Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Tributário
Contencioso:TRIBUTÁRIO
Data:03/13/2007
Processo:01653/07
Nº Processo/TAF:166/03 - ALMADA
Magistrado:CARLOS BATISTA
Descritores:IVA
INEXISTÊNCIA DE FACTO TRIBUTÁRIO
DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA
NULIDADE DA NOTIFICAÇÃO DAS LIQUIDAÇÕES
INCOMPETÊNCIA DO AUTOR DAS CORRECÇÕES E DAS LIQUIDAÇÕES
Texto Integral:Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores


O Ministério Público vem emitir parecer nos termos seguintes:


1 – C ….. veio interpor o presente recurso jurisdicional da douta sentença de fls. 195 a 214, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, que julgou totalmente improcedente a impugnação judicial que havia deduzido contra as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios relativas aos anos de 1996 a 1999.

O recorrente, citado para os termos da execução fiscal nº 2160-01/101026.3, veio deduzir a impugnação judicial ora em causa na qualidade de devedor subsidiário da E ….. , LDA.
Os argumentos apresentados são semelhantes aos que esta sociedade aduziu na Impugnação Judicial que deu origem ao Processo nº 01496/06, que subiu em recurso a este TCA e onde nos coube emitir parecer.

2 – Na minha perspectiva, a sentença recorrida não merece censura, dado haver feito correcta interpretação e aplicação da lei à factualidade apurada.

São as seguintes as questões levantadas pelo recorrente:


I – INEXISTÊNCIA DO FACTO TRIBUTÁRIO


Entende o recorrente que é à AT que incumbe o ónus da prova do facto tributário, ou seja, das operações que determinaram a liquidação adicional de IVA, atenta a presunção de veracidade das declarações dos sujeitos passivos, prova que não logrou fazer.

O nº 1 do artigo 76º do CPT estabelecia que o processo de liquidação se instaura com as declarações dos contribuintes.
Essas declarações apresentadas pelos contribuintes à Administração Tributária gozam da presunção de veracidade.
Hoje em dia, essas presunções legais de veracidade das declarações apresentadas pelos contribuintes à AF e dos dados que constarem da sua contabilidade e escrita, se estiverem de acordo com a legislação comercial e fiscal, constam do nº 1 do artigo 75º da LGT.

Conforme referem Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, in Lei Geral Tributária, comentada e anotada, 2ª edição, 2000, a pág. 309, “Assim, nestes casos, se a administração tributária não demonstrar a falta de correspondência entre o teor de tais declarações, contabilidade ou escrita e a realidade, o seu conteúdo terá de considerar-se verdadeiro”.

A jurisprudência aponta no mesmo sentido: “Cabe à Fazenda Pública, tanto no recurso administrativo como na impugnação junto dos Tribunais, o ónus da prova da existência dos pressupostos de facto e de direito do acto de liquidação oficiosa, seja por correcções técnicas ou métodos indiciários e presuntivos, constantes do relatório dos serviços de fiscalização” (cf. Ac do TCA, de 22/05/2001, processo 3216/00).

No caso dos autos, a matéria de facto dada como provada indicia claramente que as transacções efectuadas pela C ….. , LDA, e C ….. eram operações simuladas, tendo os veículos em causa sido adquiridos pela sociedade E ….. , LDA, a fornecedores comunitários.
De acordo com a jurisprudência, cabe à Fazenda Pública o ónus da prova da existência dos pressupostos de facto e de direito do acto de liquidação oficiosa, seja por correcções técnicas ou métodos indiciários e presuntivos, constantes do relatório dos serviços de fiscalização, mas incumbe ao contribuinte o ónus da prova de que deu cumprimento às obrigações de natureza contabilística, impostas pela lei comercial e fiscal, v.g. o DL 410/89, de 21/12 (Plano Oficial de Contabilidade (cf. Ac. do TCA de 08.05.2001, Processo nº 1270/98).

Ora, perante a constatação da existência de operações simuladas cabia à impugnante a prova da efectiva realidade das transacções, o que não logrou fazer.


