Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:Administrativo
Data:11/10/2011
Processo:07928/11
Nº Processo/TAF:00042/11.0BELLE
Sub-Secção:2º. Juízo
Magistrado:Amadeu Guerra
Descritores:PERDA DE MANDATO.
RECURSO DE REVISTA.
VIOLAÇÃO CULPOSA DE INSTRUMENTOS DE ORDENAMENTO DO TERRITÓRIO.
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE.
ANULAÇÃO PRÉVIA DOS ACTOS ADMINISTRATIVOS.
ADMISSIBILIDADE DO RECURSO SUBORDINADO.
NULIDADE DO ACÓRDÃO POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Observações:ALEGAÇÕES DE RECURSO
Texto Integral:Venerando Juiz Desembargador Relator
do Tribunal Central Administrativo do Sul


O Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, notificado do Acórdão proferido em 27 de Outubro de 2011, no processo à margem referenciado, dele vem interpor Recurso de Revista, para o Supremo Tribunal Administrativo, nos termos do art. 150.º do CPTA, o qual tem efeito suspensivo e sobe imediatamente nos próprios autos, nos termos dos artigos 141.º, 143.º n.º 1, e 147.º n.º 1 todos do CPTA e art. 734.º n.º 1 al. a) do CPC ex vi do art. 140.º do CPTA.


Por estar em tempo e ter legitimidade, requer a V. Exª que o presente recurso seja admitido naqueles termos.


Junta: Alegações de Recurso, duplicados legais e 1 Documento.


ALEGAÇÕES DE RECURSO


Exm.os Juízes Conselheiros do Venerando
Supremo Tribunal Administrativo

I. ADMISSIBILIDADE DO RECURSO DE REVISTA

1.º
O presente Recurso de Revista vem interposto, nos termos do art. 150.º do CPTA, do Acórdão proferido em 27 de Outubro de 2011 nos autos supra referenciados, que negou provimento ao recurso jurisdicional interposto pelo Ministério Público (com diferentes fundamentos da sentença do TAF de Loulé) e parcialmente procedente o recurso subordinado interposto pelo recorrido M.........
2.º
O presente recurso de revista deve ser admitido na medida em que se verificam os pressupostos da sua admissibilidade, estabelecidos no artigo 150.º n.º 1 do CPTA. Efectivamente,
3.º
Dispõe o artigo 150.º do CPTA que «das decisões proferidas em segunda instância pelo Tribunal Central Administrativo pode haver, excepcionalmente, revista para o Supremo Tribunal Administrativo quando esteja em causa a apreciação de uma questão que, pela sua relevância jurídica ou social, se revista de importância fundamental ou quando a admissão do recurso seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito».

4.º
Um olhar atento pela formulação do preceito permite evidenciar que o recurso de revista se justifica quando:
a) A questão a apreciar possa ser considerada de «importância fundamental», em atenção à sua «relevância jurídica ou social», ou
b) Seja claramente necessário para uma «melhor aplicação do direito».
5.º
A jurisprudência tem salientado que a revista será admissível em situações de relevância jurídica e social – em que se discutem situações que ultrapassem interesses individuais – e em que, no caso concreto, a decisão do Supremo Tribunal Administrativo se apresente como relevante para uma melhor aplicação do direito, nomeadamente:
a) “Não justifica a revista uma controvérsia que não apresenta importância fundamental, quer do ponto de vista jurídico (dificuldade intrínseca das operações de interpretação e aplicação do direito) quer do ponto de vista social (interesses comunitários de largo alcance)” – Acórdão de 10/5/2006 (Proc. 427/06).
b) Não é de admitir a revista se as questões decididas no TCA não extravasam significativamente o processo na configuração específica da situação de facto apurada e também não apresentam um grau de dificuldade superior ao comum (Ac. STA de 14/07/2008 – P 0594/2008).
c) “Dada a sua relevância social é de admitir a revista em que as questões jurídicas a dirimir se relacionam com uma matéria particularmente sensível em termos do seu impacto comunitário” (Ac. do STA de 26/6/2008 – P. 0535/08).
6.º
Ora, no caso em apreço – face às razões que levaram o TCA a absolver o réu da instância – já não está em causa, apenas, a apreciação do caso individual do recorrido, mas uma questão muito mais geral e que se prende com a delimitação das «condições de procedibilidade» das acções de perda de mandato cujos fundamentos tenham subjacentes a prática de actos administrativos ilegais (v.g. no domínio da violação dos instrumentos de gestão territorial ou do planeamento urbanístico).

