Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:07/13/2012
Processo:09014/12
Nº Processo/TAF:00000/00/0
Magistrado:Maria Antónia Soares
Descritores:COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
EMPRESAS MUNICIPAIS.
CORTE DA ELECTRICIDADE.
PODERES DE AUTORIDADE.
Texto Integral:Procº nº 09014/12

2º Juízo-1ª Secção

Acção Administrativa Especial

Parecer do MP ao abrigo do nº1 do artº 146º do CPTA

Vem o presente recurso jurisdicional interposto pelo Autor, Condomínio Royal Cabanas Golfe Fase 1, Lote 7, da sentença que considerou os tribunais administrativos incompetentes em razão da matéria para apreciar o pedido de reconhecimento de inexistência da dívida de 9.862,34 euros à Ré Tavira Verde – Empresa Municipal do Ambiente, E.M., bem como o pedido de indemnização de 21.000 euros, pelos danos patrimoniais pelo corte de fornecimento de água levado a efeito por esta, em virtude do não pagamento por si das facturas de água, por não concordar com o montante das mesmas.

Segundo a sentença, o contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes em 14.07.2008, para fornecimento de água, águas residuais e recolha de resíduos urbanos, “é de natureza eminentemente civilística, regido pelo Código Civil e Código de Processo Civil, não se subsumindo aos litígios elencados, embora de forma não exaustiva, no nº2 do artº 37º do CPTA,pelo que a matéria em apreço não pode ser dirimida em sede administrativa”.E isto porque, não se trata de contrato passível de acto administrativo, nem se trata de contrato especificamente a respeito do qual existam normas de direitoi público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo., além de que nenhuma parte contratante é uma entidade pública ou concessionária, nem submeteram o contrato a qualquer regime de direito público.

Por sua vez o Recorrente defende que são os tribunais administrativos os competentes para apreciar o litígio emergente do incumprimento contratual, por a Ré ser uma empresa municipal de capitais maioritariamente públicos que se rege pela Lei nº 58/98, de 18-8 que aprovou o Regime Jurídico do Sector Empresarial Local, pelos seus Estatutos e, subsidiariamente pelo regime das empresas públicas e só no que não estiver especialmente regulado nestes diplomas é que será regulada pelas normas aplicáveis às sociedades comerciais.Esta empresa tem como objecto social , nomeadamente, a gestão , exploração, manutenção dos sistemas públicos de distribuição de água para consumo público, aplicando, por esse serviço, as taxas, tarifas coimas e detendo os poderes de autoridade necessários para praticar actos de autoridade necessários para o exercício das actividades que prossegue, ou do recebimento das contrapartidas.

Parece-nos que a razão está, efectivamente, com o Recorrente.

De facto, nos termos do artº 17º do Regulamento da Ré, Empresa Municipal, a mesma tem “poderes de autoridade” e “todos os demais poderes administrativos de autoridade pública”, delegados pelo Município de Tavira, que lhe conferem competência para cobrar tarifas inerentes ao consumo de água que fornece aos utentes e, aplicar as sanções decorrentes desse não pagamento, como seja o corte de água.

Assim sendo estamos perante um contrato de prestação de serviços prestados por uma autoridade pública aos particulares, detendo, assim, uma das partes, poderes de autoridade que determinam a natureza administrativa do contrato donde está excluída, como é sabido a natureza sinalagmática uma vez que existe um poder superior de uma das partes sobre a outra.

, Estamos, portanto, inegavelmente, perante um contrato regido pelo direito púbico e cuja relação jurídica subjacente é regulada pelo direito administrativo.

Tanto basta para que, a nosso ver, sejam competentes os Tribunais aadministrativos.

Vejamos, porém alguma jurisprudência sobre a matéria.

