Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00949/06.7BECBR
Secção:1ª Secção - Contencioso Administrativo
Data do Acordão:03/26/2009
Tribunal:TAF de Coimbra
Relator:Drº Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Descritores:DOMÍNIO PÚBLICO AÉREO
ESPAÇO AÉREO MUNICIPAL
TAXAS
QUESTÃO FISCAL
COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS - TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS
Sumário:I. Existe, sem margem para dúvidas, um domínio público autárquico e, em especial, um domínio público municipal, tanto para mais que a sua existência é assumida e afirmada em vários diplomas legais e aceite pela doutrina.
II. No âmbito do nosso ordenamento existe efectivamente apenas um domínio público aéreo estadual ou nacional, não havendo um domínio público aéreo municipal constituído ou correspondente aos respectivos limites territoriais e que comece para lá da altitude onde o interesse dos proprietários já não chegue.
III. Não se pode concluir, todavia, que os municípios não sejam detentores de espaço aéreo sobrejacente ao seu domínio público, mormente, ao domínio público rodoviário e que sobre esse espaço os mesmos não possam ou não devam exercer seus poderes de administração, efectivando dessa forma seus direitos e interesses.
IV. Tal é reconhecido pelo próprio legislador ordinário [cfr. art. 19.º, als. b) e c) da Lei n.º 42/98, de 06/08 - LFL à data dos factos vigente] quando afirma a sua existência e a confere tais poderes aos municípios.
V. Constitui “questão fiscal” para a qual são competentes os tribunais tributários o apurar se assiste ao Município o direito a exigir de determinados sujeitos o pagamento de certa quantia, acrescida de juros moratórios, devida a título de taxas pela utilização/ocupação do espaço público aéreo nos termos decorrentes do Regulamento de Taxas e Licenças daquele Município.*

* Sumário elaborado pelo Relator
Recorrente:Município de Tábua
Recorrido 1:P..., Lda. e outra
Votação:Unanimidade
Meio Processual:Acção Administrativa Comum - Forma Ordinária (CPTA) - Recurso Jurisdicional
Decisão:Concedido parcial provimento ao recurso
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:Não emitiu parecer
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Norte:
1. RELATÓRIO
MUNICÍPIO DE TÁBUA, devidamente identificado nos autos, inconformado, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do TAF de Coimbra, datada de 21/11/2007, que no âmbito da acção administrativa comum, sob a forma ordinária, movida contra as RR. “P…, ... LDA.” e “R…, LDA.”, absolveu da instância, por incompetência em razão da matéria dos tribunais administrativos, quanto ao pedido de condenação das RR. no pagamento da quantia de 110.453,12€ acrescida de juros de mora desde a data de citação até efectivo e integral pagamento e que julgou improcedente absolvendo as RR. do pedido de reconhecimento e de declaração de que “… a linha eléctrica de ligação entre o parque eólico da Pampilhosa da Serra e a linha a 220Kv, Vila Chã de Pereiros 2 (LVCPR2) atravessa o espaço aéreo do município e algumas estradas e caminhos municipais …”.
Formula o aqui recorrente nas respectivas alegações as seguintes conclusões que se reproduzem (cfr. fls. 105 e segs.): “...
1ª O primeiro pedido formulado pelo A. na presente acção administrativa comum consistia no reconhecimento de que a linha eléctrica de ligação entre o parque eólico da Pampilhosa da Serra e a linha a 220Kv, Vila Chã de Pereiros atravessava o espaço aéreo do Município e algumas estradas e caminhos municipais.
2ª O Tribunal a quo deu efectivamente por provado que a linha eléctrica em causa atravessava estradas e caminhos municipais mas, no entanto, julgou totalmente improcedente o pedido de reconhecimento que tal linha atravessava o espaço aéreo do Município por entender que os municípios não possuem qualquer domínio público aéreo.
Contudo,
3ª O aresto em recurso enferma de um claro erro de julgamento quando julga totalmente improcedente o primeiro pedido formulado pelo A. - reconhecer-se que a linha eléctrica de ligação entre o Parque eólico da Pampilhosa da Serra e a linha 220 Kv, Vila chã de Pereiras - com o único argumento de que não existe domínio público aéreo municipal, porquanto,
- É a própria lei a reconhecer aos Municípios o poder de cobrar taxas pela ocupação do espaço aéreo (v. alíneas b) e c) do art. 19.º da Lei das Finanças Locais à data em vigor, aprovada pela Lei n.º 42/86, de 6 de Agosto), o que, muito naturalmente, só é possível se a lei configurar esses mesmos Municípios como titulares de um domínio público aéreo;
- A nossa mais autorizada jurisprudência já teve a oportunidade de concluir que o domínio público municipal integra o espaço aéreo (v. Ac. do STA de 9/5/2007, Proc. 01223/06 in www.dgsi.pt), pelo que também por este prisma é notório o desacerto da tese sufragada pelo Tribunal a quo;
- A existência de um domínio público aéreo municipal também é expressamente reconhecida pelos Srs. Profs. João Caupers e Pedro Gonçalves, em pareceres que se juntam;
4ª O aresto em recurso incorreu ainda em erro de julgamento quando julgou procedente a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal para conhecer o pedido de condenação formulado pelo A., porquanto a questão não se resumia à aparente simplicidade com que o Tribunal a quo abordou tal questão, antes tendo a ver com a eventual obrigatoriedade ou faculdade de a cobrança das receitas devidas a título de taxas serem ou não objecto de cobrança através de um acto de liquidação ou através de uma acção condenatória.
Na verdade,
5ª Em parte alguma a lei atribui aos Tribunais Fiscais a competência para o conhecimento de acções condenatórias deduzidas por entidades públicas contra particulares com fundamento no não pagamento de quantias que sejam devidas pela utilização do domínio púbico (v., neste sentido, o art. 49.º do ETAF).
6ª Por isso mesmo, a questão que importa colocar é, justamente, a de saber se, estando em causa quantias que sejam devidas a título de taxas pela utilização do domínio público, a Administração está obrigada a liquidar tais taxas para depois esperar que os particulares impugnem o acto de liquidação no Tribunal Fiscal (que para esse efeito será competente ex vi do art. 49.º do ETAF) ou se, pelo contrário, pode a Administração não proceder a essa liquidação e solicitar nos Tribunais Administrativos a condenação de tais particulares no pagamento das quantias que são devidas a título de taxas.
7ª Entende o ora recorrente que, não obstante a lei permitir aos municípios liquidarem as taxas que depois podem ser impugnadas pelos destinatários e de se prever um processo de execução fiscal para o incumprimento da obrigação de pagamento, tal não invalida que a Administração possa não proceder à liquidação e procurar obter judicialmente a condenação do utilizador do domínio público a pagar as quantias devidas a título de taxas através de uma acção administrativa comum de condenação, para a qual já não serão competentes os Tribunais fiscais - por não haver norma legal a dar-lhes tal poder (v. art. 49.º do ETAF) - mas antes os Tribunais Administrativos, ex vi do art. 37.º do CPTA.
8ª Seguramente que se o exercício do poder-dever de cobrar as receitas fiscais for efectuado através de um acto de liquidação, terá o sujeito passivo que recorrer ao processo de impugnação fiscal, para o que serão competentes os Tribunais fiscais, da mesma forma que se o acto tributário não for pago por tal sujeito poderá a Administração recorrer ao processo de execução fiscal.
Contudo,
9ª Sustentar-se que a receita fiscal terá que ser obrigatoriamente obtida através deste acto de liquidação e daquele processo de execução fiscal já será, na opinião do Município, perfilhar um entendimento que não tem cobertura no texto da lei - que não impõe obrigatoriamente que a receita seja obtida por tal via -, que colidirá com o direito de acesso à justiça - que permite que o direito carecido de tutela seja tutelado através de diversas formas processuais - e que deixará por explicar por que é que quem tem um título executivo pode recorrer a uma acção declarativa, o que denota que o simples facto de se prever uma dada forma de obter a cobrança de uma receita não invalida que se socorra de outros meios legalmente previstos.
10ª Por isso mesmo, julga-se que o aresto em recurso incorreu igualmente em erro de julgamento quando se julgou absolutamente incompetente para conhecer do pedido condenatório formulado na presente acção sobretudo quando em causa estava um pedido de condenação para cuja apreciação o Tribunal a quo era competente ex vi do art. 37.º, n.º 1 do CPTA e 44.º do ETAF …”.
Termina sustentando o provimento do recurso e revogação da decisão judicial em crise.
As RR., ora recorridas, notificadas, apresentaram contra-alegações (cfr. fls. 142 e segs.), tendo concluído que:

1 - Da combinação do disposto nos artigos 1344.º e 1304.º do Código Civil resulta a existência do espaço aéreo do domínio público municipal, correspondente à superfície do domínio público municipal, ou seja, ao espaço aéreo correspondente à superfície das estradas, caminhos, largos e praças municipais.
