Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Tributário
Contencioso:TRIBUTÁRIO
Data:05/07/2007
Processo:01802/07
Nº Processo/TAF:136/07.7BELRA
Magistrado:CARLOS BATISTA
Descritores:SIGILO BANCÁRIO
DERROGAÇÃO
PRESSUPOSTOS DA DERROGAÇÃO
CRIME FISCAL
Texto Integral:Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores


O Ministério Público vem emitir parecer nos termos seguintes:


1 – J ….. recorre da sentença proferida pelo Mº Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou improcedente o recurso apresentado da decisão do Director Geral dos Impostos, a qual determinou o levantamento do sigilo bancário sobre as contas bancárias de que é titular.

Após alegações formulou cinquenta e uma (51) conclusões, distribuídas por quase oito (8) páginas, que procuraremos sintetizar como segue:

a) A decisão do Director-Geral dos Impostos de 18/01/2007, que autoriza a derrogação do dever de sigilo bancário ao recorrente, é omissa relativamente ao âmbito temporal, designadamente sobre os anos visados para levantamento do sigilo bancário;

b) Incorrendo, por isso, na violação do disposto no artigo 26º da Constituição, do princípio do Estado de Direito democrático consagrado nos artigos 2º e 9º, alínea b) e ainda violação do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (necessidade, adequação e proporcionalidade) com assento no disposto no nº 2 do artigo 18º e no nº 2 do artigo 266º da CRP;

c) A decisão remete para informações em que o normativo indicado no parecer e despachos concordantes não apresentam correlação com o indicado na decisão;

d) O que torna a fundamentação insuficiente por não ser clara, inteligível e congruente;

e) Por outro lado, a decisão do Director-Geral dos Impostos não imputa qualquer crime ao recorrente;

f) Inexistindo prova concludente que permitisse à administração tributária em tempo útil proceder à liquidação adicional de sisa aos compradores, não há base tributável que sirva de mote à correcção do IR do recorrente.

O Senhor Director-Geral dos Impostos defende a douta sentença recorrida, pugnando pela improcedência do recurso.

2 – Já após a admissão do recurso, vem o recorrente Impugnar a atribuição de efeito devolutivo ao recurso defendendo que o recurso deve ter efeito suspensivo da sentença proferida em 1ª Instância, uma vez que a atribuição de efeito devolutivo permitiria que a Administração Fiscal pudesse ter acesso às contas bancárias do recorrente afectando, assim, o efeito útil do recurso.
Nesta parte, entendemos que o recorrente tem razão.
Nos termos do nº 2 do artigo 286º do CPPT, os recursos têm efeito meramente devolutivo, salvo se for prestada garantia ou o efeito devolutivo afectar o efeito útil dos recursos.
Ora, a possibilidade de execução da sentença antes do seu trânsito permitiria, de facto, à AF ter acesso às contas bancárias do recorrente, matéria que está em causa neste mesmo recurso, assim se defraudando a finalidade da sua interposição.
De resto, conforme se refere no Ac. deste TCA Sul, de 05/12/2006, Processo 01485/06 “Nos processos especiais de derrogação do sigilo bancário, entendemos, que o efeito do recurso da decisão judicial em apreço terá que ser o suspensivo, nos termos do nº 2 do art. 286 do CPPT” (no mesmo sentido, cfr. Acs. deste TCA, de 29/11/2005 e de 28/11/2006, nos Processos 827/05 e 1066/06, respectivamente).
Assim sendo, deve ser deferida a pretensão do recorrente, fixando-se ao recurso efeito suspensivo.

