Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:11/08/2012
Processo:09364/12
Nº Processo/TAF:433/11.7BECTB
Sub-Secção:2.º JUÍZO
Magistrado:Clara Rodrigues
Descritores:ACÇÃO ESPECIAL.
NÃO RENOVAÇÃO CARTÃO VIGILANTE.
INCONSTITUCIONALIDADE DA ALÍNEA D) N.º 1 ARTIGO 8.º D.L. 35/2004 DE 21/02 POR VIOLAÇÃO DO N.º 4 DO ARTIGO 30.º DA CRP E DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
Texto Integral:
Tribunal Central Administrativo Sul


Proc. nº 09364/12 – Rec. Jurisdicional
2º Juízo/1ª Secção ( Contencioso Administrativo )


Venerando Juiz Desembargador Relator

A Magistrada do MºPº, junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, notificada nos termos e para efeitos do artº 146º nº1 do CPTA, vem emitir parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, nos seguintes termos:

I – O presente recurso vem interposto, pelo então A., da sentença proferida a fls. 146 e segs., pelo TAF de Castelo Branco, que julgou improcedente o peticionado na presente acção especial de impugnação.

Nas conclusões das suas alegações de recurso, que delimitam o âmbito do recurso, o recorrente imputa à sentença recorrida violação da al. d) do art. 8º do DL nº 35/2004 de 21/02, com as alterações do DL nº 198/2005 de 10/11 e pela Lei nº 31/2008 de 08/08 e o disposto nos arts. 30º nº 4, 18º nº 1 e 204º todos da CRP.

O Ministério recorrido não apresentou contra - alegações de recurso.

II – Na sentença em recurso foram dados como provados, com base na prova documental e por acordo, os factos constantes do parágrafo único §) sob o título “Factualidade assente, de fls. 146, in fine, a 155, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

III – Em questão está essencialmente conhecer se o disposto na al. d) do nº 1 do art. 8º ambos do DL nº 35/2004 de 21/02 (conjugado com o art. 10º do mesmo diploma) é de aplicação automática, ou seja, se, em face do registo criminal, a administração mais não tem que verificar se está perante ou não uma das situações aí enumeradas, que só por si excluem a possibilidade de concessão ou renovação de licença.

Com efeito, da conjugação das disposições dos arts. 10º nºs 1 e 3 e 8º nº 1 al. d) do DL nº 35/2004 de 21/02 a renovação do cartão profissional de vigilante implica, entre o mais: “Não ter sido condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso contra a vida, a integridade física ou a reserva da vida privada, contra o património, de falsificação, contra a segurança das telecomunicações, contra a ordem e tranquilidade públicas, de resistência ou desobediência à autoridade pública, de detenção ilegal de armas ou por qualquer outro crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos, sem prejuízo da reabilitação judicial”.

Ora, o recorrente foi condenado com sentença transitada em julgado em 02.04.2009 pela prática de um crime de maus tratos do cônjuge ou análogo, p. p. pelo art. 152º do CP, na pena de 20 meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova por igual período.

A moldura penal daquele crime vai de um a cinco anos de prisão.

Por decisão judicial de 09.06.2011 foi declarada extinta a referida pena nos termos do art. 57º do CP e determinada a remessa de boletins ao registo criminal para efeitos do art. 5º nº 1 al. a) da Lei nº 57/98 de 18/08 (cfr. doc. de fls. 141 e 142 dos autos).

Pelo que à data da prolação do acto impugnado (21-11-2011) a pena em questão já se encontrava extinta (embora à data da emissão do registo criminal constante do PA, em 2010, ainda não constasse a extinção da pena), sem que a entidade recorrida, no procedimento, tivesse diligenciado pela obtenção do registo criminal actualizado, antes de proferir a decisão final

Tendo feito operar automaticamente a referida condenação penal por referência á referida al. d) do nº 1 do art. 8º do DL nº 35/2004, excluindo a possibilidade de renovação de licença.

Ora, conforme decidiram vários Acórdãos do Tribunal Constitucional, entre eles, o Ac. nº 25/2011 de 12 de Janeiro, também citado pelo recorrente, num caso de revogação da licença de um guarda nocturno, que se pode equiparar ao dos presentes autos, que passamos a citar na parte que nos importa «O artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, estabelece que «[N]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».

