Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:04/30/2015
Processo:8958/12
Nº Processo/TAF:00000/00/0
Sub-Secção:2.º JUÍZO - 1.ª SECÇÃO
Magistrado:Manuela Galego
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL.
DECRETO-LEI N.º 48051.
DANOS MORAIS.
ESTADO.
Texto Integral: Proc. 08958/12

2º Juízo-1ª Secção Administrativa


RECURSO DE REVISTA

EXCELENTÍSSIMO SR. DR. JUIZ DESEMBARGADOR RELATOR

DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


INTERPOSIÇÃO DE RECURSO E ALEGAÇÕES DO ESTADO REPRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO

A Procuradora – Geral Adjunta junto deste TCAS, em representação do Estado Português, não se conformando com o douto Acórdão proferido a fls. 406 a 452, por este Tribunal Superior nos autos supra referenciados, vem do mesmo interpor recurso de revista para o STA, o que faz nos termos dos art.º 150º do CPTA, o qual sobe imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

E. D

A Procuradora-Geral Adjunta,

-----------------------

Manuela Galego


SEGUEM AS ALEGAÇÕES

EXCELENTÍSSIMOS SENHORES JUÍZES CONSELHEIROS

DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


RECURSO DE REVISTA


ALEGAÇÕES DO ESTADO PORTUGUÊS REPRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLCO

I – Introdução:

---R... intentou ação administrativa comum sob a forma de processo ordinário instaurada no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal (Proc. nº 139/06.9BEFUN) contra o Estado Português - Comando Regional da Madeira, na qual pede a condenação do Réu a reparar os danos que alegadamente lhe causou, peticionando a condenação do mesmo no pagamento da quantia global de 77 245,79 €, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, e ainda os danos futuros que vierem a revelar-se, a fixar em execução de sentença.-

---O TAF do Funchal julgou a ação parcialmente procedente e condenou o Réu a pagar ao Autor a quantia de €40.000 (quarenta mil euros), a título de indemnização por danos morais, bem como aquilo que se vier a liquidar em execução de sentença pelos danos patrimoniais referidos nos factos R) e T), acrescidos de juros de mora desde a citação (4-7- 2006) até integral e efetivo pagamento à taxa legal anual de 4%.-

---O douto Acórdão recorrido revogou parcialmente a decisão da primeira instância considerando não merecer censura o juízo feito na sentença recorrida no sentido de se considerar encontrarem-se verificados, no caso, os pressupostos de ilicitude, culpa e nexo de causalidade adequada, ainda que discorde da natureza dolosa (e intencional) que imputa à conduta levada a cabo pela PSP, tendo concluído estarmos perante culpa do serviço (PSP), a título de negligência na aceção supra referida.-
---Mais entende que não há dúvida que na situação dos autos a honra do autor foi ofendida, tendo sido ferida e afetada, ao serem-lhe imputados, na comunidade em que se encontrava inserido, no meio social e profissional em que se movia, e também no seu espaço privado, mais reservado, entre a sua família, comportamentos reprováveis, ética e juridicamente, em concreto a posse de heroína (0,55gr) aquando do acidente de viação ocorrido em 08/02/2005 de que veio a falecer o seu irmão, apreensão que foi na ocasião divulgada, e noticiada nos meios de comunicação social.-
--- Considera-se, igualmente no douto Acórdão em apreço, que se verifica ilícito para efeitos de responsabilidade civil extracontratual do Estado por atos de gestão pública à luz do regime contido no DL. nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, mormente em face das disposições conjugadas do nº 1 do art.º 2 e do art.º 6º deste diploma, não se impondo que a imputação da posse do “pó acastanhado”, tido por heroína, tivesse que ter sido feita a “determinada” pessoa, no caso ao autor, para adequadamente se entender que a conclusão tirada pela PSP à data do acidente (que se veio a revelar errada), e a sua divulgação, configuram a verificação de ilicitude para efeitos de fazer emergir na esfera do Estado o dever de indemnizar os danos causados por tal conduta que afetou a honra e bom nome do autor.-

--- Porém, em face do disposto no artigo 494º do CC, ex vi do artigo 496º nº 1, do mesmo Código, conjugado com as demais circunstâncias do caso, diminuiu a indemnização fixada pela 1.ª instância pelos danos não patrimoniais verificados, a qual fixou no montante de 15.000,00 €, valor que reportou como justo e adequado.-

II - DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO, e em síntese:

---O douto Acórdão de que se recorre enferma de erro de direito ou de julgamento, assim como da sua subsunção do direito aos factos provados, nomeadamente com ofensa e erro de interpretação e aplicabilidade dos art.ºs 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 6.º e 9.º, do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, assim como dos art.ºs 342.º, 483.º, 484.º, 494.º, 496.º e 563.º, todos do C. Civil, pois entende o Recorrente que não ficou demonstrada a existência de facto ilícito, a culpa, a imputação do facto ao lesante, e logicamente a existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano, ou prejuízo, considerado pelo Tribunal Central Administrativo Sul.-

---Da matéria provada sob o ponto S), de onde resulta o único comportamento provado no que respeita à PSP, apenas se pode concluir que os danos são consequência das notícias divulgadas pelos órgãos de comunicação social identificados na alínea G), e não pela informação prestada por aquela entidade (S) O A. começou a ser rotulado de "drogado" e "traficante" em consequência das notícias publicadas, …). Assim, pode-se concluir não ser imputável à PSP a prática de um facto ilícito, porquanto esta não divulgou o nome do Autor, nem a matrícula da viatura sua pertença, ou teve qualquer conduta que tivesse originado que a comunicação social divulgasse publicamente o nome do lesado associado àqueles factos.-

---A conduta da PSP não foi ilícita, tendo-se limitado a usar dos poderes que resultam do normal e regular exercício das suas funções e do seu dever de informar o público da ocorrência, tendo adotado todos os procedimentos adequados, não só ao realizar o teste rápido ao produto apreendido que mandou repetir pelo LPC, como também na comunicação e explicação posterior efetuada através dos órgãos de comunicação social de que não se tratava de produto estupefaciente, conforme resulta da matéria de facto provada nos pontos E), G), H), O) e Q).-

---Assim, agiu no exclusivo interesse da salvaguarda do direito de informação, com o devido cuidado e zelo, para garantir, além do mais, o direito ao bom nome do Autor.-