3 – Salvo o devido respeito, a decisão do Senhor Director-Geral dos Impostos não é omissa relativamente ao âmbito temporal nem sofre de insuficiente fundamentação.
Com efeito, a fundamentação do acto e a notificação da fundamentação são realidades diversas, apenas a primeira constituindo vício de forma determinante da sua anulabilidade (cf. Ac. do STA de 09.09.99, Proc. 23 773, de que foi Relator o Ex.mo Cons.º Brandão de Pinho).
Nos termos do artigo 77º, nº 1 da LGT, que corresponde ao artigo 125°, nº 1, do CPA, “A decisão de procedimento é sempre fundamentada por meio de sucinta exposição das razões de facto e de direito que a motivaram, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, incluindo os que integrem o relatório da fiscalização tributária”.
A fundamentação “per relationem”, expressamente prevista no preceito transcrito, consiste na remissão expressa para os termos de uma informação, parecer ou proposta que contenha, ela mesma, a motivação do acto, de tal modo que uma declaração de concordância sobre elas exarada deve ser entendida no sentido de que o acto administrativo absorveu e se apropriou da respectiva motivação ou fundamentação, que, assim, dele ficará a fazer parte integrante, sendo também admissível a fundamentação por dupla remissão, ou seja, que o acto remeta para uma peça processual que, por seu turno, remeta para outra, desde que ambas se encontrem no processo, e daí não resulte demasiada complexidade na fundamentação (cf. Acs. TCA, de 16/01/03, Recurso 6029/02 e de 09/01/03, Recurso 5504/01).
A decisão do Senhor Director-Geral, de 18/01/2007, absorveu os termos e os fundamentos constantes das Informações datadas de 14/11/2006 e de 03/01/2007, que mereceram a concordância do Coordenador, do Chefe de Divisão, do Director de Finanças Adjunto e do Director de Finanças de Santarém, bem como “do teor dos pareceres e despachos que sobre as mesmas recaíram (…)”.
As declarações de concordância exaradas sobre aquelas Informações devem ser entendidas no sentido de que o acto administrativo consubstanciado na decisão do Senhor Director-Geral dos Impostos absorveu e se apropriou da respectiva motivação ou fundamentação, que, assim, dele ficou a fazer parte integrante,
E a jurisprudência vai no sentido de que “não é insuficiente a fundamentação do acto administrativo cujo iter lógico dá a saber a um destinatário normal o necessário para que opte conscientemente pela aceitação da legalidade do acto ou pelo contencioso do mesmo” (Ac. do STA de 23.04.97, Recurso 20 168. No mesmo sentido, cf. Ac. do TT de 2ª Instância, de 10.03.92, P. 60 860, in CTF. 367/121 e Ac. Do STA de 11.11.98, 2ª Secção – Pleno, Recurso 20 168).

Ora, nos termos daquelas Informações propunha-se que fosse “solicitada junto de Sua Ex.ª o Sr. Director Geral dos Impostos, a derrogação do dever de sigilo bancário ao abrigo do nº 3 do artigo 63º-B da LGT, relativamente aos anos de 2002 a 2004”.
Acresce que, na notificação do “projecto de decisão” identificam-se, igualmente, os anos em que se pretende derrogar o dever de sigilo bancário (anos de 2002 a 2004).
O facto de a decisão do Senhor Director-Geral dos Impostos não mencionar, ela própria, os anos a que respeitava a derrogação não afecta a sua validade, uma vez que as informações, pareceres e “projecto de decisão” (que haviam sido absorvidos por aquela decisão do Senhor Director-Geral) continham referência aos anos de 2002 a 2004.
E não se descortina como isso pode violar a CRP, nomeadamente os preceitos citados pelo recorrente.
Assim sendo, não se verifica o invocado vício de forma, por insuficiência de fundamentação.

4 – É certo que existe divergência entre o normativo indicado pelo Senhor Director-Geral dos Impostos e os pareceres prestados nas Informações. Nestas menciona-se o nº 3 do artigo 63º-B da LGT (cfr. fls. 10 e 207 do Processo Instrutor), nos pareceres refere-se a alínea a) do nº 1 do mesmo artigo (fls. 2 e 217 do PI) e a decisão do Senhor Director-Geral enquadra a situação na alínea c) do nº 2 do referido artigo 63º-B da LGT.
Porém, como se diz na douta sentença recorrida ”O que vincula a Administração não é o parecer, mas a decisão proferida e esta não contem qualquer divergência”.

5 - A questão essencial a decidir é a de saber se, no caso dos autos, se encontravam preenchidos os pressupostos legais para a derrogação do sigilo bancário e se os mesmos foram, indiciariamente, imputados ao Recorrente.

