Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00289/13.5BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:06/19/2020
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Maria Fernanda Antunes Aparício Duarte Brandão
Descritores:COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sumário:I-A competência material dos tribunais deve ser aferida em função dos termos como o Autor configura a relação jurídica materialmente subjacente ao litígio;

I.1-nos presentes autos a Autora configurou a relação material controvertida como administrativa, excluindo expressamente a natureza tributária, invocando única e exclusivamente normas administrativas e cláusulas contratuais;

I.2-são, assim, os tribunais administrativos competentes para julgar esta ação.*
* Sumário elaborado pelo relator
Recorrente:Instituto de Turismo de Portugal, IP
Recorrido 1:Sociedade F., S.A.
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Outros despachos
Decisão:Conceder provimento ao recurso.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer.
1
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na secção de contencioso administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:

RELATÓRIO
Nos presentes autos em que é Autora a Sociedade F., S.A., com sede na Rua (…), (…), e Réu o Instituto de Turismo de Portugal, IP, com sede na Rua (…), (…), foi proferida decisão pelo TAF de Coimbra que julgou assim: por considerar competentes em razão da matéria os tribunais tributários, determino que os autos sejam redistribuídos na área de competência tributária deste mesmo Tribunal Administrativo e Fiscal.
Desta vem interposto recurso.
Alegando, o Réu formulou as seguintes conclusões:
1. A jurisprudência uniforme e constante do STA e que a sentença a quo refere estabilizou o entendimento de que a competência material dos tribunais deve ser aferida em função dos termos como a A. configura a relação jurídica materialmente subjacente ao litígio.
2. Nos presentes autos a recorrida configurou a relação material controvertida como administrativa, excluindo expressamente a natureza tributária, invocando única e exclusivamente normas administrativas e cláusulas contratuais.
3. O TCA Norte, no âmbito do Proc. n.º 192/13.9BEPRT, onde uma concessionária discute a modificação da cláusula do seu contrato relativa à contrapartida anual devida e pede ao Tribunal que altere essa cláusula de forma a pagar uma menor percentagem de contrapartida anual, decidiu, após uma decisão de incompetência por parte do tribunal a quo que os tribunais administrativos são competentes para julgar essa ação.
Termos em que, com o suprimento a quanto exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, revogada a sentença recorrida.
Não foram juntas contra-alegações.

O MP não emitiu parecer.

Cumpre apreciar e decidir.

FUNDAMENTOS
É objecto de censura a decisão que julgou o Tribunal Administrativo incompetente em razão da matéria.
Importa atentar no seu discurso fundamentador:
Entretanto sobreveio a conformação de jurisprudência uniforme no sentido de ser dos tribunais tributários a competência para apreciar a pretensão de impugnação dos actos de liquidação das contrapartidas anuais da natureza do sub judice.
Tal corrente não tem conhecido excepções e é formada, pelo menos pela sequência dos seguintes acórdãos:
- Acórdão de 3/2/2016, tirado no recurso 862/15
- Acórdão de 17/2/2016, tirado no recurso nº 787/15;
- Acórdão de 17/2/2016, tirado no recurso nº 1386/15;
- Acórdão de 24/5/2016, tirado no recurso 105/16;
O último destes acórdãos assume expressamente a intenção de sedimentar essa jurisprudência, pela uniformidade, em vista de “uma aplicação uniforme do direito uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artº 8º, nº 3 do Código Civil e 148º, nº 1 do CPTA)”.
Ora bem:
Anulado que se encontra o despacho saneador acima referido, ao colocar-se de novo a questão da competência ou incompetência dos Tribunais Administrativos para o objecto desta causa não se pode deixar de ter em conta a formação desta jurisprudência do STA.
E tê-la em conta só pode ser aderir à mesma, a bem de uma aplicação uniforme do direito.
Por economia de tempo passo a citar o acórdão proferido no recurso 862/15, onde toda a referida jurisprudência vai expressamente beber:
«(…) 4. De acordo com o disposto nos arts. 209º, nº 1, al. b) e 212º, nº 3, ambos da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento da acções e recursos contenciosos (a que correspondem actualmente as acções administrativas especiais) que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (cfr., igualmente, o nº 1 do art. 1º do ETAF).