2 - No entanto, o espaço aéreo do domínio público municipal não abrange o domínio privado do município nem o domínio privado (isto é, pertencente a particulares ou ao sector privado) nem os bens pertencentes ao sector cooperativo e social (cfr. artigo 82.º da Constituição da República Portuguesa).
3 - Na verdade, e como decorre dos supra referidos preceitos do Código Civil, o espaço aéreo de terrenos particulares pertence aos respectivos proprietários privados e apenas o espaço aéreo de terrenos públicos pertence às entidades públicas.
4 - Assim, não pode ter acolhimento o entendimento do Autor de que todo o espaço aéreo que integra os limites do seu concelho constitui espaço aéreo do domínio público municipal - só o espaço aéreo das estradas, caminhos, largos e praças municipais é que pertencerá a essa categoria, não abrangendo nomeadamente o espaço aéreo correspondente ao domínio privado.
5 - Deste modo, o eventual reconhecimento de um espaço aéreo do domínio público municipal deverá ter em conta estes limites (ou seja, que o mesmo não abrange o espaço aéreo correspondente ao domínio privado, social e cooperativo).
6 - Quanto ao segundo pedido, referente à condenação das Rés no pagamento de uma taxa, entendem estas que bem esteve o douto despacho saneador nesta parte, ao julgar que o tribunal administrativo é materialmente incompetente para conhecer deste pedido, sendo competente para o mesmo o Tribunal Tributário.
7 - Na verdade, as taxas, tal como os impostos, constituem matéria de natureza fiscal, sendo que os tribunais competentes para a apreciação dessas matérias são os fiscais e não os administrativos.
8 - De acordo com o artigo 30.º, n.º 4 da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 42/1998, de 6 de Agosto, com a redacção introduzida pela Lei n.º 15/2001, de 5/6), com o Código de Procedimento e de Processo Tributário e com o artigo 49.º do ETAF, o Município teria que proceder primeiro ao acto de liquidação dessas taxas, de modo a que os particulares pudessem proceder à respectiva impugnação no competente Tribunal Tributário.
9 - Permitir que numa acção administrativa comum se peça a condenação de um particular no pagamento de uma taxa, significa subverter completamente os meios processuais estabelecidos por lei, que impõem que se proceda primeiro à liquidação da taxa pelos meios previstos no Código de Procedimento e de Processo Tributário, de modo a que os particulares possam reagir nos termos aí estabelecidos.
10 - Deste modo, deve o despacho saneador recorrido ser mantido nesta parte ...”.
O Ministério Público (MºPº) junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no art. 146.º do CPTA, não emitiu parecer (cfr. fls.159 e segs.).
Colhidos os vistos legais juntos dos Exmos. Juízes-Adjuntos foram os autos submetidos à Conferência para julgamento.
2. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pelo recorrente, sendo certo que, pese embora por um lado, o objecto do recurso se acha delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos arts. 660.º, n.º 2, 664.º, 684.º, n.ºs 3 e 4 e 690.º, n.º 1 todos do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” arts. 01.º e 140.º do CPTA, temos, todavia, que, por outro lado, nos termos do art. 149.º do CPTA o tribunal de recurso em sede de recurso de apelação não se limita a cassar a sentença recorrida, porquanto ainda que declare nula a sentença decide “sempre o objecto da causa, conhecendo de facto e de direito”, pelo que os recursos jurisdicionais são “recursos de ‘reexame’ e não meros recurso de ‘revisão’” (cfr. J.C. Vieira de Andrade in: “A Justiça Administrativa (Lições)”, 9.ª edição, págs. 453 e segs.; M. Aroso de Almeida e C.A. Fernandes Cadilha in: “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 2.ª edição revista, págs. 850 e 851, nota 1; Catarina Sarmento e Castro em “Organização e competência dos tribunais administrativos” - “Reforma da Justiça Administrativa” - in: “Boletim da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra - Stvdia ivridica 86”, págs. 69/71).
As questões suscitadas resumem-se, em suma, em determinar se a decisão judicial recorrida enferma de erro de julgamento de direito quer quando julgou procedente a excepção de incompetência em razão da matéria quer ainda quando, quanto ao pedido de reconhecimento, o julgou improcedente por inexistência de espaço aéreo do Município aqui ora recorrente [cfr. alegações e demais conclusões supra reproduzidas].
3. FUNDAMENTOS
3.1. DE FACTO
Resultou apurada da decisão judicial recorrida a seguinte factualidade:
I) Em 10/02/2003, pelo A. foi emitido o alvará de licenciamento n.º 27/2003, a favor da 1.ª R., referente a obras de construção da linha a 220kv de ligação entre o parque eólico da Pampilhosa da Serra e a linha a 220kv, Vila Chã - Pereiras 2 (LVCPR2).
II) Por ofício datado de 11/01/2006, o A. notificou a 1.ª R. do seguinte:
“(…) não terem procedido ao pagamento da taxa de Ocupação do Espaço Aéreo do Domínio Público, referente ao ano de 2005, prevista no Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças em vigor neste Município, vimos comunicar a Vs. Exas. que devem proceder ao respectivo pagamento no montante de 55.226,56€ (...) - (7.383,23 metros de linha x 7,48 Euros/m), no prazo de 05 dias úteis a contar da data da recepção da presente notificação (…)“.
III) Por ofício datado de 24/01/2006, o A. notificou a 2.ª R. do seguinte:
“(…) não terem procedido ao pagamento da taxa de Ocupação do Espaço Aéreo do Domínio Público, referente ao ano de 2005, prevista no Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças em vigor neste Município, vimos comunicar a Vs. Exas., que devem proceder ao respectivo pagamento no montante de 55.226,56€ (...) - (7.383,23 metros de linha x 7,48 €/m), no prazo de 05 dias úteis (…)“.
IV) Por ofício datado de 13/02/2006, o A. notificou a 2.ª R. do seguinte:
“(…) não terem procedido ao pagamento da taxa de Ocupação do Espaço Aéreo do Domínio Público, referente ao ano de 2006, prevista no Regulamento e Tabela de Taxas e Licenças em vigor neste Município, vimos comunicar a Vs. Exas., que devem proceder ao respectivo pagamento no montante de 55.226,56€ (...) - (7.383,23 metros de linha x 7,48 €/m), no prazo de 10 dias úteis (…)“. V) Em missiva datada de 20/02/2006 e dirigida ao A., a 2.ª R. invoca a violação do disposto nos arts. 125.º e 133.º do CPA, argumentando, ainda, que:
“(…) Os nossos Serviços Técnicos informam que a linha, no Concelho de Tábua, sobrevoa, única e exclusivamente, prédios rústicos propriedade de particulares e que nos termos da Lei Civil foram devidamente indemnizados, aliás por exigência da própria Rede Eléctrica Nacional e pela ocupação do espaço aéreo correspondente à superfície (…)“.
VI) Por ofício do Director de Serviços de Energia Eléctrica, datado de 29/07/2005, a 1.ª R. foi notificada de que foi concedida licença de exploração para Linha aérea a 220 kv, da subestação do parque eólico da Pampilhosa da Serra ao vão entre os apoios n.º 71 e n.º 72, com ligação em T, da linha aérea a 220 kv, Vila Chã - Pereiros 2 da “REN - Rede Eléctrica Nacional, SA”, com 59 apoios, na extensão de 26 087 metros.
VII) Em 19/12/2005, a 1.ª R. celebrou com a “REN - Rede Eléctrica Nacional, SA” e outro, contrato através do qual transferiu para esta a propriedade do ramal (linha aérea) de MAT a 220 kv de ligação entre o Parque Eólico de Pampilhosa da Serra e a linha Vila Chã - Pereiros 2, com efeitos a partir da data da sua entrada em exploração, data a partir da qual será integrado na RNT.
VIII) A linha descrita em I) atravessa, no Município de Tábua, terrenos de particulares, estradas e caminhos municipais.
«»
3.2. DE DIREITO
Considerada a factualidade supra fixada que, aliás, não foi objecto de qualquer impugnação importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do presente recurso jurisdicional.
*
3.2.1. DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
Sustenta o A./recorrente jurisdicional que a decisão judicial em crise no segmento em que julgou procedente a excepção de incompetência em razão da matéria quanto à análise e conhecimento do pedido de condenação das RR. no pagamento ao A. da quantia de 110.453,12€, acrescida de juros moratórios, incorreu em erro de julgamento já que estaria em presença de pedido de condenação coberto pela previsão dos arts. 37.º, n.º 1 do CPTA e 44.º do ETAF, sendo que ao ente público demandante assistia o direito de não proceder à liquidação das taxas de utilização do domínio público aéreo e exigir o seu pagamento através de acção declarativa de condenação.