Reza o seguinte o acórdão do Tribunal de Conflitos de 20-6-12, in procº nº 011/11:

“Na actualidade, segundo os citados artigos 2l2.°, n.° 3, da CRP, e l.°, n.° 1, do ETAF, a competência dos tribunais administrativos e fiscais dependerá da ponderação sobre se se está, ou não, perante pleitos derivados de relações jurídicas administrativas (e fiscais), sendo que só no primeiro caso tal competência se verificará.

Importa, assim, questionar para este efeito em que consistirá uma relação jurídica administrativa.

Como refere Mário Aroso de Almeida, in Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, pág. 57, «as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis».

Ou seja, segundo se crê, serão relações jurídicas administrativas as derivadas de actuações materialmente administrativas, praticadas por órgãos da Administração Pública ou equiparados.

J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª edição, Agosto de 2010, volume II, págs. 566/7, a propósito das relações jurídico-administrativas (ou fiscais), dizem que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras: (1) as acções e recursos incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente da administração); (2) as relações jurídicas controvertidas são reguladas, sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal.

Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza «privada» ou «jurídico-civil». Em termos positivos, um litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal (cfr. ETAF, art. 4º)».

Por sua vez, o Prof. Freitas do Amaral, in Lições de Direito Administrativo, edição 1989, vol. III, págs. 439-440, definiu a relação jurídica de direito administrativo como «aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».

Perante a reforma de 2002 e a actual amplitude das várias alíneas do n.° 1 do artigo 4.° do ETAF, resulta à evidência um alargamento das competências dos tribunais administrativos.

No dizer dos Profs. Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, a valorização da justiça administrativa verificada desde a revisão de 1989 da CRP (nomeadamente as alterações aos artigos 210.°, 212.° e 217.° constitucionalizando a justiça administrativa), a publicação de diplomas que alteraram significativamente alguma da legislação processual administrativa de maior envergadura (ETAF e CPTA) e ampliação da rede de tribunais administrativos implicou uma «redefinição dos critérios de delimitação do âmbito da jurisdição administrativa, designadamente em confronto com a jurisdição dos tribunais judiciais (...) no sentido de que, tendencialmente, a apreciação jurisdicional das questões materialmente administrativas não deve ser subtraída aos tribunais administrativos para ser atribuída à competência de outras ordens de tribunais» (in Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3.ª edição, Almedina, 2004, págs. 25 e ss.).

Nos termos da actual redacção do artigo 4.°, n.° 1, alínea i), do ETAF, compete aos tribunais administrativos conhecer das acções que tenham por objecto «Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público».

Na interpretação do preceito, Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, in ob. cit., pág. 38, opinam que «continua a ser relevante, para o efeito de determinar se um litígio é da competência dos tribunais administrativos ou dos tribunais comuns, saber se o facto constitutivo de responsabilidade se encontra ou não submetido à aplicação de um regime específico de direito público».

No presente caso não se levanta qualquer dúvida que os autores demandam e pedem a condenação das rés com base em responsabilidade extracontratual destas (violação do seu direito de propriedade sobre as parcelas de terrenos identificadas).

Dado que esta situação é absolutamente pacífica, abstemo-nos de fazer mais considerações sobre o tema dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Significa isto que a competência dos tribunais administrativos e fiscais abrangerá as questões atinentes à responsabilidade civil extracontratual de sujeitos privados desde que a eles deva ser aplicado o regime próprio da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Mas para isso deveria considerar-se, implicitamente, ser adequado entender as relações firmadas, como relações jurídicas administrativas, o que, decididamente, não é o caso.

Com a Lei n.° 67/2007, de 31 de Dezembro, foi aprovado o “Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas”, publicado em anexo.

Estabelece o artigo 1.º, n.° 5, que «As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo».

Resulta desta nova lei, que a jurisdição administrativa pode conhecer, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, de litígios entre particulares. Necessário será que as acções ou omissões geradoras de responsabilidade sejam levadas a cabo «no exercício de prerrogativas de poder público», ou que sejam «regulados por disposições ou princípios de direito administrativo», isto é, desde que as pessoas colectivas de direito privado actuem em moldes de direito público deve aplicar-se às suas acções e omissões o regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado.