Como já se escreveu no Acórdão n.º 368/08, esta norma constitucional «visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por confronto com os padrões normativos aplicáveis. O que se proíbe é a automática imposição de uma sanção, como efeito mecanicisticamente associado à pena ou por esta produzido, sem a mediação de qualquer juízo, em concreto, de ponderação e valoração da sua justificação e adequação, tendo em conta o contexto do caso. E a proibição é necessária para garantia de efectivação de princípios fundamentais de politica criminal (…)».

Ou seja, como se sustentou no Acórdão n.º 284/89:

«(…) com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana».

A proibição dos efeitos necessários das “penas” estende-se, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à “condenação” pela prática de certos crimes (v., neste sentido, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 505). E é aplicável não apenas no âmbito do ilícito penal, mas também no âmbito do ilícito administrativo, nomeadamente, quando estejam em causa efeitos de ilícitos disciplinares (cfr., por todos, o Acórdão n.º 562/2003 e a resenha jurisprudencial nele constante).

8. No caso em apreço, situamo-nos no âmbito do ilícito penal, uma vez que vem questionada a perda da licença para o exercício da actividade de guarda-nocturno como efeito da condenação pela prática de um crime doloso.

Importa, em primeiro lugar, averiguar se a perda desta licença equivale à perda de “direitos civis, profissionais ou políticos” e, como tal, se inclui no âmbito da proibição do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.

A actividade de guarda-nocturno só pode ser exercida mediante a atribuição de uma licença, que é válida por um ano e cuja renovação depende do preenchimento de um conjunto de requisitos (cfr. artigo 14.º do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno).

Mas esta actividade, embora careça de licenciamento para ser exercida, não deixa de ter a natureza de uma actividade profissional remunerada, que consiste na «ronda e vigia, por conta dos respectivos moradores, dos arruamentos da respectiva área de actuação, protegendo as pessoas e bens» (cfr. artigos 16.º, n.º 1, e 17.º do Regulamento).

(…)

A proibição de perda automática de “direitos profissionais” constante do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange também, além do mais, os direitos de escolha e exercício de profissão, assegurados pelo artigo 47.º da Constituição.

Neste sentido já se pronunciou o Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos Acórdãos n.º 154/2004 e 239/2008 (no mesmo sentido v. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 505).

No Acórdão n.º 154/2004 (que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma que estabelecia as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi), estava em causa uma norma que impedia quem tivesse sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação, de exercer a actividade de motorista de táxi, e concluiu-se que essa norma tinha como efeito «a perda das liberdades de escolher e de exercer esta profissão de motorista de táxi», ou seja, a perda de um direito profissional, proibida pelo artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.

E no Acórdão n.º 239/08, o Tribunal também declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que não permitia que uma pessoa condenada pela prática de qualquer crime doloso se candidate a agente da Polícia Marítima, com fundamento em que constituía «uma interdição ao exercício do direito constitucional de acesso a uma determinada profissão (artigo 47.º, n.º 1, da C.R.P.), como consequência da existência de uma condenação penal anterior, sem qualquer ponderação da adequação e da necessidade de aplicação de tal medida de interdição, o que contraria a proibição contida no artigo 30.º, n.º 4, da C.R.P.».

No caso em apreço, estamos igualmente perante uma interdição de exercício de uma actividade profissional, a de guarda-nocturno. De facto, a condenação pela prática de um qualquer crime doloso não tem apenas por efeito a “revogação” da licença atribuída, mas também a “impossibilidade” legal (por falta dos requisitos necessários) de se candidatar a nova licença (impossibilidade que subsiste por tempo indeterminado, uma vez que as normas não estipulam qualquer prazo para a eventual irrelevância de condenações passadas).

Conclui-se, assim, que as normas em causa implicam a perda da liberdade de escolher e de exercer a actividade de guarda-nocturno (artigo 47.º, n.º 1, da Constituição), ou seja, a perda de um “direito profissional”, abrangido pela proibição do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.

9. Importa agora saber se a revogação/cassação daquela licença que, como vimos, integra o conceito de “perda de um direito profissional”, constitui um “efeito automático” da condenação pela prática de um crime doloso.

(…)

As normas questionadas encaram a sentença condenatória (transitada em julgado) como um facto e associam-lhe imperativamente a sanção de revogação da licença para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno. A revogação da licença é um efeito imposto por norma regulamentar, que não deixa qualquer margem de apreciação à entidade administrativa para poder avaliar as circunstâncias do caso concreto e emitir um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal revogação.

