Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Tributário
Contencioso:TRIBUTÁRIO
Data:10/23/2006
Processo:01398/06
Nº Processo/TAF:171/05.0BELLE
Magistrado:CARLOS BATISTA
Descritores:SIGILO FISCAL
Data do Acordão:11/07/2006
Disponível na JTCA:SIM
1 – Dizendo-se inconformada com a, aliás, douta sentença proferida pelo tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, que julgou procedente a impugnação judicial que L ... e A ... haviam interposto da liquidação adicional do imposto de SISA, do Imposto de Selo e dos juros compensatórios, dela vem a Exma Representante da FAZENDA PÚBLICA recorrer, formulando, após alegações, as seguintes conclusões:

1- A junção aos autos do citado documento pelo Representante da Fazenda Pública é um direito que lhe assiste, nos termos do Art. 20.° da CRP e que não contende nem com o Art.° 26.° da CRP nem com o Art.° 64.° da LGT, ou seja;

2- O Art.° 26.° da CRP consagra, entre vários direitos pessoais, o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n.° 1), o qual se encontra estreitamente ligado ao direito ao sigilo profissional;

3- Esta disposição constitucional visa proteger, fundamentalmente, a esfera privada e pessoal dos cidadãos, podendo considerar-se que não abrange necessariamente a sua esfera profissional e económica, a qual foi deixada ao legislador ordinário a tarefa de legislar sobre a matéria de protecção da confidencial idade (Vide Ciência e Técnica Fiscal n. º 364 "A protecção da confidencialidade em matéria fiscal", Maria Margarida Mesquita);

4- O CPPT inclui normas relativas à revelação aos Tribunais Tributários de dados relativos à situação tributária dos contribuintes, que permitem concluir que o dever de confidencialidade não obsta à revelação de tais dados ao Tribunal, nos processos de natureza tributária, onde se inclui a presente impugnação judicial - Cf r. Art.°s 110.° n.° 1 al. b), c) e d) do CPPT;

5- Assim sendo, o documento desentranhado não contende com o direito de sigilo da sociedade inspeccionada por duas ordens de razão: primeiro a sociedade vendeu um imóvel ao impugnante, por isso, foi uma das partes intervenientes na transacção; segundo porque foi através da acção inspectiva efectuada à empresa vendedora, na pessoa do seu sócio gerente D ... , que este confessou a existência de negócios simulados quanto ao valor, dando a conhecer à Administração Fiscal através duma listagem que apresentou, os valores reais dos negócios celebrados no lote 35 correspondente ao Edifício Cristal, entre os quais a venda da fracção "AP", correspondente ao documento desentranhado pelo Mmº Juiz "a quo";

6- A simulação de preço ocorrida relativamente à referida fracção adquirida pelos impugnantes, foi de € 84 795,64 sendo o preço real de € 132 181,44, portanto, de valor superior ao efectivamente escriturado;

7- Não se vislumbra, desta forma, que a referida sociedade possa ser considerada terceiro para efeitos da presente impugnação judicial (aí sim se estaria a violar o seu direito de sigilo e confidencialidade ao apresentar o documento aqui em causa), muito menos considerar aquele documento como confidencial, pois, nele estão contidos dados relativos ao ora impugnante (na linha 5ª do quadro) que se mostram relevantes e necessários à prova dos factos alegados na contestação da Fazenda Pública;

8- A junção aos autos do referido documento pela Fazenda Pública serviu para fazer prova de toda a factualidade discutida nos autos, que permitiu à Administração Tributária concluir que os preços declarados nas escrituras de compra e venda dos diversos adquirentes eram inferiores aos preços reais praticados (onde se inclui os ora impugnantes);

9- O Mmº Juiz "a quo" ao afirmar de forma conclusiva que essa diligência probatória não é admissível para o caso em apreço, salvo o devido respeito e melhor entendimento, incorreu em "vício de presciência" sobre o resultado probatório que esse meio de prova podia trazer aos autos, violando a lei ao recusar prova susceptível de influenciar o exame e decisão da causa;

10- As provas têm, essencialmente, por função a demonstração da realidade dos factos, nos termos do Art.° 341.° do CC, e foi, por isso, que a Fazenda Pública apresentou esse meio de prova;

11- Ao não admitir que a presente impugnação contenha o documento junto pela Fazenda Pública, que constitui um dos suportes de prova que fundamenta a liquidação adicional de Sisa ora impugnada decorrente da simulação de preço ocorrida entre as partes intervenientes, o Mmº Juiz "a quo" violou o princípio do contraditório que visa permitir a alegação e prova de factos destinados a infirmar os pressupostos de facto que subjazem aos actos impugnados;