Portanto, como tem vindo a afirmar-se na jurisprudência do STA, «nesta jurisdição, o que determina a competência material do Tribunal é a circunstância de o conflito cuja resolução se pretende ter emergido de uma relação jurídica administrativa ou de uma relação jurídica fiscal. No primeiro caso será competente o Tribunal Administrativo, no segundo essa competência caberá ao Tribunal Tributário.» (ac. do Plenário do STA, de 29/1/2014, proc. nº 01771/13).
E embora o conceito de relação jurídica administrativa não tenha assento legal, já o mesmo não sucede com a relação jurídica tributária, a qual, além de ter definição legal no nº 2 do art. 1º da LGT (é a relação estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e colectivas e outras entidades legalmente equiparadas a estas) e de ter indicadas (no nº 2 do mesmo art. 1º) as entidades da AT que podem figurar como sujeitos dessa relação, também tem o seu objecto normativamente especificado: dispõe-se no art. 30º da LGT que integram a relação jurídica tributária, o crédito e a dívida tributários; o direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição; o direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto; o direito a juros compensatórios; o direito a juros indemnizatórios. (cfr. o citado aresto do Plenário do STA).
Daí que, como bem sublinha o MP, se deva considerar como consolidado o entendimento jurisprudencial no sentido de que constitui questão fiscal, aquela cuja apreciação e resolução exige a interpretação e aplicação de normas de direito fiscal, inscritas no domínio da actividade tributária da administração. Além do citado ac. do STA, Plenário, de 29/1/2014, proc. nº 01771/13, cfr., igualmente, os acs. do Plenário, de 21/3/2012, proc. nº 189/11; de 27/5/2009, proc. nº 119/08; de 2/4/2009, proc. nº 987/08. Na doutrina, cfr. Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado, 6ª ed., 2011, Vol. I p. 231.) sendo que também a repartição de jurisdição entre os tribunais administrativos e os tribunais fiscais tem como critério a apontada natureza da relação jurídica de onde emergem as questões submetidas à apreciação dos tribunais: relação jurídica administrativa ou relação jurídica tributária.
Ora, no caso, a recorrente deduziu a presente impugnação judicial contra a liquidação de imposto especial sobre o jogo (referente ao mês de Abril 2013), com fundamento em inconstitucionalidade de diversas normas do DL nº 422/89, de 2/12 e do DL nº 275/2001, de 17/10 (diplomas que integram o regime legal da exploração dos jogos de fortuna e azar), por alegada violação dos princípios da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento real e da proporcionalidade (cfr., nomeadamente, os arts. 14º/49º da Petição inicial).
Por outro lado, as quantias questionadas para cujo pagamento o Instituto de Turismo de Portugal notificou a impugnante [256.163,19 Euros – montante correspondente a 20% do Imposto Especial de Jogo liquidado no mês de Abril de 2013; 992.632,35 Euros – montante destinado ao Fundo de Turismo, correspondente a 77,5% do valor total daquele imposto; e 32.020,39 Euros – montante destinado ao Fundo de Fomento Cultural, correspondente a 2,5% do valor total do mesmo imposto, quantias essas cuja natureza não tributária foi invocada como fundamento da declaração de incompetência em razão da matéria], são componentes do próprio imposto referido (correspondendo aos apontados 20%, 77,5% e 2,5% da colecta), tendo sido autonomizadas, apenas, por via da sua afectação específica, em virtude de constituírem receitas do Fundo de Turismo e do Fundo de Fomento Cultural, sendo 20% da totalidade da colecta, a destacar da receita destinada ao Fundo de Turismo, aplicada na realização de obras de interesse para o turismo na área dos municípios onde se situam os casinos (cfr. o nº 3 do Probatório, bem como o nº 3 do art. 84º do DL nº 422/89, de 2/12). Sendo que a colecta deste Imposto Especial integra, em concorrência com outras quantias de diferentes proveniências, as contrapartidas anuais, a pagar pelas concessionárias (al. b) do nº 1 do art. 3º e nº 1 do art. 6º, ambos do Decreto Regulamentar nº 29/88, de 3/8).
