Pareceres/Diversos

Tribunal Central Administrativo Sul - Contencioso Administrativo
Contencioso:ADMINISTRATIVO
Data:06/11/2014
Processo:11212/14
Nº Processo/TAF:00000/00/0
Sub-Secção:2.º Juízo - 1.ª Secção
Magistrado:Maria Antónia Soares
Descritores:SANTA CASA DA MISERICÓRDIA.
FUNCIONÁRIOS DO QUADRO RESIDUAL.
REGIME DO FUNCIONALISMO PÚBLICO.
REDUÇÃO NOS VENCIMENTOS E SUBSÍDIOS.
INAPLICABILIDADE DO ART.º 19.º DA LOE/2011E ART.º 21.º DA LOE/2012.
Texto Integral:Procº nº 11212/14

2º Juízo-1ª Secção

Parecer do MP

Vem o presente recurso jurisdicional interposto pelo autor, Sindicato dos Trabalhadores da Função Pública do Sul e Açores, da sentença que considerou improcedente a acção pelo mesmo proposta, em representação dos trabalhadores do quadro residual da Santa Casa da Misericórdia sujeitos ao regime de contrato de trabalho em funções públicas, com vista a ser reconhecida a ilegalidade dos “cortes” efectuados nos seus vencimentos e subsídios de Natal e de férias, ao abrigo do artº 19º da LOE/2011( Lei nº55-A/2010 de 30-12) e artº 21º da LOE/2012 ( Lei 64-B/2011, de 30-12) e com vista à reposição das verbas assim retiradas.

Para além da defesa da inconstitucionalidade de tais normas, o recorrente alega, essencialmente, que sendo a Santa Casa da Misericórdia uma entidade privada, não integra as entidades públicas a que os referidos normativos expressamente se dirigem e, como tal, não tinha que efectuar os descontos impostos pelas citadas Leis do Orçamento do Estado.

Quer a douta sentença recorrida, quer a entidade recorrida assumem posição diferente, defendendo que, por os trabalhadores em causa se encontrarem sujeitos a um regime de direito público, nomeadamente quanto ao processamento dos vencimentos, estavam também sujeitos aos citados descontos.

Quanto a nós, a razão está com o recorrente, pelas razões que iremos em seguida enunciar.

Em primeiro lugar, importa referir que a SCM é hoje, claramente, uma entidade de direito privado e, como tal, claramente excluída do âmbito do artº 19º da LOE/2011, conforme decorre do seu nº9, tal como tentaremos demonstrar.

De facto, desde a entrada em vigor do DL nº 235/2008, de 3-12, que aprovou os seus Estatutos, que a SCM é uma “pessoa colectiva de direito privado de utilidade pública administrativa”. Assim, ao seu pessoal aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho e regime geral da Segurança Social ( artº 39º , nº1).

Não obstante, à semelhança do que acontece com outros organismos entretanto privatizados ( v.g. CGD) existe, na referida Instituição, um determinado número de funcionários que optaram por permanecer no anterior regime da função pública, uma vez que a lei lhes permitiu tal faculdade ( cfr artº 2º do DL nº 235/2008, de 3-12).

Contudo, a LOE/2011, optou por fazer depender os descontos a efectuar aos trabalhadores, da natureza pública do organismo empregador e não do regime em que, concretamente, o trabalhador foi contratado ou nomeado.

E bem se compreende que assim seja dada a proliferação de regimes de admissão de funcionários que actualmente vigora mesmo nos organismos públicos, o que determinaria uma grande confusão para saber quais os trabalhadores que estavam sujeitos aos descontos e quais os que não estavam.

Deste modo, qualquer trabalhador de um organismo com as características dos previstos no nº9 do artº 19º, quer contratado por tempo indeterminado, quer a prazo certo, quer em contrato de avença, ficou sujeito aos descontos previstos nos citados Orçamentos de Estado.

Aliás, a Proposta de Lei nº 42/XI( 2ª ) referente ao Orçamento de Estado para 2011, denomina o seu Capítulo III, onde se integra o artº 19º de “disposições relativas a trabalhadores do sector público”, o que se nos afigura diferente do que se se referisse a ” funcionários públicos”, precisamente porque os “cortes” englobaram trabalhadores que, embora contratados por entidade pública, não estavam sujeitos a um regime de direito público.