A decisão de revogação do sigilo bancário objecto da douta sentença recorrida foi efectuada ao abrigo do artigo 63º-B, n.º 2, alínea c), da Lei Geral Tributária (LGT), na redacção da Lei 30-G/2000, de 29/12.
Estabelece a citada disposição, sob a epígrafe Acesso a informações e documentos bancários”
“1- (…).
2- A administração tributária tem o poder de aceder a todos os documentos bancários, excepto as informações prestadas para justificar o recurso ao crédito, nas situações de recusa de exibição daqueles documentos ou de autorização para a sua consulta:
(…)
c) Quando existam indícios da prática de crime doloso em matéria tributária,
designadamente nos casos de utilização de facturas falsas, e, em geral, nas
situações em que existam factos concretamente identificados gravemente
indiciadores da falta de veracidade do declarado”.

Sobre os pressupostos para a derrogação do sigilo bancário, existe imensa jurisprudência quer dos TCAs quer do STA, nomeadamente, Acs. do TCA Norte de 20/12/2005, Proc. 00494/04, de 01/12/2005, Proc. 00496/05; Ac. deste TCA Sul de 17/01/2006, Proc. 00899/05, de 2006/03/07, Proc. 1066/06, de 29/11/2005, Proc. 00846/05 e de 03/08/2005, Proc. 00511/05, de 7/11/2006, Proc. 1410/06 e Acs. do STA de 19/4/2006, Proc. 0276/06 e de 14/03/2007, Rec. 189/07.

De acordo com a jurisprudência citada, a AT pode proceder à derrogação do sigilo bancário, nos casos em que o contribuinte recuse autorização para esta aceder aos seus elementos bancários, desde que existam indícios da prática pelo mesmo de um crime doloso em matéria tributária, designadamente nos casos de utilização de facturas falsas, e em geral, nas situações em que existam factos concretamente identificados gravemente indiciadores da falta de veracidade do declarado.
Assim, quer os factos subsumíveis à primeira parte da norma – utilização de facturas falsas - quer os subsumíveis à segunda parte – factos concretamente identificáveis gravemente indiciadores da falta de veracidade do declarado - só autorizam esta derrogação do sigilo bancário se integrarem a prática de um tipo de crime doloso em matéria tributária.

Deve, assim, ser feita uma referência ao concreto ilícito penal e à concreta norma incriminadora e, ainda, deve ser indicada qual a vantagem patrimonial obtida pelo contribuinte.

No caso dos autos, como se vê pela matéria de facto dada como provada, o Recorrido, na decisão a autorizar o acesso às contas bancárias do Recorrente remeteu para as informações da Inspecção Tributária da Direcção de Finanças, bem como para os pareceres que sobre a mesma recaíram.
Nessas informações e pareceres constam os factos que consubstanciam o crime previsto no artigo 103º do RGIT.

Por outro lado, encontra-se igualmente provada factualidade que permite pôr em causa a presunção de veracidade da declaração apresentada pelo recorrente.
Esses factos são, entre outros, os seguintes:
· Nos exercícios de 2002 a 2004, o recorrente alienou várias fracções autónomas de prédios em regime de propriedade horizontal por si construídos, localizados nos concelhos de Santarém e Torres Novas;

· No decurso do procedimento de inspecção, constataram-se diversas divergências entre os valores declarados como preço de venda nas escrituras celebradas com os adquirentes para titular as aquisições e os elementos recolhidos pela Inspecção Tributária que indiciam que os valores declarados nas escrituras não correspondem ao preço efectivamente recebido pelo recorrente;

· A verificação destas divergências resultou do confronto entre os valores declarados nas escrituras públicas e os seguintes documentos:

o Contratos promessa de compra e venda fornecidos pelos Serviços Municipalizados de Santarém e de Torres Novas;

o Documentos bancários apresentados por alguns dos adquirentes das fracções;

o Documentos bancários fornecidos por instituições bancárias em consequência de autorizações de alguns adquirentes das fracções.

o Informações escritas prestadas por adquirentes das fracções.

Em consequência destes elementos foi possível apurar que, no decurso dos anos de 2002 a 2004, o recorrente omitiu proveitos em sede de IRS, no montante de € 346 612,17, correspondente aos valores constantes das escrituras e aos valores reais das vendas.