Assim, como alega a recorrente, a liquidação também se reporta à chamada “contrapartida anual” exigida às empresas concessionárias das zonas de jogo, a qual é composta por 50% das receitas brutas dos jogos explorados no Casino (essa contrapartida anual, por um lado tem um «mínimo» fixado no DL nº 275/2001 e, por outro lado, é paga através, ao menos em parte, das liquidações de imposto do jogo). Com efeito, o legislador definiu como base tributável os rendimentos normais das concessionárias, reconduzindo-se o Imposto de Jogo, face ao IRC, como imposto especial sobre o rendimento, (() Casalta Nabais, Direito Fiscal, 6ª ed. p. 61.) concretizando-se o que «podemos designar por um "regime fiscal substitutivo", em que se verifica a substituição do regime geral de tributação, aplicável à generalidade dos contribuintes, por um regime especial de tributação» (trata-se de um imposto especial sobre a actividade de exploração de jogos de fortuna e azar desenvolvida pelas empresas concessionárias e exercida dentro dos imóveis afectos à respectiva concessão, substituindo, relativamente aos rendimentos provenientes dessa actividade, qualquer outra tributação, designadamente a tributação em IRC - v. o art. 7° do CIRC).
E este Imposto de Jogo também «tem um regime de liquidação e cobrança muito particular, já que o mesmo se concretiza num verdadeiro regime contratual designado por regime de avença.» Casalta Nabais, ob. cit. pp. 657/658.
E relativamente aos contratos que têm por objecto o lançamento, a liquidação ou a cobrança dos impostos, este mesmo autor considera que podem apontar-se dois tipos: um, em que a administração tributária «contrata com o próprio contribuinte ou sujeito passivo aspectos da liquidação ou cobrança do respectivo imposto; outro em que a administração tributária contrata com certas entidades a prestação de serviços relativamente à liquidação e cobrança de impostos alheios. Como exemplo do primeiro tipo, podemos indicar o já clássico contrato de avença no imposto de jogo, previsto no art. 89° do DL n° 422/89, de 2 de Dezembro. Trata-se dum contrato celebrado entre as empresas concessionárias das zonas de jogo e a Inspecção Geral dos Jogos e que tem por objecto a determinação da matéria colectável do imposto de jogo, que assim é determinado de forma sintética e por acordo.) Como igualmente sublinha Soares Martinez (Direito Fiscal, 7ª ed., pp. 629/631) o imposto «desdobra-se por duas parcelas. A primeira parcela é constituída por uma percentagem, variável com a localização dos casinos e com a antiguidade das concessões, sobre o "capital em giro inicial". A segunda parcela é constituída por uma percentagem, também variável com a localização dos casinos e com a antiguidade das concessões, sobre os lucros das "bancas" (Decreto-Lei n° 422/89, art. 85°). Tratando-se de jogos "não bancados" e do "jogo do bingo", o imposto incide por percentagem sobre a "receita cobrada dos pontos" (Decreto-Lei n° 422/89, art. 86°). Em relação às máquinas de jogo automáticas, aplica-se o regime dos "jogos bancados", com algumas especialidades (Decreto-Lei n° 422/89, art. 87°). O pagamento do imposto de jogo é efectuado, mensalmente, até ao dia 15, na tesouraria da Fazenda Pública da área da concessão, na base de guia emitida pela Inspecção-Geral dos jogos, à qual compete também a fiscalização deste imposto. Às concessionárias é permitido pagar o imposto de jogo por avença (Decreto-Lei n° 422/89, arts. 88° e 89°).»
E neste sentido, as próprias componentes das contrapartidas anuais provenientes de outras fontes poderão assumir natureza tributária, constituindo receitas do Estado afectas ao financiamento de actividades de interesse público turístico, impostas coactivamente por instrumentos legais, embora a sua quantificação venha a ficar estabelecida nas cláusulas dos contratos de concessão a celebrar posteriormente com as concessionárias.
