Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:11/14/2014
Processo:11608/14
Nº Processo/TAF:00000/00/0
Sub-Secção:2.º JUÍZO - 1.ª SECÇÃO
Magistrado:Maria Antónia Soares
Descritores:CONTRATO DE CONCESSÃO DE EXPLORAÇÃO E GESTÃO DE SISTEMA MULTIMUNICIPAL DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E DE SANEAMENTO.
CONTRATO DE FORNECIMENTO.
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS A ENTIDADE PÚBLICA.
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS.
Texto Integral:Procº nº 11608/14

2º Juízo-1ª Secção

Acção Administrativa Especial

Recurso em separado

Despacho saneador

Vem o presente recurso jurisdicional interposto pelo Município do ..., do despacho saneador, proferido ao abrigo do artº 87º do CPTA, que considerou improcedente a excepção da incompetência dos tribunais administrativos em razão da matéria por si suscitada na contestação que apresentou na acção administrativa comum contra si proposta por Á…, S.A.

I -Questão prévia:

Do despacho saneador em crise deveria ter havido reclamação para a conferência antes da interposição do presente recurso.

De facto, como é sabido, é unânime a jurisprudência tanto deste TCAS, como do STA, no sentido da obrigatoriedade de reclamação para a conferência, antes da interposição de recurso jurisdicional, nas acções administrativas especiais de valor superior à alçada dos TAF, que foram julgadas por juiz singular, ao contrário do determina o artº 40º nº3 do ETAF que estabelece a obrigatoriedade de, neste tipo de acções, as decisões serem proferidas por formação de três juízes.

Assim, em conjugação com o artº 27º nº1 e nº2 e 87º do CPTA, tendo o despacho saneador em crise sido proferido por juiz singular/relator, do mesmo cabia reclamação para a conferência ( cfr, entre muitos, os acs do STA de 13-5-2009 e de 3-4-14, in recºs nºs 0246/08 e 0179/14, respectivamente).

Deverá, pois, ser revogado o despacho de admissão de recurso de 2-10-2014 e o processo baixar á primeira instância a fim de ser apreciada a eventual tempestividade da convolação do recurso em reclamação para a conferência, sendo o prazo de recurso 15 dias, nos termos do artº 638º nº1 e alínea b) do nº1 do artº 644º, ambos do CPC e aplicando-se o prazo adicional dos três dias caso seja paga a multa correspondente.

II - Do mérito do recurso jurisdicional:

A Autora, ora recorrida e o douto despacho recorrido consideram que o montante em dívida decorre de um contrato administrativo de concessão à autora, ora recorrente, pelo Estado, de exploração e gestão do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Á gua e de Saneamento do Alto Zêzere e Côa para tratamento e distribuição de água para consumo público.

Assim, sendo, defendem que estamos no domínio do incumprimento de um contrato administrativo pelo que serão competentes os tribunais administrativos para apreciar a dívida constantes das facturas cobradas ao Município do ... pela recorrida no âmbito do citado contrato.

Isto, sob pena – diz a recorrida – de ter de se propor uma acção por incumprimento do contrato para obter o pagamento objecto do contrato nos tribunais administrativos, e uma acção junto do tribunal tributário para obter o pagamento correspondente à repercussão do tributo.

Afigura-se-nos que terá razão:

De facto e antes do mais, não existe nenhum contrato de concessão entre o Município e a autora, ora recorrida, mas sim um contrato de fornecimento.

O contrato de concessão que existe é entre o Estado e a recorrida, o qual atribui à AZC, S.A. poderes de autoridade para cobrar taxas aos destinatários dos seus serviços e pela respectiva prestação ( cfr artºs 1º a 26º da petição).

Assim sendo, tudo se passa como se fosse o próprio Estado a cobrar as taxas aos Municípios.

Só que não se tratam de verdadeiras taxas uma vez que as taxas só são devidas pela prestação de serviços a particulares ou entidades privadas e não a entidades públicas.

Assim, as facturas passadas para pagamento das referidas taxas não são verdadeiros títulos executivos cujo meio de impugnação é a execução fiscal, mas sim meros documentos eventualmente probatórios dos factos e valores que atestam.

Por questões fiscais entendem-se “todas as que emergem da resolução autoritária que imponha aos cidadãos o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos do Estado e de mais entidades públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que surjam em virtude do exercício de tais funções ou que com elas estejam objectivamente conexas” (do Acórdão deste Tribunal de 26/09/2006, Processo n.º 14/06).

