Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:02873/09
Secção:CT-2º JUÍZO
Data do Acordão:05/05/2009
Relator:LUCAS MARTINS
Descritores:IRS
PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL.
INFRA-ESTRUTURAS FEITAS EM IMÓVEL POR PROCURADOR
Sumário:1. A procuração é o negócio jurídico através do qual alguém atribui a outrem poderes de representação para a prática de quaisquer actos ou negócios jurídicos, reflectindo-se os respectivos efeitos na esfera jurídica do primeiro;

2. A procuração exige que o procurador disponha de autonomia no desempenho das respectivas funções nessa medida se distinguindo da figura do núncio;

3. Tal autonomia não pode deixar de ter balizas referenciais indispensáveis ao aferir da actuação do procurador dentro do âmbito dos poderes que lhe foram conferidos;

4.Para a delimitação destas balizas, enquanto fins e limites da actuação do procurador, releva, nuclearmente, a relação subjacente à procuração, a qual se não confunde, ao menos necessariamente, com o negócio a realizar.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:- O RFPública, por se não conformar com a decisão proferida pela Mm.ª juiz do TAF de Almada e que julgou procedente esta impugnação judicial deduzida por F........................ e M.........................., ambos com os sinais dos autos, contra liquidação de IRS referente ao ano de 1994, dela veio interpor o presente recurso formulando, para o efeito, as seguintes conclusões;

1. No caso dos autos foram praticados pelo impugnante, e no seu interesse, embora através de procurador, actos subsumíveis a uma actividade comercial;

2. O exercício dessa actividade tem obrigatoriamente reflexos nos rendimentos imputáveis ao agregado familiar, ou seja, aos impugnantes;

3. Os ganhos resultantes da alienação do prédio devem ser enquadrados no âmbito da categoria C (actual B), de acordo com o disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 4.º do CIRS;

4. A liquidação impugnada foi correctamente efectuada, é legal e devida, estando os factos que a originaram, correctamente qualificados.

- Conclui que, pela procedência do recurso, seja revogada a decisão recorrida a qual deverá ser substituída por outra que julgue improcedente a impugnação com as legais consequências.

- Não houve contra-alegações.

- O EMMP, junto deste Tribunal, emitiu o douto parecer de fls. 162/163, pronunciando-se, a final, no sentido da improcedência do recurso no entendimento de que nem a procuração irrevogável, nem o contrato promessa de compra e venda de imóvel, outorgados pelos recorridos e em causa nos autos “(…) contemplam a venda e ou muito menos as operações de loteamento do prédio em causa, directa ou indirectamente pelos recorridos, sendo que estes afirmam mesmo que o comprador as produziu abusivamente, sem autorização deles e ainda antes de efectuar o pagamento devido pela compra (…)” sendo certo que a recorrente não produziu prova adequada e relevante à manutenção da liquidação na ordem jurídica.

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- Colhidos os vistos legais vêm, os autos, à conferência para decisão:

- A sentença recorrida, com suporte na prova documental produzida, quer nestes autos, quer no PA apenso, deu como provada a seguinte;

- MATÉRIA DE FACTO -


A). O impugnante nos anos de 1994/1997 entregou declarações de IRS declarando apenas rendimentos da categoria “A”.

B). Por escritura pública outorgada no ...º Cartório Notarial de S........., datada de 05/05/92 o impugnante adquiriu um prédio com uma parte rústica, e outra parte urbana, sito na freguesia de Concelho de P.........., inscrito na Conservatória do Registo Predial de P............. sob o n.º......./..........., pelo preço de treze milhões e trezentos mil escudos.

C). O impugnnate celebrou um contrato promessa de compra e venda do imóvel identificado na alínea anterior em 22/11/1994, tendo recebido o preço de Esc. 75.000.000$00 e passou procuração irrevogável ao promitente-comprador – J.........................

D). O procurador vendeu os referidos prédios por avos, facto este conhecido pela administração tributária.

E). A administração tributária obteve informação junto da Câmara Municipal de P................ que o prédio em questão se encontra enquadrado na REN, pelo que não é possível a construção, não existindo processo de licenciamento para loteamento urbano, apesar da abertura de arruamentos e demarcação de lotes que tem vindo a ser efectuada no referido prédio.

F). Em face dos factos descritos anteriormente a administração tributária concluiu que esta situação toma a forma de actividade económica de natureza comercial ou industrial, acto isolado, e por conseguinte os lucros estão sujeitos a IRS, categoria “C”, nos termos do art.º 4.º, n.º 2 alínea g) do CIRS.

G). Na sequência do mencionado na alínea anterior a administração tributária efectuou, em sede de IRS do ano de 1994, correcções técnicas à matéria tributável no montante de Esc. 61.700.000.

H). Na sequência das correcções efectuadas foi emitida a liquidação de IRS n.º ................ do ano de 1994, e respectivos juros compensatórios no montante total de Esc. 37.713,947.