Em face do exposto, e da jurisprudência citada, decidir-se-á julgar competente para decidir a presente lide a área de jurisdição fiscal neste TAF.
Neste tribunal a jurisdição tributária e a administrativa funcionam agregadamente, nos termos do artº 9º nº 3 do ETAF na redacção da Lei nº 107/2003 de 51/12, pelo que, no citado artº 49º do ETAF, onde se lê tribunais tributários deve ler-se unidade orgânica de competência tributária.
A consequência da distribuição a um juízo Administrativo não pode, salvo o devido respeito por opinião diversa, ser uma absolvição da instância, desde logo pelas suas consequências práticas. A autora dirigiu a PI ao Tribunal competente, o TAF de Coimbra, mas houve erro na distribuição. Ora não é aceitável que a Autora perca a instância em consequência da distribuição do processo a um juiz incompetente em razão da matéria, distribuição que não é da sua responsabilidade.
Justa e adequada é antes, em meu entender, a remessa do processo para ser redistribuído a um juízo fiscal deste Tribunal.
X
Vejamos:
Para dirimir a questão em análise importa saber se a matéria colocada como objecto da causa, maxime o pedido e a causa de pedir configuram alguma das situações em que a lei atribui a competência especificamente aos tribunais administrativos.
Vejamos, portanto, se a matéria se enquadra na previsão do artº 1º do ETAF, isto é, se deve qualificar-se como litígio emergente de relação jurídica administrativa.
Para ajudar a delimitar o conceito de relação jurídica administrativa o nº 4º do mesmo diploma efectua uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos encontrar critérios ou efectuar uma delimitação de fronteiras, usando as técnicas de interpretação da lei.
A relação jurídica administrativa tem sido definida como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que regulam a relação de modo diferente de correspondentes relações privadas, por incluírem um poder da parte pública ou uma sujeição especial, determinadas pela necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.
Fazendo apelo ao preceituado no artº 13° do CPTA, é seguro que a competência do tribunal é de ordem pública e deve preceder o conhecimento de qualquer outra matéria.
Acresce que a incompetência absoluta se configura como uma excepção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e que conduz à absolvição da instância, sendo, de resto, do seu conhecimento oficioso, conforme resulta das disposições conjugadas dos artºs 576°/1 e 2, 577°/al. a), 578º/1ª parte e 278°/1, al. a), do novo CPC, (artºs 62º/2, 101º, 102º, 105º/1, 288º/1, al. a), 493º/1 e 2 e 494º/al. a), todos do antigo CPC ex vi artº 1º do CPTA).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual, sendo um dos elementos de cuja verificação depende o dever do juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a pretensão deduzida. Como qualquer outro pressuposto processual, é aferida em relação ao objecto da lide, tal como é configurado pelo autor.
Desta forma, o problema da (in)competência de determinado tribunal tem de ser resolvido em função do modo como se encontra articulado e fundamentado o pedido do autor, não sendo incumbência do réu definir o âmbito do mesmo. Dito de outra maneira, a competência do tribunal não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, constituindo uma questão que será decidida de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor, não importando averiguar quais deviam ser as partes ou os termos dessa pretensão. É, portanto, o pedido do demandante que determina a competência do tribunal - cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139.
Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram -Antunes Varela /Miguel Bezerra/ Sampaio e Nora, ob. cit./197.
Com efeito, o artº 212°/3 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Acresce que, em sintonia com o referido normativo, estatui o artº 1º/1 do ETAF, que os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar justiça nos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.
Na arquitectura deste quadro legal, compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham, nomeadamente, por objecto, além do mais, a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal - artº 4°/1/al. a), do ETAF.
Em termos gerais, compete aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais. O que nos permite extrair a ilação de que à jurisdição administrativa incumbirá, em regra, o julgamento de quaisquer acções que tenham por objecto litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, ou seja, todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativas e sob a égide da realização do interesse público.
O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público - cfr. Vieira de Andrade em Justiça Administrativa, 9ª ed., pág. 103. Já Fernandes Cadilha, em Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118, afirma: por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas.