Por outro lado, para aferir da sua inclusão nas entidades referidas no nº9 do artº 19º da LOE/2011, tem que se averiguar da sua natureza jurídica à data da publicação dessa LOE e não da que teve no passado a que os Pareceres da PGR, citados neste processo, com o nº138/76 e com o nº 17/82 - este publicado no DR, II série de 4-1-83, com o aditamento publicado no DR, II série de 9-8-83 - se reportam, porque baseados na situação de facto e legislação vigente à data da sua emissão.

Conforme vem referido pela entidade demandada, com a aprovação dos novos Estatutos, em 1991, a SCML passou a deter a natureza jurídica de pessoa colectiva de direito privado que se regia pelos Estatutos aprovados pelo DL nº 322/91, de 26-8, por normas especialmente aplicáveis não contrárias aos Estatutos e, nos casos omissos, por normas aplicáveis às Instituições Particulares de Solidariedade Social, com capacidade jurídica de direito privado nos termos do artº 160º do C.C.

E finalmente, com a aprovação do DL nº 235/2008, de 3-12 , que aprovou os actuais estatutos, a SCML detém a natureza de pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa, regendo-se, nomeadamente, pelos Estatutos e pela lei civil ( cfr artº 1º).

Se, porventura, a entidade demandada dependesse de verbas públicas e, como tal, fosse considerada entidade pública, então os descontos teriam, necessariamente, que ser efectuados a todos os seus funcionários e não só aos que integram o quadro residual, tal como bem refere o recorrente.

Não se duvida que a distribuição dos lucros advindos dos Jogos Sociais do Estado beneficia vária entidades com fins sociais, sendo esta actividade da SCML de relevante interesse social.

Contudo, este escopo de interesse público não implica que seja uma entidade pública, antes confirma a sua natureza privada na medida em que é por o ser que detém a qualidade de utilidade pública só atribuível a entidades privadas.

Por outro lado, o citado artº 19º da LOE/2011, no seu nº9, enumera taxativamente as entidades a quem é imposto o cumprimento do normativo, não estando previsto que os funcionários dos quadros residuais das entidades privadas que anteriormente foram entidades públicas, estariam também sujeitos àqueles descontos.

É o seguinte o texto do citado artigo:

1 – A l de Janeiro de 2011 são reduzidas as remunerações totais ilíquidas mensais das pessoas a que se refere o n.° 9, de valor superior a (euro) 1500, quer estejam em exercício de funções naquela data, quer iniciem tal exercício, a qualquer título, depois dela, nos seguintes termos:

a) 3,5 % sobre o valor total das remunerações superiores a (euro) 1500 e inferiores a (euro) 2000;

b) 3,5 % sobre o valor de (euro) 2000 acrescido de 16 % sobre o valor da remuneração total que exceda os (euro) 2000, perfazendo uma taxa global que varia entre 3,5 % e 10%, no caso das remunerações iguais ou superiores a (euro) 2000 até (euro) 4165;

c) 10% sobre o valor total das remunerações superiores a (euro) 4165.

2 - Excepto se a remuneração total ilíquida agregada mensal percebida pelo trabalhador for inferior ou igual a (euro) 4165, caso em que se aplica o disposto no número anterior, são reduzidas em 10 % as diversas remunerações, gratificações ou outras prestações pecuniárias nos seguintes casos:

a) Pessoas sem relação jurídica de emprego com qualquer das entidades referidas no n.° 9, nestas a exercer funções a qualquer outro título, excluindo-se as aquisições de serviços previstas no artigo 22.°;

b) Pessoas referidas no n.° 9 a exercer funções em mais de uma das entidades mencionadas naquele número.

3 - As pessoas referidas no número anterior prestam, em cada mês e relativamente ao mês anterior, as informações necessárias para que os órgãos e serviços processadores das remunerações, gratificações ou outras prestações pecuniárias possam apurar a taxa de redução aplicável.

4 - Para efeitos do disposto no presente artigo:

a) Consideram-se remunerações totais ilíquidas mensais as que resultam do valor agregado de todas as prestações pecuniárias, designadamente, remuneração base, subsídios, suplementos remuneratórios, incluindo emolumentos, gratificações, subvenções, senhas de presença, abonos, despesas de representação e trabalho suplementar, extraordinário ou em dias de descanso e feriados;

b) Não são considerados os montantes abonados a título de subsídio de refeição, ajuda de custo, subsídio de transporte ou o reembolso de despesas efectuado nos termos da lei e os montantes pecuniários que tenham natureza de prestação social;

c) Na determinação da taxa de redução, os subsídios de férias e de Natal são considerados mensalidades autónomas;

d) Os descontos devidos são calculados sobre o valor pecuniário reduzido por aplicação do disposto nos n.os l e 2.