7.º
Diríamos nós que, numa interpretação jurídica sem precedentes na nossa jurisprudência (porque não conhecemos jurisprudência que tenha sufragado o entendimento jurídico dos autos, o qual contraria o entendimento constante do acórdão do STA de 12/1/1995 – Processo n.º 036434), o acórdão recorrido – como adiante se verá – poderá vir a inviabilizar a possibilidade de o Ministério Público exercer, no prazo que a lei lhe confere, a acção pública cujos fundamentos e tramitação está estabelecida na Lei n.º 27/96.
8.º
O acórdão do STA de 26/6/2008 (Processo n.º 0353/08) sublinha que a “declaração da perda de mandato é uma consequência de extrema gravidade já que vai contra a escolha dos eleitores”. Ora,
9.º
Se a apreciação da culpa e da gravidade da conduta de um eleito local pode, em abstracto, consubstanciar a apreciação de um situação concreta e determinada, não podemos deixar de evidenciar que tal situação tem, objectivamente, implicações relevantes em termos comunitários e reveste-se de particular sensibilidade social. Acresce, por outro lado, que
10.º
O acórdão proferido tem claras implicações – para o futuro – em todas as acções que venham a ser instauradas pelo Ministério Público ao abrigo da Lei n.º 27/96, sendo certo que a natureza urgente deste tipo de processos – tal como decorre do artigo 15.º n.º 1 – passará a ficar esvaziada se for adoptado o entendimento sufragado no presente Acórdão.
11.º
O acórdão do TCA que pretendemos ver apreciado nesse Venerando Tribunal – a coberto de uma alegada «deficiência legal» e de «incoerência» entre os artigos 68.º e 69.º n.º 4 do RJUE e o artigo 11.º n.ºs 2 e 4 (fls. 31 do Acórdão) – acabou por preconizar a alteração e adaptação dos artigos 11.º e 15.º da Lei 27/96 e por adoptar uma interpretação que, salvo o devido respeito, não tem qualquer correspondência com a letra da Lei 27/96 e com os objectivos deste diploma.
12.º
Por isso, pela «revolução» que tal entendimento pode vir a criar no que concerne ao exercício da acção pública por parte do Ministério Público, deixando tal processo, em termos práticos, de ser um «processo urgente», entendemos que não pode esse Venerando Tribunal deixar de receber a presente Revista na medida em que as questões jurídicas que estão aqui em causa – para além de terem implicações relevantes em termos comunitários e se revestirem de particular sensibilidade social – são fundamentais para uma melhor aplicação do Direito.
II. OBJECTO DO RECURSO – QUESTÕES PRÉVIAS

II. 1. Nulidade do acórdão por falta de fundamentação em relação à admissibilidade do recurso subordinado interposto pelo recorrido
13.º
No recurso subordinado o réu vem interpor recurso da sentença do TAF de Loulé cujo teor decisório se transcreve:
Julgo a presente acção improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo o demandado J......... do pedido de perda de mandato, que lhe é formulado na presente acção pelo Ministério Público”.
14.º
O recurso subordinado foi interposto por o demandado entender que, previamente à acção, têm que ser anulados (em acção administrativa especial) os actos administrativos que lhe são imputados e que são determinantes da perda de mandato.
15.º
Conforme contra-alegações do Ministério Público, e tendo como referência a sentença recorrida, “é claríssimo que o Demandado não ficou vencido em pedido algum, nem tão pouco em parte de pedido algum, não ficou vencido em coisa nenhuma, pelo que carece em absoluto de legitimidade para recorrer da sentença”.
16.º
As contra-alegações do Ministério Público defendiam a inadmissibilidade do recurso subordinado por aplicação dos artigos 680.º n.º 1 e 682.º n.º 1 do CPC – fundamentos jurídicos que nos dispensamos aqui de desenvolver, pois sufragamos, na íntegra, o teor das contra-alegações.
17.º
O Ministério Público citou, igualmente, diversa jurisprudência (para a qual remetemos) e da qual destacamos o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10-03-2005 (doc. n.º SAP2005031001205), onde se refere o seguinte: “fez aplicação, como ratio decidendi, das normas dos artigos 680.º, n.º 1, 682.º, n.º 1, 684.º-A, do CPC, interpretadas no sentido de que a parte que não ficou vencida não tem legitimidade para interpor recurso, independente ou subordinado, mas tão-só, sendo caso, lançar mão da faculdade de ampliação do âmbito do recurso contemplada no último preceito citado” e que “no presente caso e uma vez que a acção interposta pelo Ministério Público contra a Junta de Freguesia de … foi julgada improcedente, com a absolvição da ré do pedido, só o autor, o Ministério Público, ficou vencido e não também a ré … daí que esta não tenha legitimidade para interpor recurso, indepen­dente ou subordinado”.

