Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:05/08/2012
Processo:08795/12
Nº Processo/TAF:32/12.6BELSB
Magistrado:Clara Rodrigues
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR.
AIM.
LEI N.º 62/2011, DE 12/12.
INCONSTITUCIONALIDADE.
Texto Integral:Tribunal Central Administrativo Sul


Proc. nº 08795/12 – Rec. Jurisdicional

2º Juízo/1ª Secção ( Contencioso Administrativo )


Venerando Juiz Desembargador Relator

A Magistrada do MºPº junto deste Tribunal Central Administrativo Sul, notificada nos termos e para efeitos dos arts. 146º nº1 e 147º do CPTA, vem, ao abrigo do disposto no art. 145º nº 5 do CPC, emitir parecer sobre o mérito do presente recurso jurisdicional, nos seguintes termos:

I – O presente recurso jurisdicional vem interposto, pela então A. da sentença de fls. 1109 e segs. do TAC de Lisboa que julgou improcedente a presente providência cautelar, por inexistência de fumus boni iuris, na vertente da manifesta improcedência da acção principal.

Nas conclusões das suas alegações de recurso a recorrente imputa à sentença recorrida o vício de erro de julgamento ao considerar improcedente a alegação da violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, com violação do art. 2º nº 2 al. b) do CPTA; de inconstitucionalidade por aplicação do art. 121º da LOFTJ no sentido de que um acto lesivo do direito de patente apenas poderá ser tutelado através do recurso a um tribunal do comércio; as nulidades das als. d) e b) do nº 1 do art. 668º do CPC; errada interpretação e aplicação da al. b) do nº 1 do art. 120º do CPTA, violação dos princípios da confiança e inconstitucionalidade por aplicação dos preceitos da Lei nº 62/2011 de 12/12 com violação do art. 62º da CRP.

A entidade ora recorrida, Infarmed e a contra - interessada, contra - alegaram pugnando pela improcedência do recurso e manutenção da sentença recorrida.

II – Na sentença em recurso foram dados como provados, com interesse para a decisão e com fundamento na prova documental, os factos constantes dos pontos 1. a 7., do ponto III., a fls. 1114 e 1115, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

III – Começando pelas nulidades imputadas à sentença recorrida, designadamente, as nulidades de omissão de pronúncia a que se reporta a al. d) do nº 1 do art. 668º do CPC.

Defende o recorrente ser a sentença nula por não ter conhecido das inconstitucionalidades invocadas com vista à desaplicação da Lei 62/2011, de 12/12, ao caso dos autos e ainda que mesmo considerando que se pronunciou sobre parte dessas inconstitucionalidades, sempre teria omitido pronúncia sobre as restantes.

Como é jurisprudência corrente «A nulidade de omissão de pronúncia estabelecida na alínea d) do n.º 1 do artigo 668.º do CPC, verifica-se quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que deva apreciar, devendo apreciar as questões que lhe foram submetidas que se não encontrem prejudicadas pela solução dada a outras (artigo 660.º, n.º 2 do mesmo diploma).
Por questões deve entender-se as matérias respeitantes ao pedido, à causa de pedir ou aos pressupostos processuais, e não os argumentos ou razões invocadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista» – cfr., entre muitos outros, Acórdão STA de 13/05/03, Rec. nº 02047/02 (bold nosso).

Ora, como se pode constatar da transcrição da sentença, feita pelo recorrente, no corpo alegatório das suas alegações (fls. 1139), a sentença recorrida pronunciou - se sobre todas as inconstitucionalidades invocadas, nomeadamente, a da “falta de protecção mínima adequada de um direito fundamental” e por “introduzirem limitações retroactivas a tal direito” e ainda por “falta de tutela jurisdicional efectiva”, concluindo não dever ser desaplicada a referida Lei 62/2011, não tendo lugar a aplicação das normas do Estatuto do medicamento anteriores a esta Lei.

Na verdade, ao contrário do que parece pretender a recorrente, estando - se perante uma providência cautelar a apreciação do fumus boni iuris obedece a juízo de prognose ou de probabilidade que pressupõe uma cognição sumária da situação de facto e de direito, não podendo, nem devendo, a providência cautelar substituir - se à acção principal, nem comprometer ou antecipar o juízo de fundo que, nesta última, caberá formular (cfr. Mário Aroso de Almeida in “Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, pág. 256).
Daí que, no caso em apreço, o Mmº Juiz a quo não tivesse de analisar de per si a existência ou não de inconstitucionalidade de cada um dos vários artigos da nova Lei, mas antes, como o fez, da existência ou não da violação dos princípios constitucionais invocados.

Pelo que, em nosso entender, a sentença recorrida não enferma da imputada omissão de pronúncia.

IV – Quanto á imputada nulidade por falta de fundamentação (al. b) do nº 1 do art. 668º do CPC).

Defende o recorrente que, caso se discorde do entendimento de que a sentença é nula por omissão de pronúncia, sempre a mesma seria necessariamente nula por falta de fundamentação, pressupondo - se que de direito.