II – DIREITO DE AUDIÇÃO PRÉVIA


Alega ainda o recorrente a falta de audição prévia da sociedade E ….. , LDA antes da aplicação de métodos indirectos e antes da liquidação, porquanto esta apenas foi ouvida para se pronunciar sobre as conclusões do relatório de inspecção.
A Constituição da República Portuguesa reconhece aos cidadãos o direito de participação na formação das decisões e deliberações que lhes disserem respeito (artigo 267º, nº 5). O artigo 60º da Lei Geral Tributária (LGT) veio dar concretização a este direito no domínio do procedimento tributário, enunciando as situações em que é obrigatória a audiência dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito.
“A falta de audição dos interessados, quando obrigatória, constitui um vício do procedimento tributário, susceptível de conduzir à anulação da decisão que nele for tomada” (cfr. Lei Geral Tributária, de Diogo Leite de Campos, Benjamim Silva Rodrigues e Jorge Lopes de Sousa, comentada e anotada, 2ª edição, 2000, pág. 256).

Não é o caso dos autos.

A AT não violou o disposto no artigo 60º da Lei Geral tributária (LGT), por o recurso a métodos indirectos e o acto de liquidação não terem sido precedidos de audição prévia.
Resulta do probatório que a sociedade E ….., LDA foi notificada para se pronunciar sobre as propostas de correcções constantes do relatório de inspecção onde constava os montantes de imposto e juros compensatórios a liquidar com recurso a métodos indirectos.
Na verdade, após a publicação da Lei 16-A/2002, de 31 de Maio, deixou de ser imprescindível o direito de audiência antes da liquidação.

Sob a epígrafe “Direito de audição”, estabelece o artigo 13º da referida lei:
“1 – O nº 3 do artigo 60º da lei geral tributária, aprovado pelo artigo 1º do Decreto-Lei nº 398/98, de 17 de Dezembro, passa a ter a seguinte redacção:
….
3 – Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do nº 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais ainda se não tenha pronunciado”.

2 – O disposto no nº 1 do presente artigo tem carácter interpretativo”.

Por outro lado, a alínea d) do nº 1 do mesmo artigo 60º foi alterada pelo nº 1 do artigo 40º, da Lei 55-B/2004, de 30 de Dezembro, cujo nº 2 atribuiu natureza interpretativa a tal alteração. Após esta alteração, o contribuinte apenas tem direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção.

Tendo havido, como houve, relatório de inspecção de que foi dado conhecimento à impugnante para se pronunciar sobre as conclusões do mesmo, como o próprio recorrente aceita, não tinha a AT que dar nova oportunidade para pronúncia expressa sobre a sua decisão de aplicação de métodos indirectos.


III – NULIDADE DA NOTIFICAÇÃO DAS LIQUIDAÇÕES POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO


Não se verifica a nulidade da notificação das liquidações impugnadas, por falta de fundamentação, por terem sido omitidos os novos elementos e os actos ou factos através dos quais chegaram ao conhecimento da administração fiscal.
A fundamentação do acto e a notificação da fundamentação são realidades diversas, apenas a primeira constituindo vício de forma determinante da sua anulabilidade (cf. Ac. do STA de 09.09.99, Proc. 23 773).
A falta de notificação da fundamentação de um acto de liquidação não gera invalidade deste, mas apenas dá direito ao contribuinte de requerer a notificação da fundamentação ou a passagem de uma certidão que a contenha (artigo 22º do Código de Processo Tributário – CPT – e artigo 37º do Código de Procedimento e de Processo Tributário - CPPT).

Diz a recorrente que a possibilidade de requerer a passagem de certidão é uma mera faculdade que poderia exercer.
De facto, assim é. Mas se a recorrente não usou da faculdade que a lei lhe conferia é porque entendeu que a comunicação da decisão continha a fundamentação legalmente exigida.

Daí que não ocorra, no caso dos autos, o apontado vício de forma, por falta de fundamentação dos actos de liquidação.