---Foi a partir dessa ação cuidada e zelosa das autoridades policiais que terceiros, munidos de outros interesses que não os anteriormente referidos, extrapolaram a notícia em causa e fizeram a respetiva publicação fornecendo outros pormenores, não podendo o Estado interferir nos órgãos de comunicação social e limitar os conteúdos a publicar.-

--- E a divulgação da identidade do Autor só ocorreu em virtude de a comunicação social ter relatado a situação revelando pormenores que permitiam identificar o Autor, pelo que certamente não pode ser responsabilizado o Estado Português, dado que não se comprovou terem sido fornecidos pelas autoridades policiais, como resulta de toda a matéria de facto provada, e em especial a constante dos pontos G), do qual resulta que a «"apreensão" foi noticiada nos meios de comunicação, nomeadamente no Diário de Notícias e Jornal da Madeira, no dia 10 de Fevereiro de 2005», fazendo o Tribunal referência ao doc. n.º 2.-

--- Logo, as consequências daí resultantes, de forma alguma, podem ser imputadas ao estado Português - PSP, quando se demonstrou o contrário, nos pontos S), e O) a Q), tratando-se de realidades distintas, conforme exposto.-

--- Deste modo, é de se concluir que a responsabilidade pelas notícias e o fornecimento dos elementos pessoais divulgados na comunicação social só à mesma deve ser atribuída, tendo-se aquela entidade limitado a informar o público de forma vaga e genérica, e, portanto, não divulgou, nem contribuiu para a divulgação de quaisquer factos atentatórios da honra do Autor.-

--- Os factos em apreço verificaram-se durante o ano de 2005, pelo que não se aplica in casu o regime da responsabilidade civil prevista na Lei n.º 67/2007, de 31/12 (art.º 12.º, n.º 1, do C. Civil), tendo sido invocado como fundamento da condenação do Réu/Estado, o citado DL n.º 48 051, conjugado com os art.ºs 483.º e 484.º e 563.º, todos do C. Civil.-

--- No caso em apreço não se mostram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil do Estado, ou seja o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. o Acórdão do STA, datado de 17/01/2007, proc. nº 01164/06, assim como o voto de vencida no Acórdão recorrido).-

--- Para que os art.ºs 483.º e 484.º, do C. Civil, se possam aplicar importa ter existido a imputação de um facto atentatório da honra do visado, não bastando alusões vagas e gerais como aquelas que ficaram provadas.-

--- Atendendo a que a atuação da PSP não ofendeu o bom nome do ora Recorrido, nem agiu com culpa, conforme exposto, não é idónea a abalar o prestígio e a consideração social de que o mesmo gozava na comunidade onde se inseria.-

--- Pelo que, não se pode considerar, tal como sucedeu no douto Acórdão sub judice, que o Recorrente, através dos agentes da PSP que relataram o sucedido, imputou ao recorrido a posse de produto estupefaciente, o qual, após a realização de teste rápido, revelou ser heroína.-

---Por outro lado, a noção de culpa pressupõe uma conduta negligente, por inconsideração, imprevidência ou imperícia, ou por uma violação de normas legais a que o agente devia especificamente atender, requisito que também falta no caso em apreço.-

---Conforme o art.º 563º do Código Civil, a obrigação de indemnização só existe em relação a danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, pelo que, a condição deixará de ser causa do dano, sempre que segundo a sua natureza geral, era de todo indiferente para a produção do dano e só se tornou condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias (neste caso a atuação dos órgão de comunicação social), sendo portanto inadequada para esse dano.-

---Assim, não ocorreu qualquer conduta ilícita da PSP geradora de danos para o Autor, pois que, de forma alguma, a conduta em apreço pode ser considerada ilícita, lesiva e causadora dos danos e prejuízos provados, pelo que não se verificou o evento lesivo necessário a concluir-se como tal.-

---E não cumpriu o Autor, ora Recorrido, o ónus da prova que sobre o mesmo impendia relativo aos pressupostos da responsabilidade civil imputada ao Réu, nos termos do art.º 342.º, n.º 1, do C. Civil.-

--- Assim, discorda-se do entendimento que conduziu à responsabilização do Estado Português pelos danos e de que se verificou circunstancialismo que se enquadra no estatuído nas referidas normas legais, devendo o Estado Português ter sido absolvido da totalidade do pedido. -

Sem nada conceder:

---A terem-se por, hipoteticamente, verificados todos os pressupostos da obrigação de indemnizar, sempre haveria que reduzir o quantitativo indemnizatório em que o Réu foi condenado, o qual se revela indevido, desmesurado e excessivo, tendo em conta as circunstâncias do caso e a prática jurisprudencial sobre a matéria.-

--- Por outro lado, os danos provados são claramente não indemnizáveis e merecedores da tutela do direito, nos termos e de acordo com os critérios consignados no art.º 496.º e como decorre, a contrario, dos princípios consignados no art.º 483.º, ambos do C. Civil.-

---Com efeito, os danos apurados não vão além do que decorre do normal funcionamento das instituições e do que habitualmente acontece em casos semelhantes, não se verificando uma ofensa chocante e desrazoável dos direitos do Autor suscetível de ser considerada excecionalmente relevante.-

---O legislador não pretendeu seguramente tutelar danos da natureza dos que se encontram demonstrados, para além de que, tratando-se, como se trata de atos lícitos, ou, hipoteticamente, ainda que ilícitos, relativamente aos quais não se mostram, de todo o modo, preenchidos os requisitos da culpa, da gravidade e da anormalidade que os tornaria indemnizáveis Cfr. também Parecer da Procuradoria Geral da República, n.º 16/91, votado em 11.2.93, Vol. I dos Pareceres, págs. 420 e segs.

(cfr. o AC. do STA de 15.11.2000, Rº45555 e o AC STA de 15.05.2003, Rº 0212/03, e ainda o Ac. STJ de 12/10/00, CJ, VIII-III-66).-

---Assim, e como o entende alguma doutrina e jurisprudência, só deve ocorrer indemnização em casos especiais e anormais, isto é quando o prejuízo é particularmente grave e anómalo, e não é o caso. Tratando-se de uma responsabilidade por factos lícitos, necessário se torna, pois, que o ato se venha a «revelar realmente injustificado» e lesivo, o que não se verifica, isto é os danos ou encargos não são diversos dos impostos à generalidade das pessoas e são suscetíveis de constituir um risco normal decorrente da vida em coletividade, de acordo com o art.º 9.º do citado DL n.º 48051 "O Estado de Direito social, porque indefecti­­­­­­­velmente também Estado de Direito, não poderá transfor­mar-se numa gigantesca empresa de seguros ou dispensa­dor amoral de benefícios de uma gratuidade sem dor, sem deveres nem responsabilidade (...)" (Castanheira Neves, "Nótula" a propósito do Es­tudo sobre a responsabilidade Civil de Guilherme Mo­reira, obra cit..,pág.77 ).

