Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:Administrativo
Data:01/21/2009
Processo:04740/09
Nº Processo/TAF:00976/07.7BELRA-A
Sub-Secção:2º. Juízo
Magistrado:Amadeu Guerra
Descritores:INSTRUMENTOS DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO.
PDM E PLANO DE PORMENOR.
HIERARQUIA DE PLANOS.
NULIDADE DA LICENÇA POR VIOLAÇÃO DO PDM.
Texto Integral:Excelentíssimos Senhores Desembargadores



O magistrado do Ministério Público, notificado para se pronunciar sobre o recurso interposto, vem, nos termos dos artigos 146.º n.º 1 do CPTA, dizer o seguinte:

Vem o presente recurso interposto da sentença que declarou a nulidade do despacho de 11 de Agosto de 2004 que licenciou um Edifício Habitacional de 5 Pisos, no lote 10 do Plano de Pormenor da Zona do Centro de Saúde de Ourém. A sentença decidiu que o despacho impugnado seria nulo por estar o «solo onde se pretende executar a obra em causa nos autos, integrado em área REN». “De acordo com a carta de condicionantes do PDM de Ourém, estão proibidos no mesmo as acções que se traduzam em operações de loteamento ou obras de urbanização, nos termos do artigo 4.º do DL n.º 93/90, de 19 de Março, pelo que o despacho licenciador da obra em causa tem de ser considerado nulo, nos termos do artigo 15.º daquele diploma legal e por violação do PDM de Ourém, de acordo com o art. 68.º, al. a) do RJUE”.


O Município de Ourém e a I........., C........, Ld.ª vieram interpor recurso da sentença por considerarem que:

A) Há erro de julgamento por errada apreciação da matéria de facto na medida em que o lote 10 do PP do Centro de Saúde de Ourém não foi integrado na REN pela RCM 136/2004, de 30 de Setembro, que aprovou a delimitação da REN para o concelho de Ourém;

B) Não existe qualquer incompatibilidade entre o PDM de Ourém e o PP do Centro da Saúde, tendo a sentença recorrida feito uma errada interpretação do artigo 96.º n.º 3 al. b) do Regulamento do PDM de Ourém;

C) O Tribunal a quo não poderia assacar ao acto impugnado a violação do artigo 4.º do DL 93/90, precisamente porque a aplicabilidade deste preceito legal pressupunha a publicação da RCM a que se refere o art. 3.º do mesmo diploma, que só veio a ocorrer em momento posterior à prolação do acto;

D) Os efeitos do art. 96.º n.º 3 do Regulamento do PDM vão muito para além da mera manutenção em vigor dos planos anteriores ao PDM de Ourém, procurando, mais do que isso, garantir a plena operacionalidade dos instrumentos de gestão territorial anteriores ao PDM, sem fazer depender a respectiva conformidade com o novo Plano, antes apontando no sentido de «de dar prevalência a estes últimos» (os PP – ponto XIX da conclusões). Isto é, por força do princípio da contra-corrente, o artigo 96.º n.º 3 do Regulamento do PDM de Ourém pretende assegurar que «o Plano de Pormenor da Zona do Centro de Saúde de Ourém prevalece sobre o PDM, pelo que o terreno em causa dos presentes autos não se pode considerar integrado na área que o PDM define como de REN» (Ponto XXII da conclusões).

A recorrida QUERCUS – Associação Nacional de Conservação da Natureza considera que a sentença recorrida não merece qualquer reparo ou censura, pelo que o recurso interposto deverá ser julgado improcedente e ser confirmada a sentença recorrida.

1. Para a análise do presente recurso importa evidenciar vários aspectos prévios relevantes:

1.1. Está em causa nos presentes autos o recurso da sentença que declarou a nulidade do despacho de 11 de Agosto de 2004, o qual licenciou um Edifício Habitacional de 5 pisos, no Lote 10 do Plano de Pormenor da Zona do Centro de Saúde de Ourém. Daqui decorre, em face do princípio tempus regit actum que a jurisprudência reconhece ser aqui aplicável, que não pode ser considerada a RCM n.º 136/2004, de 30 de Setembro, por não estar ainda em vigor à data em que foi proferido o acto impugnado.
Assim sendo, e tal como a sentença considerou, a legalidade do acto terá que ser aferida à luz das disposições relevantes do PDM e do PP, bem como da legislação relativa ao Ordenamento do Território (maxime o DL 380/99, de 22 de Setembro), ao regime relativo à delimitação da Reserva Ecológica Nacional (DL 93/90, de 19 de Março) e do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo DL 555/99, de 16 de Dezembro.