5 - Nos casos em que da aplicação do disposto no presente artigo resulte uma remuneração total ilíquida inferior a (euro) 1500, aplica-se apenas a redução necessária a assegurar a percepção daquele valor.

6 - Nos casos em que apenas parte da remuneração a que se referem os n.os l e 2 é sujeita a desconto para a CG A, L P., ou para a segurança social, esse desconto incide sobre o valor que resultaria da aplicação da taxa de redução prevista no n." l às prestações pecuniárias objecto daquele desconto.

7 - Quando os suplementos remuneratórios ou outras prestações pecuniárias forem fixados em percentagem da remuneração base, a redução prevista nos n.os l e 2 incide sobre o valor dos mesmos, calculado por referência ao valor da remuneração base antes da aplicação da redução.

8 - A redução remuneratória prevista no presente artigo tem por base a remuneração total ilíquida apurada após a aplicação das reduções previstas nos artigos 11." e 12° da Lei n.° 12-A/2010, de 30 de Junho, e na Lei nº 47/2010, de 7 de Setembro, para os universos neles referidos.

9 - O disposto no presente artigo é aplicável aos titulares dos cargos e demais pessoal de seguida identificado:

a) O Presidente da República;

b) O Presidente da Assembleia da República;

c) O Primeiro-Ministro;

d) Os Deputados à Assembleia da República;

e) Os membros do Governo;

f) Os juizes do Tribunal Constitucional e juizes do Tribunal de Contas, o Procurador-Geral da República, bem como os magistrados judiciais, magistrados do Ministério Público e juizes da jurisdição administrativa e fiscal e dos julgados de paz;

g) Os Representantes da República para as regiões autónomas;

h) Os deputados às Assembleias Legislativas das regiões autónomas;

i) Os membros dos governos regionais;

j) Os governadores e vice-governadores civis;

l) Os eleitos locais;

m) Os titulares dos demais órgãos constitucionais não referidos nas alíneas anteriores, bem como os membros dos órgãos dirigentes de entidades administrativas independentes, nomeadamente as que funcionam junto da Assembleia da República;

n) Os membros e os trabalhadores dos gabinetes, dos órgãos de gestão e de gabinetes de apoio, dos titulares dos cargos e órgãos das alíneas anteriores, do Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, do Presidente e Vice-Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais, do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, do Presidente e juizes do Tribunal Constitucional, do Presidente do Supremo Tribunal Administrativo, do Presidente do Tribunal de Contas, do Provedor de Justiça e do Procurador-Geral da República;

o) Os militares das Forças Armadas e da Guarda Nacional Republicana, incluindo os juizes militares e os militares que integram a assessoria militar ao Ministério Público, bem como outras forças militarizadas;

p) O pessoal dirigente dos serviços da Presidência da República e da Assembleia da República, e de outros serviços de apoio a órgãos constitucionais, dos demais serviços e organismos da administração central, regional e local do Estado, bem como o pessoal em exercício de funções equiparadas para efeitos remuneratórios;

q) Os gestores públicos, ou equiparados, os membros dos órgãos executivos, deliberativos, consultivos, de fiscalização ou quaisquer outros órgãos estatutários dos institutos públicos de regime geral e especial, de pessoas colectivas de direito público, dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo, das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, das fundações públicas e de quaisquer outras entidades públicas;

r) Os trabalhadores que exercem funções públicas na Presidência da República, na Assembleia da República, em outros órgãos constitucionais, bem como os que exercem funções públicas, em qualquer modalidade de relação jurídica de emprego público, nos termos do disposto nos nºs. l e 2 do artigo 2.° e nos nºs l, 2 e 4 do artigo 3º da Lei nº12-A/2008, de 27 de Fevereiro, alterada pelas Leis nºs 64-A/2008, de 31 de Dezembro, e 3-B/2010, de 28 de Abril, incluindo os trabalhadores em mobilidade especial e em licença extraordinária;

s) Os trabalhadores dos institutos públicos de regime especial e de pessoas colectivas de direito público, dotadas de independência decorrente da sua integração nas áreas de regulação, supervisão ou controlo;

t) Os trabalhadores das empresas públicas de capital exclusiva ou maioritariamente público, das entidades públicas empresariais e das entidades que integram o sector empresarial regional e municipal, com as adaptações autorizadas e justificadas pela sua natureza empresarial;

u) Os trabalhadores e dirigentes das fundações públicas e dos estabelecimentos públicos não abrangidos pelas alíneas anteriores;

v) O pessoal nas situações de reserva, pré-aposentação e disponibilidade, fora de efectividade de serviço, que beneficie de prestações pecuniárias indexadas aos vencimentos do pessoal no activo.