Como diz Carlos Alberto Fernandes Cadilha, in Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, 2.ª edição, Coimbra, 2011, pág. 33, nestas situações «a jurisdição administrativa intervém por via da extensão a pessoas colectivas de direito privado do regime substantivo de responsabilidade civil do direito público, o que sucede (...) quando actuem no exercício de prerrogativas de autoridade de poder público ou segundo um regime de direito administrativo. O que releva, nesse caso, é já a natureza jurídica pública da situação de responsabilidade e, por isso, a circunstância de as entidades em causa praticarem actos que possam integrar o conceito de gestão pública».

Este n.° 5 do artigo 1.º da Lei n.° 67/2007 dá sequência à reforma do ordenamento jurídico-administrativo, iniciada em 1989 e, na prática, identifica-se com o princípio delineado no artigo 4.°, n.° 1, alínea i), do ETAF, que, recorde-se, atribuiu competência aos tribunais administrativos e fiscais para apreciar (e decidir) a responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público.

Segundo o mesmo Autor, ob. cit., pág. 55, o dito n.° 5 do artigo 1.º da Lei n.° 67/2007, indica as situações em que as entidades privadas poderão ser submetidas a um regime de responsabilidade administrativa e, consequentemente, poderão ser demandadas perante os tribunais administrativos em acções de responsabilidade civil, nos termos do referido art. 4.°, n° 1, al. i), do ETAF.

Efectivamente, nos termos do artigo 1.º, n.° 5, da Lei n.° 67/2007, são dois os factores determinativos do conceito de actividade administrativa: o exercício de prerrogativas de poder público, o que equivale ao desempenho de tarefas públicas para cuja realização sejam outorgados poderes de autoridade (um); respeitar a actividades que sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo, o que significa que os respectivos exercícios deverão ser reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo (o outro).

Deste modo, as entidades privadas concessionárias que são chamadas a colaborar com a Administração na execução de tarefas administrativas através de um contrato administrativo (que poderá ser de concessão de obras públicas ou de serviço público), devem ter a sua actividade regulada e sujeita a disposições e princípios de direito administrativo.

Acontece que a concessão em causa tem o seu regime de regulação nas bases do contrato de concessão aprovadas pelo Decreto-Lei n.° 248-A/99, de 6 de Julho (DR n.° 155/99, Série I-A, 1.º Suplemento), as quais afastam a existência de prerrogativas de direito público, pois inserta no Capítulo XII - “Responsabilidade extracontratual perante terceiros” - estabelece a Base LXXIII, Pela culpa e pelo risco: “A Concessionária responderá, nos termos da lei geral, por quaisquer prejuízos causados a terceiros no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, não sendo assumido pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito”.

E na sequência, a Base LXXIV, a propósito de prejuízos causados por entidades contratadas, estabelece que “1 - A concessionária responderá ainda nos termos gerais da relação comitente-comissário pelos prejuízos causados pelas entidades por si contratadas para o desenvolvimento das actividades compreendidas na Concessão”.

Sem tais prerrogativas cuja existência é condição de aplicação do actual regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas de direito público às pessoas colectivas de direito privado, sempre estaria afastada a possibilidade de se incluir o caso presente no âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.°, n.° 1, alínea i), do ETAF, mesmo que o novo diploma já tivesse entrado em vigor quando foram praticados os factos geradores da imputada responsabilidade civil”.

Por sua vez, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 12-1-12, proferido no processo nº 08/11, refere o seguinte:

“I - A competência material do tribunal afere-se pela relação jurídica controvertida, tal como é configurada na petição inicial.

II - Cabe ao tribunais judiciais julgar todas as causas, cujo conhecimento a lei não atribua a outras espécies de tribunais, cumprindo aos tribunais administrativos dirimir os conflitos emergentes de relações jurídicas administrativas.