Como afirma Freitas do Amaral " (...) não parece acertado construir uma sociedade livre e pluralista na base da transferência de todos os riscos da vida social dos indivíduos e das empresas para o Estado (...) " (Direito Administrativo, vol. III, pág. 511). .-

---Para além disso, não se aplicando o novo regime da responsabilidade civil, falta lei anterior concretizadora da responsabilidade civil do Estado, não se aplicando, nem o citado D.L. nº 48.051, nem o art.º 22.º da CRP, sendo esta uma norma em branco que necessita de concretização e de normas balizadoras do seu regime geral, as quais à data inexistiam, não podendo considerar-se, como tal, o referido diploma legal A aceitação generalizada e sem li­mites de uma obrigação de indemnizar poderia constituir um encargo financeiro muito pesado e atingir a liberdade de conformação do legislador, obrigando-o a renunciar à satisfação de necessidades sociais porventura mais prementes e a consignar parte importante das suas re­ceitas ao pagamento de indemnizações (...)" (Rui de Medei­ros, Responsabilidade civil do Estado por acto legislativo).

Ac. do STJ, de 06.05.86, BMJ 357, p. 392 e AC STA de 03.05.2001, Rº48178, Apêndice DR de 08.08.03, páginas 3249 e seguintes.

O Prof. José Carlos Soares que considera " (...) totalmente válidos, também perante o nosso sistema ju­rídico, os princípios enunciados, neste domí­nio, pela doutrina francesa e acrescenta que o princípio da su­premacia da lei afasta ,de forma absoluta, a res­ponsa­bilidade do Estado legislador (...)" (Estudo sobre a respon­sabilidade extracontratual do Estado, Lisboa, 1962, págs. 26 e segs.).

Para o Prof. Afonso Queiró que vai mais longe é " (...) de pre­sumir que o legislador, causando directa e consciente­mente prejuízos excepcionais e omitindo pre­ceitos que concedam a indemnização ,tenha querido afastá-la (...). E não pode haver grandes dúvidas de que por con­siderações financeiras, este é efectivamente, em se­melhantes hipóteses, o seu propósito (...) " (Teoria dos Actos do Governo,Coimbra,1948,págs. 217 e 218,nota).

(...) O reconhecimento de um critério objectivo de im­putação de danos não nos deve fazer esquecer que, tal como sucede em Direito privado, «res perit domi­­­­­­­­­­­­­­­­­­­no»:também nas relações com o Estado os titulares dos direitos ou interesses devem suportar, em muitos ca­sos, a destruição ou desvalorização dos respectivos bens jurídicos (...)" (Afonso Queiró ob. cit.).

---De qualquer forma, não se mostrando reunidos os pressupostos do direito de indemnização que conduziram à condenação do Estado Português, não podia manifestamente proceder o pedido, devendo a ação ter sido julgada improcedente e não provada e o Estado Português ter sido absolvido na sua totalidade do pedido, uma vez que o Autor não provou, como lhe competia, os factos em que o alicerçava.-

--- Sendo patente que os danos alegados e os considerados tiveram antes causa direta na conduta de terceiros que não o Réu, verifica-se um «erro evidente» na aplicação do direito, do Acórdão sub judice, ao concluir como exposto, o que prejudica de forma grave os interesses públicos em causa e o torna injusto.--

--- Deve ser revogado o douto Acórdão recorrido, por se verificar erro de julgamento, com ofensa e errada interpretação dos preceitos legais citados.-

II - Da admissibilidade do recurso de revista e seus fundamentos:

--- O art.º 150º nº 1 do CPTA prevê que das decisões proferidas em 2ª instância pelo Tribunal Central Administrativo possa haver, a título excepcional, recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo “quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental” ou “quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”. A excepcionalidade deste recurso tem sido reiteradamente sublinhada pela jurisprudência do STA, referindo que só pode ser admitido nos estritos limites fixados naquele preceito.-

---A jurisprudência desse Venerando Tribunal tem vindo a entender que a relevância jurídica fundamental, exigida pelo artigo 150° nº 1 do CPTA, se verifica tanto em face de questões de direito substantivo, como de direito processual, sendo essencial que a questão atinja um grau de relevância fundamental, e é o caso.-

---Nos termos daquela jurisprudência, o preenchimento do conceito indeterminado da relevância jurídica fundamental, verifica-se, designadamente, quando se esteja perante questão jurídica de elevada complexidade, seja porque a sua solução envolve a aplicação e conjugação de diversos regimes legais e institutos jurídicos, seja porque o seu tratamento tenha suscitado dúvidas sérias, ao nível da jurisprudência, ou ao nível da doutrina. E, tem-se considerado que estamos perante assunto de relevância social fundamental quando a situação apresente contornos indiciadores de que a solução pode ser um paradigma ou orientação para se apreciarem outros casos.-

---Estamos perante um contencioso que envolve o Estado Português, havendo interesses públicos muito relevantes e sendo crucial a apreciação das questões em apreço, podendo subsistir dúvidas no seu tratamento, sendo de salientar a utilidade que a revista pode vir a ter noutras situações semelhantes para delimitar a interpretação a dar aos preceitos invocados e ofendidos.-

---Para além do exposto, sendo, com o devido respeito, o douto Acórdão recorrido juridicamente insustentável, em termos de poder qualificar-se como suscetível de integrar um «erro flagrante de interpretação do direito», o que é suscetível de suscitar dúvidas noutros casos idênticos, o que se demonstra com o voto de vencida, proferido pela Ex.ma Senhora Juíza Desembargadora primitivamente Relatora do recurso.-

---Impõe-se, assim, a intervenção do órgão de cúpula da justiça administrativa, dado a relevância dos interesses públicos em causa e para dissipar dúvidas sobre tal matéria e o quadro legal que regula a situação em apreço, e de onde decorre também a utilidade prática na sua apreciação, sendo de se considerar justificada a intervenção requerida, pelo que deve a matéria em apreço ser sindicada e corrigida por esse Supremo Tribunal.-

---Em face do exposto, deverá ser admitido o presente recurso de revista, face à clara necessidade de uma melhor aplicação do direito em causa, com o significado de boa administração da justiça em sentido amplo e objetivo, e sendo necessária orientação jurídica esclarecedora que possa surgir do entendimento desse Supremo Tribunal – art.º 150.º, n.ºs 1, 2 e 4, do CPTA.-

---Pelo que, se requer a admissão e apreciação do presente recurso de revista.-

III – Do Mérito do recurso de revista:

Na sentença da 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade, nos seguintes termos:
«Do saneador

A) A 8 de Fevereiro de 2005, o A. sofreu um acidente de viação pelas 13h50 na ER 101, no sentido Funchal - Santa Cruz.

