquele exercício, não justificando a aplicação do princípio da justiça ao caso a circunstância de terem pago a dívida já no âmbito da correspondente execução fiscal, de o valor do IMI em questão ser inferior ao montante de IRS apurado ou de este ser inferior à média do imposto pago pelas famílias portuguesas em 2012, ou ainda de extemporaneamente terem vindo atualizar a morada no cadastro fiscal e constituir representante fiscal em Portugal.
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III. DECISÃO

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam, em conferência, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte, em conceder provimento ao presente recurso, e em consequência revogar a sentença recorrida, julgando-se a ação administrativa especial em causa totalmente improcedente.
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Custas pela Recorrida, em ambas as instâncias.
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Porto, 15 de abril de 2021
Margarida Reis (relatora) – Maria do Rosário Pais (em substituição) – Paulo Moura.