1.2. Tal como reconhece a sentença recorrida (cf. fls 92 dos autos), por força do PDM de Ourém, aprovado pela RCM n.º 148-A/2002, de 30 de Dezembro, “o lote 10 em questão, de acordo com a planta de condicionantes, encontra-se integrado em área REN, questão aliás não colocada em crise pela entidade demandada” (itálico nosso). Depois de a A. considerar que o lote em causa deveria ser integrado em REN à luz do PDM (artigo 48.º a 54.º da PI) e do artigo 17.º do DL 93/90, de 19 de Março (cf. artigos 39.º a 46.º da PI), verifica-se que a contestação não coloca em crise tal entendimento, apenas se impugnando o art. 56.º da PI (art. 21.º da contestação) relativo à RCM 136/2004.
Nas suas alegações (fls. 72 último parágrafo) os ora recorrentes admitem, na sua tese, que a RCM 136/2004 procedeu à «exclusão da REN da parcela onde foi licenciada a construção objecto dos presentes autos», o que evidencia que reconhecem que o PDM fazia a referida inclusão em REN.
Acresce, por outro lado, que o fax transcrito no artigo 31.º da PI admite-se a integração do edifício em zona REN, mas considera o técnico do Município que não há violação da lei por se tratar de «de acção já prevista ou autorizada» à data da entrada em vigor da Portaria que delimita a REN, nos termos do artigo 4.º n.º 2 al. c) do DL 93/90 na sua redacção originária.
Logo, e tendo em atenção o que ficou expresso, igualmente, no ponto 8 da matéria de facto, deve entender-se que a construção se encontra localizada em zona de REN quer à luz do PDM de Ourém (artigos 2.º e 12.º) quer à luz do DL 93/90 (artigos 17.º, 18.º e Anexo II deste diploma).

2. Tendo em consideração as questões prévias suscitadas, passemos, então, aos fundamentos do recurso.

Deve entender-se que não há erro de julgamento pelo facto de, pressupostamente, se entender que, à luz da RCM n.º 136/2004, de 30 de Setembro, não ter sido integrado em REN o lote em questão. Efectivamente, tal como ficou dito, não pode ser aplicável o regime de uma RCM de 30 de Setembro de 2004 ao despacho impugnado na medida em que este foi proferido em data anterior, ou seja, em 11 de Agosto de 2004. Isto é, a legalidade do despacho impugnado terá que ser vista à luz dos diplomas legais já referenciados, não podendo ser aplicada a RCM 136/2004 à eventual apreciação da legalidade do acto impugnado (veja-se o Acórdão do STA de 17/1/2008 – Processo n.º 020/07).

3. Verifica-se que o terreno estava integrado em REN à luz do PDM e que o PP do Centro de Saúde permite que, no lote em causa, seja possível proceder à construção de um edifício com uma área de construção de 2042m2, com 5 pisos e 8 fogos.
Por força do PDM (artigo 12.º), “nos terrenos integrados em REN, devidamente identificados na planta de condicionantes, aplica-se o disposto na legislação específica em vigor”.

Por força do disposto no artigo 20.º n.º 1 do RJUE, aprovado pelo DL 555/99, de 16 de Dezembro, “a apreciação do projecto de arquitectura… incide sobre a sua conformidade com planos municipais de ordenamento no território, planos especiais de ordenamento do território, medidas preventivas, área de desenvolvimento urbano prioritário, área de construção prioritária, servidões administrativas, restrições de utilidade pública e quaisquer outras normas legais e regulamentares relativas ao aspecto exterior e a inserção urbana e paisagística das edificações, bem como sobre o uso proposto”. Deste preceito resulta, desde logo, que o licenciamento terá que se conformar com o PDM e com o PP aprovados para a zona em apreço.

Por força do que dispõe o artigo 8.º n.º 2 e 96.º n.º 3 al. b) do PDM “mantém-se em vigor o Plano de Pormenor da Zona do Centro de Saúde de Ourém, ratificado pela Portaria n.º 190/97, de 20 de Março”. É esta última disposição que suscita as dificuldades de interpretação no presente recurso. Isto porque, caso não existisse esta disposição, e sendo o PDM posterior, não havia dúvidas de que estando o terreno em zona REN não poderia aí ser feita a edificação. Ao ser mantida a vigência do PP será um tanto incongruente aceitar que se tenha estabelecido uma delimitação de terreno em zona REN – onde não se pode construir – e se admita que o PP (instrumento de gestão territorial de categoria inferior) se possa sobrepor ao PDM que, inequivocamente, acabava de integrar o terreno em zona REN. Ainda que se entendesse que isso era possível, em abstracto, temos fundadas dúvidas da legalidade de tal previsão, como a seguir se verá.

