Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:11/20/2014
Processo:11678/14
Nº Processo/TAF:00000/00/0
Sub-Secção:2.º JUÍZO - 1.ª SECÇÃO
Magistrado:Manuela Galego
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR.
PRESCRIÇÃO.
NULIDADE.
Texto Integral:Processo n.º 11678/14
2.º Juízo-1.ª Secção (Contencioso Administrativo)
Ação administrativa especial


EXCELENTÍSSIMOS SENHORES JUÍZES DESEMBARGADORES
DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

O Ministério Público junto deste Tribunal, nos termos dos art.ºs 146.º e seguintes do CPTA, vem apresentar o seu PARECER:

O presente recurso jurisdicional foi interposto pelo Autor, do Acórdão que julgou improcedente a ação interposta contra a Câmara Municipal Cascais, decorrente de processo que disciplinar, que culminou com a deliberação da Ré, de 5-03-2012, a qual lhe aplicou a pena disciplinar de demissão.

No recurso o Réu entende, em suma, que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento e erro de interpretação das normas jurídicas aplicáveis à situação, em virtude de a Ré e respetivo instrutor, terem esgotado os prazos de prescrição aplicáveis, que indicou uma testemunha para ser inquirida em sua defesa, esta não foi ouvida por haver falecido entretanto e não se verificou qualquer notificação ao seu mandatário para indicar outra testemunha em sua substituição, impugna o teor da acusação no que respeita à violação dos deveres profissionais e que a sanção aplicada é desproporcionada, inadequada e ilícita.
Pede, por isso, a revogação do Acórdão sub judice.

Quanto à prescrição:
Pelas razões, factos e fundamentação de direito invocados no Acórdão em recurso, que aqui dou por reproduzidos, e que não merecem censura, entendo não se verificarem os vícios invocados relativamente a excesso de prazo, e, por consequência, a prescrição do procedimento disciplinar.
Explicitando, e em síntese:
De acordo com o art.º 6.º do Estatuto Disciplinar (adiante designado por ED, revogado pela Lei n.º 35/2014, de 20/06), aplicável ao caso em apreço, sob a epígrafe:
Prescrição do procedimento disciplinar
1 - O direito de instaurar procedimento disciplinar prescreve passado um ano sobre a data em que a infracção tenha sido cometida.
2 - Prescreve igualmente quando, conhecida a infracção por qualquer superior hierárquico, não seja instaurado o competente procedimento disciplinar no prazo de 30 dias.
3 - Quando o facto qualificado como infracção disciplinar seja também considerado infracção penal, aplicam-se ao direito de instaurar procedimento disciplinar os prazos de prescrição estabelecidos na lei penal.

4 - Suspendem o prazo prescricional referido nos números anteriores, por um período até seis meses, a instauração de processo de sindicância aos órgãos ou serviços, bem como a de processo de inquérito ou disciplinar, mesmo que não dirigidos contra o trabalhador a quem a prescrição aproveite, quando em qualquer deles venham a apurar-se infracções por que seja responsável.
5 - A suspensão do prazo prescricional apenas opera quando, cumulativamente:
a) Os processos referidos no número anterior tenham sido instaurados nos 30 dias seguintes à suspeita da prática de factos disciplinarmente puníveis;
b) O procedimento disciplinar subsequente tenha sido instaurado nos 30 dias seguintes à recepção daqueles processos, para decisão, pela entidade competente; e
c) À data da instauração dos processos e procedimento referidos nas alíneas anteriores, não se encontre já prescrito o direito de instaurar procedimento disciplinar.
6 - O procedimento disciplinar prescreve decorridos 18 meses contados da data em que foi instaurado quando, nesse prazo, o arguido não tenha sido notificado da decisão final.
7 - A prescrição do procedimento disciplinar referida no número anterior suspende-se durante o tempo em que, por força de decisão jurisdicional ou de apreciação jurisdicional de qualquer questão, a marcha do correspondente processo não possa começar ou continuar a ter lugar.
8 - A prescrição volta a correr a partir do dia em que cesse a causa da suspensão.

O STA tem distinguido o mero conhecimento de uma certa materialidade dos factos e o conhecimento dos factos em termos de os poder enquadrar como ilícito disciplinar, para só atribuir o efeito do início da contagem do prazo prescricional ao momento em que este conhecimento ocorre (veja-se, por todos o Acórdão de 20.03.03, proc. n.º 02017/02, em www.dgsi.pt.jsta).
Por outro lado, o direito de instaurar procedimento disciplinar prescreve, como vimos, nos termos do referido preceito, aplicando-se a exceção nele prevista no n.º 3.

Foi feita participação criminal ao Ministério Público.

Assim, uma vez que a conduta imputada ao ora Recorrente é qualificada como crime, neste caso, em abstrato, de crime de furto, os prazos de prescrição aplicáveis são os previstos no C. Penal, mais concretamente os prazos previstos no art.º 118.º do mesmo diploma legal, e que vão até 10 anos.
Pelo exposto, atendendo às datas comprovadas no Acórdão e que não vêm impugnadas, não se mostra prescrito o procedimento disciplinar.

Vícios do processo instrutório:
No que respeita à validade do processo instrutório, entendo verificar-se o vício de omissão de diligências consideradas essenciais para a defesa do Autor, enquanto arguido no processo disciplinar.
Como resulta demonstrado no Acórdão em recurso, e não foi posto em causa pela ora Recorrida, a única testemunha indicada pelo Autor em sua defesa adoeceu, estava de baixa médica, e veio a falecer, motivo pelo qual não foi inquirida.
Porém, o mandatário constituído no âmbito do processo disciplinar pelo ora Recorrente não foi notificado desse facto, nem pode requerer a sua substituição por outra testemunha, não se tendo o instrutor, sequer, pronunciado sobre o assunto, conforme resulta dos autos.