Contra tal entendimento se manifestaram as RR., sufragando o entendimento acolhido na decisão judicial recorrida que neste âmbito argumentou e concluiu nos seguintes termos: “… analisado o pedido e a correspondente causa de pedir do A., verifica-se que este Tribunal não é competente, em razão da matéria, para decidir do pedido tangente à condenação … RR. no pagamento da taxa municipal no valor de 110.453,12 Euros que o A. considera devida, visto que a natureza das questões a apreciar no sentido de julgar o pedido em exame não pertencem à competência dos Tribunais Administrativos, mas sim dos Tribunais Fiscais.
Por conseguinte, julgo incompetente, em razão da matéria, este Tribunal Administrativo de Coimbra, nos termos do art. 8.º, al. c) do ETAF, para apreciar e decidir o pedido em questão.
Em consequência, absolvo … RR. da instância no tangente ao pedido em análise …”.
Analisemos da bondade e acerto desta decisão.
Como advertia Manuel de Andrade "... a competência do tribunal … afere-se pelo 'quid disputatum' (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do A.. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes. (...) É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão …" (cfr. "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra 1979, pág. 91).
Por outro lado e tal como é, aliás, entendimento doutrinal e jurisprudencial uniforme, a competência do tribunal, em geral, não está dependente da personalidade judiciária de demandante(s) e demandado(s) ou sequer da legitimidade das partes, sendo que para a aferição da mesma nada releva um julgamento quanto à procedência da pretensão ou da acção.
Determina o art. 212.º, n.º 3 da CRP que compete "... aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais ...".
Prevê-se, por sua vez, no n.º 1 do art. 01.º do ETAF, sob a epígrafe de “Jurisdição administrativa e fiscal”, que os “… tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
Resulta do n.º 1 do art. 04.º, sob a epígrafe “Âmbito da jurisdição” e nos segmentos que aqui relevam, que compete “… aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto: a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal; b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal …”.
Estipula-se no art. 44.º, relativo à competência dos tribunais administrativos de círculo, que compete “… aos tribunais administrativos de círculo conhecer, em 1.ª instância, de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores e da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados …” (n.º 1) e “… satisfazer as diligências pedidas por carta, ofício ou outros meios de comunicação que lhes sejam dirigidos por outros tribunais administrativos …” (n.º 2).
E do art. 49.º, sob a epígrafe de “competência dos tribunais tributários”, deriva que compete “… aos tribunais tributários conhecer: a) Das acções de impugnação: i) Dos actos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais, incluindo o indeferimento total ou parcial de reclamações desses actos; ii) Dos actos de fixação dos valores patrimoniais e dos actos de determinação de matéria tributável susceptíveis de impugnação judicial autónoma; iii) Dos actos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal; iv) Dos actos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais; b) Da impugnação de decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias em matéria fiscal; c) Das acções destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal; d) Dos incidentes, embargos de terceiro, verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de actos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal; e) Dos seguintes pedidos: i) De declaração da ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal; ii) De produção antecipada de prova, formulados em processo neles pendente ou a instaurar em qualquer tribunal tributário; iii) De providências cautelares para garantia de créditos fiscais; iv) De providências cautelares relativas aos actos administrativos impugnados ou impugnáveis e às normas referidas na subalínea i) desta alínea; v) De execução das suas decisões; vi) De intimação de qualquer autoridade fiscal para facultar a consulta de documentos ou processos, passar certidões e prestar informações; f) Das demais matérias que lhes sejam deferidas por lei ...” (n.º 1) e ainda “… cumprir os mandatos emitidos pelo Supremo Tribunal Administrativo ou pelos tribunais centrais administrativos e satisfazer as diligências pedidas por carta, ofício ou outros meios de comunicação que lhe sejam dirigidos por outros tribunais tributários …” (n.º 2).
Feito o cotejo dos normativos que relevam para a decisão da matéria de excepção que constitui o objecto de apreciação importa, agora, fazer a sua interpretação conjugada e deles extrair as regras normativas de competência para o caso em presença.
Frise-se que o art. 212.º, n.º 3 da CRP constitui uma regra definidora dum modelo típico do âmbito-regra da jurisdição administrativa/fiscal enquanto jurisdição própria, ordinária, e não como uma jurisdição especial ou excepcional, ou mesmo facultativa, face aos tribunais judiciais, servindo tal preceito constitucional para consagrar os tribunais administrativos/fiscais como tribunais comuns em matéria administrativa/fiscal.
À face do ETAF vigente na jurisdição administrativa e fiscal a competência dos tribunais administrativos e dos tribunais fiscais para o conhecimento das pretensões perante os mesmos deduzidas está repartida em função dos litígios serem emergentes, respectivamente, de relações jurídicas administrativas ou de relações jurídicas fiscais.
Nessa medida, face ao teor dos arts. 44.º e 49.º do ETAF e à questão em presença, importa caracterizar o que seja mormente uma “relação jurídica fiscal” ou uma “questão fiscal”.
Temos para nós que por “questão fiscal” deverá entender-se, de harmonia com a jurisprudência firmada pelo STA, a que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal, ou seja, de norma que se relaciona com impostos e figuras análogas. É “questão fiscal”, pois, aquela que exija a interpretação e aplicação de quaisquer normas de direito fiscal (substantivo ou adjectivo) para resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública.
Por outras palavras, estamos perante questão daquela natureza quando a mesma diga respeito à interpretação e aplicação de normas legais de natureza tributária, ou seja, se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objectivamente conexas ou teleologicamente subordinadas.
No caso em análise e quanto ao pedido em crise está em causa o saber se assiste ao A., aqui ora recorrente, o direito a exigir das RR. o pagamento da quantia de 110.453,12€, acrescida de juros moratórios, quantia essa devida a título de taxas pela utilização do domínio público aéreo do A. nos anos de 2005 e 2006 [7383,23 metros X 7,48€/m por cada ano] nos termos decorrentes do Regulamento de Taxas e Licenças daquele Município em vigor [art. 41.º, al. d)] e documentado nos autos a fls. 295 e segs..
O aferir de tal pretensão e o dirimir o litígio que se estabeleceu entre o A. e as RR. é, pois, manifestamente uma “questão fiscal”, tanto mais que se prende com a discussão da aplicação do ordenamento jurídico-fiscal a um caso concreto, sendo que a autoria/omissão de acto é inteiramente irrelevante para o efeito a considerar, visto o que importa não é a competência funcional da entidade decisora (estarmos ou não em face dum órgão da "Administração Fiscal" em sentido orgânico), mas antes a natureza do poder administrativo exercido e que está em causa, o qual, como aludimos supra, tem manifestamente natureza de relação jurídica tributária.
Na verdade, a discussão em termos da obrigação de liquidação do pagamento da taxa em crise é manifestamente uma “questão fiscal” visto se estar em presença duma taxa que reveste a natureza dum tributo conexionado com a utilização/ocupação do domínio público por entes particulares.
Com efeito, mostra-se constante a jurisprudência da 2.ª Secção do STA (Secção de Contencioso Tributário) que qualifica como taxa o tributo cobrado por uma autarquia conexionado com a actividade de licenciamento de instalação de infra-estruturas de telecomunicações, situação em tudo muito similar ao aqui ora vertente.
Tal como consta do sumário do recente acórdão do STA/2.ª Secção de 18/02/2009 (Proc. n.º 0947/08 in: «www.dgsi.pt/jsta») a “I. … distinção constitucional e legal entre os conceitos de imposto e de taxa tem por base o carácter unilateral ou bilateral e sinalagmático dos tributos, sendo qualificáveis como impostos os que têm aquela primeira característica e como taxas os que têm as últimas. II. Essa relação sinalagmática entre o benefício recebido e a quantia paga não implica uma equivalência económica rigorosa entre ambos, mas não pode ocorrer uma desproporção que, pela sua dimensão, demonstre com clareza que não existe entre aquele benefício e aquela quantia a correspectividade ínsita numa relação sinalagmática. III. Tem a natureza de taxa o tributo cobrado por uma autarquia, conexionado com a actividade de licenciamento de instalação de infra-estruturas de telecomunicações ...”.
E na sua fundamentação, que aqui se sufraga e acolhe, resulta ainda o seguinte: “… A distinção constitucional e legal entre os conceitos de imposto e de taxa tem por base o carácter unilateral ou bilateral e sinalagmático dos tributos, sendo qualificáveis como impostos os que têm aquela primeira característica e como taxas os que têm as últimas.