No entanto, e tal como decorre da sentença, o que se verifica no caso dos autos é a existência de dois planos em vigor, constatando-se uma contradição entre o PDM e o PP. Essa contradição terá que ser resolvida à luz dos princípios gerais de ordenamento do território e do designado «princípio da hierarquia de planos», sendo de sublinhar que “a compatibilidade entre diversos instrumentos de gestão territorial é condição da respectiva validade” (cf. art. 101.º n.º 1 do DL 380/99).

Dispensando-nos de transcrever as disposições pertinentes do DL 380/99, de 22 de Setembro, porque se encontram transcritas na sentença recorrida (cf. fls. 93), não podemos deixar de reconhecer que, por força das disposições combinadas dos artigos 69.º n.º 1 e 2, 84.º e 90.º, os planos municipais de ordenamento do território – integrando instrumentos hierarquicamente estruturados (PDM, plano de urbanização e plano de pormenor) – destinam-se a estabelecer o uso do solo, definindo modelos de evolução previsível da ocupação humana e da organização de redes e sistemas urbanos e, na escala adequada, parâmetros de aproveitamento do solo e da garantia da qualidade ambiental.
Como dispõe o artigo 85.º alínea c) o PDM estabelece, nomeadamente, a «definição dos sistemas de protecção dos valores e recursos naturais, culturais, agrícolas e florestais, identificando a estrutura ecológica municipal».
O PP destina-se, por natureza, a concretizar e desenvolver os programas de execução constantes do PDM e do plano de urbanização (cf. artigo 90.º n.º 1), sendo de salientar que artigo 20.º n.º 1 do RJUE, aprovado pelo DL 555/99, de 16 de Dezembro, impõe que a apreciação do projecto de arquitectura deve verificar a sua conformidade com planos municipais de ordenamento no território.

Conforme entendimento da jurisprudência, “as relações entre os vários instrumentos de ordenamento do território previstos na lei regem-se pelos princípios da hierarquia e da compatibilidade ou articulação (cf. art.ºs 10.º da Lei n.º 48/98, de 11 de Agosto, e 23.º a 25.º do Decreto-Lei n.º 380/99). Na sua compatibilização, e quando alguns dos princípios tenham que ser sacrificados, entende-se que «é tudo uma questão de hierarquia» (cf. Ac. STA de 15.02.2007 – Rec. 47.310). Também o Acórdão do STA de 17/1/2008 (Processo n.º 020/07) considera que “não será despiciendo aceitar essa possibilidade de hierarquização aos planos municipais de ordenamento do território, ou seja, aos planos directores (PDM) e planos de urbanização (PU), atenta a diversidade da sua incidência territorial e dos objectivos prosseguidos”.

Deste modo, afigura-se-nos que a disposição do artigo 96.º n.º 3 al. b) do PDM deve ser entendida no sentido de que se mantém em vigor o PP da Zona do Centro de Saúde de Ourém, salvo no que contrariar o PDM, enquanto instrumento de ordenamento territorial hierarquicamente superior.


4. O recorrente considera, ainda, que o Tribunal a quo não poderia assacar ao acto impugnado a violação do artigo 4.º do DL 93/90, precisamente porque a aplicabilidade deste preceito legal pressupunha a publicação da RCM a que se refere o art. 3.º do mesmo diploma. Salvo o devido respeito, este entendimento não pode ser visto desta forma, mas através de um entendimento integrado dos regimes legais a que nos temos vindo a referir.

Em primeiro lugar, verifica-se que o próprio artigo 10.º do DL 93/90 considera que as áreas integradas em REN…”são especificadamente demarcadas em todos os instrumentos de planeamento que definam ou determinem a ocupação física do solo, designadamente os planos regionais de ordenamento do território, planos directores municipais…”

Por outro lado, o próprio PDM, no seu artigo 12.º considera que aos terrenos integrados em REN… é aplicável «o disposto na legislação específica em vigor», sendo de considerar que, por isso mesmo, lhe é aplicável o disposto no artigo 15.º do DL 93/90.

Importa salientar, por outro lado (e tal como consta da própria sentença recorrida), que o regime estabelecido no RJUE aponta, igualmente, para a nulidade do acto recorrido.

Ora, conforme foi já referido, o artigo 20.º n.º 1 do RJUE, aprovado pelo DL 555/99, de 16 de Dezembro, impõe que a apreciação do projecto de arquitectura deve verificar a sua conformidade com planos municipais de ordenamento do território. Adianta a alínea a) do artigo 68.º do mesmo preceito, nomeadamente, que “são nulas as licenças ou autorizações previstas no presente diploma que violem o disposto em plano municipal de ordenamento”.


Deste modo, não nos parece que possa deixar de ser declarada a nulidade do despacho impugnado

Termos em que se conclui no sentido de que o recurso não merece provimento.