No caso vertente não estamos perante nenhuma resolução autoritária da empresa A…, S.A., a nível fiscal, para com o Município do …, ainda que aquela detenha poderes de autoridade transmitidos pelo Estado mediante o contrato de concessão celebrado entre este e a citada empresa, uma vez que não sendo o Município uma entidade privada não pode figurar como sujeito passivo de uma relação tributária.

Estamos, sim, no nosso entender, perante uma questão emergente da execução de um contrato de fornecimento de recursos hídricos e saneamento, celebrado entre a recorrida e o recorrente, por falta de pagamento dos montantes das facturas relativas à prestação dos serviços descriminados e quantificados em cada uma das facturas.

E prova disso é que o recorrente, na sua contestação, invocou questões de facto que põem causa o respectivo pagamento, atinentes ao incumprimento do contrato por parte da aqui recorrida, não sendo a acção executiva o meio adequado para apreciação desses factos e produção da competente prova.

Neste sentido decidiu o acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte no acórdão de 13-5-2011, in procº nº 534/09.1 BEBRG, citado no acórdão de 25-1-2013 ( p. 00377/10.0 ONEPRT), que decidiu em sentido contrário e vem citado pelo recorrente.

Segundo o citado acórdão, com o qual concordamos,

“…Sendo «… o contrato de fornecimento contínuo um contrato administrativo [al. g) do n.º 2 do art. 178.º do CPA] e estando em causa o incumprimento de obrigações dele emergentes, facilmente se percebe que a questão se enquadra no âmbito de uma relação jurídica administrativa e não de uma relação jurídica fiscal. O litígio não é relativo a uma ‘questão fiscal’, na tese ampliativa defendida pela jurisprudência, segunda a qual questões fiscais são ‘as que exigem a interpretação e aplicação de quaisquer normas de Direito Fiscal substantivo ou adjetivo para a resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública’ (cfr. Ac. do Pleno do STA de 12.11.2009, proc. n.º 0366/09). … Ora, a ação respeita ao cumprimento de um contrato administrativo, não envolvendo diretamente a interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situem no campo da atividade tributária. Pretende-se apenas o pagamento de dívidas resultantes do não cumprimento pontual do contrato. … Como vimos, a ação não tem por objeto um ato tributário ou o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal, mas a satisfação de um crédito emergente de um contrato administrativo. … Mas, mesmo que se pretenda avançar pela distinção entre taxa e peço, sempre se dirá que a contrapartida exigida na ação consubstancia um preço devido pela prestação de um serviço público. … À primeira vista, como o preço pago pela prestação do serviço público de fornecimento de água … é um serviço que por essência pertence à titularidade do Estado, e portanto não pode ser objeto de oferta e procura, dir-se-á que tem as caraterísticas de taxa. … Marcello Caetano, escrevia que ‘o preço pago pelas prestações fornecidas pelos serviços públicos geridos diretamente por pessoas coletivas de direito público tem a natureza jurídica de taxa e nessa qualidade está sujeito ao regime de cobrança das receitas fiscais’ (cfr. Manual de Direito Administrativo, Vol. II, pág. 1061 - sobre a distinção entre taxa e preço, cfr. Alberto Xavier, Manual de Direito fiscal, 1974, pág. 53 e ss.; Sousa Franco, Manual de Finanças Públicas e Direito Financeiro, Vol. I, Lisboa, 1974, pág. 760, Teixeira Ribeiro, Finanças Públicas, pág. 262). … Acontece que, no caso dos autos, a tarifa não regula as relações contratuais entre o Município e os consumidores, mas sim as relações entre o concessionário e o Município. … Nesta relação, a tarifa tem por finalidade remunerar o concessionário pelos serviços contratados, assumindo assim a natureza de preço. Quando um serviço público é concedido, a tarifa é a principal fonte de retribuição do concessionário, mesmo que não chegue a cobrir o custo de produção (preço político). Marcello Caetano, dizia que a tarifa desempenha uma dupla função: ‘nas relações entre o concessionário e o público, a de regular o preço das prestações do serviço; nas relações entre concedente e concessionário, a de regular os termos em que aquele consente a este a remuneração da sua iniciativa e dos seus capitais’ (Manual ob. cit. pág. 1100). … Basta ler a legislação ao abrigo da qual foram celebrados os contratos de concessão e de fornecimento de água …, para se qualificar a contrapartida do Município como um preço. … A atividade de captação, tratamento e distribuição de água para consumo público, recolha, tratamento e rejeição de águas residuais urbanas, é uma atividade económica que, nos sistemas multimunicipais, pode ser concessionada pelo Estado a empresas cujo capital seja maioritariamente subscrito por entidades do setor público, nomeadamente autarquias locais (…). O regime jurídico de exploração e gestão dos sistemas multimunicipais e municipais dessa atividade consta do DL n.