Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:Administrativo
Data:06/24/2011
Processo:07767/11
Nº Processo/TAF:01714/09.5BELSB
Sub-Secção:2º. Juízo
Magistrado:Clara Rodrigues
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL.
CONCESSÃO DE AIM'S.
Observações:Decisão: 12-01-2012
Texto Integral:Venerando Juiz Desembargador Relator

A Magistrada do MºPº junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, notificada nos termos e para efeitos do art. 146º nº1 do CPTA, vem emitir parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, nos seguintes termos:

I – O presente recurso vem interposto, pela então A., da sentença proferida, a fls. 599 e segs., pelo TAC de Lisboa, que julgou improcedente a presente acção e absolveu os RR dos pedidos de declaração de nulidade ou de anulação dos actos administrativos, proferidos pela Vice - Presidente do Conselho de Administração do Infarmed, de Autorização de Introdução no Mercado (AIMs) dos medicamentos genéricos descritos nas als. E) e F) do probatório, às contra - interessadas e de condenação do MEI a abster - se de emitir os preços de venda ao público dos mesmos medicamentos enquanto a patente nº 98224 se encontrar em vigor.

Nas conclusões das suas alegações de recurso, a ora recorrente, então A., imputa à sentença em recurso violação e má interpretação dos arts. 7º e 97º nº 1 do CPI, arts. 369º a 372º do CC, art. 3º nº 3 do CPC, art. 25º do Estatuto do Medicamento, arts. 37º nº 2, 39º e 87º al. b) do CPTA, art. 133º nº 2 al. c) e d) do CPA e arts. 17º, 18º, 62º e 266º da CRP.

A Entidade recorrida e as Contra - Interessadas contra - alegaram pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

II – Na sentença em recurso foram dados como provados, com base nos documentos juntos aos autos, os factos constantes das alíneas A) a K), de fls. 602 a 604, que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

III - Não tendo sido impugnada a matéria factual assente, em questão está saber se os actos de concessão das AIMs, às contra - interessadas, proferidos pela Vice - Presidente do Conselho de Administração do Infarmed, por despachos de 30.04.2009, 26.05.2009, 20.05.2009, 29.05.2009 e 20.05.2009 dos medicamentos genéricos contendo como substância activa o “Clopidogrel”, protegido pela patente nº 98224 (al. A) dos factos dados como provados), são ou não nulos por violação dos direitos emergentes de patente e de propriedade industrial, direitos fundamentais de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias consagrados na CRP.

Na sentença recorrida, entendeu o tribunal a quo, no essencial e em resumo, que de acordo com o DL nº 176/2006 de 30.08 e das Directivas Comunitárias, “o Infarmed, na concessão das AIM não está obrigado – desde logo porque não tem atribuições e competências para tanto – a verificar se para aquele medicamento genérico a introduzir no mercado existe ou não uma patente vigente que proteja a substância activa ou o processo de fabricação” e que “a simples concessão do AIM não lesa por si só, os direitos de patente, lesão essa que só se verificará com a posterior comercialização dos medicamentos (…)”, e ainda que “Das Directivas acima referidas e do Decreto - Lei nº 176/2006, de 30.08, também não decorre a obrigação de instrução do pedido de AIM com a prova de inexistência de patentes que possam ser violadas com a posterior comercialização do medicamento a autorizar a introdução no mercado. Da aplicação conjugada dos artigos 6º, 8º nº 3, 26º, 118º, 126º, da Directiva 2001/83/CE, do Parlamento europeu e do Conselho de 06.11.2001, 10º nº 2 al. b) da versão da Directiva 2004/27/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho de 31.03.2004, 3º nºs 1 e 2 do DL nº 269/2007 de 26.07, 3º nº 1 al. nn), 14º nº 1, 15º, 16º, 19º nº 3 e 25º do Decreto - Lei nº 176/2006 de 30.08, decorre, de forma diferente, que o Infarmed na concessão do AIM não está obrigado a verificar se para aquele medicamento genérico a introduzir no mercado existe ou não uma patente vigente que proteja a substancia activa ou o processo de fabricação.”.