Todavia, para aferir de tal nulidade, limita - se a invocar que se verifica uma “total falta de fundamentação relativamente às restantes inconstitucionalidades invocadas”, dando como exemplo a invocada inconstitucionalidade do art. 9º nºs 1, 2 e 3 da nova lei por violação do princípio da confiança.

Ora, a sentença recorrida ao referir - se à alegada inconstitucionalidade “por falta de protecção mínima adequada de um direito fundamental e por introduzirem limitações retroactivas a tal direito”, está também a pronunciar - se, fundamentadamente, ainda que de forma abrangente, sobre “o princípio da confiança”.

Sendo como é consabido que «só a falta absoluta de fundamentação é razão de nulidade da sentença, pois uma exposição medíocre ou insuficiente dos fundamentos, permitindo descortinar as razões que a ditaram, sujeita a decisão à possibilidade de ser revogada ou alterada em recurso» (cfr. Acs. do STA de 27/5/98 Rec. nº. 37068, de 16/6/99 Rec nº. 44915 e de 6/6/89 in BMJ 388º. 580), que não se verifique tal nulidade.

V – Quanto ao vício de erro de julgamento ao considerar improcedente a alegação da violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva, com violação do art. 2º nº 2 al. b) do CPTA.
Entende o recorrente que o mecanismo dos arts. 2º e 3º da Lei 62/2011, não se pretendem aplicar às AIM e aos actos de fixação dos PVP praticados antes da entrada em vigor da nova lei.

Todavia, tendo em conta o preceituado no art. 9º da referida Lei e o disposto nos arts. 2º e 3º nº 1 da mesma Lei sempre o recorrente dispunha de prazo para recorrer ao tribunal arbitral, pelo que sempre a nova lei garantia a tutela jurisdicional efectiva, em casos pendentes como o dos autos, que assim não se mostra violada.

VI – Quanto ao vício de inconstitucionalidade por aplicação do art. 121º da LOFTJ no sentido de que um acto lesivo do direito de patente apenas poderá ser tutelado através do recurso a um tribunal do comércio.

Na sentença recorrida para aferir da competência do tribunal administrativo para conhecer da presente providência, o que considerou afirmativamente, apenas se refere, a latere, que quanto aos actos de comercialização de medicamentos genéricos em eventual violação dos direitos de patente (…) seria competente o Tribunal de Comércio nos termos do art. 89º nº 1 al. f) e h) da LOFTJ.

Pelo que, ao contrário do afirmado pela recorrente, a sentença recorrida não diz que “um acto lesivo do direito de patente apenas poderá ser tutelado através do recurso a um tribunal do comércio”, mas antes e a latere, como foi dito, que “os actos de comercialização de medicamentos genéricos (…).

Motivo por que, não foi aplicado o art. 121º LOFTJ e, consequentemente, não há qualquer aplicação inconstitucional deste dispositivo legal.

VII – Quanto à errada interpretação e aplicação da al. b) do nº 1 do art. 120º do CPTA e inconstitucionalidade por aplicação dos preceitos da Lei nº 62/2011 de 12/12 com violação do art. 62º da CRP.

Como temos vindo a referir noutros pareceres, em 12/12/2011 foi publicada a Lei nº 62/2011 que, entre o mais, veio alterar os arts. 19º, 25º, 179º e 188º e o nº 6 da parte ii do anexo i do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto.

Assim, os nºs 2 e 3 Como do art. 25º do DL 176/2006 passaram a ter a seguinte redacção:
2 - O pedido de autorização de introdução no mercado não pode ser indeferido com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 18.º
3 - Para determinar se um medicamento preenche as condições previstas nas alíneas c) a f) do n.º 1, o INFARMED tem em conta os dados relevantes, ainda que protegidos.”.

Por sua vez o nº 2 do art. 179.º do mesmo diploma passou a ter a seguinte redacção:
2 - A autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na eventual existência de direitos de propriedade industrial.”

Ainda o art. 23-A aditado ao DL nº 176/2006 estipula que:
Objecto do procedimento
1 - A concessão pelo INFARMED, I. P., de uma autorização, ou registo, de introdução no mercado de um medicamento de uso humano, bem como o procedimento administrativo que àquela conduz, têm exclusivamente por objecto a apreciação da qualidade, segurança e eficácia do medicamento.
2 - O procedimento administrativo referido no número anterior não tem por objecto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial.”.

Por sua vez, o art. 8.º da referida Lei 62/2011 determina:
Autorização de preços do medicamento
1 - A decisão de autorização do PVP do medicamento, bem como o procedimento que àquela conduz, não têm por objecto a apreciação da existência de eventuais direitos de propriedade industrial.
2 - A autorização do PVP dos medicamentos não é contrária aos direitos relativos a patentes ou a certificados complementares de protecção de medicamentos.
3 - O pedido que visa a obtenção da autorização prevista nos números anteriores não pode ser indeferido com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial.
4 - A autorização do PVP do medicamento não pode ser alterada, suspensa ou revogada com fundamento na existência de eventuais direitos de propriedade industrial.”.