B) Na altura fazia-se acompanhar pelo seu irmão, que veio a falecer.

C) Após todas as demais diligências para assistência aos feridos.

D) Os agentes da PSP, ao procurar dentro da viatura os elementos de identificação do condutor, ora A., encontraram dentro da sua carteira do condutor, um produto "de cor castanho claro embrulhado num papel branco" (doc.1).

E) Os agentes em questão deslocaram-se à esquadra da PSP de Santa Cruz, onde procederam ao “Teste rápido de detecção de produto de estupefaciente, do tipo "A", reagente "Marques"”, tendo o mesmo dado positivo.

F) O qual, após pesagem, apresentou o peso de 0,55gr.

G) Tal "apreensão" foi noticiada nos meios de comunicação, nomeadamente no Diário de Notícias e Jornal da Madeira, no dia 10 de Fevereiro de 2005 (doc.2).

H) Após a análise e observação do referido produto constatou-se que era heroína.

I) O A. encontrava-se ferido.

J) Contudo, já posteriormente, ao ter conhecimento da situação, não aceitou, dado que nunca foi nem consumidor, nem tão pouco traficante.

L) Efectivamente aquele era um pó do A., mas não era drogas.

M) Era pó da ervanária, que lhe tinham aconselhado a usar na carteira para afastar "invejas" e "maus-olhados",

N) Não era, nem nunca foi, pó estupefaciente.

O) Efectivamente após a análise laboratorial pelo laboratório da Polícia Científica (LPC) da Polícia Judiciária em Lisboa, constataram que não se tratava de droga.

P) Aliás, tal foi também noticiado no Diário de Notícias e Jornal da Madeira no dia 4 de Agosto de 2005.

Q) Vindo inclusive o Comando Regional a esclarecer.

R) Desde a data do acidente até à presente, o A. vê a sua clientela diminuída, perdendo desse modo receitas.

Das respostas à base instrutória

S) O A. começou a ser rotulado de "drogado" e "traficante" em consequência das notícias publicadas, sendo que a PSP informou os media apenas de que o teste rápido dera o produto apreendido no automóvel como sendo heroína, sem identificar os ocupantes do veículo.

T) Inclusive o A., que possuía uma empresa de construção, começou a perder clientes devido a fama que possuía.

U) O seu próprio filho, que tinha apenas 12 anos, era apontado na escola como o filho do drogado.

V) O que tem gerado grande sofrimento em toda a família.

X) O A., em virtude das calúnias que foi alvo, tinha vergonha de sair à rua pois era apontado.

Z) Por causa desta situação, o A. teve de ir a médicos, incluindo um psiquiatra.

AA) O A., antes do acidente, auferia em part-time nos fins de semanas, em trabalhos de pintura de residências, uma média de € 200,00 (duzentos euros), mensais.»

---Releva para apreciação da responsabilidade civil do Estado, o disposto no art.º 22º da Constituição, assim como o regime jurídico que da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, constante do D.L. nº 48.051, de 21 de Novembro de 1967, bem como, ainda, as normas aplicáveis do C. Civil.-

--- « O DL nº 48051, de 21.11.67, prevê e regula três tipos de responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas colectivas públicas por actos de gestão pública: a responsabilidade por actos ilícitos e culposos (artigos 2º e 3º), na qual se exige, além do mais, o requisito da culpa (sob a forma de dolo ou de negligência) dos órgãos ou agentes da pessoa colectiva pública; a responsabilidade por factos causais ou pelo risco (artigo 8º), onde se prescinde da culpa mas se exige que os prejuízos sejam qualificados de “especiais e anormais” e resultem de serviços “excepcionalmente perigosos”; e a responsabilidade por actos lícitos (artigo 9º), onde se prescinde da culpa e da própria ilicitude, mas se exige também que os prejuízos causados possam ser qualificados deespeciais e anormais” »(Ac. do TCA Norte, de 1-07-2008, rec. n.º 00425/06.8 BEBRG).-

---O art. 2º n.º 1, do citado DL 48 051, dispõe: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem civilmente perante terceiros pelas ofensas dos direitos destes ou das disposições legais destinadas a proteger os seus interesses, resultantes de actos ilícitos culposamente praticados pelos respectivos órgãos ou agentes administrativos no exercício das suas funções e por causa desse exercício”.

--- O art. 4.º, n.º 1 do mesmo diploma legal estipula:” A culpa dos titulares do órgão ou dos agentes é apreciada nos termos do artigo 487.º do Código Civil”.-

---O art. 6º, do mesmo diploma preceitua: “Para os efeitos deste diploma, consideram-se ilícitos os actos jurídicos que violem as normas legais e regulamentares ou os princípios gerais aplicáveis e os actos materiais que infrinjam estas normas e princípios ou ainda as regras de ordem técnica e de prudência comum que devam ser tidas em consideração”.-

--- O art. 8.º do mesmo DL estatui: “O Estado e demais pessoas colectivas públicas respondem pelos prejuízos especiais e anormais resultantes do funcionamento de serviços administrativos excepcionalmente perigosos ou de coisas e actividades da mesma natureza, salvo se, nos termos gerais, se provar que houve força maior estranha ao funcionamento desses serviços ou ao exercício dessas actividades, ou culpa das vítima ou de terceiro, sendo neste caso a responsabilidade determinada segundo o grau de culpa de cada um”.-

--- E o art.º 9.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, preceitua:” O Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais”.-

--- Na nossa ordem jurídica, o princípio basilar do regime da responsabilidade civil extracontratual, decorrente da prática de atos ilícitos encontra-se previsto nos art.ºs 483.º e seguintes do Código Civil.-

--- A afirmação e difusão de factos que sejam idóneos a prejudicar o bom-nome de qualquer pessoa acarretam responsabilidade civil extracontratual, implicam a obrigação de indemnizar, conforme previsto no art.º 484.º, do Código Civil, o qual integra uma especial forma de ilicitude e que não dispensa a cumulativa verificação dos restantes requisitos da obrigação de indemnizar acima enunciados (culpa, dano e nexo de causalidade).-