Após, o que cita um Acórdão do TJCE e menciona os docs. de fls.265a 267, da CE e acaba por concluir que “(…)Quanto a outros interesses económicos e designadamente os decorrentes de eventuais infracções a um pretenso direito de patente – de produto ou de processo - conforme a citada legislação comunitária e respectiva jurisprudência e recomendações, trata - se de matéria cuja protecção incumbe, em primeira linha, aos interessados particulares visados, a fazer - se através dos competentes tribunais de comércio, com ou sem a adopção de providências cautelares. Essa defesa não cabe aos órgãos nacionais que têm competência e atribuições para conceder AIM’s ou fixarem PVP, pois tais competências estão orientadas para a defesa e promoção da saúde pública e não para a defesa dos interesses económicos abrangidos por direitos de propriedade industrial.

Salvo o devido respeito assim o não entendemos.

Ao caso em apreço é aplicável o DL nº 176/2006 de 30/08, vigente à data dos actos impugnados de concessão das AIMs.

Na verdade, sendo certo que o novo Estatuto do Medicamento (DL nº 176/2006) e as Directivas Comunitárias por ele transpostas não contêm uma norma expressa, que imponha, como condição da concessão AIM de medicamentos genéricos, a caducidade de direitos de propriedade industrial incidentes sobre a substância activa dos medicamentos, os mesmos diplomas não deixam contudo de salvaguardar a comercialização e a AIM ao “respeito pela Lei “, como decorre dos arts. 29º nº 1, 77º nº 1 e 14º nº 4 do actual EM (DL 176/2006) e “sem prejuízo dos direitos da propriedade industrial“ (arts. 19º e 20º do mesmo Estatuto).

Aliás, como refere o Prof. Vieira de Andrade, in “O Alcance da Protecção do Direito Fundado em Patente no Âmbito do Procedimento Administrativo de Autorização da Comercialização de Medicamentos“, «As Directivas – diferentemente dos regulamentos comunitários – constituem “leis quadro”, “normas incompletas de conteúdo vinculativo”, que determinam objectivos, mas conferem um espaço próprio ao legislador nacional que as transpõe para escolher a forma e os meios para prossecução desse objectivo (…)
(…)
É que acima da directiva comunitária está o Tratado ( de Maastricht ) que …, admite, no artigo 36, medidas restritivas nacionais fundadas na propriedade industrial.
Na realidade …, apesar de não constituir um valor legislativamente “comunitarizado” a protecção da propriedade industrial e, em especial, das patentes a nível europeu continua a ser fortemente defendida, reforçada no âmbito internacional pela aplicabilidade do Acordo TRIPS. » (O Acordo TRIPS foi aprovado em Portugal pela resolução nº 75-B/94 de 27/12 e ratificado pelo Decreto do PR nº 82/94 da mesma data).

Ora, como se afirma no sumário do Ac. deste TCAS, de 14.02.2008, Rec. 03165/07, que temos vindo a citar noutros pareceres, « O direito de propriedade consagrado no art. 62º. da CRP, que abrange os direitos de propriedade industrial, onde se incluem os direitos fundados em patentes de medicamentos, tem sido considerado um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias para efeitos de aplicação do regime constantes dos arts. 17º. e 18º. da CRP. ».