18.º
Conclui o Ministério Público que “o Demandado não decaiu em coisa nenhuma”, pelo que se deve entender que “estamos perante um caso de tal modo manifesto de ilegitimidade para interpor recurso subordinado que, para além de dever ser pura e simplesmente rejeitado, faz pensar sobre as razões que terão levado o Demandado a interpor tal recurso, num processo que por lei tem tramitação urgente, por razões óbvias”.

19.º
Com base nos referidos fundamentos defendeu o Ministério Público que deveria ser o recurso subordinado rejeitado por ilegitimidade do recorrente.
20.º
O acórdão recorrido, de forma telegráfica e não fundamentada juridicamente, limitou-se a referir que «nada obsta ao conhecimento dos recursos» (fls. 26 do acórdão).
21.º
Dispõe o artigo 659.º do CPC que as sentenças têm que ser fundamentadas de facto e de direito e que a omissão das razões de direito que justificam a decisão (a admissibilidade do recurso subordinado) determinam a nulidade do acórdão (artigos 668.º n.º 1 alínea b) e 716.º n.º 1 do CPC).
22.º
Ora, o Acórdão do TCA que admitiu o recurso subordinado (sem considerar e ponderar as razões jurídicas suscitadas pelo Ministério Público) – ao limitar-se, sem apresentação dos fundamentos jurídicos, a referir que «nada obsta ao conhecimento dos recursos» - é nulo por falta de fundamentação de direito.

II.2 – Inadmissibilidade do recurso subordinado por não dedução da alegada excepção na contestação nem apreciação da mesma na sentença recorrida.
23.º
Nos termos do artigo 489.º do Código de Processo Civil, aplicável por remissão do artigo 1.º do CPTA, “toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado” (n.º 1); “Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente” (n.º 2).
24.º
Por aplicação da remissão feita no artigo 15.º n.º 2 da Lei 27/96, também as disposições do CPTA obrigam a entidade demandada a deduzir, de forma articulada, toda a matéria relativa à defesa na contestação (cf. art. 83.º n.º 1 do CPTA).
25.º
Se analisarmos a contestação do demandado (ora recorrido) verificamos que a mesma é totalmente omissa em relação à excepção de «falta de condição de procedibilidade» na vertente de que a acção de perda de mandato só poderia ser instaurada depois de anulados os actos administrativos determinantes da perda de mandato em acção administrativa especial.
26º
Assim se explica, como é óbvio, que a sentença do TAF de Loulé não se tenha pronunciado sobre esta questão. Não se pronunciou nem tinha que se pronunciar (cf. artigo 660.º do CPC) porque – como é lógico – não foi suscitada esta excepção pelo demandado na contestação, não fazendo parte, por isso mesmo, do objecto da causa.
27.º
Esta questão só passou a fazer parte da causa – extemporaneamente (porque a excepção deveria ter sido invocada na contestação) – no momento em que o demandado, sem ter legitimidade para recorrer, interpôs o recurso subordinado. Ora,
28.º
Para além de o demandado não ter legitimidade para interpor o recurso subordinado – como foi referido – não pode, em sede de recurso, suscitar uma excepção dilatória que não consta da contestação, a qual, por isso mesmo, não foi objecto de decisão. Efectivamente,
29.º
A jurisprudência é pacífica no sentido de que:
a) “A função dos recursos é a de impugnar decisões, e não a de criar decisões sobre matéria nova” [Acórdãos do STA de 23 de Julho de 1971 –Processo n.º 001913 – e de 14 de Março de 2002 – Processo n.º 045595].
b) “Os recursos destinam-se a impugnar decisões, e por isso os tribunais superiores só podem conhecer das questões que foram objecto da decisão recorrida, e não de questões novas pela primeira vez suscitadas no tribunal ad quem” (Acórdão do STA de 11/2/1960 – Processo n.º 001087).
30.º
Por isso, não deveria o recurso subordinado ter sido admitido e muito menos com esta extensão, decisão esta que abriu caminho à apreciação de excepção dilatória não suscitada na contestação e não apreciada na sentença.
III – QUANTO À QUESTÃO DE FUNDO – REQUISITO PRÉVIO DESTE PROCESSO:

III – 1. Enquadramento jurídico do acórdão recorrido
31.º
Do acórdão recorrido retiramos a parte decisória que interessa para o enquadramento da questão jurídica objecto do presente recurso de revista:
“…o núcleo da AAE impugnatória normal do CPTA é, quando esteja em causa o art. 68º RJUE, aferir da violação (culposa ou não) de instrumentos de ordenamento do território (num aspecto objectivo), ao passo que o núcleo do processo especial e urgente da Lei 27/96 é, quando esteja em causa o art. 68º RJUE, aferir da culpabilidade do autor concreto daquela violação de instrumentos de ordenamento do território (num aspecto subjectivo), resultando em causas de pedir parcialmente diferentes, em pedidos diferentes e, assim, em objectos processuais e réus distintos. Não pode, portanto, haver este tipo de processo referido nos arts. 11º e 15º da Lei 27/96 sem antes haver a invalidação do acto decisório em causa numa AAE onde o Tribunal declare que certo facto da autoria do réu foi ilegal, com trânsito em julgado, o que deve ser invocado neste processo especial urgente. Trata-se de um requisito de admissibilidade da instância, ou seja, de um pressuposto processual específico positivo deste processo urgente.
A violação de instrumentos de ordenamento do território (num aspecto objectivo) não é uma questão prejudicial, pois que não há aqui uma simples relação lógico-substantiva de dependência (v. ANTUNES VARELA et al., Manual de P.C., 2ª ed., p. 106, nota 1); o tribunal não pode conhecer, de todo, deste processo urgente sem a prévia invalidação dos mesmos actos administrativos. E tal violação de instrumentos de ordenamento do território não integra a causa de pedir deste processo urgente especial, porque a prova do desrespeito por instrumentos de ordenamento do território já terá sido necessariamente feita noutro lugar, noutro processo”.

32.º
O Acórdão recorrido, com base nas considerações antecedentes, acabou por decidir que o Ministério Público – antes de instaurar a acção de perda de mandato – deveria ter impugnado os actos administrativos proferidos pelo demandado. Para o acórdão do TCA a acção administrativa especial a instaurar apresenta-se como um «mecanismo antecedente ou prévio ao litígio próprio deste processo urgente», não podendo a acção ser instaurada sem que, antes e como seu pressuposto necessário, haja uma sentença transitada que declare a nulidade dos actos administrativos imputados ao demandado.
33.º
Este entendimento, para além de violar várias disposições da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, faz uma interpretação própria de várias disposições legais que, com o devido respeito, não tem em conta o espírito do sistema nem as razões de celeridade que estiveram na base do regime estabelecido para a “tutela administrativa” e na atribuição a estes processos de um carácter urgente.
34.º
Pelo contrário, o acórdão recorrido – fundamentando-se em razões de incoerência entre os artigos 68.º e 69.º n.º 4 do RJUE e o artigo 11.º n.º 2 e 4 e na necessidade de alteração e adaptação dos artigos 11.º e 15.º da Lei 27/96 (fls. 31 do acórdão) – acabou por fazer uma «interpretação correctiva» que não se nos afigura necessária e que acaba por violar as regras de interpretação vigentes no Código Civil, inviabilizando assim, como se verá, que o Ministério Público exerça a acção pública de perda de mandato quando verificados os fundamentos estabelecidos na Lei 27/96.