III - Por relações jurídicas administrativas devem entender-se aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de interesse público legalmente definido”.

E o acórdão do Tribunal de Conflitos de 20-1-2010 proferido no processo nº 05/09, diz o seguinte:

“Contrariamente ao decidido no Ac. do TCA Sul, não é verdade que com a cessão da posição contratual da C.M.Oeiras para a Ré B… tenha desaparecido o “único facto atributivo da natureza administrativa do contrato”, e que “o único vínculo contratual agora existente é entre duas pessoas colectivas que se movem no âmbito do direito privado”.

Com efeito, e nos termos do respectivos Estatutos (DR, III Série, Nº 53-Suplemento, de 16/03/2005), a B…, E.M. “é uma empresa pública municipal..., dotada de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio, a qual fica sujeita aos poderes de tutela e superintendência da Câmara Municipal de Oeiras” [art. 1º, nº 1], e a mesma “rege-se pelo disposto na Lei nº 5/98, de 18 de Agosto, na parte aplicável às empresas públicas de âmbito municipal...” [art. 2º], tendo como “objecto social principal a construção, instalação e gestão de sistemas de estacionamento público pago..., no território do concelho de Oeiras” [art. 4º].

E as marcas da sua natureza pública são de todo evidenciadas no elenco das suas atribuições, entre as quais se encontra a de “fazer cumprir os regulamentos e posturas municipais, relativas a parqueamento tarifado” [art. 5º, nº 1, al. c)], sendo certo que, nos termos do nº 3 desse art. 5º, “...para a B… é transferido o poder de administração dos bens do domínio público ou privado do Município que sejam afectos ao exercício das suas actividades, detendo o respectivo pessoal... as competências e prerrogativas de autoridade pública, destinadas à defesa desse património e à aplicação dos regulamentos e posturas municipais em matéria de parqueamento em locais e estruturas públicos, podendo, se necessário, solicitar a actuação das autoridades policiais, nos mesmos termos em que detêm essa faculdade os órgãos e funcionários da autarquia”.

Quanto ao objecto do contrato e aos fins com ele prosseguidos, cremos ser indiscutível, face ao atrás exposto, a sua natureza pública. Trata-se, manifestamente, de uma prestação de serviços para fins de utilidade pública prosseguidos pelo ente público (Município e, posteriormente, Empresa Pública Municipal), concretamente os relacionados com a gestão e ordenamento do estacionamento automóvel na área do município de Oeiras, tendo o ente público, por razões de eficiência e custos, associado a A., por via do contrato celebrado, à concretização daqueles fins.

São marcas inegáveis de administratividade a conexão muito intensa, próxima e directa entre o objecto do contrato atrás definido e as atribuições legais do ente público contratante (C.M.Oeiras), bem como daquele a que foi cedida a posição contratual (empresa pública municipal B…, E.M.), direccionadas à concretização dos fins de utilidade pública que presidiram à celebração do referido contrato”

Também os acórdão do STA de 20-12-07 e de 20-1-2010 publicados no site www.dgsi.pt, consideraram os tribunais administrativos competentes em casos em que a entidade demandada era uma empresa municipal; e os acórdãos do Tribunal de Conflitos de 01-10-04 e de 20-01-2010, publicados no mesmo site, consideraram os tribunais administrativos competentes em razão da matéria quando estavam em causa cortes de águas,ainda que levados a cabo levados a cabo por empresas públicas ou privadas.

Termos em que, tendo em vista o exposto, bem como o exposto na jurisprudência citada, emitimos parecer no sentido da competência dos tribunais administrativos( e/ ou fiscais ) para apreciar e decidir esta acção, pelo que deverá ser revogada a sentença e conceder-se provimento ao presente recurso jurisdicional.


A Procuradora Geral Adjunta

Maria Antónia Soares