Como se refere no n.º 2 do art. 4.º da L.G.T., e já anteriormente se entendia, as taxas podem ter por fundamento a prestação concreta de um serviço público (Neste sentido, podem ver-se:
– SOUSA FRANCO, Finanças Públicas e Direito Financeiro, volume II, 4.ª edição, página 64;
– ALBERTO XAVIER, Manual de Direito Fiscal, volume I, páginas 42-43;
– DIOGO LEITE DE CAMPOS e MÓNICA LEITE DE CAMPOS, em Direito Tributário, 1996, página 27;
– BRAZ TEIXEIRA, Princípios de Direito Fiscal, 1979, página 43-44;
– PAMPLONA CORTE-REAL, Curso de Direito Fiscal, volume I, página 165).
Essa relação sinalagmática entre o benefício recebido e a quantia paga não implica uma equivalência económica rigorosa entre ambos, mas não pode ocorrer uma desproporção que, pela sua dimensão, demonstre com clareza que não existe entre aquele benefício e aquela quantia a correspectividade ínsita numa relação sinalagmática (Neste sentido, podem ver-se os acórdãos do STA de 13-4-2005, recurso n.º 1339/04; de 17-6-2007, recurso n.º 236/07; e de 16-1-2008, recurso n.º 603/07).
… Não existindo a alegada desproporção entre o serviço prestado e o tributo liquidado, ele é de qualificar como taxa.
A cobrança de taxas pela concessão de licenças para a execução de obras era permitida às autarquias locais, ao tempo em ocorreram os factos dos autos, pelos arts. 16.º, alínea c), e 19.º, alínea b), da Lei das Finanças Locais (ao tempo, a Lei 42/98, de 6 de Agosto).
Por outro lado, a cobrança das taxas estava prevista no art. 25.º-D do Regulamento e Tabelas de Taxas e Licenças do Município …”.
Também no acórdão do mesmo Tribunal e Secção de 16/01/2008 (Proc. n.º 0603/07 in: «www.dgsi.pt/jsta») se havia concluído no mesmo sentido, sustentando-se que a “… questão da natureza dos tributos cobrados por ocupação do subsolo do domínio público municipal por empresas de distribuição de gás natural foi já apreciada várias vezes por este Supremo Tribunal Administrativo e pelo Tribunal Constitucional, sendo unânime a jurisprudência no sentido de lhes atribuir natureza de taxas.
A distinção constitucional entre os conceitos de imposto e de taxa tem por base o carácter unilateral ou bilateral e sinalagmático dos tributos, sendo qualificáveis como impostos os que têm aquela primeira característica e como taxas os que têm as últimas.
… A colocação de tubagens no subsolo consubstancia uma utilização individualizada deste, uma vez que, mantendo a Impugnante essa utilização, não será possível utilizar o mesmo espaço para outras finalidades, ficando, assim, limitadas as possibilidades de utilização desse subsolo para outras actividades de interesse público e para outras concessões do seu uso pela autarquia, com cobrança das respectivas taxas.
O facto de a Impugnante ser concessionária de um serviço público não afasta a qualificação do tributo como taxa, pois, a par da satisfação do interesse público, a sua actividade proporciona-lhe a satisfação dos seus interesses como empresa comercial privada, naturalmente vocacionada para obtenção de lucros.
De resto, a utilização de bens do domínio público, designadamente aqueles que como tal são definidos na Constituição (art. 84.º), entre os quais se incluem as estradas, não pode ser permitida em situações de interesse exclusivo de particulares, pois isso reconduzir-se-ia à subversão da atribuição constitucional da natureza de bens do domínio público. Por isso, relativamente aos bens classificados pela Constituição como integrando o domínio público, as autorizações de uso privativo do domínio público através de licenças ou concessões, não podem, sem violar a Constituição, deixar de ser efectuadas em situações em que, concomitantemente com o interesse do particular, há também um interesse público, mesmo que não seja o prevalente ….
Por isso, a satisfação de um interesse público pela actividade de uma empresa privada, não é obstáculo à aplicação da taxação prevista para autorizações de uso privativo de bens do domínio público, sendo mesmo esse tipo de situações em que há cumulativamente interesse público e privado o campo de aplicação natural das taxas pela utilização de bens do domínio público …”.
Reiterando este entendimento pode ainda ler-se no acórdão do STA/2.ª Secção de 10/12/2008 (Proc. n.º 0735/08 in: «www.dgsi.pt/jsta») que a “… respeito da única questão que vem controvertida no presente recurso [… qualificação como taxa do tributo cobrado pela utilização do subsolo do domínio público municipal] consolidou-se neste Supremo Tribunal jurisprudência uniforme e sucessivamente reiterada, à qual também se adere (cfr., entre outros, acórdãos de 17-11-04, 13-04-05, 16-01-08, 07-05-08 e 09-10-08, nos processos n.ºs 650/04, 1339/04, 603/07, 1034/07 e 500/08).
… Escreveu-se no acórdão de 09/10/08 (processo n.º 500/08):
“A questão dos autos - a da natureza do tributo cobrado pela utilização do subsolo do domínio público municipal - pode, hoje, considerar-se esgotada a nível jurisprudencial.
O conceito de taxa tem sido alvo de larga explanação doutrinal e jurisprudencial, podendo hoje terem-se por definidos, com suficiente base dogmática, os seus elementos essenciais.
Assim, Teixeira Ribeiro define-a “como a quantia coactivamente paga pela utilização individualizada de bens semi-públicos, ou como o preço autoritariamente fixado por tal utilização” - cfr. Revista de Legislação e Jurisprudência 117 - 294. E o parecer da Procuradoria-Geral da República, de 15 de Dezembro de 1991 …, reproduzindo o parecer n.º 64/80, tal como o acórdão deste Tribunal, de 10 de Fevereiro de 1983 … sustentam ser a taxa “o preço autoritariamente estabelecido, pago pela utilização individual de bens semi-públicos, tendo a sua contrapartida uma actividade do Estado ou de outro ente público, especialmente dirigida ao obrigado ao pagamento”.
Para Alberto Xavier, Manual de Direito Fiscal, pp. 42/43, as taxas individualizam-se “no terreno mais vasto dos tributos, por revestirem carácter sinalagmático, não unilateral, o qual, por seu turno, deriva funcionalmente da natureza do acto constitutivo das obrigações em que se traduzem e que consiste ou na prestação de uma actividade pública ou na utilização de bens do domínio público, ou na remoção de um limite jurídico à actividade dos particulares”.
Para Sousa Franco, Finanças Públicas e Direito Financeiro, p. 491 e ss., “a taxa é uma prestação tributária (ou tributo) que pressupõe ou dá origem a uma contraprestação específica, resultante de uma relação concreta (que pode ser ou não de beneficio) entre um contribuinte e um bem ou serviço público, isto é, trata-se de uma receita pública ligada a relações normalmente de utilidade, entre quem é obrigado a pagá-la e um serviço ou bem público”.
Assim, temos como elementos essenciais do conceito de taxa: prestação pecuniária imposta coactiva ou autoritariamente; pelo Estado ou outro ente público; sem carácter sancionatório; utilização individualizada pelo contribuinte, solicitada ou não; de bens públicos ou semi-públicos; com contrapartida numa actividade do credor especialmente dirigida ao mesmo contribuinte.
Essencialmente, a taxa distingue-se do imposto pela bilateralidade ou unilateralidade do tributo, respectivamente: aquela, ao contrário deste, supõe a existência de correspectividade entre duas prestações; a primeira a pagar pelo utente do serviço e a deste, a prestar pelo Estado ou outra entidade pública.
Esta relação tem, por um lado, carácter substancial ou material, que não meramente formal mas não vai tão longe quanto os contratos sinalagmáticos: não há uma equivalência económica rigorosa entre o valor do serviço e o montante da quantia a pagar, podendo até esta ser bastante superior ao custo daquele; salva sempre a “desproporção intolerável”.
… Assim, há que determinar se a ocupação do subsolo pela opoente, nos preditos termos, consubstancia, ou não, uma utilização individualizada deste e no próprio interesse da impugnante. Ora, a resposta só pode ser afirmativa, uma vez que, mantendo a recorrente “essa utilização, não será possível utilizar o mesmo espaço para outras finalidades, ficando, assim, limitada a possibilidade de utilização desse subsolo para outras actividades de interesse público”.
“O facto de … ser concessionária de um serviço público não afasta a qualificação do tributo como taxa, pois a par da satisfação do interesse público, a sua actividade proporciona-lhe a satisfação dos seus interesses como empresa comercial privada” Cfr. o acórdão do STA de 13 de Abril de 2005, recurso n.º 01339/04 …”.