I). Na escritura pública mencionada em B). consta que o prédio se destina a habitação.

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- Mais se deram, como não provados, quaisquer outros factos, diversos dos mencionados nas precedentes alíneas, enquanto relevantes, à luz das possíveis soluções de direito, à decisão a proferir.

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- ENQUADRAMENTO JURÍDICO -


- A questão que aqui se controverte consiste em saber se a Mm.ª juiz recorrida, ao ter considerado que o acto liquidação impugnado deve ser eliminado da ordem jurídica, como decidiu, por erro quanto aos pressupostos de facto e de direito, ocorridos a montante, na fixação do rendimento tributável, padece, ou não, de erro de julgamento.

- O que, no essencial, se discute, consiste em saber se a alienação que veio a ser feita de determinado imóvel misto, adquirido pelos recorridos em 1992, levada a efeito por um terceiro com quem e a favor de quem, aqueles, haviam, no mesmo dia, celebrado contrato promessa de compra e venda e outorgado procuração irrevogável, depois de nele (prédio) aquele procurador e promitente comprador ter procedido a infra-estruturas de arruamentos e a demarcação de lotes, apesar do referido imóvel ser insusceptível de ser destinado à construção, consubstancia a prática de um acto isolado de comércio e, como tal, os rendimentos assim obtidos, qualificados como lucros e nessa medida sujeitos, enquanto tal a IRS, como foi entendido pela AF.

- Cabe, ainda, referir que, apesar da competência hierárquica que se entende caber a este Tribunal, à luz das conclusões do presente recurso, cotejadas com a matéria de facto dada por provada pela decisão recorrida, a recorrente não coloca em crise o julgamento dessa mesma matéria de facto efectuado pelo Tribunal “a quo”, razão porque não se observou, porque se não tinha que observar, o procedimento vinculado constante do art.º 690.º-A, do CPC.

- Ora, para a solução a dar à questão controvertida, face ao teor das conclusões do presente recurso (cfr., desde logo, a concl. 1.ª), conjugadas com as respectivas alegações, de que hão-de constituir uma síntese, particularmente as que constituem os seus pontos “4” a “8”, inclusive, o cerne da questão consiste em saber se a actuação do promitente comprador, porque levada a cabo a coberto da referida procuração que lhe foi passada pelos recorridos, se repercute na esfera jurídica dos últimos, enquanto donos dos actos jurídicos em que se traduziram aquelas obras de infra-estruturas e de “loteamento” e, nos termos alegados pela recorrente, valorizadoras do imóvel.

- Sobre esta matéria, a decisão recorrida pronunciou-se, nos seguintes e expressos termos;

«Entendemos que, em face da factualidade apurada, não assiste razão à administração tributária, na medida em que os factos apurados não são suficientes para concluir, como fez, que estamos perante uma forma de actividade económica de natureza comercial ou industrial, acto isolado, desenvolvido pelo impugnante, e por conseguinte os lucros estão sujeitos a IRS, categoria “C”, nos termos do art.º 4.º, n.º 2 alínea g) do CIRS.

[…]

A expressão actos de comércio utilizada no art.º 2.º do Código Comercial tem um sentido muito amplo, correspondendo ao conceito de facto jurídico mercantil lato sensu, no qual se englobam os factos jurídicos em sentido estrito ou factos naturais, os actos jurídicos ou factos humanos e, dentro destes, os negócios jurídicos.

O conceito jurídico de actividade comercial ou industrial, para efeitos de IRS, há-de ser determinado pelo conceito económico de actividade comercial ou industrial, que abrange actividades de mediação entre a oferta e a procura e actividade de incorporação de novas utilidades na matéria, em ambos os casos com fins especulativos, ou seja, com o objectivo da obtenção de lucros.

No entanto, no caso dos autos, não foram praticados actos pelo impugnante que possam ser subsumíveis a uma actividade comercial, ainda que esporádica, quando muito foram praticados actos por J...................

Na verdade, resultou provado, e é do conhecimento da administração tributária que o loteamento que tem vindo a ser efectuado no prédio em causa é realizado não pelo impugnante, mas por – J................................

E, não obsta a tal conclusão o facto do impugnante ter passado uma procuração irrevogável, o autor material de tais actos é o procurador e não o impugnante, da a a natureza jurídica da procuração irrevogável, ou seja, como o próprio nome diz, não pode ser revogada pelo impugnante.

[…].».

- Trata-se de discurso jurídico que se subscreve e do qual, por isso, aqui nos apropriamos enquanto discurso fundamentador da decisão que, aqui e agora, se impõe tomar.

- Apenas no que concerne á questão da procuração irrevogável, porque se apresenta, como se referiu, como o elemento central com relevância à decisão a proferir, por um lado e, por outro, porque o último § transcrito da decisão recorrida as comporta, algumas considerações adicionais.