A competência do tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo Autor e pelos fundamentos que invoca, pelo que a análise da petição dos Autores é determinante, sublinha o Acórdão do STA de 27/01/2010, no proc. 017/09.
Assim sendo, há que atentar na configuração que o Autor faz da acção, a saber, o pedido formulado e a concreta causa de pedir em que se baseia.
Voltando ao caso concreto, entendeu o Tribunal a quo julgar-se materialmente incompetente para apreciar a «acção administrativa especial» proposta pela A., ora Recorrida, que tem por objeto a «impugnação do acto da liquidação da contrapartida anual» relativa ao ano de 2012 «prevista no art. 4.º do Decreto-lei n.º 275/2001, de 17 de Outubro, bem como na Cláusula 4.ª/2 do contrato de concessão de exploração da zona de jogo da Figueira».
Na sentença, o Tribunal, depois de (i) ter convidado as partes a pronunciarem-se quanto à competência material dos tribunais administrativos para apreciar a presente ação, (ii) de ambas as partes se terem pronunciado no sentido da competência material do tribunal administrativo para conhecer do objeto do presente litígio e (iii) de, no despacho saneador - que veio a ser anulado por o ora Recorrente não ter sido notificado do articulado apresentado pela Recorrida a sustentar a competência material do tribunal a quo - ter decidido ser competente a área de jurisdição administrativa do TAF de Coimbra, decidiu que, afinal, seriam competentes em razão da matéria os tribunais tributários e, em consequência, determinou a redistribuição dos autos na área de competência tributária daquele TAF.

Considerou o Tribunal que, «Entretanto, sobreveio a conformação de jurisprudência uniforme no sentido de ser dos tribunais tributários a competência para apreciar a pretensão de impugnação dos actos de liquidação das contrapartidas anuais da natureza do sub judice.
Tal corrente não tem conhecido excepções e é formada, pelo menos pela sequência dos seguintes acórdãos:
- Acórdão de 3/2/2016, tirado no recurso 862/15
- Acórdão de 17/2/2016, tirado no recurso nº 787/15;
- Acórdão de 17/2/2016, tirado no recurso nº 1386/15;
- Acórdão de 24/5/2016, tirado no recurso 105/16;
O último destes acórdãos assume expressamente a intenção de sedimentar essa jurisprudência, pela uniformidade, em vista de “uma aplicação uniforme do direito uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. artº 8º, nº 3 do Código Civil e 148º, nº 1 do CPTA)”.
Ora bem:
Anulado que se encontra o despacho saneador acima referido, ao colocar-se de novo a questão da competência ou incompetência dos Tribunais Administrativos para o objecto desta causa não se pode deixar de ter em conta a formação desta jurisprudência do STA.
E tê-la em conta só pode ser aderir à mesma, a bem de uma aplicação uniforme do direito.
Por economia de tempo passo a citar o acórdão proferido no recurso 862/15, onde toda a referida jurisprudência vai expressamente beber:
«(…)».
Ora, é considerando precisamente a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal Administrativo que o Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
E advoga, e bem, no essencial, que a jurisprudência tem vindo a entender que as questões de competência material devem ser decididas considerando os termos em que o Autor configura o conflito e bem assim a relação material subjacente. Ou seja, independentemente de a matéria ser ostensivamente da competência de uma determinada jurisdição, o que prevalece, para efeitos de fixação da competência são os termos em que o Autor configura a relação jurídica.
Assim, perante um caso em que em causa está o pagamento de uma renda no âmbito de um contrato celebrado entre o particular e a entidade pública, o tribunal competente será da jurisdição tributária se o A., na petição inicial, configurar o pagamento como um tributo e invocar normas de direto fiscal.
Este foi o entendimento que prevaleceu no STA.
Com efeito, recentemente o STA veio a entender, nos Acórdãos proferidos nos recursos n.ºs 862/15, de 17.02.2016, 787/15 e 1386/15, que, considerando os termos como a A. (Varzim Sol - Turismo, Jogo e Animação, S.A.) configura a relação material controvertida naquelas ações, os tribunais tributários são materialmente competentes para decidir os litígios que lhes foram colocados, uma vez que naquelas impugnações a concessionária não faz alusão a normas de direito administrativo, não impugna cláusulas do contrato e invoca apenas violação de normas de direito tributário.