Por fim e neste mesmo sentido tenha-se ainda presente o entendimento firmado no acórdão do STA/2.ª Secção de 15/05/2002 (Proc. n.º 026820 in: «www.dgsi.pt/jsta») de cujo sumário resulta que o “… I. … conceito de taxa assumido pela nossa Constituição é um conceito funcional e tem o conteúdo que a doutrina e ciência do direito fiscal lhe assinala. II. Não havendo um conceito constitucionalmente positivado de taxa, não deve o intérprete rejeitar aquela dimensão do conceito construída pelo legislador ordinário (o art. 4.º n.º 2 da LGT) como correspondendo à acepção mais ampla doutrinária de taxa, conquanto saiam satisfeitas as exigências garantísticas que justificam o conceito. III. A quantia paga pela afixação/inscrição de publicidade em imóveis dos municípios ou pendentes sobre o espaço aéreo das estradas, ruas e passeios públicos tem a natureza de taxa. IV. Tem ainda a natureza de taxa a publicidade afixada ou inscrita nos telhados e terraços dos edifícios privados, aplicada essencialmente para ser visível dos espaços públicos, porquanto representa a utilização individual concreta do espaço aéreo que é um bem público e do bem público "ambiente" que é modelado e salvaguardado essencialmente pelos municípios pela sua intervenção na área do urbanismo, do sossego, tranquilidade e da saúde públicas, quer o direito de construir seja visto como uma autorização ou como faculdade conatural do direito de propriedade. V. A quantia paga nas circunstâncias descritas no número anterior é, sem reserva alguma, uma taxa para a doutrina que adopta um conceito mais amplo de tal tipo tributário, segundo a qual basta existir uma remoção de um limite ou obstáculo jurídico à possibilidade da prática de certa actividade ou gozo de certa situação, desde que aqueles não sejam instituídos com a função de, ao removê-los, se poder exigir o pagamento do tributo …”.
Valendo inteiramente para a situação em apreciação o entendimento jurisprudencial atrás reproduzido temos, sem margem para dúvidas, que a discussão ou o litígio em termos da obrigação do pagamento da quantia reclamada pelo A. das RR., quer em termos da sua existência quer do seu “quantum”, constitui manifestamente uma “questão fiscal” já que estamos em presença, como supra aludimos, duma taxa que reveste a natureza dum tributo conexionado com a alegada utilização/ocupação do domínio público por parte das aqui RR. nos anos de 2005 e 2006.
E tal natureza do litígio não se altera em função do meio contencioso utilizado pelo A., nem do procedimento que o mesmo entendeu desenvolver em sede extrajudicial ou administrativa.
Com efeito, certamente o A. previamente ao envio às RR. dos ofícios 115/06-SAD de 11/01/2006 e 224/06-SAD de 24/01/2006 (cfr. documentos n.ºs 2 e 3 juntos com a petição inicial) e constituindo seu substrato procedeu à emissão de acto tributário consubstanciado na fixação autoritária e unilateral do valor da taxa devida pelas RR., respectivamente nos anos de 2005 e de 2006, pela ocupação/utilização do domínio público aéreo do Município, mediante operação de cálculo considerando o Regulamento de Taxas e Licenças supra aludido (regulamento administrativo que no caso corporiza e contém normas de natureza tributária mercê destas, por si próprias, serem fonte ou causa legal de imposição de obrigações pecuniárias) e determinada realidade factual relevante.
Fê-lo no uso de poderes e competências legalmente conferidas e que à data se fundavam nos arts. 04.º, 16.º, 19.º e 30.º da Lei n.º 42/98, de 06/08 (Lei das Finanças Locais, vulgo LFL) (actualmente, cfr. art. 56.º da Lei n.º 02/07, de 15/01 - LFL), 07.º e 149.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (doravante CPPT - DL n.º 433/99, de 26/10 sucessivamente alterado), 155.º do CPA, sendo que no uso daqueles mesmos poderes lhe assistia a competência para a instauração de processos de execução fiscal para cobrança da generalidade das dívidas/receitas de natureza tributária tal como a aqui ora em questão, processos esses que para actos de natureza jurisdicional correm seus termos nos tribunais tributários de 1.ª instância que para isso são competentes em razão da matéria (cfr. arts. 148.º, 151.º e 276.º do CPPT, 49.º ETAF, 103.º da Lei Geral Tributária - vulgo LGT).
Ora temos assim que o A. dispunha claramente de meio contencioso de natureza executiva para fazer efectivar o seu direito a ser pago das quantias reclamadas das RR., meio esse com o qual se mostrava e mostra assegurado o seu direito à efectivação e acesso à justiça e à tutela daquele seu direito nos termos do art. 20.º da CRP, na certeza de que tal direito de acesso à justiça não tem, para seu cabal e integral cumprimento, de passar necessariamente por uma primeira fase judicial declarativa seguida duma executiva, nem significa que seja ou tenha de ser facultado ao credor a possibilidade de lançar mão de meios contenciosos declarativos e executivos de forma indistinta e a seu belo prazer.
Por outro lado, importa ter presente que o facto do A. não querer usar daquele meio contencioso e/ou não querer fazer uso dos seus poderes em matéria de fixação unilateral das taxas devidas nos termos do Regulamento de Taxas e Licenças pelo mesmo aprovado e pretender usar a via contenciosa declarativa enquanto alegado meio de cobrança de dívida alternativo não conduz à alteração da natureza da “questão” em litígio, clara e inequivocamente fiscal/tributária e que assim permanece, nem muda ou transforma uma “relação jurídica fiscal” numa “relação jurídica administrativa”, na certeza de que apenas quanto às “questões de natureza administrativa” ou que consubstanciem uma “relação jurídica administrativa” os tribunais administrativos deterão ou gozarão de competência material para apreciar e dirimir o litigio que lhe seja submetido (cfr. arts. 212.º, n.º 3 da CRP, 01.º, 04.º, 44.º do ETAF, 02.º, 37.º do CPTA) tanto mais que os mesmos não constituem ou assumem como tribunais com competência residual face aos tribunais tributários.
Decorre do art. 155.º do CPA que quando “… por força de um acto administrativo devam ser pagas a uma pessoa colectiva pública, ou por ordem desta, prestações pecuniárias, seguir-se-á, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, o processo de execução fiscal regulado no Código de Processo Tributário …” (n.º 1), sendo que para “… o efeito, o órgão administrativo competente emitirá nos termos legais uma certidão, com valor de título executivo, que remeterá, juntamente com o processo administrativo, à repartição de finanças do domicílio ou sede do devedor …” (n.º 2).
Resulta, assim do quadro legal aludido e concatenado, que a liquidação e exigência do pagamento de montante devido a título de taxa pela ocupação/utilização do domínio público aéreo do Município aqui A. constitui necessariamente uma “questão fiscal” e que envolve um litígio que tem subjacente uma “relação jurídica fiscal”, pelo que quando o A., por não o haver conseguido obter voluntariamente, pretenda ver efectivado judicialmente aquele seu direito não o poderá fazer perante os tribunais administrativos e com recurso aos meios processuais previstos para o seu contencioso mas antes terá de o fazer perante os tribunais tributários, lançando mão ou fazendo uso dos meios que o ordenamento legal lhe faculta.
Nesta medida, a efectivação do direito ao pagamento daquela taxa e a tutela jurisdicional do mesmo cabem ou competem em termos materiais aos tribunais tributários e, como tal, a decisão judicial recorrida não merece as críticas que lhe foram assacadas pelo A., não lhe assistindo razão na sua argumentação.
*
3.2.2. DA IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO RECONHECIMENTO
Defende, por outro lado, o A./recorrente jurisdicional que a decisão judicial recorrida incorreu em erro de julgamento, fazendo incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 84.º da CRP, 19.º, als. b) e c) da LFL à data vigente (Lei n.º 42/98) na parte em que, conhecendo da pretensão substantiva por si deduzida contra as RR., julgou totalmente improcedente o pedido de reconhecimento e de declaração de que “… a linha eléctrica de ligação entre o parque eólico da Pampilhosa da Serra e a linha a 220Kv, Vila Chã de Pereiros 2 (LVCPR2) atravessa o espaço aéreo do município e algumas estradas e caminhos municipais …”.
Sobre esta questão a decisão judicial em crise fundou-se na seguinte linha argumentativa: “… não obstante o espaço aéreo não estar expressamente previsto no art. 84.º da Constituição da República Portuguesa, não restam dúvidas de que o espaço aéreo constitui domínio público.
Esta asserção encontra apoio no art. 4.º, al. f) do Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de Outubro, diploma ainda em vigor.
Sucede, todavia, que o titular desta categoria de bem dominial é o Estado Português, em conformidade com o normativo citado e não qualquer autarquia local, v.g., um Município.