Ainda do mesmo Acórdão, passamos a citar o seguinte extracto: « (…) pronunciou-se o Prof. Mário Aroso de Almeida, em parecer junto aos autos, com base no entendimento que “a AIM tem o único sentido de habilitar o respectivo titular à comercialização do medicamento em causa no mercado português”
Da mesma opinião é o Prof. J. C. Vieira de Andrade (cfr. parecer constante de fls. 3099 a 3127 dos autos) que … refere o seguinte: “Poder-se-ia tentar negar esta construção relativamente à AIM, afirmando que só a comercialização efectiva do produto é que pode afectar o direito de exclusivo e que esta pressupõe outras intervenções administrativas posteriores. Tendo em consideração o carácter complexo que pode assumir o procedimento administrativo destinado à comercialização de medicamentos, o argumento poderia ter algum sentido, caso se concluísse que a AIM era apenas um acto prévio nesse procedimento, susceptível de ser autonomizado para o efeito de dispensar a consideração dos direitos de exclusivo, a qual poderia (e, então, deveria) ser conseguida mais adequadamente em momentos procedimentais posteriores.
Não parece, no entanto, que essa argumentação possa proceder, na medida em que a AIM é, na realidade, a decisão administrativa principal no que respeita à comercialização do medicamento e integra a fase do procedimento em que se mostra adequado a consideração do exclusivo de terceiro, que se refere a esse determinado produto. Desde logo, outras eventuais autorizações de comercialização não se referem aos medicamentos, mas à entidade comercializadora, e não tem sentido, a esse propósito, tomar em linha de conta a existência de um exclusivo decorrente de produto patenteado. Por outro lado, a fixação do preço de venda ao público do medicamento e da comparticipação do Estado nada têm a ver com a validade da patente e constituem seguramente momentos procedimentalmente menos adequados do que o da AIM para o controlo da legitimidade da comercialização do produto.
Concluímos, pois, que a intervenção administrativa na concessão da AIM configura a decisão central no procedimento administrativo de comercialização de medicamentos e, por isso, a haver algum, será este o momento adequado para considerar a eventual existência de exclusivos que ponham em causa essa comercialização relativamente a um determinado produto”.
Aderindo a estas posições e uma vez que a comercialização não é uma consequência meramente provável da AIM, mas o único efeito com ela pretendido, entendemos que o Infarmed não pode conferir o direito de comercializar o medicamento contra a patente quando concede a AIM.» (bold nosso ).

Com efeito, dispõe o art. 101.º nºs 1 a 3 do actual CPI (DL nº 16/2008 de 04/01):
Direitos conferidos pela patente
1 - A patente confere o direito exclusivo de explorar a invenção em qualquer parte do território português.
2 - A patente confere ainda ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, o fabrico, a oferta, a armazenagem, a introdução no comércio ou a utilização de um produto objecto de patente, ou a importação ou posse do mesmo, para algum dos fins mencionados.
3 - O titular da patente pode opor-se a todos os actos que constituam violação da sua patente, mesmo que se fundem noutra patente com data de prioridade posterior, sem necessidade de impugnar os títulos, ou de pedir a anulação das patentes em que esse direito se funde.“ (bold nosso).

Por sua vez dispõe o art. 102º al. c) do mesmo Código:
“Limitação aos direitos conferidos pela patente
Os direitos conferidos pela patente não abrangem:
(…)
c) Os actos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo experiências para preparação dos processos administrativos necessários à aprovação de produtos pelos organismos oficiais competentes, não podendo, contudo, iniciar-se a exploração industrial ou comercial desses produtos antes de se verificar a caducidade da patente que os protege;

Ora, uma coisa são as experiências para preparação de processos administrativos, isto é, com vista à apresentação dos elementos farmacológicos e documentais necessários à instrução de um processo administrativo ( cfr. nº 8 do art. 19º do actual EM ) com vista à sua aprovação posterior, outra é o acto final de um procedimento administrativo de concessão da AIM, cuja única e principal finalidade é, como o nome indica, permitir a introdução do medicamento no mercado e pressupõe, por parte do requerente da autorização, “uma intenção séria e actual de comercialização imediata ou a curto prazo do produto”, tendo o ónus da comercialização em determinado prazo (de 3 anos – art. 77º nº 3 DL 176/06).

Assim, face aos direitos concedidos pela patente, pelo diploma ora citado, e face ao que acima se referiu sobre o direito de propriedade consagrado no art. 62º da CRP, que abrange os direitos de propriedade industrial, onde se incluem os direitos fundados em patentes, por um lado e os interesses que subjazem à autorização de comercialização dos medicamentos genéricos consignados na legislação em causa, de concessão da AIM, importa que o Infarmed actue, caso a caso, adequadamente na compatibilização e harmonização de tais normativos.