E, o art. 9.º da mesma Lei determina ainda:
Disposições transitórias.
1 - A redacção dada pela presente lei aos artigos 19.º, 25.º e 179.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, bem como o aditamento introduzido ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos e o disposto no artigo anterior, têm natureza interpretativa.” (bold e sublinhado nosso).

Ora, como é sabido, a norma interpretativa integra-se na norma interpretada, retroagindo os seus efeitos ao início da vigência desta (art. 13º, nº 1 do C. Civil), ou seja, “retroage os seus efeitos até à data da entrada em vigor da antiga lei, tudo ocorrendo como se tivesse sido publicada na data em que o foi a lei interpretada” – Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 2ª Edição, anotação ao art. 13º – (bold nosso).

Assim sendo, que não haja outra alternativa, a nosso ver, senão a de que a orientação jurisprudencial maioritária deste TCAS deverá naturalmente ser reponderada, com a convocação desse novo elemento de ordem legal, conforme, aliás, já o vem a fazer.

E, face a tais disposições legais citadas, que os actos de concessão das AIMs e dos PVPs, em causa nos autos, sem atender à violação de direitos que decorrem da titularidade de patentes, se tenham de considerar como actos vinculados para o Infarmed e DGAE/MEE.

Sendo que não cabe apreciar em sede de providenciar cautelar, da imputada inconstitucionalidade material de tais normas, por violação dos art. 62º nº 1 e 266º da CRP, o que, em termos de fiscalidade, sempre cumprirá, em nosso entender, ao Tribunal Constitucional.

Com efeito, conforme se exara, a propósito, no Ac. deste TCAS de 19/01/2012, Rec. 08253/11, in www.dgsi.pt/ «uma lei interpretativa (assim declarada por lei ou assim por natureza) só existe se a solução do direito anterior for controvertida ou pelo menos incerta e se a solução da lei nova se situar dentro dos quadros da controvérsia existente de modo que o julgador ou o intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normais de interpretação e aplicação da lei. Caso contrário, a lei nova será inovadora e não interpretativa, precisamente porque violou expectativas fundadas (J. BAPTISTA MACHADO, Introdução…, 1985, p. 245 ss; OLIV. ASCENSÃO, O Direito…, 4ª ed., 1987, nº 245 a 247; Assento do STJ de 16-4-1982, DR-1ª, 18-6-1982).
Como é sabido, a jurisprudência superior maioritária tem entendido que a AIM de medicamentos deve considerar também o direito fundamental à propriedade industrial, titulado por patentes, não podendo por isso emitir a AIM se houver uma patente alheia em vigor. Minoritariamente, entendia-se o que consta agora do art. 25º cit. O legislador veio assim “optar” por “fixar” que a solução legal era e é a da jurisprudência superior minoritária.
E é esta que temos de aplicar aqui, porque, como decorre da natureza jurídica deste tipo de tutela, não cabe discutir num processo cautelar duas questões complexas:

Ø se aquela lei, autointitulada de “interpretativa”, é ou não uma “fraude legislativa” (um disfarce da retroactividade da lei nova, como diz J. BAPTISTA MACHADO, Introdução…, 1985, p. 245) ou

Ø se viola ou não a CRP.

Portanto, temos de aqui aplicar o teor da lei nova cit. E desta decorre, como vimos (art. 25º EM), que o INFARMED agiu bem ao desconsiderar a invocada patente das requerentes, pelo que não existe fumus boni iuris no sentido invocado pelas requerentes.» (bold e sublinhado nosso).

Por outro lado, sempre se dirá que, tendo em conta o preceituado nos arts. 2º e 3º da Lei 62/11, quanto a ficarem sujeitos á arbitragem necessária os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, na acepção da alínea ii) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de protecção, cabendo recurso da decisão arbitral para o Tribunal da Relação competente, dessa forma se mostra garantida a tutela jurisdicional efectiva das questões relacionadas com a eventual possibilidade de comercialização por inerência da concessão de AIMs e PVPs de medicamentos protegidos por patentes e certificados complementares de protecção em vigor.

Por isso, se nos afigurando inexistir qualquer inconstitucionalidade das disposições da Lei nº 62/11 que alteraram, com natureza interpretativa, o Dec. Lei nº 176/2006.

Assim, que a presente providência sempre tivesse de ser considerada improcedente por inexistência do fumus boni iuris quer para efeitos da al. a), quer para efeitos da al. b) do nº 1 do art. 120º do CPTA, ficando prejudicado o conhecimento do requisito do periculum in mora da mesma al. b) e da ponderação de interesses a que se reporta o nº 2 do mesmo artigo e diploma legal.

Pelo que a sentença recorrida ao concluir pela manifesta falta de fundamento da pretensão formulada no processo principal com fundamento na aplicação da Lei nº 62/2011, não tenha cometido, em nosso entender, qualquer erro de interpretação dos preceitos da referida Lei, nem violado o art. 120º nº 1 als. a) e b) do CPTA ou qualquer disposição constitucional.

VIII - Assim, em face do exposto e em conclusão, emito parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, mantendo - se a sentença recorrida.

Lisboa, 2012 - 05 - 08

A Procuradora Geral Adjunta

( Clara Rodrigues )