Realmente, a norma convocada estabelece que integra o domínio público do Estado as camadas aéreas superiores aos terrenos e às águas do domínio público, bem como as situadas sobre qualquer imóvel do domínio privado para alem dos limites fixados na lei em benefício do proprietário do solo.
Quer tanto dizer que todo o espaço aéreo, independentemente de se situar sobre propriedade de privados ou de outros entes públicos, como Municípios, é pertença do Estado Português, não sendo, portanto, legítimo que qualquer outra entidade exija contrapartidas pela sua utilização, designadamente, taxas.
Sem cuidar de explorar o conceito de dominialidade, uma vez que tal questão não é controvertida no caso vertente, importa indagar dos limites do domínio público aéreo, especialmente tendo por referência o direito de propriedade de privados ou mesmos entes públicos.
… O domínio público aéreo, pelas suas características, pertence ao domínio público necessário. O que significa que os bens dominiais de tal natureza não podem pertencer senão ao Estado Português.
Também ANA RAQUEL GONÇALVES MONIZ (…) sufraga a mesma posição, explicitando que pertencem ao domínio público estadual as camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou ao superficiário, integrando-se, por isso, nesse domínio camadas aéreas situadas sobre qualquer imóvel do domínio privado, para além dos limites estabelecidos na lei em benefício do proprietário do solo.
No que ao caso em exame releva, a Mestre ANA RAQUEL MONIZ refere que a principal dificuldade consiste na fixação dos limites da propriedade privada de imóveis, pois que o art. 1344.º do Código Civil limita-se a prescrever que a propriedade (privada) de imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à respectiva superfície, ainda que o proprietário não se encontre legitimado para impedir actos de terceiro que, pela altura em que ocorrem, não haja interesse em impedir.
E conclui a Jurista: Destarte, também o legislador (constitucional e ordinário) renunciou ao estabelecimento dos limites superiores do direito de propriedade privada sobre um imóvel, determinando a partir de que ponto (altitude) se inicia o domínio público aéreo. E mais à frente, o que está em causa é, portanto, a delimitação da fronteira (algo imprecisa) entre o que constituem actos de intromissão na propriedade privada (que, como tais, pressupõem um direito de indemnização na titularidade do proprietário) daqueles actos que, justamente por não constituírem uma intromissão na propriedade privada (atentas as suas possibilidades de utilização), já se não devem compreender como praticados dentro do âmbito desse direito.
A insigne Jurista enumera como exemplos de tais situações, precisamente, a passagem de linhas de alta tensão para transporte de electricidade e de fios telefónicos por cima das propriedades dos particulares, para concluir que tal espaço ainda se considera propriedade privada e, por essa razão, é devida indemnização nessas situações, estando apenas em causa uma servidão pública.
Desta feita, e perante o quadro exposto, é forçosa a conclusão de que não existe qualquer domínio público aéreo municipal.
Concomitantemente, é também de salientar que a passagem de linhas eléctricas atinge apenas o espaço acima do subsolo que ainda é propriedade do proprietário do solo a que se refere. Ou seja, se a propriedade do solo pertence a um particular, o espaço aéreo ocupado por linhas eléctricas ou cabos telefónicos ainda é sua pertença. Isto é, ainda se integra no seu direito de propriedade.
Obviamente, destas considerações decorre que é ilegítimo e ilegal referenciar tal realidade como domínio público municipal, uma vez que ainda no encontramos no domínio de propriedade privada.
De resto, esta é a única interpretação consentânea com o que consagra o art. 1344.º do Código Civil.
Porquanto, o A. não é titular de qualquer bem dominial consubstanciado no espaço aéreo por onde passam as linhas eléctricas descritas no ponto 1 da factualidade provada …”.
Ponderemos da bondade do assim decidido.
Dispõe o art. 84.º da CRP, sob a epígrafe de “domínio público”, que pertencem ao mesmo “… a) As águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos; b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção; d) As estradas; e) As linhas férreas nacionais; f) Outros bens como tal classificados por lei …” (n.º 1), sendo que a “… lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites …” (n.º 2).
E do seu art. 238.º decorre que as “… autarquias locais têm património e finanças próprios …” (n.º 1), que o “… regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau …” (n.º 2) e que as “… receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços ...” (n.º 3), sendo que as “… autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei …” (n.º 4).
Pese embora o quadro constitucional reproduzido verifica-se que, ao invés do que se passa em termos de domínio público estadual (cfr., nomeadamente, DL n.º 477/80, de 15/10, e DL n.º 280/07, de 07/08), inexiste qualquer acto legislativo que, no âmbito do domínio público autárquico, concretize e individualize o conjunto de bens que o integram enquanto bens qualificados como dominiais (atente-se que nem mesmo o DL n.º 280/07, de 07/08, veio suprir tal ausência visto ter introduzido, mormente, apenas disposições gerais e comuns sobre a gestão dos bens imóveis dos domínios públicos do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais), na certeza de que a existência de tal domínio constitui um corolário da autonomia administrativa das autarquias.
Existe, todavia e sem margem para dúvidas, um domínio público autárquico e, em especial, um domínio público municipal, tanto para mais que a sua existência é assumida e afirmada em vários diplomas legais e aceite pela doutrina (cfr., entre outros, António Menezes Cordeiro in: “Tratado de Direito Civil Português”, I - Parte Geral, Tomo II - Coisas, 2.ª edição, pág. 59; Jorge Miranda e Rui Medeiros in: “Constituição da República Anotada” Tomo II, pág. 93; J. Gomes Canotilho e Vital Moreira in: “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, págs. 1004 e 1105; Ana Raquel G. Moniz in: “O Domínio Público - O critério e o regime jurídico da dominialidade” págs. 123, 124 e em “Domínio Público Local - noção e âmbito” in: “Domínio Público Local”, Junho 2006, págs. 07 e segs.).
Assim e em termos legislativos, resulta desde logo da Lei n.º 169/99, de 18/09 (diploma que estabelece quadro de competências e regime jurídico de funcionamento, dos órgãos dos municípios e das freguesias) quando no art. 53.º, n.º 4, al. b) dispõe que é “… também da competência da assembleia municipal, sob proposta da câmara municipal: … b) Deliberar sobre a afectação ou desafectação de bens do domínio público municipal, nos termos e condições previstos na lei …” e no art. 64.º, n.º 7, al. b) se prevê que compete “… ainda à câmara municipal: …b) Administrar o domínio público municipal, nos termos da lei …” (sublinhados nossos).
Também decorre do art. 44.º do RJUE, relativo a “cedências”, que o “… proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o prédio a lotear cedem gratuitamente ao município as parcelas para implantação de espaços verdes públicos e equipamentos de utilização colectiva e as infra-estruturas que, de acordo com a lei e a licença ou comunicação prévia, devam integrar o domínio municipal” (n.º 1), sendo que as “… parcelas de terreno cedidas ao município integram-se no domínio municipal com a emissão do alvará ou, nas situações previstas no artigo 34.º, através de instrumento próprio a realizar pelo notário privativo da câmara municipal no prazo previsto no n.º 1 do artigo 36.º, devendo a câmara municipal definir no momento da recepção as parcelas afectas aos domínios público e privado do município” (n.º 3) (sublinhados nossos).
Resulta, por seu turno, do art. 19.º da LFL à data vigente, sob a epígrafe de “taxas dos municípios”, que estes “… podem cobrar taxas por: … b) Concessão de licenças de loteamento, de licenças de obras de urbanização, de execução de obras particulares, de ocupação da via pública por motivo de obras e de utilização de edifícios, bem como de obras para ocupação ou utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal; c) Ocupação ou utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal e aproveitamento dos bens de utilidade pública …” (sublinhados nossos).
Ressuma, assim, do quadro legal ora trazido à colação a existência dum domínio público municipal, domínio esse que constitui uma imposição derivada da própria Lei Fundamental, sendo que o fundamento do carácter público dos bens integrados naquele domínio está associado à sua primacial utilidade colectiva enquanto indispensáveis para a satisfação normal e regular das necessidades colectivas dos munícipes.
Na verdade, subjacente ao domínio público está inequivocamente a satisfação de necessidades colectivas e, nessa medida, a prossecução de interesses públicos pelas demais pessoas colectivas de direito público, mormente as autarquias locais que são titulares do direito de propriedade pública sobre os bens do domínio público.
Como vimos supra a CRP em sede de enumeração dos bens do domínio público estadual inclui no mesmo as “camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário”, constituindo tal domínio público aéreo um dos bens que integram o denominado “domínio público natural” [que integra os bens cuja existência e estado resultam de fenómenos naturais - art. 84.º, n.º 1, als. a), b) e c) da CRP] por contraposição com o chamado “domínio público artificial” [composto pelos bens cuja existência e estado são produto da intervenção do homem - art. 84.º, n.º 1, als. d) e e) da CRP].