No caso em apreço, atento o disposto nos arts. 19º nº 1, 20º nº 1, 14º nº 4 e 77º nº 1 do actual EM, entendemos, que não podia ser concedida sem mais as AIMs dos medicamentos em causa como “genéricos”, uma vez que não constava do processo administrativo qualquer informação de que haviam caducado os direitos conferidos pela patente sobre a substância activa.

Na verdade, mais uma vez citando o Prof. Vieira de Andrade, na obra atrás mencionada, « Os direitos de exclusivo de comercialização do titular de uma patente em vigor, na medida em que obrigam os requerentes e condicionam os efeitos visados pela decisão administrativa, integram a relação jurídica substancial subjacente ao procedimento administrativo de concessão da AIM e reclamam aí necessariamente algum relevo procedimental, tendo em conta que essa autorização é o acto principal de um procedimento que visa exclusivamente permitir a comercialização do medicamento.
Os interessados no procedimento não são apenas aqueles que, nos termos da lei, são os interventores principais, mas ainda aqueles que possam ser afectados directamente nos seus direitos pelas decisões que aí venham ou possam vir a ser tomadas, ainda que não tenham obrigatoriamente de ser chamados ao procedimento.
(…)
Estando em causa um direito reconhecido e titulado por um verdadeiro acto administrativo, a consideração da patente no procedimento de autorização por parte da autoridade administrativa não é impraticável, nem exige que o órgão da Administração ultrapasse as suas competências e atribuições. » ( bold nosso ).

E, assim sendo, que de acordo com o disposto nos arts. 56º, 87º, 88º e 91º do CPA pudesse e devesse o ora recorrido Infarmed, em sede de instrução dos procedimentos administrativo, que culminaram nos actos de concessão das AIMs dos medicamentos genéricos em causa, ter diligenciado no sentido de verificar da caducidade ou não das patentes tituladas pela ora recorrente, tendo em conta as disposições legais atrás citadas e, após, verificada que fosse a validade das patentes, proferir acto final de indeferimento de concessão das respectivas AIMs ou de deferimento, mas condicionado à caducidade das patentes – no sentido do Infarmed apor um termo suspensivo às AIMs concedidas, a fim das mesmas só produzirem efeitos a partir do termo de vigência da patente, ou seja, do deferimento condicionado, cfr. o recente Acórdão deste TCAS de 01.06.2011, Rec. 06400/10, in www.dgsi.pt/.

Não o tendo feito, que tal implique, a nosso ver, um défice instrutório gerador de ilegalidade, que levou ao acto final de concessão das AIMs em causa, com violação do direito de propriedade consagrado no art. 62º da CRP, que abrange os direitos de propriedade industrial, onde se incluem os direitos fundados em patentes de medicamentos, de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias para efeitos de aplicação do regime constantes dos arts. 17º. e 18º. da CRP e como tal nulo (art. 133º nº 2 al. d) do CPA).

Pelo que, ao dessa forma não ter considerado, a sentença recorrida padeça, em nosso entender, do imputado vício de violação do art. 133º nº 2 al. d) do CPA e dos arts. 62º, 17º e 18º da CRP.

A vir a ser revogada a sentença recorrida e declarados nulos os actos de concessão das AIMs dos medicamentos genéricos em causa, tal obstará à fixação dos PVP e impedirá a sua comercialização, satisfazendo, assim, integralmente os interesses que levaram ao pedido de condenação da DGAE a abster - se de emitir os preços de venda de venda ao público dos mesmos medicamentos. Pelo que, nesse caso, ocorrerá, a nosso ver, inutilidade ou impossibilidade da lide com a consequente extinção da instância quanto a este pedido.

V – Assim, em face do exposto e em conclusão, emito parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso interposto revogando a sentença recorrida e substituindo - a por outra que declare nulos os actos administrativos, da Vice - Presidente do Conselho de Administração do Infarmed, de concessão das AIMs impugnadas para os medicamentos genéricos em causa nos presentes autos e declarada extinta a instância quanto ao pedido de abstenção formulado contra a DGAE.