III – 2. A tutela Administrativa Autárquica e a acção especial urgente
35.º
O acórdão recorrido começou por enunciar princípios relevantes para a caracterização da acção de perda de mandato, parecendo-nos não ter retirado as devidas consequências do regime legalmente traçado.
36.º
Merece a nossa concordância o acórdão quando refere:
– “A tutela administrativa é, assim, uma tutela de legalidade, pois que não visa controlar o mérito das decisões dos órgãos da administração local (a sua oportunidade e a sua conveniência) ou a sua conformidade com os interesses gerais, tal como o Governo os concebe. O seu objectivo é, antes e tão-só, assegurar que essas decisões cumpram a lei. E mais: ela própria - a tutela administrativa - está sujeita ao princípio da legalidade, uma vez que só pode ser exercida "nos casos e segundo as formas previstas na lei" - o que significa que só podem adoptar-se as medidas tutelares constantes da lei, que, assim, tem que definir as diferentes formas de tutela (inspecções, inquéritos, sindicâncias, informações, dissolução de órgãos autárquicos): é o princípio da tipicidade das medidas de tutela.
– Independentemente da qualificação da sanção de perda de mandato autárquico (de origem eleitoral democrática), há-de entender-se que a Constituição não proíbe que a lei preveja a responsabilização pessoal e directa das pessoas físicas, membros dos órgãos autárquicos, que cometam factos ilícitos no exercício dessas funções, quando aplicadas por um tribunal. Questão é que as sanções que preveja sejam necessárias e se mostrem adequadas a assegurar o cumprimento das leis vigentes por parte dos órgãos das autarquias locais que hajam de tomar essas decisões” (fls. 29).
37.º
Ora, foi exactamente no âmbito da «tutela administrativa» que o Governo (como determina o artigo 6.º da Lei 27/96) – depois realizada inspecção da IGAL e realizadas as formalidades legais – conclui no sentido de que o demandado tinha violado culposamente instrumentos de gestão territorial e remeteu ao MP o processo inspectivo com vista à ponderação da instauração da acção própria – a perda de mandato.
38.º
A perda de mandato vem na sequência do exercício da tutela administrativa do Governo que, no âmbito do exercício das acções inspectivas realizadas, verificou a prática de ilegalidades (cf. artigo 7.º) que, em termos de tipicidade (artigo 8.º n.º 1 alínea d) e 9.º alínea c) da Lei 27/96), implicam a aplicação dessa sanção.
39.º
Os poderes de tutela cabem ao membro do Governo que tutela as autarquias locais, cabendo-lhe valorar os factos susceptíveis de integrar uma causa justifica da perda de mandato. “Só o exercício desta competência, nos termos previstos na lei (artigo 6.º) constituem o Ministério Público no dever funcional de propor a acção…” (cf. sentença do TAC de Lisboa de proferida no Processo n.º 2039/10.9BELSB da Dr.ª Guida Jorge).
40.º
Conforme decidiu o STA no domínio da Lei 87/89, de 9 de Setembro “o reconhecimento da gravidade dos factos a que se refere o art. 9, 1, c) da Lei 87/89 pela entidade tutelar funciona como pressuposto processual, sendo uma condição de procedibilidade específica destas acções. Não está, no entanto, o tribunal impedido de invocar factos, não abrangidos pela declaração tutelar, necessários para justificar a gravidade da falta invocada e caracterizada como grave” (Acórdão de 12 de Janeiro de 1995 – Processo n.º 036434, com sublinhado e itálico nosso).
41.º
A primeira nota a retirar é a de que não faz sentido – tendo em conta os princípios enunciados – que, no contexto de processo sancionatório decorrente de ilegalidade grave que deve ser apreciada em processo ao qual a lei atribui natureza urgente, se tenha que aguardar pela instauração de acção administrativa especial (acção que não tem natureza urgente).
42.º
Ora, importa referir que o artigo 11.º n.º 3 da referida Lei estabelece que «o Ministério Público tem o dever funcional de propor as acções referidas nos números anteriores no prazo máximo de 20 dias após o conhecimento dos respectivos fundamentos» (sublinhado e itálico nosso).
43.º
A lei, no n.º 4 do mesmo preceito, estabelece mais uma exigência a observar pelo MP: “as acções… só podem ser instauradas no prazo de 5 anos após a ocorrência dos factos que as fundamentam” (itálico e sublinhado nosso).
44.º
Em matéria de interpretação das leis, o artigo 9.º do Código Civil consagra os princípios a que deve obedecer o intérprete ao empreender essa tarefa, começando por estabelecer que «[a] interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); o enunciado linguístico da lei é, assim, o ponto de partida de toda a interpretação, mas exerce também a função de um limite, já que não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); além disso, «[n]a fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).
45.º
Como sublinha Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 12.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2002, pp. 191) «Não tem que nos surpreender essa posição actualista do legislador se nos lembrarmos que uma lei só tem sentido quando integrada num ordenamento vivo e, muito em especial, enquanto harmonicamente integrada na “unidade do sistema jurídico” […].