A propósito do domínio público aéreo refere António Menezes Cordeiro que o mesmo “… começa para lá da altitude onde o interesse do proprietário já não chega …” (in: ob. cit., pág. 67; vide, no mesmo sentido, Marcello Caetano in: “Manual de Direito Administrativo”, Vol. II, 10.ª edição, pág. 906; Jorge Miranda/Rui Medeiros quando referem que “… o domínio público aéreo tem início a partir da altitude que o proprietário já não tem interesse legítimo em impedir quaisquer actos de terceiro … in: ob. cit., pág. 78; Ana Raquel G. Moniz in: ob. cit., págs. 197 a 199) [cfr. ainda art. 04.º, al. f) do DL n.º 477/80, de 15/10, 1305.º e 1344.º, n.º 1 do CC], gozando cada Estado de soberania completa e exclusiva sobre o espaço aéreo que cobre seu território (incluindo as águas territoriais - cfr. art. 01.º da Convenção de Chicago da Aeronáutica Civil de 07/12/1944 - aprovada por ratificação pelo DL n.º 36158, de 17/02/1947 e ratificada por Carta de 28/04/1948) e para além dos limites da atmosfera (espaço atmosférico) temos o denominado espaço exterior («outer space») o qual é considerado internacional, possuindo regime similar ao do alto mar [cfr. arts. I, II, III e IX do Tratado sobre Princípios que regem as Actividades dos Estados na Exploração e Utilização do Espaço Exterior, incluindo a Lua e Outros Corpos Celestes - anexo ao DL n.º 286/71, de 30/06].
Sustentam J. Gomes Canotilho e Vital Moreira que compete “… à lei a determinação do sujeito titular dos diversos tipos de bens do domínio público, embora pareça natural que certos bens não podem deixar de integrar o domínio público do Estado, por serem inerentes ao próprio conceito de soberania (como sucede com o domínio público marítimo e aéreo), não podendo por isso pertencer ao domínio público de entes públicos infra-estaduais. Já assim não sucede, ou não tem de suceder, por exemplo, em relação ao domínio público hídrico (não marítimo), rodoviário, ferroviário e aeroportuário (estradas, ferrovias e aeroportos nacionais, regionais e locais), ou até ao domínio público geológico, designadamente quando tais bens não estejam vinculados territorialmente ou funcionalmente ao exercício de direitos dominiais soberanos …” (in: ob. cit., págs. 1004 e 1005).
E Ana Raquel G. Moniz sustenta que se atentarmos “… nos diversos tipos de bens qualificados como dominiais, compreendemos que para o domínio público autárquico fica uma parcela do domínio público rodoviário e hidráulico, bem como os cemitérios. Efectivamente, decorre, desde logo, do DL n.º 477/80, mas também de outros diplomas avulsos, que os demais tipos de coisas classificados como dominiais integram o domínio público estadual, salvaguardados os casos em que, por força do disposto nos estatutos político-administrativos das regiões autónomas, se incluem no domínio público regional…” (em “Domínio Público Local - noção e âmbito” in: “Domínio Público Local”, Junho 2006, pág. 19), referindo a propósito do domínio público infra-estrutural rodoviário que “…, pertencem ao domínio público municipal as vias de comunicação públicas propriamente ditas - onde se englobam as vias de circulação, o respectivo subsolo e o espaço aéreo correspondente, os passeios, plantas, muros de sustentação, sinais de trânsito, obras de arte, túneis e todas as coisas singulares úteis ao desempenho da função pública determinante da dominialidade das estradas -, assim como as praças e os espaços verdes associados.
… Repare-se, porém, que se impõe uma cautela especial quando se afirma a pertinência ao domínio público rodoviário do espaço aéreo sobrejacente e do subsolo subjacente ao terreno onde está construída a via pública. Os problemas podem surgir, desde logo, em virtude da necessária destrinça a efectuar entre este espaço aéreo (submetido ao regime típico do domínio rodoviário) e o domínio público aéreo.
… A ausência de uma uniformidade e o reconhecimento do carácter não monolítico do regime da dominialidade avolumam as questões: basta atentar que enquanto o domínio rodoviário integra o que designámos como domínio público formal, podendo, por isso, constituir objecto de uma maior flexibilização e encontrar-se na titularidade de entidades públicas que não o Estado, o domínio aéreo inclui-se no domínio público material, impreterivelmente sujeito ao direito de propriedade pública estadual …” (loc. cit., págs. 21 e 22).
Também João Caupers sustenta, em parecer jurídico junto aos autos, que “… o domínio público municipal abrange hoje, seguramente, não apenas a superfície das vias públicas, mas também o subsolo das mesmas, bem como o espaço aéreo sobrejacente. … não é necessária qualquer utilização do solo, subsolo ou espaço aéreo - é suficiente a mera ocupação para legitimar a cobrança da taxa …”.
Posicionamento semelhante é defendido por Pedro Gonçalves, também em parecer inserto nos autos, quando refere e passa-se a citar que apesar “… das dúvidas que - por causa da ausência dessa disciplina legislativa geral - possam suscitar-se quanto à sua extensão, não sofre todavia discussão a existência jurídica de um domínio público municipal.
… As interrogações que podem colocar-se neste âmbito não têm portanto a ver com a existência de um domínio público dos municípios, que é indiscutível, mas sim com a identificação dos bens que em concreto o integram. Porém, mesmo quanto a este aspecto, …, há dados legais bastantes para considerar com toda a segurança a existência de um domínio público municipal da circulação rodoviária.
… As estradas municipais são pois, ex constitutione, bens pertencentes ao domínio público municipal: para esse efeito, o conceito de estradas municipais há-de abranger todas as vias de comunicação terrestre não incluídas no plano rodoviário nacional (v.g.,os chamados caminhos municipais), desde que não sejam caminhos vicinais (pois estes pertencem ao domínio público da freguesia); por outro lado, o mesmo conceito abrange ainda as obras de arte acessórias da estrada, bem como as ruas, praças, passeios e jardins que existem no leito das estradas ou instaladas como resultado do seu prolongamento ou alargamento. Todos esses espaços ou vias, na medida em que sejam criados, preparados ou simplesmente reservados e conservados pelos municípios para permitir a circulação de pessoas e de veículos constituem bens do domínio público municipal da circulação.
… sublinhe-se contudo que o facto de se aceitar que, por exemplo, o subsolo ou o espaço aéreo das vias municipais de circulação podem não estar - ou podem deixar de estar - abrangidos pelo regime do domínio público municipal não significa naturalmente que os municípios deixem de ser proprietários daquelas camadas sub ou sobrejacentes. O que sucede é que, nessa hipótese, em relação a tais volumes, eles passam então a ser proprietários no regime do direito privado. Improcede assim, e totalmente, o argumento segundo o qual os municípios não poderiam, por exemplo, exigir uma contrapartida às empresas de rede pela utilização do subsolo ou do espaço aéreo, por não estar em causa a utilização do domínio público. Sendo verdade que em tal hipótese, eles não poderiam cobrar taxas, o poder de exigir o pagamento de um preço por essa utilização afigurar-se-ia contudo incontestável ...”.
E mais adiante sustenta que “… se, pelo menos em regra, o direito de ocupação não permite a ocupação imediata sem uma autorização caso a caso -, é então legítimo questionar a efectiva existência de um benefício para a entidade que ostenta no seu estatuto o direito de ocupação do domínio público.
… importa esclarecer que a exigência de licenciamento da ocupação do domínio público municipal abrange a ocupação ou a utilização do solo, mas também do subsolo e do espaço aéreo correspondente à superfície do bem em causa. Como vimos acima, ainda que o âmbito material do · direito de propriedade pública sobre imóveis possa não ter a extensão definida no artigo 1344.º/1 do Código Civil, não há qualquer fundamento para - sem base legal ou sem uma pronúncia da Administração a efectuar a separação vertical - distinguir o regime jurídico aplicável ao uso do solo, por um lado, e o regime aplicável ao uso do subsolo e do espaço aéreo, por outro.
Por outro lado, …, do conteúdo do direito de propriedade pública faz parte o poder de licenciar o uso privativo das coisas sobre que o direito incide. É certo que a lei pode retirar essa faculdade ao proprietário, restringindo assim o direito de propriedade pública. Mas essa restrição tem de ser explícita, de modo que, quando assim não for, a entidade titular do direito de ocupação não fica dispensada de obter a necessária licença de ocupação. No caso dos municípios, o poder de atribuir essa licença cabe à câmara municipal, o que faz no exercício das suas competências de administração do domínio público municipal …”.