---Do conjunto dos preceitos citados decorrem os requisitos em geral da responsabilidade civil por facto ilícito, ou seja: o facto, a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (neste sentido, cfr., entre outros, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, p. 483; ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, vol. I, p. 526; e RUI DE ALARCÃO, Direito das Obrigações, 1983, Coimbra, p. 238). -

--- A responsabilidade civil das pessoas coletivas não exige a imputação dos factos ilícitos culposos a um comportamento individual, admitindo a «culpa funcional dos serviços», havendo, neste caso, que apurar se houve ou não «funcionamento anormal do serviço», sendo certo que «existe funcionamento anormal do serviço quando, atendendo às circunstâncias e a padrões médios de resultado, fosse razoavelmente exigível ao serviço uma actuação susceptível de evitar os danos produzidos».-

---A ilicitude pode revestir duas formas essenciais: a) a violação de um direito de outrem (enquadram-se, aqui, tipicamente, os direitos absolutos); e b) a violação da lei que protege interesses alheios. Segundo o Prof. ANTUNES VARELA (Das Obrigações…, vol. I, pp. 552 e 553): «A violação do direito de outrem só é ilícita quando reprovada pela ordem jurídica. De um modo geral, pode dizer-se que a ilicitude é afastada quando se actua no regular exercício de um direito e no cumprimento de um dever jurídico. Há, ainda, causas especiais justificativas do facto: a acção directa, a legítima defesa, o estado de necessidade e o consentimento do lesado».-

---O conceito de ilicitude não se reconduz a um comportamento objetivamente antijurídico – violação de normas legais ou regulamentares, de princípios gerais ou de regras de ordem técnica e de prudência (ilicitude objectiva) -, exigindo também um desvalor da conduta quanto ao resultado, traduzido na violação de um direito ou interesse do particular (ilicitude subjectiva) - cfr. declaração de Voto de Vencida no sentido exposto.-

--- A jurisprudência dos tribunais administrativos tem sido constante no sentido de exigir a violação de direitos ou interesses alheios para que haja ilicitude, não considerando suficiente que haja qualquer ilegalidade para que daí decorra uma obrigação indemnizatória (V. o Acórdão do STA de 9 de Julho de 2009, proferido no Processo n.º 0921/08, o Acórdão do STA de 23 de Setembro de 2009, proferido no Processo n.º 01119/08, e o Acórdão do STA de 27 de Janeiro de 2010, proferido no Processo n.º 0358/09, todos a consultar em www.dgsi.pt).

--- No entendimento do Prof. Antunes Varela "O ele­mento básico da responsabilidade é o facto do agente um facto dominável ou controlável pela von­tade, um com­portamento ou uma forma de conduta humana pois só quanto a factos dessa índole têm cabimento a ideia de ilicitude, o requisito da culpa e obrigação de reparar o dano nos termos em que a lei a impõe" (Das Obrigações em Geral, vol. I, 2ª ed., págs. 403 e segs.). -

---E são requisitos da ilicitude a "violação de uma norma legal", que “... a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada" e que "... o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei visa tutelar...."(obra e autor citados).-

---A culpa, consiste no nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto à vontade do agente, exprimindo uma ligação reprovável ou censurável da pessoa com o facto ilícito. Agir com culpa, significa actuar em termos de a conduta do agente merecer reprovação ou censura do direito, no sentido de que pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, ser de concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo. Constituindo a culpa a imputação de um acto ilícito ao seu autor, traduzido numa conduta omissiva da diligência exigível a uma pessoa média (cfr. Ac. deste TCAS de 14.07.2010, proc. n.º 4882/09).

--- Assim, a culpa exprime um juízo de censurabilidade da conduta pessoal do agente: este, em face das circunstâncias concretas do caso, devia e podia ter agido de outro modo (cfr. também declaração de Voto citada).-

---A culpa pode revestir duas modalidades: o dolo e a negligência ou a mera culpa. Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (art.º 487.º n.º 2 do CC) - cfr. doutrina e jurisprudência citadas.-

---Por outro lado, a noção de culpa pressupõe uma conduta negligente, como foi considerado no douto Acórdão recorrido ter-se verificado, traduzindo-se em inconsideração, imprevidência ou imperícia, ou por uma violação de normas a que o agente devia especificamente atender, requisito que também falta no caso em apreço.-

---Para haver obrigação de indemnizar, é condição essencial também que haja dano ou prejuízo a ressarcir. E nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são, porém, ressarcíveis, mas, apenas, os resultantes do facto ou causados por ele, à luz da teoria da causalidade adequada, consagrada no art.º 563.º do CC.-

---Assim, a responsabilização exige a ilicitude, a culpa no ato lesivo e o nexo de causalidade do facto relativamente aos danos.-

---Cabia ao ora Recorrido, como lesado, o ónus de provar os pressupostos da ilicitude e da culpa – nas vertentes objectiva e subjectiva -, assim como o nexo causal entre o facto e o dano, nos termos dos art.ºs 342.º n.º 1 e 487.º n.º 1 do Cód. Civil (citação da mesma declaração de Voto).-

---Como resulta do art. 484º, do Código Civil: “Quem afirmar ou difundir facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados”. Este preceito, ao proteger o crédito e o bom nome, nomeadamente da pessoa singular, tutela um dos elementos essenciais da dignidade humana que é a honra, ou seja, um direito da personalidade, juridicamente protegido (cfr. mesma declaração de Voto).-

---A conduta da PSP descrita na matéria de facto (cfr. pontos D), E), F), H), O), P), conjugado com o ponto Q) e S), não é ilícita, na medida em que não ofende quaisquer normas legais, traduz a regular atuação das autoridades policiais numa situação desta natureza, em que, para além de se limitarem a cumprir os seus deveres de investigação, também têm a obrigação de esclarecer o público, tanto mais que ocorrera um acidente de viação mortal, em que o interesse da comunicação social é desde logo superior ao habitual.-

---Só se pode, assim, concluir que agiu com o devido cuidado e zelo exigíveis na situação em apreço e não ofendeu quaisquer normas de conduta, para garantir, para além da salvaguarda do direito à informação, o direito ao bom nome do visado, não sendo ilícita a sua atuação.-

--- A PSP nem sequer divulgou quaisquer dados pessoais que pudessem identificar o Autor, pelo que a conduta da referida entidade, descrita no probatório, não é idónea a abalar o prestígio e a consideração social de que o mesmo gozava na comunidade onde se inseria.-