Assim, e a título meramente exemplificativo, dir-se-á que:
· J ….. adquiriu ao recorrente uma fracção por € 114 723,52, constando da escritura pública de compra e venda apenas o valor de € 94 772,00, a que corresponde a diferença de € 19 951,52;

· G ….. adquiriu uma fracção pelo montante de € 95 000,00, embora da escritura de compra e venda apenas conste o valor de € 77 000,00, havendo, assim, uma diferença de € 18 000,00.


Quer estes quer outros adquirentes (todos indicados a fls. 32 e 33) efectuaram voluntariamente o pagamento da sisa liquidada adicionalmente e respectivos juros compensatórios.

Estes factos concretamente identificáveis são gravemente indiciadores da falta de veracidade do declarado pelo recorrente e indiciam a prática de crime doloso em matéria tributária.
Senão vejamos:
O eventual crime em matéria tributária seria, necessariamente, o crime de fraude fiscal, p. e p. pelo artigo 103º do RGIT, que estabelece:
“1 - Constituem fraude fiscal, punível (…) as condutas ilegítimas tipificadas no presente artigo que visem a não liquidação, entrega ou pagamento da prestação tributária ou a obtenção indevida de benefícios fiscais, reembolsos ou outras vantagens patrimoniais susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias. A fraude fiscal pode ter lugar por:
“a) Ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas, a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine avalie ou controle a matéria colectável;
“b) Ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária;
“c) Celebração de negócio simulado, quer quanto ao valor, quer quanto à natureza, quer por interposição, omissão ou substituição de pessoas”.
“2 – Os factos previstos nos números anteriores não são puníveis se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a € 7500. (esta importância foi aumentada para 15 000 € pela Lei 60-A/05, de 30/12).
“3 – (…)”.

O artigo 63º-B, nº 2, alínea c), da LGT não exige a prova da existência do ilícito criminal em causa, bastando-se com a existência de indícios.
Ora, de acordo com o disposto no artigo 283º, nº 2, do CPPenal, consideram-se suficientes os indícios sempre que dos mesmos resultar uma possibilidade razoável de, ao arguido e em sede de julgamento, vir a ser aplicada uma pena ou uma medida de segurança, ou, por outras palavras, quando seja de considerar mais provável a condenação do que a absolvição do agente da infracção.

"In casu", toda a factualidade constante dos autos indicia fortemente a omissão de valores declarados nas escrituras de compra e venda de fracções autónomas vendidas pelo recorrente, daí decorrendo para o recorrente uma vantagem ilegítima de € 346 612,17, correspondente aos proveitos não declarados em sede de IRS.

Face ao montante da vantagem ilegítima em causa é despicienda a questão de saber se esta constitui um elemento do tipo legal de crime ou apenas uma condição de punibilidade (como é nosso entendimento)

A “vantagem patrimonial ilegítima”, é constituída pelo montante do imposto que deveria ter sido e não foi entregue nos cofres do Estado pelos contribuintes em virtude da conduta dos mesmos.
Ora, como se vê pela matéria de facto provada, da decisão do Director Geral dos Impostos e das informações e pareceres para as quais a mesma decisão remete, constam todos os elementos do tipo do crime de fraude fiscal p. e p. pelo artigo 103º do RGIT, incluindo o montante da vantagem patrimonial ilegítima.

Estando, assim, reunidos os pressupostos para que seja concedida a pretendida derrogação do sigilo fiscal, bem andou a decisão recorrida ao julgar improcedente o recurso apresentado da decisão do Director Geral dos Impostos, a qual determinou o levantamento do sigilo bancário sobre as contas bancárias de que são titulares os recorrentes.

6 – Por outro lado, o facto de não ser possível à Administração Tributária proceder, em tempo útil, à liquidação adicional de SISA aos compradores das fracções em nada contende com a tributação, em sede de IRS, dos proveitos omitidos pelo recorrente na venda daquelas fracções.
Com efeito, a eventual caducidade da liquidação adicional de SISA aos compradores não significa que o preço declarado nas escrituras de compra e venda corresponda ao preço real.

7 – Em face do exposto e em conclusão, emito parecer no sentido da improcedência do presente recurso, mantendo - se a douta sentença recorrida nos seus precisos termos, por se afigurar que a mesma não enferma de qualquer ilegalidade ou de erro de interpretação e aplicação dos normativos legais aplicáveis.