O direito de audiência nos procedimentos sancionatórios é um direito fundamental previsto no art. 269º, 3, da CRP, o qual estipula “Em processo disciplinar são garantidos ao arguido a sua audiência e defesa”, compreendendo tais direitos, não só o direito a ser ouvido, como o direito a defender-se da acusação.
Pelo que, não se pode desvalorizar o conteúdo do direito de defesa do arguido no processo disciplinar, direito que se concretiza in casu, no art.º 37.º do ED (revogado - Lei n.º 35/2014, de 20 de Junho), na redação aqui aplicável.
Segundo dispõe o referido preceito:
Nulidades
1 - É insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade.
2 - As restantes nulidades consideram-se supridas quando não sejam reclamadas pelo arguido até à decisão final.

3 - Do despacho que indefira o requerimento de quaisquer diligências probatórias cabe recurso hierárquico ou tutelar para o respectivo membro do Governo, a interpor no prazo de cinco dias.
4 - O recurso referido no número anterior sobe imediatamente nos próprios autos, considerando-se procedente quando, no prazo de 10 dias, não seja proferida decisão que expressamente o indefira.”
Embora existam diferenças entre a produção da prova no processo disciplinar e no processo penal, e tenham diversas finalidades isso não significa que as garantias de defesa do processo penal não sejam aplicáveis, neste âmbito, ao processo disciplinar.
A Constituição garante ao arguido o direito de escolher defensor e ser por ele representado em “todos os actos do processo” (art.º 32º, n.º 3).
Estabelece também que os direitos de defesa do arguido constitucionalmente garantidos sejam aplicados “em quaisquer processos sancionatórios” (n.º 10 do mesmo preceito constitucional).
Assim, não se pode afastar a aplicação ao processo disciplinar das garantias de defesa previstas para o processo penal.
Do exposto resulta que a argumentação da Ré e do douto Acórdão recorrido, com o devido respeito, não são consistentes com os princípios constitucionais referidos.

O procedimento disciplinar visa a aplicação de uma pena disciplinar, ou seja implica um constrangimento na pessoa do arguido, exigindo por isso muito mais cuidado na definição do seu direito de defesa e, integrante deste, na assistência de advogado.
Se o advogado constituído do arguido não pode exercer amplamente o seu direito de defesa no caso em apreço, como demonstrado, na medida em que nem sequer teve a oportunidade de indicar outro meio de prova, mais precisamente oferecer outra testemunha para substituir a anterior, não se mostra assegurado o direito de defesa do seu constituinte em termos de poder, quiçá, alterar o conteúdo da acusação ou apresentar, designadamente, provas que diminuissem a ilicitude e a culpa na prática dos atos que lhe eram imputados, com a comprovação de atenuantes, ou mesmo as pudessem afastar, ou determinar, eventualmente, a aplicação de outra sanção.
Ou seja, a comunicação da impossibilidade de inquirir a testemunha podia ter sido relevante para a descoberta da verdade material.

Pelo que, tendo sido omitidas diligências essenciais para a defesa do arguido, e não estando em causa apenas a aplicação de uma sanção, mas através de um processo «
justo » , com especiais garantias de defesa, alcançar uma sanção disciplinar adequada, o que se enquadra no direito a ser assistido por defensor em “todos os actos do processo”, devem as diligências omitidas reputarem-se como essenciais para a descoberta da verdade, configurando uma violação das suas garantias de defesa, a que se refere também o citado art.º 37.º do ED (no sentido exposto, em caso semelhante, veja-se Ac. deste TCA Sul, de 5-07-2012, no proc. n.º 03997/08).

Este preceito, conforme já referido, considera “… insuprível a nulidade resultante da falta de audiência do arguido em artigos de acusação, bem como a que resulte de omissão de quaisquer diligências essenciais para a descoberta da verdade...”.

Conforme foi entendido no douto Acórdão do STA, de 18 de Junho de 2008, no proc. n.º 0145/08-SA1200806180145 “… Entendemos, finalmente, que a nulidade do procedimento não é, nestes casos, descaracterizável. A presença deste (do mandatário) na fase de produção da prova pode condicionar o seu conteúdo, pois pode levar a que a testemunha deponha sobre factos ou circunstâncias relevantes para a descoberta da verdade. É assim, a nosso ver, essencial para a descoberta da verdade, a possibilidade do mandatário estar presente na inquirição de testemunhas, mesmo naquelas que são indicadas por um arguido, desde que sejam ouvidas sobre factos imputados a ambos…”.

A situação em causa é semelhante, pelo que o entendimento do Acórdão supramencionado, e aqui exposto, também é aplicável neste processo.

As omissões apontadas que constituem omissão de formalidades essenciais a uma defesa adequada, cometidas sem qualquer justificação, violaram a garantia de defesa e o princípio do contraditório, tornando inválido o procedimento disciplinar, o que determina a sua ilicitude e consequente invalidade.

Assim, e com este fundamento, é Parecer do Ministério Público, o de que o ato impugnado deve ser anulado, nos termos do art.º 135.º do CPA, devendo proceder o recurso, nesta parte.

O que prejudica a apreciação da adequação da pena disciplinar aplicada.

A Procuradora-Geral Adjunta,
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Manuela Galego