12- Ao dar como facto não provado, o documento desentranhado, impediu a Administração Fiscal de provar que o valor real da venda não foi o declarado na escritura de compra e venda do imóvel aqui em causa;

13- Além disso, a própria empresa vendedora reconheceu que os valores constantes nas escrituras e declarados como proveitos na sua contabilidade são inferiores aos valores reais de venda dos imóveis, tendo apresentado uma primeira relação de novos preços de venda das fracções que se constatou não merecer credibilidade (dai não ter sido junta pela Fazenda aos autos), após o que o sócio - gerente apresentou uma nova relação de valores que alegadamente corresponderiam aos preços reais de venda, a qual corresponde ao documento junto pela Fazenda Pública e desentranhado pelo Mm.º Juiz;

14- Logo, não restam dúvidas que perante uma empresa de construção civil como a Diamantino, Lda., com nome no mercado da construção civil em Faro, que confessou à Administração Tributária a existência de simulação de preços na venda de fracções do imóvel correspondente ao lote 35 do Edifício Cristal, que a Administração demonstrou cabal e validamente que o preço escriturado não correspondia ao real e consequentemente era devida a liquidação adicional de imposto de sisa correspondente à diferença de valor efectivamente paga pelos impugnantes, conforme lhe competia provar nos termos do n.° 1 do Art.° 74.° da LGT;

15-Assim sendo, a douta sentença recorrida enferma de erro de julgamento, por violação dos princípios do contraditório e da igualdade, nos termos do Art ° 45.° do CPPT e do Art.° 13.° da CRP e violação do disposto no Art.° 515.° do CPC”.

2 – O que está em causa é essencialmente a questão de saber se foi ou não correcta a decisão do Mº juiz ao mandar desentranhar o documento de fls. 42 a 49 dos autos, que havia sido junto pela Exma. RFP com a contestação.

É do seguinte teor o despacho do Mº Juiz quanto à “Fundamentação do Julgamento”:
“A decisão da matéria de facto fundou-se no teor do processo administrativo, nos documentos juntos aos autos e no acordo das partes. Também revelou, para os efeitos ora em pareço, a circunstância de não ser admissível a junção a esta impugnação judicial do documento de folhas 42 a 49 dos autos, como pretendeu o Exmo. Sr. Representante da Fazenda Pública, nos termos dos art.os 26º, nº 1 da Constituição da República e 64º da Lei Geral Tributária. Daí que, a final, deva ser determinado o seu desentranhamento”.

Salvo o devido respeito, entendemos que a Exma. representante da Fazenda Pública tem razão.
Com efeito, em nossa opinião, e apesar de o despacho em causa não ser um modelo de fundamentação no que respeita aos motivos por foi mandado desentranhar o documento em causa, este não deveria ter sido desentranhado.

Os preceitos mencionados pelo Mº juiz são do seguinte teor:

Artigo 26º, nº 1, da Constituição (Outros direitos pessoais):
1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”.

Artigo 64º da LGT (Confidencialidade):
“1 – Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
(…)”.

O documento em causa contém a listagem dos adquirentes de um conjunto de fracções autónomas à sociedade “D .......... , Lda”, nela incluindo os nomes dos adquirentes, a identificação da fracção e o montante por que foi efectuada a transacção.

O princípio da confidencialidade fiscal assenta basicamente na ideia de tutela do direito à intimidade da vida privada (artigo 26º, nº 1, da Constituição), mas não apenas; como decorre do artigo 64º da LGT, o âmbito deste princípio é mais amplo, caindo na sua alçada todos “os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes” (cf. BREVES REFLEXÕES EM MATÉRIA DE CONFIDENCIALIDADE FISCAL, de Carlos Pamplona Corte-Real, Jorge Bacelar Gouveia e Joaquim Pedro Cardoso da Costa, in Ciência e Técnica Fiscal, nº 368, pág. 42).

Conforme diz J. L. Saldanha Sanches, no Estudo sobre “Segredo Bancário, Segredo Fiscal: Uma Perspectiva Funcional”, publicado em FISCALIDADE, Revista de Direito e Gestão Fiscal, nº 21, pág. 35, “O primeiro ponto que deve ser considerado ao tratarmos do segredo bancário e do segredo fiscal é o de que não estamos perante aquilo que a Constituição tutela como “reserva da intimidade da vida privada e familiar”, ou seja, aquele núcleo central de características e comportamento de natureza pessoal (maxime sexual e familiar) que a lei deverá proteger para proporcionar “garantias efectivas contra utilização abusiva ou contrária à dignidade humana” (nº 1 e nº 2 do artigo 26º da CRP).
A intimidade da vida privada e familiar constitui uma defesa contra intromissões públicas ou privadas no que constitui o reduto essencial da intimidade (…)”.