10 - Aos subscritores da Caixa Geral de Aposentações que, até 31 de Dezembro de 2010, reunam as condições para a aposentação ou reforma voluntária e em relação aos quais, de acordo com o regime de aposentação que lhes é aplicável, o cálculo da pensão seja efectuado com base na remuneração do cargo à data da aposentação, não lhes é aplicável, para efeito de cálculo da pensão, a redução prevista no presente artigo, considerando-se, para esse efeito, a remuneração do cargo vigente em 31 de Dezembro de 2010, independentemente do momento em que se apresentem a requerer a aposentação.

11 - O regime fixado no presente artigo tem natureza imperativa, prevalecendo sobre quaisquer outras normas, especiais ou excepcionais, em contrário e sobre instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho e contratos de trabalho, não podendo ser afastado ou modificado pelos mesmos.

Parece-nos que, salvo melhor opinião, deste texto não se extrai que os descontos previstos neste artigo se aplicam á entidade demandada.

Finalmente, importa ter em mente o motivo dos descontos nos vencimentos e subsídios ordenados nas citadas LOE pelo Estado, o qual é, como é sabido, fazer face às despesas públicas e à correcção do défice orçamental, numa época de crise económico-financeira do País.

Ora, verifica-se que sendo a entidade recorrida que gere a atribuição dos vencimentos de todos os seus funcionários, os descontos efectuados são integrados no seu orçamento privado, não cumprindo a função a que a Lei os destinou, qual seja a de reverterem para o Estado, tal como aconteceu com todos os cortes efectuados pelas entidades públicas enumeradas no citado artº 19º.

Com efeito é a SCML que paga o vencimento a todos os seus trabalhadores, conforme foi dado como provado na sentença proferida no procº nº 1079/12.8 BESNT, a correr termos no TAF de Sintra, junta aos autos a fls 272 e segs destes autos, a qual considerou que não era aplicável a um dos trabalhadores do quadro residual da SCML, os descontos em análise.

Aliás, se não fosse a SCML quem paga os vencimentos dos trabalhadores do quadro residual, não tinha legitimidade para estar em juízo, devendo a acção, nesse caso, ter sido proposta contra o Estado.

Portanto, se os descontos só foram permitidos pelo Tribunal Constitucional em função dos motivos apresentados de relevante interesse público para o equilíbrio das contas orçamentais e para fazer face à crise económica que o País vivia, parece-nos que todos os descontos que não se destinaram àquele fim são ilegais e até inconstitucionais por violação do princípio da igualdade ( cfr ac do TC nº 353/2012, in procº nº 40/12).

Na verdade, os descontos efectuados nos vencimentos dos funcionários representados pelo recorrente são, assim, arbitrários e sem qualquer fundamento, uma vez que os funcionários das outras entidades privadas, sujeitas a um regime de direito privado estavam excluídos dos casos enumerados no nº9 do citado artº 19º e, como tal, não viram os seus vencimentos e subsídios sofrer qualquer redução.

De facto, as medidas legislativas expressas nas normas em causa, são medidas gravosas, restritivas de direitos fundamentais e, como tal, têm carácter excepcional, só podendo ser aplicadas a um universo bem delimitado de casos ( cfr artº 18º da CRP e nº1 do artº 21º da Lei nº 64-B/2011, de 30 – 12)

E, assim sendo, o despacho de 12-4-2011, do Ministro de Estado e das Finanças, proferido sobre a informação nº37/DGAEP/DRJE de 2-2-2011, da Direcção-Geral da Administração e do Emprego Público, que considerou que “o pessoal do quadro residual da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa está sujeito à redução remuneratória prevista no artº 19º da Lei nº 55-A/2010 ( Lei do Orçamento de Estado para 2011)” é ilegal por violação do nº9, do artº 19º da LOE/2011 e nº1 do artº 21º Da LOE/2012) e, como tal inaplicável ao caso vertente.

Termos em que, pelo exposto, emitimos parecer no sentido da procedência do presente recurso jurisdicional devendo a acção proceder, restituindo a entidade recorrida, aos funcionários em causa, o montante dos descontos efectuados ao abrigos das Leis Orçamentais de 2011 e 2012.


A Procuradora- Geral Adjunta

Maria Antónia Soares