IV – INCOMPETÊNCIA DO AUTOR DAS CORRECÇÕES


Quanto à alegada incompetência do autor das correcções, ela não se verifica atento o despacho nº 16.211/200, publicado no DR, II Série, de 9 de Agosto de 2000, “relativo à delegação e subdelegação de competências do Director Distrital de Finanças de Setúbal no Chefe de Divisão de Prevenção e Inspecção Tributária J ….. , encontrando-se enunciadas as competências delegadas e subdelegadas, bem como a referência de que o despacho produz efeitos desde 28 de Outubro de 1999, ficando ratificados todos os despachos entretanto produzidos pelas entidades delegadas e subdelegadas neles referidos”.
O facto de no despacho em questão não ser feita menção expressa à qualidade em que actua o seu autor não configura, no caso, nenhuma irregularidade. Com efeito, a obrigatoriedade de o órgão delegado ou subdelegado mencionar essa qualidade no uso da delegação ou subdelegação (cf. artigo 36º, nº 2 do CPPT) é a de permitir aos destinatários dos actos determinar – no caso de contra eles pretenderem reagir – se o acto goza de carácter definitivo, a fim de que não vejam coarctados os seus meios de defesa.
Ora, no caso dos autos, os direitos da impugnante não ficaram minimamente prejudicados, na medida em que utilizou os meios de defesa – a presente impugnação – que tinha ao seu dispor.


V – INCOMPETÊNCIA DO AUTOR DAS LIQUIDAÇÕES


No entender do recorrente a alegada incompetência resultaria do facto de as liquidações deverem “ser praticadas e fundamentadas pelo seu subscritor, o Director de Serviços de Cobrança do IVA ou por funcionário no uso de delegação de competências e não o foram uma vez que (…) os dados haviam sido lançados em computador por um funcionário subalterno sem delegação válida”.

Pelos mesmos motivos acabados de referir no ponto anterior, carece de razão a também invocada incompetência do autor da notificação.
Por outro lado, o Ministério Público confessa não saber, de facto, quem lançou os dados em computador.
De qualquer modo, sempre se dirá que mesmo que não tenha sido o Senhor Director de Serviços de Cobrança do IVA, ele mesmo, a introduzir os dados no computador, não ocorre a preterição de nenhuma formalidade essencial, porquanto o legislador fiscal quando disse que a liquidação de IVA compete à Direcção de Serviços de Cobrança do IVA (artigo 83º, nº1 do CIVA), não queria, por certo, dizer que era o referido Director quem tinha de introduzir na “máquina informática” os dados de todos os contribuintes, nem tão pouco que era ele quem tinha de fazer todas as liquidações.


VI – AUSÊNCIA ABSOLUTA DE FUNDAMENTAÇÃO DOS ACTOS IMPUGNADOS


No que concerne à fundamentação, dispunha o artigo 21º do CPT, sob a epígrafe “direito à fundamentação”, que “as decisões em matéria tributária, que afectem os direitos ou interesses legalmente protegidos dos contribuintes conterão os respectivos fundamentos, de facto e de direito”.
Tal direito constituía garantia expressa dos contribuintes, nos termos do artigo 19º, al. b), do mesmo diploma.
Aliás, o referido direito, com relação aos actos que afectem direitos ou interesses legalmente protegidos, constitui, hoje, princípio constitucional (artigo 268º, nº 3 da CRP).
Por força do disposto no nº 1 do artigo 77º da LGT, a fundamentação deve consistir, no mínimo, numa sucinta exposição dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a decisão, ou numa declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas.