Assim, como se refere no Acórdão de 24.05.2016, tirado no Recurso n.º 105/16, «Acresce sublinhar que, aferindo-se a competência em razão da matéria pelo pedido formulado na ação e pela natureza da relação jurídica que lhe dá corpo, tal como é configurada pelo autor, e sendo essa a questão do recurso, a deliberação tomada no despacho reclamado se enquadra, numa perspetiva lógica, nas premissas ali consideradas, não estando em causa, por ora, o julgamento do mérito da pretensão da impugnante.
Até porque, o facto de em sede de apreciação de mérito do pedido se vir, eventualmente, a afirmar entendimento diverso da impugnante/recorrente, não retira às questões por ela suscitadas, a natureza de questões fiscais».
O Recorrente, inconformado com este entendimento, insurgiu-se contra as primeiras decisões proferidas pelo STA, por considerar que, sem prejuízo da manifesta competência dos tribunais tributários para decidir questões do imposto especial de jogo, os mesmos já não seriam competentes para decidir sobre a contrapartida anual, invocando para esse efeito (i) que a autora nesses processos havia proposto uma ação administrativa comum nas secções de contenciosos administrativo a pedir ao tribunal a modificação dessa contrapartida anual, ergo defendendo que a mesma não era um tributo e (ii) que a contrapartida devida nos contratos de concessão da exploração de zonas de jogo foi colocadas à concorrência nos concursos públicos que precederam as adjudicações, tendo já o STA (secção de contencioso administrativo) considerado as mesmas como contraprestações contratuais.
Não tendo o STA, secção de contencioso tributário, sido recetivo à argumentação expendida pelo ora Recorrente e entendendo dever prevalecer, em qualquer caso, para efeitos de determinação da competência, a relação material controvertida nos termos em que a autora a configura, o Recorrente aceitou essas decisões, na medida em que as mesmas, como o STA bem refere, eram meras decisões formais, não estando em causa o mérito da pretensão da autora. Isto é, o que o Supremo Tribunal Administrativo veio defender e estabilizar jurisprudencialmente foi que a competência material se afere nos termos em que o A. configura a relação material controvertida, com a inevitável consequência de, nos casos em que não se está perante matéria da jurisdição competente, o tribunal dever proferir uma decisão de absolvição do pedido.
Ora, no caso destes autos, a Recorrida, foi perentória em afirmar nos artigos 1.º a 13.º da sua petição inicial as razões pelas quais entende serem os tribunais administrativos materialmente competentes para decidir o presente litígio.
Essa explicação passa pela afirmação clara que se está perante um ato administrativo e nunca perante um ato de natureza contratual ou tributário.
É nestes termos que a Recorrida configura a relação material controvertida. Invoca a violação de normas de direito administrativo e não coloca em causa nem refere por uma única vez normas fiscais.
Por seu lado, o Recorrente refere estar-se perante um ato contratual e não perante um ato administrativo, afirmando de forma clara que a ação correta é a ação administrativa comum.
Neste contexto, resulta manifesto destes autos que a Recorrida e o Recorrente estão de acordo quanto à competência material dos tribunais administrativos, nas secções de contencioso administrativo.
Na verdade, quer a A., quer o R., defendem, na petição inicial e na contestação, respetivamente, que a contrapartida anual é contratual. O que separa a Recorrida do Recorrente nestes autos é o facto de a primeira entender que a notificação para pagamento do remanescente da contrapartida anual configura a prática de um ato administrativo, enquanto o Recorrente entende que se trata de um mero ato contratual.
Note-se que a A. e aqui Recorrida explicou inclusivamente na ação que as várias rubricas contratualmente previstas que podem ser utilizadas para a realização da contrapartida (imposto especial de jogo, contribuição para os encargos do Serviço de Regulação e Inspeção de Jogos, despesas com animação e encargos com publicidade, entre outros custos) não se confundiam com a mesma.