Este Ilustre professor define segredo fiscal como “a proibição que incide sobre os membros da Administração Fiscal de darem conhecimento a terceiros da situação fiscal (e por isso patrimonial) dos sujeitos passivos” (ibidem, pág. 35).

O artigo 64º da LGT contém a regra básica nesta matéria. Da referência que este normativo faz à incidência da confidencialidade sobre “os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes” poderá inferir-se que não é qualquer dado fiscal que só por si está necessariamente abrangido por tal princípio. Com efeito, e em termos literais, a lei parece projectar o sigilo fiscal sobre aquele tipo de dados que explicitem, parcelar ou globalmente, a situação tributária do contribuinte.

A ideia de ”situação tributária” reflecte um grau relativamente significativo de repercussão de dados fiscais eventualmente solicitados sobre a visualização, a denúncia parcelar que seja, da situação patrimonial do cidadão, fiscalmente relevante, como expressão da sua capacidade contributiva. Quer isto dizer que não é tanto um dado fiscal isolado que preocupará o legislador quando impõe a confidencialidade fiscal, mas os dados fiscais que digam algo de forma mais ampla acerca da situação patrimonial dos contribuintes” (ibidem, págs. 17 e 18).

Sobre o que deve entender-se por dados relativos à situação tributária dos contribuintes pode ver-se o Parecer nº 20/94, de 9/2/95, emitido pelo Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, com as seguintes conclusões:
“1 – A expressão “dados relativos à situação tributária dos contribuintes”, constante da alínea d) do artigo 17º do Código de Processo Tributário (hoje constante do nº 1 do artigo 64º da LGT) abrange, na sua previsão, quaisquer informações, quaisquer elementos informatizados ou não que reflictam de alguma forma a situação patrimonial dos sujeitos passivos da obrigação de imposto, sejam pessoas singulares, ou pessoas colectivas, comerciantes ou não comerciantes.
2 – A “confidencialidade” protegida na disposição referida na conclusão anterior não abrange os dados que tenham natureza pública, por serem livremente cognoscíveis por recurso a outras vias jurídico-institucionais, como sejam, v. g., os registos predial, comercial e civil.
(…)”.

A ideia fundamental é esta: Os dados terão um carácter sigiloso se reveladores da capacidade contributiva do cidadão. “São dados de natureza patrimonial (rendimento, situação patrimonial, aquisições) que podem respeitar à esfera de privacidade, mas não de intimidade de quem, por imperativo legal os forneceu” (Saldanha Sanches, ibidem, pág. 36).

Ora, as referências à aquisição de determinado imóvel por determinada pessoa e por um preço concreto não fazem parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada condensado no artigo 26º, nº 1, da Constituição.
Por outro lado, nada dizem quanto à situação tributária dos cidadãos constantes dessa listagem.

Acresce que a LGT confere aos órgãos da Administração Tributária, em vista ao apuramento da situação tributária dos contribuintes, amplos poderes, que envolvem, designadamente, o livre acesso às instalações ou locais onde possam existir elementos relacionados com a sua actividade ou com a dos demais obrigados fiscais, e bem assim o exame dos seus livros e registos da contabilidade ou escrituração, bem como todos os elementos susceptíveis de esclarecer a sua situação tributária (cfr. artigo 63º, nº1, alíneas a) e b)).

Ora, as recentes alterações legislativas nesta matéria vão no sentido do alargamento dos poderes da administração e do aligeiramento do segredo fiscal.
É disso exemplo o normativo que estabelece que não contende com o dever de confidencialidade, a divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre regularizada e a publicação de rendimentos declarados ou apurados por categorias de rendimentos, contribuintes, sectores de actividades ou outras, de acordo com listas que a administração tributária deve organizar anualmente a fim de assegurar a transparência e publicidade (cfr. a redacção dada ao nº 5 do artigo 64º da LGT pela Lei 60-A/2005, de 30 de Dezembro).

Tudo no sentido de evitar a fraude fiscal, a corrupção ou a lavagem de dinheiro.

Não constando da listagem em causa a origem dos rendimentos dos contribuintes nela mencionados não estamos perante uma situação de carácter reservado, abrangível pela confidencialidade fiscal, para efeitos do disposto no artigo 64º da LGT.

E, assim sendo, carece de base legal o despacho que não atendeu ao conteúdo da referida listagem.

3 - Pelas razões expostas, entendemos que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a sentença recorrida e ordenando-se a devolução do processo ao tribunal recorrido para que, ali, em nova decisão, se conheça e emita pronúncia sobre todas as questões suscitadas.