Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:12/17/2012
Processo:09544/12
Nº Processo/TAF:00000/00/0
Sub-Secção:2.º JUÍZO
Magistrado:Maria Antónia Soares
Descritores:INTIMAÇÃO PARA CONSULTA DE DOCUMENTOS.
PEDIDO DE INFORMAÇÃO SOBRE DADOS CLÍNICOS.
COMPANHIA DE SEGUROS.
DIREITO À INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA.
DEVER DE SIGILO E DEONTOLOGIA PROFISSIONAL.
Texto Integral:Procº nº 09544/12
2º Juízo-1ª Secção
Intimação para consulta
Parecer do M.P.




Vem o presente recurso jurisdicional interposto pela Entidade Requerida, Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, E.P.E., da sentença que decidiu intimá-la a facultar à Requerente, Santander Totta Seguros - Companhia de Seguros de Vida, S.A., “o relatório médico referente às doenças que estiveram na origem do óbito da sua segurada, Maria Carminda Martins Cardoso Melo, com menção das causas, início e duração da doença que o causou”.

Não se conformou, porém, a Entidade Requerida com esta decisão, considerando que padece de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos da alínea d) do nº1 do artº 668º do CPC, por não ter apreciado as questões por si suscitadas na resposta que apresentou, da invalidade do consentimento do de cujos, constante da cláusula da apólice, por sua vez também inválida.

Mais considerou que padece de erro de julgamento, ao ter decretado a intimação ao arrepio das deliberações da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD), bem como dos pareceres da CADA e ainda dos dispositivos legais aplicáveis.

1 . Quanto à nulidade:

Parece-nos que não tem razão, na medida em que não se trata de questões suscitadas autonomamente, mas sim de argumentos invocados com vista à defesa da sua posição de não facultar documentação clínica à seguradora.

Ora, como é sabido, só existe omissão de pronúncia quando não foram apreciadas questões suscitadas pelas partes, não tendo o julgador que rebater todos os argumentos invocados pelas mesmas.

De todo o modo, no âmbito dos poderes de que dispõe este Tribunal Superior, este poderá analisar estes argumentos sobre a alegada invalidade /nulidade da cláusula, caso os mesmos se mostrem relevantes para a decisão da causa

2 . Quanto ao erro de julgamento:

Nos termos do nº3, do artº 6º, da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), aprovada pela Lei nº 46/2007, de 24-8, um terceiro só tem acesso a documentos nominativos se estiver munido de autorização escrita da pessoa a quem os dados digam respeito, ou demonstrar interesse directo, pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade.
Mas, quanto a nós, a referida autorização terá que ser dada em função da respectiva razão apresentada e para um determinado fim e não de forma genérica.
Assim, não será razoável em nome do direito à informação, aproveitar uma autorização dada em vida do segurado para consultar documentos depois da sua morte.
Por outro lado, o interesse da Recorrida não é directo, pessoal e legítimo ou suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade, como iremos demonstrar.

Mas vejamos mais concretamente o caso em análise:

De acordo com a alínea c), da cláusula1.9.2.3, das condições especiais do contrato subscrito a 3-3-2010, o pedido de liquidação do capital seguro deverá ser acompanhado de atestado médico onde se declarem as causas, início e duração da doença, ou lesão que causou a morte.

Esta cláusula tem que ser conjugada com o estipulado na cláusula 11.1 das condições gerais, nos termos da qual, “ o pagamento de qualquer importância relativa a esta apólice, só será exigível após a solicitação à Seguradora, acompanhada dos documentos justificativos exigidos nas Condições Especiais da modalidade contratada”

Ora, de ambas as cláusulas decorre desde logo o seguinte:

Não é à Companhia Seguradora que compete verificar, através da consulta do processo clínico do seu segurado, para efeitos de pagamento aos herdeiros, de quantia decorrente dessa mesma morte, as causas, início e duração da doença ou lesão que causou a morte, mas é a estes herdeiros que, aquando do pedido de tal quantia, que compete apresentar atestado médico onde se declarem as causas da morte pois é apenas isso que se exige nas cláusulas 1.9.2.3. alínea c) e 11.1.