46.º
O intérprete não pode – a coberto de uma incoerência e da necessidade de alterar a lei (tese com a qual não concordamos) – ir para além do texto da lei e «construir» uma interpretação que, para além de não ter qualquer correspondência no texto da lei, contraria todo o espírito do sistema criado e conduz, objectivamente, à total inoperância e aplicação prática da lei aos casos concretos que ela própria pretendeu regular. Efectivamente,
47.º
O artigo 11.º n.º 3 da Lei 27/96 é bem claro ao referir que o MP tem 20 dias para instaurar a acção de perda de mandato. Esse prazo conta-se a partir da data do «conhecimento dos respectivos fundamentos». O conhecimento adquire-se com a remessa, por parte do Governo, da decisão tutelar sobre os factos imputados ao membro do órgão autárquico (art. 8.º n.º 1 al. d) e os fundamentos que servem de pressuposto à acção é a verificação, em inquérito e na decisão tutelar, da ilegalidade da conduta e da sua qualificação como integrando uma «violação culposa de instrumentos de ordenamento do território».
48.º
A lei não se refere, nem podia referir, ao reconhecimento judicial prévio da ilegalidade em acção administrativa especial. Note-se que a acção administrativa especial é instaurada contra o município – não tendo o titular do órgão intervenção na mesma – sendo claro, igualmente, que nem sempre é necessária ou legítima a instauração de acção administrativa para impugnar os actos administrativos.
49.º
Efectivamente, como acontece no caso concreto, casos há em que o Ministério Público instaura a respectiva acção administrativa especial. Mas há outros em que não há interesse em agir na medida em que os actos administrativos caducaram (por caducidade do licenciamento, por ter sido declarada a caducidade do procedimento administrativo pelo município, por o interessado ter deixado caducar a aprovação do projecto ou por se ter dado início a novo procedimento). Casos há em que os actos administrativos não são impugnáveis uma vez que, sendo actos preparatórios prévios à decisão de licenciamento (informação prévia), não chegou a ser apresentado pedido de licenciamento.
50.º
A título meramente indicativo podemos informar esse Venerando Tribunal que o Ministério Público abriu – com referência aos actos administrativos referenciados neste processo – 10 processos administrativos. Já instaurou 5 acções administrativas especiais de impugnação dos actos administrativos, decorrem ainda 3 Processos Administrativos para recolha de elementos e 1 para acompanhamento dos novos actos de licenciamento em curso (cf. ponto 64 da matéria de facto). 2 PA’s foram arquivados por ter caducado o licenciamento e em 4 situações nem sequer foi instaurado PA por se ter constatado que só houve informação prévia (ponto 19 da matéria de facto) ou caducou a aprovação do projecto (DOC. N.º 1, junto ao abrigo do art. 524.º n.º 2 e 693.º-B do CPC).
51.º
A natureza deste processo e a respectiva regulamentação conferem ao juiz poderes de plena jurisdição em relação à apreciação da matéria dos autos (cf. artigo 15.º da Lei 27/96), seguindo o processo «os termos dos recursos dos actos administrativos dos órgão da administração local, com as modificações constantes dos números seguintes» em particular quanto ao oferecimento da prova necessária à decisão de perda de mandato.
52.º
O regime do processo especial de perda de mandato está previsto na Lei da Tutela Administrativa e o apuramento das responsabilidades, maxime em sede de violação culposa, terá que ser feita nesse processo com total autonomia e independência em relação a qualquer acção administrativa especial. Por isso mesmo se deve entender que existe uma autonomia do Tribunal, que não pode ficar sujeito – num processo que a lei qualifica como urgente – ao decurso de acções administrativas especiais para a apreciação de actos administrativos a instaurar contra o Município, isto é, onde nem sequer o demandado seria parte (não produzindo a sentença, quanto a ele, efeitos de caso julgado – cf. artigo 498.º e 671.º n.º 1 do CPC).
53.º
O legislador conferiu especial urgência a estes processos para evitar que determinadas condutas culposas dos titulares dos órgãos, violadoras de normas constitucionais e de defesa de interesses difusos, continuassem a ser praticadas.
54.º
Nesta linha de pensamento a jurisprudência do STA é bem elucidativa quando considera que “a perda de mandato tem carácter sancionatório o que implica a necessidade de ter em conta os princípios do direito disciplinar e Penal” (cfr. art. 10.º da Lei 27/96) – Acórdãos de 18.05.95 (Processo n.º 37.472) e de 12.01.95 (Processo n.º 36.434). A mesma ideia está presente no Acórdão n.º 296/99 do Tribunal Constitucional de 12 de Maio de 1999 (Processo n.º 557/97) quando afirma que «a Constituição o que exige é que a tutela seja exercida apenas "nos casos e segundo as formas previstas na lei" (cf. artigo 242º, n.º 1). Ou seja: não podem aplicar-se medidas tutelares que não se encontrem previstas na lei (pas de tutelle sans texte). E exige, bem assim, que, quando tais medidas assumam a natureza de sanções, a sua aplicação só tenha lugar em caso de prática de "acções ou omissões graves"».
55.º
Como se entendeu no Acórdão deste STA de 18.03.03 (Processo n.º 369/03) “dada a gravidade da sanção de perda de mandato que a lei comina para determinados comportamentos, importa não só determinar se esses comportamentos estão objectivamente tipificados na lei, mas ainda se se verifica o elemento subjectivo que justifique um juízo de censura proporcional à medida sancionatória que só será de aplicar quando, ponderados os factores objectivos e subjectivos relevantes, se conclua pela indignidade do requerido para a permanência no exercício das suas funções (veja-se, no mesmo sentido o Ac. STA 22/4/2004 – Processo n.º 0248/04)
56.º
É a necessidade de apreciação célere e eventual sancionamento dos comportamentos, face à gravidade da conduta, que justifica o carácter urgente desta forma de processo.
57.º
A natureza urgente deste tipo de processo não se compadece, obviamente, com a necessidade de se aguardar pelo decurso de uma acção administrativa especial, sob pena de ser subvertida a «integridade e lógica de um sistema jurídico» pensado para responder, de forma célere, a determinadas condutas que, para o legislador, são fundamento bastante para afastar os autarcas de cargos para os quais foram eleitos pelos cidadãos.
58.º
Por outro lado, importa considerar que em matéria penal e sancionatória sempre houve um entendimento, uniforme na doutrina e na jurisprudência, que afirma o «princípio da autonomia» do processo sancionatório em relação aos demais.
59.º
Por outro lado, o Ministério Público só pode instaurar esta acção quando os factos que a fundamentam (violação culposa de instrumentos de ordenamento do território) não tenham sido praticados há mais de 5 anos sobre a data em que a mesma é instaurada (cf. artigo 11.º n.º 4).
60.º
Ora, a ser adoptada a tese do Acórdão (que em parte alguma da lei fala ou tem subjacente, de forma ténue, a necessidade de impugnar os actos administrativos praticados) ficaria comprometida, de forma absoluta, a possibilidade de serem instauradas estas acções na medida em que, face à redacção deste preceito, a acção administrativa especial – onde o autarca não é parte – não se traduz em facto atendível para a interrupção ou suspensão do prazo de caducidade do direito de acção. Aliás,
61.º
O caso concreto é um bom exemplo do que acabou de ser afirmado na medida em que – face à matéria de facto dada como provada (por exemplo pontos 11, 25, 31, 35, 37, 41, 42, 52, 59, 66, 72, 80 e 88) – os actos administrativos foram praticado nos anos de 2006 e 2007 razão pela qual ocorreria a caducidade do direito de acção no decurso dos anos de 2011 e 2012, por aplicação do artigo 11.º n.º 4 da Lei 27/96.