--- Teremos que concluir que a Comunicação Social teria, de qualquer forma, noticiado e publicitado o acidente, dada a situação descrita, pelo que não foi necessariamente a sucinta comunicação da PSP que conduziu aos danos verificados na esfera jurídica do lesado.-

--- Deste modo, é de se concluir que a responsabilidade pelas notícias e o fornecimento dos elementos pessoais divulgados na comunicação social só à mesma deve ser atribuída, tendo-se a referida entidade limitado a informar o público de forma vaga e genérica, e, portanto, não divulgou, nem contribuiu para a divulgação de quaisquer factos atentatórios da honra do Autor.-

---Para se apurar da existência de nexo de casualidade adequada é caso para questionarmos se a conduta descrita não se têm verificado o dano não ocorreria, o que é requisito necessário para a existência de nexo de causalidade, não obstante a matéria de facto invocada na sentença. E a resposta só pode ser afirmativa!-

--- Na verdade, até se demonstrou o contrário, nos pontos S), e O) a Q), inclusive, atrás mencionados, sendo realidades distintas a comunicação efetuada pelas autoridades policiais e a as notícias publicadas. Estas é que foram a causa imediata e direta da rotulagem pela qual o Autor começou a ser apelidado de “drogado” e “traficante” – cfr. primeira parte do ponto S).-

--- Assim, foi só devido à atuação da imprensa, referida no ponto G), que a honra do Autor foi atingida, não sendo consequência da conduta provada e levada a cabo pela PSP que os danos, provados nos pontos R), S) o qual explicita “…em consequência das notícias publicadas…”, e T) a AA), inclusive, foram provocados.-

--- Deste modo, também se terá que afastar, para além da ilicitude e da culpa, igualmente o nexo causal entre o facto e o dano e prejuízos invocados.-

--- Pelo que, não se pode considerar que na situação em apreço tenha sido cometida concretamente qualquer ação ou omissão ofensivas dos direitos de personalidade do Autor e inexiste violação de qualquer um dos princípios consagrados nas referidas normas, e nem se verifica a prática de qualquer ato ilícito, ou mesmo lícito, suscetível de responsabilização do Réu.-

---A conduta em apreço, nem hipoteticamente pode ser considerada lesiva dos interesses do Autor, revela um padrão insuscetível de lhe causar dano, dado que ocorreram outras causas, exteriores e imputáveis à Comunicação Social, pessoa distinta do Réu, e a que a PSP foi totalmente alheia.-

---Assim, não é possível concluir-se, com base na matéria dada como provada, pela verificação de um prejuízo e concluir pela existência do dano, factos que eram determinantes para a caracterização do mesmo.-

---Ora, de acordo com o já citado art. 342º, n.º 1, do Código Civil, que distribui entre as partes o ónus da prova, àquele que invocar um direito incumbe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.-

---Em face do exposto, uma vez que o Autor não demonstrou os factos constitutivos do seu direito atrás explicitados (ilicitude, culpa e o nexo de causalidade entre o facto e o dano), deve ocorrer a absolvição total do Estado Português do pedido e a ação ser julgada improcedente, por não provada.-

Sem nada conceder:

---De qualquer forma, mesmo que o contrário se entendesse, só existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa nos casos expressamente previstos na lei – art.º 483.º, n.º 2, do C. Civil.-

--- Até à entrada em vigor da Lei n.º 67/2007, não existia norma legal que expressamente previsse a responsabilidade do Estado por funcionamento defeituoso do serviço público, que não se mostra incluída no citado D.L. nº 48.051. E só com recurso e conjugação daquele diploma com o art.º 22.º da CRP, entendeu o Tribunal Recorrido enquadrar a responsabilidade civil do Estado no caso em apreço.-

--- Mas, para além do exposto, e sem nada conceder, uma vez que nos encontramos perante atos lícitos e, só hipoteticamente, negligentes, inexistia norma que previsse, à data dos factos, a responsabilidade do Estado decorrente de ato lícito-

---Com efeito, não só não é diretamente aplicável o citado DL n.º 48.051, como o não é qualquer outra lei. Na verdade, uma boa parte da nossa melhor doutrina e jurisprudência têm entendido que é inadmissível o princípio da responsabilidade do Estado nestas situações, a qual foi frontalmente excluída do DL nº 48.051 (cfr. jurisprudência e doutrina atrás citadas a este respeito).-

--- E também não se pode considerar que a condenação do Estado Português pode alicerçar-se no disposto, e por aplicação do artº 22º da Constituição, pois que se trata de uma norma em branco que necessita de concretização e que à data não existia.E, não havendo lei ordinária que concretize a res­ponsabilidade do Estado neste caso, verifica-se a inexistência de critérios que possam conduzir à delimitação da indemnização.-

---Pelo que, inexistia, ao tempo da prática dos factos em apreço, Lei concretizadora e balizadora da responsabilidade civil decorrente de atos com a natureza daquele que serviu de fundamento ao douto Acórdão recorrido.-

--- O Estado Português não podia, assim, ser condenado por atos decorrentes dos factos em apreciação, devendo igualmente com estes fundamentos ser absolvido da totalidade do pedido, pelo que, não deve o Autor ser indemnizado, por via dos factos provados e ao abrigo dos preceitos citados no douto Acórdão em apreço, cujos requisitos não se mostram preenchidos. -

QUANTO AOS DANOS, e sem nada conceder:

Para além do exposto, e para a mera hipótese de assim não ser entendido:

--- O art.º 9.º do citado DL n.º 48.051 dispõe conforme já referido que: O Estado e demais pessoas colectivas públicas indemnizarão os particulares a quem, no interesse geral, mediante actos administrativos legais ou actos materiais lícitos, tenham imposto encargos ou causado prejuízos especiais e anormais.-

--- O legislador não pretende concerteza tutelar danos da natureza dos que se encontram demonstrados, para além de que, tratando-se, como se trata de atos lícitos, ou, hipoteticamente, ainda que se pudessem considerar ilícitos, não se mostram, de todo o modo, preenchidos os requisitos da culpa, da gravidade e da anormalidade que tornaria tais danos indemnizáveis, atendendo às normais legais citadas (cfr. jurisprudência e doutrina atrás citadas).-

---Assim, e como o entende a doutrina e jurisprudência citadas e transcritas, só deve ocorrer indemnização em casos especiais e anormais, isto é quando o prejuízo é particularmente grave e anómalo, e não é o caso.-