Para concluir que é “… indiscutível a existência jurídica de um domínio público municipal da circulação rodoviária e pedonal, que abrange as estradas municipais, obras de arte acessórias, bem como as ruas, praças, passeios e jardins ...”, que sobre “… as coisas que integram o domínio público municipal incide um direito de propriedade, o designado direito de propriedade pública …” e que tratando-se “… de imóveis, o direito de propriedade pública abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, nos termos do artigo 1344.º/1 do Código Civil. Só não é assim, quando a lei ou o próprio titular do domínio público estabelecerem a separação vertical dos regimes jurídicos a que ficam submetidas as várias camadas ou volumes sobre que o direito de propriedade incide …”, sendo que “… o conteúdo típico do direito de propriedade pública inclui o poder de o proprietário consentir o uso privativo da coisa, quando este uso não afectar o uso comum que está na razão de ser do regime da dominialidade, bem como o poder de cobrar taxas por aquele uso …”.
Valendo-nos dos ensinamentos doutrinais colhidos temos para nós que, no âmbito do nosso ordenamento, existe efectivamente apenas um domínio público aéreo estadual ou nacional, não havendo um domínio público aéreo municipal.
Na verdade, não podemos afirmar a existência dum domínio público aéreo de cada município constituído ou correspondente aos respectivos limites territoriais e que comece para lá da altitude onde o interesse dos proprietários já não chegue.
Todavia, daqui não se pode concluir que os municípios não sejam detentores de espaço aéreo sobrejacente ao seu domínio público, mormente, ao domínio público rodoviário e que sobre esse espaço os mesmos não possam ou não devam exercer seus poderes de administração, efectivando dessa forma seus direitos e interesses.
É que é o próprio legislador ordinário a reconhecer a sua existência e a conferir tais poderes aos municípios quando, como vimos na LFL à data vigente [cfr. art. 19.º, als. b) e c)], se previa que os municípios “… podem cobrar taxas por: … b) Concessão de licenças … de obras para ocupação ou utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal; c) Ocupação ou utilização do solo, subsolo e espaço aéreo do domínio público municipal e aproveitamento dos bens de utilidade pública …”.
E reconhecendo a existência daquele espaço, embora reportando-se a caso de ocupação de subsolo, pode ler-se na argumentação expendida pelo STA/Secção Contencioso Tributário no seu acórdão de 09/05/2007 (Proc. n.º 01223/06 in: «www.dgsi.pt/jsta») o seguinte “… importa salientar que, no caso em apreço, o tributo liquidado está conexionado com a utilização de terrenos do domínio público e nem sequer é controvertido que se trate de subsolo de bens integrados no domínio público municipal.
Nos termos do art. 1.344.º, n.º 1, do Código Civil, “a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico” e não há qualquer lei especial que, relativamente a bens do domínio público, restrinja os limites materiais do direito de propriedade.
Por outro lado, o art. 19.º, alínea c), da Lei n.º 42/98 de 6/8 (Lei das Finanças Locais) revela claramente que o domínio público municipal abrange o solo, subsolo e o espaço aéreo” (sublinhados nossos).
Revertendo à situação “sub judice” temos que no caso vertente está em discussão, em nosso entendimento, o aferir da existência no âmbito do domínio público municipal dum espaço aéreo, seus limites ou como o mesmo se delimita ou define, espaço esse que terá sido ocupado/utilizado alegadamente pelas RR..
Cremos, assim, que a questão em apreciação foi em parte erradamente percepcionada na decisão judicial em crise, para o que em parte terá contribuído o próprio A. quando a dado passo alega a linha eléctrica tem “… uma extensão de … atravessando o espaço aéreo do Município e algumas estradas e caminhos municipais …” (cfr. arts. 18.º e 19.º da petição inicial).
Com efeito, cotejando devidamente toda a alegação na sua concatenação com a pretensão/pedido formulado, não estaria em causa nos autos o apreciar da existência legal dum alegado domínio público aéreo municipal por contraposição com o domínio público aéreo estadual/nacional e, nessa medida, a conclusão de que inexiste um domínio púbico aéreo municipal e, por consequência, teria de improceder a pretensão do A. não tem que ver com aquilo que efectivamente se mostra submetido a juízo.
Temos, para nós, que aquilo que neste momento constitui objecto de apreciação, face ao supra decidido sob o ponto 3.2.1), é o determinar não se existe um domínio público aéreo municipal, mas antes se existe ocupação/utilização por parte da linha eléctrica implantada pelas RR. de espaço aéreo do domínio público municipal, como é que este se delimita com consequente definição da extensão de ocupação/utilização (esta igualmente controvertida entre as partes - cfr. arts. 09.º, 17.º, 18.º e 19 da petição inicial e art. 15.º a 18.º da contestação).
Ora do domínio público municipal fazem parte integrante, como vimos, nomeadamente os bens que façam parte do domínio infra-estrutural rodoviário (estradas e caminhos municipais com tudo o que neles se integra nos termos supra explicitados e citando Ana Raquel G. Moniz), o domínio hidráulico concelhio, os cemitérios, os espaços verdes públicos, equipamentos de utilização colectiva e infra-estruturas que integrem o domínio público municipal (v.g., as cedências de parcelas decorrentes do art. 44.º do RJUE que o venham a integrar).
Nessa medida, a utilização/ocupação por particulares, no caso pelas RR., do espaço aéreo daquele domínio público municipal nos termos definidos a existir importa ser determinada e apurada em concreto nos autos, de molde a determinar quer a sua existência quer a sua extensão.
Note-se que o facto de se considerar como incorrecta ou errada a alegação de que o espaço aéreo do domínio público municipal ocupado alegadamente pelas RR. corresponda à medição de todo o território atravessado pela linha eléctrica independentemente de quem sejam os donos dos imóveis atravessados e/ou de tudo aquilo que é atravessado pela referida linha, tal não gera automática e necessariamente a improcedência total do pedido.
Tal só poderia ocorrer uma vez provado que a linha eléctrica em questão atravessa o território do Município A. sem todavia ocupar/utilizar qualquer espaço aéreo do domínio público municipal, mormente, por o fazer, por exemplo, em exclusivo sobre terrenos de outros particulares.
Verifica-se, todavia, que as RR. admitem o atravessamento do espaço aéreo do domínio público municipal, embora sendo controvertida a sua extensão, realidade essa que importa apurar e conhecer para dessa forma solucionar o litígio ou diferendo que opõe A. e RR., na certeza de que apenas assiste ao A. o direito de ver reconhecido e declarada a ocupação quanto ao espaço aéreo do domínio público municipal e nunca o espaço aéreo do município.
Daí que, mercê do atrás exposto, não se pode manter neste segmento na totalidade a decisão judicial em crise e se imponha o prosseguimento dos autos com remessa dos mesmos ao tribunal “a quo” para que este, fazendo uso dos poderes e mecanismos previstos em matéria de saneamento processual e selecção da matéria de facto (arts. 508.º e segs. do CPC “ex vi” art. 01.º e 42.º do CPTA) e uma vez procedido à instrução probatória e realizado o competente julgamento, emita pronúncia sobre a pretensão formulada pelo A. nos autos considerando o enquadramento e desenvolvimento expendido na presente decisão quanto à questão substantiva em apreço, seus contornos e limites.
4. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202.º da Constituição da República Portuguesa, em:
A) Conceder parcial provimento ao recurso jurisdicional “sub judice” e, consequentemente, revogar a decisão judicial recorrida no segmento em que julgou desde logo totalmente improcedente o pedido de reconhecimento e de declaração quanto à existência e extensão do atravessamento por parte da linha eléctrica em referência do espaço aéreo do domínio público municipal do A., mantendo-se no mais o ali decidido;
B) Determinar a remessa dos autos ao TAF de Coimbra para prosseguimento dos ulteriores termos dos autos de harmonia com os considerandos supra expendidos.
Custas em 1.ª instância em proporção a fixar a final.
Custas nesta instância a cargo do A. e RR., em partes iguais, sendo que na mesma a taxa de justiça é reduzida a metade [cfr. arts. 73.º-A, n.º 1, 73.º-E, al. a), 18.º, n.º 2 todos do CCJ, 446.º do CPC e 189.º do CPTA].
Notifique-se. D.N..
Restituam-se, oportunamente, aos ilustres mandatários das partes os suportes informáticos gentilmente disponibilizados.
Processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator (cfr. art. 138.º, n.º 5 do CPC “ex vi” art. 01.º do CPTA).
Porto, 26 de Março de 2009
Ass. Carlos Luís Medeiros de Carvalho
Ass. José Augusto Araújo Veloso
Ass. Maria Isabel São Pedro Soeiro