- Ora, como resulta da procuração em causa, documentada a fls. 39 e 40 dos autos, os recorridos constituíram um tal J..............................., já referido, seu procurador, conferindo-lhe, com a faculdade de substabelecer, poderes para vender, pelo preço e condições que entendesse, o prédio em causa nos autos e, ainda, para receber os preços, dar quitação, outorgar e assinar a respectiva escritura e eventuais ratificações, para assinar o (eventual) contrato promessa de compra e venda, representá-los perante quaisquer repartições públicas, alguma elas elencadas exemplificativamente, para requerer os necessários actos de registo predial e «(…) bem assim, requerer, PRATICAR e assinar tudo o mais que se torne necessário aos indicados fins.».

- Do teor desta procuração, - e tanto quanto se nos afigura muito particularmente da referida faculdade do procurador praticar o que tivesse por necessário -, a administração tributária extrapolou a ilação de que a realização das obras de infra-estruturas e de loteamento do imóvel, com subsequente venda do mesmo, se traduziram em verdadeiros actos e negócios jurídicos dos recorridos, em nome de quem eles terão sido realizados ao abrigo da referida procuração, - no caso naturalmente irrevogável face ao interesse objectivo e subjectivo do procurador na procuração decorrente da circunstância da sua intenção de aquisição do prédio, desde logo pela possibilidade de celebração de negócio consigo mesmo -, daí fazendo decorrer o acto tributário impugnado.

- Não tem, no entanto, a nosso ver, razão.

- Na realidade, sendo a procuração a forma pela qual alguém atribui a outrem poderes de representação (art.º 262.º do CC), para a prática de um qualquer acto/negócio jurídico, cujos efeitos se hão-de repercutir na esfera jurídica do primeiro, é, no entanto, doutrinariamente pacífico, que sempre o procurador terá de ter autonomia no desempenho do poderes que lhe são conferidos, sob pena de não estarmos perante tal figura jurídica, mas perante a do núncio, quando os poderes conferidos se limitem aos necessários à mera transmissão da vontade do dono do negócio.

- Mas, como é evidente, essa autonomia, tem de ter algum tipo de baliza, no sentido de se poder/ter de aferir se o exercício dos poderes conferidos se conteve no âmbito do interesse daquele passou a procuração.

- Ora, para tal efeito relevará primordial e necessariamente, a relação subjacente á procuração, à luz do estipulado pelos respectivos intervenientes, relação essa que se não confunde, ao menos necessariamente, com o negócio a realizar(1).

- Mas, uma coisa é a relação subjacente e o critério da acção do procurador de que aquela será pressuposto e, outra, será a dos fins e limites dessa mesma procuração; isto é, uma coisa será a apreciação da conduta do procurador, no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos pela representado, para alcançar um determinado objectivo e, outra, esse mesmo objectivo, dentro do qual se não poderá deixar de enquadrar aquela relação subjacente.

- Ora, no caso e a nosso ver, o objectivo/finalidade para que foi passada a procuração em causa nos autos, foi, apenas e só, para a venda do imóvel, que, com precisão, ali se encontra identificado e para nada mais do que isso, designadamente, para a sua transformação numa realidade jurídico-económica diversa.

- As questões relativas ao recebimento de valores e respectiva quitação, à assinatura de documentos, à intervenção junto de repartições públicas, ou à prática do que se viesse a demonstrar necessário, prendem-se, todas elas, com a forma de executar a procuração e relevam para aferir da sua conformidade com a dita relação subjacente à mesma, mas, como, aliás, consta expressamente de tal instrumento, são distintas do negócio a realizar, enquanto finalidade a prosseguir e para a qual foi concedida a representação, ou como ali se diz, “(…) tudo o mais que se torne necessário aos indicados fins.”.

- Dito de outra forma, a procuração em causa, para além de conferida, também, no interesse do procurador, no que concerne aos recorridos, apenas conferiu poderes de representação ao último, para a realização de um único negócio jurídico; o da venda do imóvel ali identificado.

- Por consequência, não se questionando, por um lado, que quem fez as referidas obras de urbanização e loteamento foi o procurador ao abrigo da referida procuração e sendo de concluir, por outro, que a referida procuração lhe não conferiu poderes para a transformação do referido imóvel, particularmente para a realização das referidas obras, tem-se por assertivo que os efeitos jurídicos decorrentes da respectiva feitura se não podem repercutir na esfera jurídica dos recorridos.

- Conclui-se, assim, pela improcedência da totalidade das conclusões do recurso.
*****
- D E C I S Ã O -

- Nestes termos acordam, os juízes da Secção de Contencioso Tributário do TCASul, em negar provimento ao recurso, assim se conformando a decisão recorrida que, nessa medida, se mantém na ordem jurídica.
- Sem custas.
09MAI05
LUCAS MARTINS
ASCENSÃO LOPES
MANUEL MALHEIROS

(1) Cfr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “A Procuração Irrevogável”, Almedina, 2005.