---Isto é, só pode considerar-se aí integrados os danos que não são impostos à generalidade das pessoas, por conduta da natureza daquela que vem sendo descrita, e insuscetíveis de constituir um risco normal decorrente do caso concreto de vida em coletividade, de acordo com o art.º 9.º do citado DL n.º 48051.-

--- Também não se verifica ofensa dos princípios da igualdade, proporcionalidade e adequação que constituam o Réu na obrigação de indemnizar o Autor como anteriormente explicitado nas citações doutrinais efetuadas.-

--- Para além do exposto, o Autor só provou, no que concerne ao danos morais, meras preocupações de ordem psíquica, sem qualquer outro factor de agravamento que tenha sido invocado e provado, e que são comuns à generalidade das pessoas nestes casos, pelo que são insuficientemente merecedores de reparação, de acordo com os critérios consignados no art.º 496.º e como decorre a contrario dos princípios consignados no art.º 483.º, ambos do C. Civil.-

--- Não podia, assim, também com estes fundamentos ter sido atribuída qualquer indemnização ao Autor.-

QUANTO AO VALOR INDEMINIZATÓRIO ATRIBUÍDO, igualmente sem nada conceder:

--- Apesar de se entender que o Réu devia ter sido absolvido do pedido por todas as razões expostas, sempre se dirá que o valor atribuído é excessivo e não tem correspondência com os valores normalmente atribuídos pela jurisprudência, muito embora o bom-nome e a consideração social das pessoas, tutelado pelos art.ºs 70º, do Código Civil, e 26º, n.º 1, da CRP, sejam de acautelar e nos mereçam consideração.-

--- O montante da reparação atribuída “deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta (...) todas as regras da boa prudência, do senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida” (cfr. Antunes Varela, Manual de Direito das Obrigações, vol. I, pág. 575, nota 4).O que deve ser aferido em função do montante atribuído noutros casos, e para que seja respeitado o princípio da igualdade.-

--- Só hipotética e subsidiariamente se considera que a indemnização arbitrada no douto Acórdão recorrida é excessiva em relação com os danos provados (não patrimoniais), devendo considerar-se que o Autor ficaria suficientemente ressarcido se lhe tivesse sido fixado um valor muito inferior e não superior a 5.000,00 euros, em comparação com as indemnizações que têm sido arbitradas nos nossos Tribunais, por danos da mesma natureza, e em situações bem mais gravosas, quanto às suas consequências, do que as sofridas pelo recorrido Em caso de morte: Acidente de viação Dano morte Danos não patrimoniais – indemnização fixada de 2.000.000$00 - ACSTJ 09-10-2003, Revista n.º 2265/03 - 7.ª Secção Araújo de Barros (Relator) –

Acidente de viação Dano morte Danos não patrimoniais - indemnização de 49.879,79 Euros -10.000.000$00.

ACSTJ 03-06-2003, Revista n.º 1410/03 - 6.ª Secção Afonso Correia (Relator) Ribeiro de Almeida Nuno Cameira – atribuídos: 34.915,85 € - 7.000.000$00, pela perda do direito à vida; 9.975,96 € -2.000.000$00 pelos danos não patrimoniais próprios da vítima; e 14.963,94 € -3.000.000$00 pelos danos não patrimoniais sofridos pela mãe.

Col.XXVII-5/9-AC.RC.05.11.2002 e COL.XXVII-3/82-AC.RL.21.05.2002 (por acórdão de 29.01.2003, do STJ - Revista 3570/02-1, a indemnização foi fixada em 3 mil contos ou 14.963,94 €).

ACSTJ 18-12-2003, Revista n.º 3839/03 - 1.ª Secção Moreira Alves (Relator) Alves Velho Moreira Camilo - Acidente de viação Dano morte Danos não patrimoniais :

I - Para indemnizar a perda do direito à vida mostra-se equitativamente adequada a quantia de 8.000.000$00 (fixada pelas instâncias), a qual representa aproximadamente a média dos valores que a este título têm sido atribuídos por este STJ.II - Quanto ao dano moral da própria vítima, provando-se que o acidente em causa ocorreu pelas 22 horas do dia 31-10-1997, tendo a vítima falecido no dia 01-11-1997, às 2h e 50m, que sofreu diversas lesões na cabeça, suportou dores, sofrimento e padeceu da angústia da eminência da morte, é correcta a indemnização fixada de 2.000.000$00.

Dano morte -Danos não patrimoniais

VII - Demonstrando-se que a vítima, à data do acidente, bem como do decesso, tinha 68 anos de idade é previsível que este trabalharia por mais dois anos, pelo que, considerando a verba de PTE 58.000,00 que a viúva deixou de receber pelo decesso, e a medida e o limite da responsabilidade pelo risco, é de fixar a indemnização de PTE 812.000,00 à viúva.

VIII - Considerando a mencionada idade da vítima, bem como a responsabilidade pelo risco, é equitativo fixar em PTE 1.500.000,00 a reparação pela perda do direito à vida.

25-01-2001, Revista n.º 202/00 - 7.ª Secção, Juiz Desembargador Araújo de Barros (Relator)

-Recentemente o Ac. do STJ, em 25-03-2010, CJ ano XVIII; tomo I, p.227, atribuiu a cada irmão da vítima que com ela vivia o valor de 20.000€ e aos outros irmãos 10.000€, por danos não patrimoniais.

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--- O douto Acórdão de que se recorre enferma de erro de direito ou de julgamento, assim como de subsunção do direito aos factos provados, nomeadamente com ofensa e erro de interpretação dos arts.ºs 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 6.º e 9.º, do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, assim como dos art.ºs 342.º, 483.º, 484.º, 494.º, 496.º e 563.º, todos do C. Civil.-

--- Deve ser revogado e ser substituído por outro que julgue a ação totalmente improcedente e não provada e absolva o Réu da totalidade do pedido, nos termos expostos.-


EM CONCLUSÃO:


1º. Impõe-se a intervenção desse mais alto órgão de cúpula da justiça administrativa, face ao erro de julgamento evidente do Venerando Tribunal recorrido na aplicação do direito e deste aos factos, com o prejuízo daí decorrente para interesses públicos relevantes e para dissipar dúvidas sobre a matéria de direito em apreço e sobre o quadro legal que a regula, o que resulta também do Voto de Vencida proferido, havendo utilidade prática na apreciação das questões suscitadas, tendo em vista uma boa administração da justiça, e por ser necessária orientação jurídica esclarecedora do STA, nos termos do art.º 150.º do CPTA.