º 379/93 …, do DL n.º 319/94 … (relativo ao abastecimento de água para consumo público) e do DL n.º 162/96 … (relativo à recolha, tratamento e rejeição de efluentes). … Os sistemas multimunicipais, aqueles que servem pelo menos dois municípios e exigem um investimento efetuado predominantemente pelo Estado (n.º 2 do art. 1.º da Lei n.º 88-A/97), são sistemas em «alta», ou seja, que funcionam a montante da distribuição de água ou a jusante da coleta e tratamento de efluentes e resíduos sólidos e que apenas podem ser criados e concedidos por decreto-lei (n.º 1 do art. 3.º do DL n.º 379/93). Os municípios que os utilizam são obrigados a proceder à ligação dos seus sistemas municipais a esses sistemas e à criação das condições para uma boa harmonização entre ambos os sistemas. Por isso, regra geral, a distribuição de água para consumo público e a recolha, tratamento e rejeição de efluentes é efetuada a coberto de duas relações contratuais: contrato de concessão entre o Estado e uma empresa de capitais maioritariamente públicos e um contrato de fornecimento entre o concessionário e os utilizadores (n.º 2 do art. 2.º do DL 379/93 e art. 5.º do DL n.º 319/94). O contrato de concessão é um contrato administrativo celebrado segundo as bases anexas ao DL 319/94 e que dele fazem parte integrante. … No que aqui interessa, que é a qualificação da obrigação peticionada como taxa ou preço, o artigo 5.º do DL n.º 379/93 prescreve que o decreto-lei que estabelece a concessão deve prever a remuneração do investimento e a aprovação pelo Estado das tarifas a cobrar. As Bases XIII e XIV do contrato de concessão, que fazem parte integrante do DL n.º 319/94, regulam sobre o financiamento da concessionária e sobre os critérios para a fixação das tarifas: a primeira, considera fonte de financiamento as receitas provenientes das tarifas cobradas; e a segunda, considera que as tarifas são ‘fixadas por forma a assegurar a proteção dos interesses dos utilizadores, a gestão eficiente do sistema, o equilíbrio económico-financeiro da concessão e as condições necessárias para a qualidade do serviço’, devendo assegurar a amortização dos investimentos iniciais e posteriores, a manutenção, reparação e renovação dos equipamentos, a adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária e atender ao nível de custos necessários para uma gestão eficiente dos sistemas. (…). As tarifas fixadas pelo Estado indicam o valor de cada metro cúbico de água fornecida pela concessionária ao utilizador. Através de contratos de fornecimento, os municípios utilizadores do sistema intermunicipal contratam um determinado volume de água medido à entrada dos reservatórios de chegada de cada utilizador, o qual é faturado com a periodicidade mensal (Base XXVIII e XXXI). … Como se vê, nas relações entre concessionária e município utilizador, as tarifas visam cobrir os gastos de exploração e de equipamento do serviço público de fornecimento de água aos municípios, e portanto, apesar de aprovadas pelo concedente, assumem a natureza de preço fixo. Os utilizadores pagam à concessionária o volume de água e de efluentes contratado, calculando-se cada metro cúbito em função de uma tarifa de preços pré-fixada pela concedente. … Ora, se o litígio está centrado no volume de água que a recorrida recebeu e não pagou e no volume de efluentes que entregou e não pagou, então o que está em causa é uma relação jurídica administrativa e não uma questão fiscal ...».

Assim, e salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que no caso vertente é competente o tribunal administrativo para apreciar e decidir a acção em análise.

Termos em que, ainda que se considerasse não haver reclamação para a conferência, a apreciação imediata do recurso jurisdicional, levaria, no nosso entender, à improcedência do mesmo e à manutenção da douta decisão recorrida.


A Procuradora - Geral Adjunta

Maria Antónia Soares