Verifica-se, assim, que estas cláusulas para accionar apenas após a morte da segurada, nada têm a ver com a autorização concedida pela mesma em vida, a qual só poderia ser válida, eventualmente, para consultas de factos anteriores à celebração do contrato, mormente para atestar a veracidade dos dados por si fornecidos para efectivação desse mesmo contrato.

De facto, refere a citada autorização, inserta na Proposta de Seguro Vida Individual de forma vaga e genérica, o seguinte:

“Declaração de Saúde II: Autorizar expressamente qualquer médico e hospitais/clínicas a, mesmo após a ocorrência de um sinistro coberto pelo contrato de seguro, facultar á Seguradora, através de médico conselheiro, toda e qualquer informação que possa necessitar, tendo a garantia de confidencialidade.”

Ora, conforme entende a deliberação nº482/2012, de 7-5-2012, da Comissão Nacional de Protecção de Dados junta a fls 168, este consentimento não é válido para o efeito que a Recorrida pretende, apenas podendo/tendo que, assim, o Recorrente passar um atestado donde conste a causa da morte.

Esta deliberação reduz, aliás, o exigido na alínea c) da cláusula 1.9.2.3.da apólice do seguro atrás transcrita, uma vez que a informação sobre o “início e duração da doença” é uma “cláusula exorbitante”, em relação aos factos necessários ao pagamento da indemnização após a morte do segurado, uma vez que, pela sua própria natureza, a mesma tem a sua fonte apenas na constatação do facto “morte” sem mais.

Assim, a CNPD negou a possibilidade de transmissão de dados de saúde, mesmo aos herdeiros, com base na nulidade da alínea c) da cláusula 8.2 (1.9.2.3.) das Condições Especiais, por violação do disposto na alínea h) do artº 3º e no nº2 do artº 7º da Lei nº 67/98, de 26-10 (LNPD).

Quanto à Comissão de acesso aos dados administrativos (CADA) a mesma tem–se pronunciado diferentemente em diversos casos sendo que no parecer 271/2011 se pronunciou em sentido desfavorável ao pedido de informação, e no parecer nº 176/2012 junto aos autos se pronunciou favoravelmente, embora com um voto de vencido.

Assim sendo, carece a Recorrida de legitimidade tanto para consultar o processo clínico do seu segurado após a sua morte, como para testar a veracidade dos dados que este forneceu aquando da celebração do contrato de seguro e emissão da apólice, por esta questão já estar resolvida pela aceitação do segurado e correspondente pagamento por este da respectiva contrapartida anual.

Para além disso, parece - nos que a intimação determinada pela douta sentença recorrida viola o nº4 do artº 32º da CRP enquanto proíbe o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo nos casos excepcionais previstos na lei ( o que no caso presente não acontece), bem como o artº 7º da LNPD enquanto proíbe a divulgação de dados pessoais sensíveis, referentes, nomeadamente à saúde e ainda o nº2 do artº 4º da Lei nº 1272005, de 26-1 na medida em que determina que as unidades do sistema de saúde referidas no seu artº2º devem impedir o acesso indevido de terceiros aos processos clínicos e aos sistemas informáticos que contenham informação de saúde.

Ademais, compreende-se inteiramente a posição da entidade requerida ao não querer facultar determinados dados clínicos da pessoa falecida, posteriores à autorização constante do seguro, sem prévia autorização pessoal desta ao Hospital, uma vez que a informação pretendida viola claramente o sigilo profissional e os deveres deontológicos a que está obrigada ( cfr Base XIV, alínea d), da Lei de Bases da Saúde - Lei nº 48/90, de 24-8 e artº 27º da Lei nº 67/98, de 26-10).