62.º
Em face do exposto entende o Ministério Público que a acção de perda de mandato não está dependente de qualquer outra acção (cf. no mesmo sentido decidiu o já referido acórdão do STA de 12/1/1995 – Processo n.º 036434 – quando afirma, de forma cristalina, que o reconhecimento da gravidade dos factos determinantes da perda de mandato…”pela entidade tutelar funciona como pressuposto processual, sendo uma condição de procedibilidade específica destas acções”). Muito menos terá que ser instaurada acção administrativa especial para a anulação dos actos administrativos praticados pelo demandado na medida em que nenhum preceito na Lei 27/96 estabelece tal exigência.
63.º
Como ficou expresso, os actos administrativos praticados e que são fundamento da perda de mandato podem nem ser impugnáveis ou, sendo-o, podem ter caducado com o decurso do tempo ou por inércia do interessado ou terem, igualmente, caducado por qualquer razão alheia a quem os praticou. O facto de os actos praticados terem caducado (v.g. por razões alheias ao demandado) não deixa de configurar uma conduta censurável e tal facto não deixa de qualificar a conduta como violadora dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis ao caso.
64.º
Em face do exposto, deve o presente acórdão ser revogado determinando-se – face à matéria de facto apurada e alterada pelo TCA – a perda do mandato do demandado, em conformidade com os fundamentos constantes da PI.


Termos em que se formulam as seguintes

CONCLUSÕES

1. O artigo 150.º do CPTA admite o recurso de revista quando:
a) A questão a apreciar possa ser considerada de «importância fundamental», em atenção à sua «relevância jurídica ou social», ou
b) Seja claramente necessário para uma «melhor aplicação do direito».

2. Numa interpretação jurídica sem precedentes na nossa jurisprudência (contrária ao entendimento sufragado pelo STA no acórdão de 12/1/1995 – Processo n.º 036434), o acórdão recorrido inviabiliza a possibilidade de o Ministério Público exercer, no prazo que a lei lhe confere, a acção pública cujos fundamentos e tramitação está estabelecida na Lei n.º 27/96.

3. Pela «revolução» que tal entendimento pode vir a criar no que concerne ao exercício da acção pública por parte do Ministério Público, deixando tal processo, em termos práticos, de ser um «processo urgente», entendemos que não pode esse Venerando Tribunal deixar de receber a presente Revista na medida em que as questões jurídicas que estão aqui em causa – para além de contrariarem jurisprudência anterior desse STA, terem implicações relevantes em termos comunitários e se revestirem de particular sensibilidade social – são fundamentais para uma melhor aplicação do Direito.