Na verdade, as liquidações em causa são o corolário lógico das correcções efectuadas pela inspecção tributária no âmbito da acção de fiscalização de que foi objecto a sociedade de que o recorrente era sócio gerente e no decurso da qual os serviços de inspecção apuraram que, em relação ao IVA em causa, “(…) as aquisições efectuadas a essas empresas não traduzem a realidade, uma vez que a compra propriamente dita é feita directamente pela E ….. , LDA, nos países da Comunidade Europeia (….)”.
Assim sendo, não podiam as facturas emitidas por essas empresas ser consideradas válidas para efeito da dedução do imposto, por força do disposto no nº 3 do artigo 19º do Código do IVA.
Conforme decorre suficientemente dos autos, a impugnante conhecia as razões por que lhe foi liquidado o imposto e pode analisar os critérios de que a Administração Fiscal se socorreu para chegar aos montantes em causa.
E a jurisprudência vai no sentido de que “não é insuficiente a fundamentação do acto administrativo cujo iter lógico dá a saber a um destinatário normal o necessário para que opte conscientemente pela aceitação da legalidade do acto ou pelo contencioso do mesmo” (Ac. do STA de 23.04.97, Recurso 20 168. No mesmo sentido, cf. Ac. do TT de 2ª Instância, de 10.03.92, P. 60 860, in CTF. 367/121 e Ac. Do STA de 11.11.98, 2ª Secção – Pleno, Recurso 20 168).
Aliás, se a impugnante entendesse que a notificação da liquidação não continha a sua fundamentação sempre poderia fazer uso do disposto no artigo 22º do CPT (artigo 37º do CPPT), o que não aconteceu.


Daí que não ocorra, no caso dos autos, o apontado vício de forma, por falta de fundamentação da liquidação.


VII – ILEGALIDADE DAS LIQUIDAÇÕES DE IVA POR ERRO NAS OPERAÇÕES DE DETERMINAÇÃO DO IMPOSTO


No entender da recorrente a alegada ilegalidade resultaria do facto de se ter procedido a uma única liquidação de IVA por cada ano de imposto, ao invés de se ter procedido a tal apuramento período a período.
Ora, sobre esta questão, dispõe o artigo 88º A do CIVA (aditado pelo artigo 2º do DL 166/94, de 9 de Junho:
As liquidações referidas nos artigos 82º e 83º poderão ser agregadas por anos civis num único documento de cobrança”.

É certo que as liquidações aqui em causa se enquadram no disposto no artigo 84º do CIVA (liquidações com base em presunções ou métodos indiciários).
Porém, como diz, e bem, o Ministério Público da 1ª Instância, “A referência aos referidos preceitos legais não pretende afastar a sua aplicação aos casos em que há recurso a métodos indirectos, uma vez que não deixamos de estar perante uma liquidação oficiosa de que tratam os artigos 82º e 83º do CIVA”.
Todavia, mesmo que, eventualmente, tivesse sido preterida uma formalidade legal, que a nosso ver não ocorreu, esta não configuraria uma formalidade essencial, determinante da anulabilidade das liquidações.


VIII – ILEGALIDADE DA UTILIZAÇÃO SIMULTÂNEA DE MÉTODOS DIRECTOS E INDIRECTOS


Quanto à ilegalidade da utilização simultânea de métodos directos e indirectos dir-se-á, tal como na douta sentença recorrida, que “as correcções efectuadas no âmbito do procedimento de inspecção tributária com recurso a métodos indirectos dizem respeito a aquisições intracomunitárias, enquanto as correcções com recurso a métodos directos dizem respeito a correcções relativas ao apuramento do lucro tributável que se traduziram em correcções por imposição legal”, sendo certo que “a lei não veda a possibilidade que, no mesmo procedimento se efectuem correcções com métodos directos e indirectos simultaneamente”.

IX – ERRO NA QUANTIFICAÇÃO

Invoca o recorrente que a considerar-se que estamos perante aquisições intracomunitárias, em sede de IVA tais operações são neutras, pois o imposto que a impugnante tinha de liquidar também o podia deduzir.
Esquece, porém, que, no apuramento do IVA devido nas transacções intracomunitárias, é obrigatório para o contribuinte a liquidação do imposto devido nas aquisições de bens, mas é já facultativa a dedução desse mesmo imposto suportado nas aquisições. E se o contribuinte não exercer o direito â dedução do imposto suportado, não cabe à Administração Tributária, oficiosamente, exercê-lo. (cf. Ac. deste TCA Sul, de 28/10/2003, Proc. 229/03).

3 - Pelo exposto, entendendo que sentença recorrida não merece qualquer censura, emito parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.