Como bem salienta o Ministério Público, o automatismo da revogação da licença não é contrariado pelo facto de a decisão de revogação ser proferida no âmbito de um procedimento administrativo. Pois, apesar de nesse procedimento estarem asseguradas, formalmente, as garantias de defesa do administrado (em cumprimento do disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento Administrativo, como aconteceu no caso vertente), o certo é que a decisão a proferir se limitará (como aqui se limitou) a constatar o facto – a condenação por crime doloso – e a determinar a consequente revogação da licença. Uma vez documentada a condenação por crime doloso e o respectivo trânsito em julgado, nada mais resta à entidade administrativa a não ser determinar a revogação da licença em cumprimento das citadas normas regulamentares. Assim, a interpretação normativa questionada associa, de forma imediata, a verificação do “facto” à respectiva consequência e impõe uma única decisão possível, não deixando margem para a mediação de um juízo da autoridade administrativa sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar a revogação da licença atribuída.

Diversamente de outros casos, decididos pelo Tribunal Constitucional, não há aqui uma conexão necessariamente relevante entre o crime praticado e a actividade sob licenciamento.

A presente situação é, assim, diferente da decidida no Acórdão n.º 461/2000 (secundado pelos Acórdãos n.ºs 574/2000 e 45/2001), em que estava em causa a caducidade da licença de condução provisória em consequência da condenação na pena de proibição de conduzir ou na sanção de inibição de conduzir. (…)

Também nos Acórdãos n.ºs 291/95, 53/97, 149/2001, 79/2009 e 363/2010, que julgaram não inconstitucionais normas que estabelecem a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir associada à prática de certos crimes, se salientou a conexão entre a conduta geradora da responsabilidade criminal e a sanção de inibição de conduzir.

A interpretação normativa sub judicio prevê a revogação/cassação da licença para o exercício da actividade de guarda-nocturno como um “efeito” decorrente da condenação por qualquer crime doloso, pelo que essa condenação não revela, só por si, a demonstração ou comprovação da falta dos requisitos necessários para o exercício da actividade de guarda-nocturno.

Ainda a respeito da qualificação desta situação como “efeito automático” cumpre salientar as diferenças entre a presente situação e aquela que foi tratada no Acórdão n.º 422/2001, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 5, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, que determina a caducidade da carta de caçador.

(…)

Diversamente, no caso em apreço, aquele que vê revogada a licença para o exercício da actividade de guarda-nocturno é simultaneamente colocado numa situação de não preenchimento dos requisitos de admissão a um novo concurso para a atribuição dessa mesma licença, pois falta-lhe o requisito de «não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de um crime doloso» (alínea e) do n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento).

Embora referindo-se apenas à “duração” dos efeitos automaticamente associados a um crime, Damião da Cunha in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687, salienta que «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto, p. ex., através da determinação, por moldura legal, do tempo de privação do direito ou, então, através da previsão de uma cláusula de salvaguarda por “manifesta desproporção”».

No caso em apreço a falta de conexão, em abstracto, entre todo e qualquer crime doloso e a actividade de guarda-nocturno, aliada à impossibilidade de, em concreto, se formular um juízo de adequação entre aquele crime e esta actividade, conduz à violação do princípio da proporcionalidade.

Conclui-se, assim, que as normas dos citados artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação das licenças para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno, consagram uma solução proibida pelo n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, pelo que é forçoso concluir pela sua inconstitucionalidade.».

A fundamentação ora transcrita mostra - se perfeitamente adequada, a nosso ver, ao caso dos presentes autos, tanto mais que, por maioria de razão a execução da pena que foi aplicada ao recorrente foi já declarada extinta judicialmente.

Assim, que se nos afigure que a sentença recorrida ao não desaplicar a norma da al. d) do nº 1 do art. 8º do DL nº 35/2004 por violação do art. 30º nº 4 da CRP em conjugação com o princípio da proporcionalidade, na interpretação de que a condenação do recorrente pela prática do crime de violência doméstica na pena de 20 meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, determina automaticamente a não renovação do cartão profissional de vigilante, incorreu em violação do mesma disposição constitucional em conjugação com o referido princípio da proporcionalidade.

IV – Pelo que, em face de todo o exposto e em conclusão, emito parecer no sentido de ser dão provimento ao recurso, revogando - se a sentença recorrida e substituindo - a por outra que julgue procedente a presente acção e, consequentemente, o pedido formulado.

Lisboa, 2012 - 11 - 08


A Procuradora Geral Adjunta


( Clara Rodrigues )