2º. No caso em apreço não se mostram preenchidos os requisitos da responsabilidade civil do Estado, dado que não ficou demonstrada a existência de facto ilícito, a culpa, a imputação do facto ao lesante, e logicamente a existência de nexo de causalidade entre o facto e o dano ou prejuízo, considerados no douto Acórdão recorrido (cfr. o Acórdão do STA, datado de 17/01/2007, proc. nº 01164/06, assim como o Voto de Vencida consignado no douto Acórdão sub judice).

3º. Para que os art.ºs 483.º e 484.º, do C. Civil, se possam aplicar importa ter existido a imputação de um facto atentatório da honra do visado, não bastando alusões vagas e gerais como aquelas que ficaram provadas terem sido proferidas pelas autoridades policiais no ponto S), não se verificando a ofensa de quaisquer normas legais ou regulamentares.

4º. Como demonstrado, a PSP limitou-se a cumprir o seu dever de informação do público em geral, dado que se tratava de um acidente de viação mortal, mas sem identificar os ocupantes do veículo, bem como a matrícula da viatura interveniente no referido acidente, no exclusivo interesse da salvaguarda do direito de informação, com o devido cuidado e zelo e para garantir o direito ao bom nome de terceiros quanto aos factos sucintamente relatados.

5º. Foi a partir dessa ação, cuidada e zelosa das autoridades policiais, que terceiros, munidos de outros interesses que não os anteriormente referidos, extrapolaram a notícia em causa e fizeram a respetiva publicação fornecendo outros pormenores, por forma a identificar o Autor, não podendo o Estado interferir nos órgãos de comunicação social e limitar os conteúdos a publicar que não podem ser considerados como sendo da sua responsabilidade, condutas que não pode evitar.

6º. Assim, no caso em apreço, as forças policiais adaptaram todos os procedimentos adequados, habituais e regulares na comunicação efetuada aos órgãos de comunicação social, no contexto dos procedimentos de informação mencionados,

7º. pelo que, não se pode entender ter havido, sequer, uma atuação negligente, enquadrável na faute de service considerada no douto Acórdão recorrido, nem tal conduta é idónea a abalar o prestígio e a consideração social do Recorrido.

8º. Assim, para além de faltar a prática do facto ilícito e a culpa dos agentes e do serviço, só se pode concluir que os danos são consequência das notícias divulgadas pelos órgãos de comunicação social identificados sob a alínea G), e só aos mesmos podem ser atribuídos, e não à informação prestada pela referida entidade, conforme resulta da matéria de facto provada nas referidas alíneas e nos pontos E), H), O) e Q).

9º. Pelo que, o Autor não cumpriu o ónus da prova que sobre o mesmo impendia, nos termos do art.º 342.º do C. Civil, não podendo o Estado Português ter sido condenado pela prática de facto ilícito, a título de negligência, e pelos danos e prejuízos provados.

10º. Por outro lado, os danos provados são claramente não indemnizáveis e não merecedores da tutela do direito, nos termos e de acordo com os critérios consignados no art.º 496.º e como decorre, a contrario, dos princípios consignados no art.º 483.º, ambos do C. Civil, pois que não vão além do que decorre do normal funcionamento das instituições e do que habitualmente acontece em casos semelhantes, não se verificando uma ofensa chocante e desrazoável dos direitos do Autor suscetível de ser considerada excecionalmente relevante.

11º. O legislador, através do DL n.º 48.051, de 21-11-67, não pretendeu seguramente tutelar danos da natureza dos que se encontram demonstrados na presente ação, para além de que, tratando-se de atos lícitos, ou, hipoteticamente, ainda que ilícitos, relativamente aos mesmos não se mostram, de todo o modo, preenchidos os requisitos da culpa, nem o dano e o prejuízo são particularmente graves e anómalos para poderem ser indemnizáveis, para além do mais, com as preocupações orçamentais resultantes das limitações legais – art.º 9.º, conjugado com os restantes preceitos citados do mesmo DL e do C. Civil (cfr. doutrina e jurisprudência transcritas).

12º. Uma vez que nos encontramos perante atos lícitos e atendendo ao circunstancialismo exposto, inexistia norma que previsse, à data dos factos, a responsabilidade do Estado decorrente de ato lícito, pelo que, não só não é aplicável o citado DL n.º 48.051, como o não é qualquer outra lei, sendo inadmissível o princípio da responsabilidade do Estado nestas situações, a qual foi frontalmente excluída do referido diploma legal, como o defende uma boa parte da nossa melhor doutrina e jurisprudência (cfr. citações atrás efetuadas).

13º. E também não se pode considerar que a condenação do Estado Português pode alicerçar-se no disposto e por aplicação do artº 22º da Constituição, pois que se trata de uma norma em branco que necessita de normas legais concretizadoras e balizadoras, que à data inexistiam.

14º. Sempre sem nada conceder, mesmo que, hipoteticamente, se tivessem por verificados todos os pressupostos da obrigação de indemnizar por parte do Estado Português, sempre haveria que reduzir o quantitativo indemnizatório em que o Réu foi condenado, o qual se revela indevido, desmesurado e excessivo, tendo em conta as circunstâncias do caso e a prática jurisprudencial sobre a matéria.

15º. Ainda sem nada conceder, e só por mera hipótese se considera tal solução, em nome do princípio da proporcionalidade e da igualdade, não devia ter sido atribuída indemnização superior a € 5.000,00, a qual se poderia considerar a justa e adequada, atendendo às circunstâncias do caso concreto (cfr. jurisprudência e valores indicados em caso de morte, não podendo ser mais valorizada a honra do que a perda de uma vida humana, como todo o respeito que nos merece a honra do Autor).

16º. O douto Acórdão recorrido ofendeu os princípios e normas citadas e o preceituado nos art.ºs 2.º, n.º 1, 4.º, n.º 1, 6.º e 9.º, do DL n.º 48 051, de 21 de Novembro de 1967, assim como nos art.ºs 342.º, 483.º, 484.º, 494.º, 496.º e 563.º, todos do C. Civil, devendo ser revogado e substituído por outro que julgue a ação totalmente improcedente, por não provada, e absolva o Estado Português da totalidade do pedido.


Assim decidindo farão Vossas Excelências a costumada,

JUSTIÇA!


Juntam-se: Legais duplicados.


A Procuradora – Geral Adjunta

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Manuela Galego