4. Apesar de o MP se ter oposto à admissibilidade do recurso subordinado, o acórdão recorrido, de forma telegráfica e não fundamentada juridicamente, limitou-se a referir que «nada obsta ao conhecimento dos recursos» (fls. 26 do acórdão).

5. O Acórdão do TCA que admitiu o recurso subordinado (sem considerar e ponderar as razões jurídicas suscitadas pelo Ministério Público) – ao limitar-se, sem apresentação dos fundamentos jurídicos, a referir que «nada obsta ao conhecimento dos recursos» - é nulo por falta de fundamentação de direito (cf. artigos 659.º, 668.º n.º 1 alínea b) e 716.º n.º 1 do CPC).

6. Para além de o demandado não ter legitimidade para interpor o recurso subordinado não pode, em sede de recurso subordinado, suscitar uma excepção dilatória que não consta da contestação (cf. art. 489.º do CPC), a qual, por isso mesmo, não foi objecto de decisão.

7. Os recursos destinam-se a impugnar decisões e não a de criar decisões sobre matéria nova e, por isso, os tribunais superiores só podem conhecer das questões que foram objecto da decisão recorrida, e não de questões novas pela primeira vez suscitadas no tribunal ad quem. Por isso, o TCA não deveria ter admitido o recurso subordinado na parte em que se pretendeu suscitar excepção dilatória não apresentada na contestação nem apreciada na sentença.

8. O acórdão do TCA considera que a acção administrativa especial a instaurar apresenta-se como um «mecanismo antecedente ou prévio ao litígio próprio deste processo urgente», não podendo a acção ser instaurada sem que, antes e como seu pressuposto necessário, haja uma sentença transitada que declare a nulidade dos actos administrativos imputados ao demandado.

9. Este entendimento, para além de violar várias disposições da Lei n.º 27/96, de 1 de Agosto, faz uma interpretação própria de várias disposições legais que, com o devido respeito, não tem em conta o espírito do sistema nem as razões de celeridade que estiveram na base do regime estabelecido para a “tutela administrativa” e na atribuição a estes processos de um carácter urgente.

10. Contraria, igualmente, o entendimento do STA (Acórdão de 12/1/1995 – Processo n.º 036434) quando afirma, de forma cristalina, que o reconhecimento da gravidade dos factos determinantes da perda de mandato…” pela entidade tutelar funciona como pressuposto processual, sendo uma condição de procedibilidade específica destas acções”).

11. A natureza urgente deste tipo de processo não se compadece com a necessidade de se aguardar pelo decurso de uma acção administrativa especial, sob pena de ser subvertida a «integridade e lógica de um sistema jurídico» pensado para responder, de forma célere, a determinadas condutas que, para o legislador, são fundamento bastante para afastar os autarcas de cargos para os quais foram eleitos pelos cidadãos.

12. O Ministério Público, para além de ter que instaurar a acção de perda de mandato no prazo de 20 dias «após o conhecimento dos respectivos fundamentos» (art. 11.º n.º 3 da Lei 27/96), só pode instaurar esta acção quando os factos que a fundamentam (violação culposa de instrumentos de ordenamento do território) não tenham sido praticados há mais de 5 anos sobre a data em que a mesma é instaurada (cf. artigo 11.º n.º 4).

13. A ser adoptada a tese do Acórdão (que em parte alguma da lei fala ou tem subjacente, de forma ténue, a necessidade de impugnar os actos administrativos praticados) ficaria comprometida, de forma absoluta, a possibilidade de serem instauradas estas acções na medida em que, face à redacção deste preceito, a acção administrativa especial – onde o autarca não é parte – não se traduz em facto atendível para a interrupção ou suspensão do prazo de caducidade do direito de acção.

14. Os actos administrativos praticados e que são fundamento da perda de mandato podem nem ser impugnáveis ou, sendo-o, podem ter caducado com o decurso do tempo ou por inércia do interessado ou terem, igualmente, caducado por qualquer razão alheia a quem os praticou. O facto de os actos praticados terem caducado (v.g. por razões alheias ao demandado) não deixa de configurar uma conduta censurável e tal facto não deixa de qualificar a conduta como violadora dos instrumentos de gestão territorial aplicáveis ao caso.

15. Por isso, deve o presente acórdão ser revogado determinando-se – face à matéria de facto apurada e alterada pelo TCA – a perda do mandato do demandado, em conformidade com os fundamentos constantes da PI.

Assim se decidindo se fará

Justiça