Para além disso, estamos perante um contrato de seguro que vincula apenas as partes e não terceiros, pelo que a cláusula autorizativa é irrelevante para o que a Recorrida pretende.
E finalmente, a autorização constante do contrato nada refere quanto a dados a fornecer depois da morte da segurada e é uma cláusula onde esta apenas se compromete a autorizar “expressamente” o acesso a determinado documento, o que só poderia acontecer em vida da segurada.e “expressamente”, o que significa concretamente, pessoalmente e pontualmente.

Assim, apenas interessa saber se a autorização a que se refere o nº3, do artº 6º, da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), aprovada pela Lei nº 46/2007, de 24-8, é ou não válida para este caso.

Ora, entendemos que não.

De facto, tal normativo refere-se apenas a documentos nominativos, sendo que os documentos sobre a saúde de uma pessoa, dado o seu melindre, embora seja um documento nominativo, rege-se também por outras normas e princípios adicionais, conforme decorre, nomeadamente, do nº4 do artº 7º da Lei nº67/98, de 26-10 que aprovou a Lei de Protecção de Dados-LPD, segundo o qual “ O tratamento dos dados referentes à saúde e à vida sexual, incluindo os dados genéticos, é permitido quando for necessário para efeitos de medicina preventiva, de diagnóstico médico, de prestação de cuidados ou tratamentos médicos ou de gestão de serviços de saúde, desde que o tratamento desses dados seja efectuado por um profissional de saúde obrigado a sigilo ou por outra pessoa sujeita igualmente a segredo profissional, seja notificado à CNPD, nos termos do artigo 27.o, e sejam garantidas medidas adequadas de segurança da informação”.

Por outro lado, a autorização escrita da segurada não é suficientemente relevante para o que a recorrida pretende, uma vez que não descrimina concretamente a documentação a revelar e foi obtida em forma de adesão a contrato tipo, cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar.

Além disso, a cláusula foi elaborada sem qualquer destaque, com o intuito de eventualmente não cumprir o contrato, através de dados fornecidos ou permitidos pelo segurado, o que inverte o ónus da prova o que é proibido nos termos do DL nº 446/85, de 25-10 que regula as clausulas contratuais gerais.

Assim, não existe interesse directo pessoal e legítimo da seguradora, suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade.

Na verdade, o direito à informação da seguradora no caso vertente está longe de ser um direito absoluto, devendo serem tidos em consideração outros direitos constitucionais igualmente relevantes, como o direito de reserva da vida privada e intimidade das pessoas os quais vinculam também as entidades públicas( cfr artºs 26º e 268º nº2 in fine da CRP) elo que terão Assim parece-nos que para além do interesse da seguradora não ser legítimo, no sentido de possibilitar informação clínica referente à segurada para fins diversos do mero pagamento do seguro por morte, como seja verificar a veracidade das declarações prestadas pela segurada aquando da celebração do contrato, é desproporcional ao bem lesado da reserva da vida privada da segurada.

Deste modo, parece-nos que não existe um interesse directo pessoal e legítimo suficientemente relevante segundo o princípio da proporcionalidade por parte da requerente no acesso à informação pretendida.

E uma vez que já foi entregue à requerente atestado médico de onde consta a causa da morte da segurada em causa, nada mais tem direito a exigir para pagar o montante referente ao seguro por morte.

Nestes termos, o pedido de envio “relatório médico com menção a doenças e respectivas datas de diagnóstico e tratamentos efectuados” formulado à entidade requerida por ofício de 20-3-2012 junto a fls 10, não pode, a nosso ver, ser satisfeito.

Termos em que, pelo exposto, e concordando, no mais, com a deliberação da CNPD de 7-5-2012 e com a tese do recorrente, emitimos parecer no sentido do provimento do presente recurso jurisdicional com a consequente revogação da sentença recorrida bem como da intimação pela mesma decretada.

A Procuradora-Geral Adjunta



Maria Antónia Soares