Isso mesmo também defende o R. e aqui Recorrente que sempre admitiu a natureza tributária do imposto especial de jogo, mas que não admite que, pelo facto de o imposto poder ser deduzido ao montante da contrapartida anual a pagar, se possa entender que esta última é também um tributo.
“A ser assim, ficava por explicar as demais rubricas que contratualmente também podem ser deduzidas à contrapartida anual e que manifestamente não são tributos, como por exemplo, as despesas com promoção e publicidade. Esta contrapartida constitui a remuneração que o Estado entendeu dever ser-lhe atribuída (o preço) por ter adjudicado o exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar na zona de jogo da Figueira da Foz à Recorrida, assumindo esta a atividade do jogo e sendo remunerada através das receitas do jogo.
Nos contratos de concessão de jogo não há lugar a pagamentos ao concessionário por parte do Estado (como ocorre na generalidade das concessões administrativas), mas, na inversa, há lugar à entrega de parte dos rendimentos que a concessionária retira da referida exploração. No caso da Figueira da Foz, uma percentagem correspondente a 30% da receita bruta anual.
Uma vez que a concessionária havia já cumprido com as obrigações em espécie de edificação de empreendimentos turísticos, acordou-se, em 2001, que a contrapartida a pagar pela Recorrida, pelo período remanescente seria em dinheiro. Aquando desse acordo de prorrogação do contrato de concessão de jogo da A. e aqui Recorrida obrigou-se ainda a pagar ao Estado, pelo direito de explorar em exclusivo a sua zona de jogo, uma determinada quantia mínima anual, que seria apenas devida nos casos em que 30% das suas receitas brutas ficassem aquém daquele valor.
Como expressamente está previsto no artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 275/2001, de 17 de outubro, as alterações aos contratos constantes deste diploma apenas entrariam em vigor se e quando as concessionárias celebrassem os respetivos aditamentos aos contratos de concessão. Esta norma foi introduzida no diploma para que nenhuma dúvida pudesse subsistir sobre a natureza contratual, consensual, voluntária das modificações aos contratos efetuadas pelas partes.”
Em suma:
-a competência em razão da matéria afere-se pelo pedido formulado e pela natureza da relação jurídica que serve de fundamento a esse pedido, tal como a configura o autor - Acórdãos da Relação de Évora de 8/11/1979, Colectânea de Jurisprudência, 1979, IV, pág. 1397, do Supremo Tribunal de Justiça de 3/2/1987, BMJ 364, pág. 591, e de 9/5/1995, Colectânea de Jurisprudência /Acórdãos STJ, 1995, II, pág. 68; do Supremo Tribunal Administrativo de 10/3/1988, rec. 25.468, de 27/11/1997, rec. 34.366, e do Tribunal de Conflitos, de 23/9/2004, proc. 05/04; na Doutrina, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1ª ed., vol. I, pág. 88;
-aos tribunais administrativos cabe dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (artºs 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e 212º/3 da Constituição);
-como advertia Manuel de Andrade em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra 1979, pág. 91: “(...) a competência do tribunal … afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)";(….)É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão …" -no mesmo sentido, e entre outros, vide o Acórdão do STA de 03/05/2005, no proc. 04621.
-o STA estabilizou a jurisprudência no sentido de que a competência material dos tribunais deve ser aferida em função dos termos como o Autor configura a relação jurídica materialmente subjacente ao litígio;
-nos presentes autos a Autora/Recorrida configurou a relação material controvertida como administrativa, excluindo expressamente a natureza tributária, invocando única e exclusivamente normas administrativas e cláusulas contratuais.
-os tribunais administrativos são, assim, competentes para julgar esta acção.
Procedem, pois, todas as conclusões do Recorrente.

DECISÃO
Termos em que se concede provimento ao recurso, revoga-se a decisão sub judice, reconhecendo-se como competente para o litígio em causa a jurisdição administrativa e ordenando-se a baixa dos autos ao TAF a quo para o prosseguimento dos mesmos, caso a tal nada mais obste.

Sem custas, atenta a ausência de contra-alegações.
Notifique e DN.

Porto, 19/06/2020

Fernanda Brandão
Hélder Vieira
Helena Canelas