Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:02125/06
Secção:Contencioso Administrativo - 2º Juízo
Data do Acordão:01/18/2007
Relator:Rogério Martins
Descritores:FUNDAÇÃO
ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
DECLARAÇÃO DE NULIDADE
COMPETENCIA DOS TRIBUANIS ADMINISTRATIVOS
Sumário:Os Tribunais Administrativos são competentes para conhecer da acção administrativa especial que visa a declaração de nulidade ou a anulação dos actos, administrativos, praticados pela Fundação D. ..., Instituição Particular de Solidariedade Social, a determinar a aplicação do regime de renda apoiada aos fogos que os requerentes habitam, ao abrigo do disposto no art.º 11º do Decreto-Lei n.º 166/93, de 7.5.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes do Tribunal Central Administrativo Sul:

Manuel ... e outros interpuseram o presente RECURSO JURISDICIONAL da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, de 25 de Maio de 2006, a fls. 157-165, pela qual aquele Tribunal se julgou incompetente, em razão da matéria, para conhecer da acção administrativa especial que os ora Recorrentes intentaram contra Fundação D. ..., Instituição Particular de Solidariedade Social.

A Entidade Recorrida contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido na 1ª Instância.

O Ministério Público neste Tribunal Central Administrativo emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
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São as seguintes as conclusões formuladas pelos Recorrentes e que definem o objecto do recurso:
A) Os actos que determinam a aplicação de um regime da renda apoiada, previsto no Decreto-Lei 166/93, de um preço técnico dos fogos dos requerentes e do montante da renda apoiada são actos claramente administrativos pelo que sindicáveis perante os Tribunais Administrativos nos termos do disposto no artigo 51°, n°2, do CPTA, e 1o, e 4o, n°1 (corpo e alínea d) do ETAF;
B) Efectivamente, "é recorrível o acto da Administração que determina a aplicação da renda técnica a um fogo municipal, uma vez que é só com tal acto que é definida, em concreto, a situação jurídica do interessado" - in www.dgsi.pt - documento número SA1200511030762 - Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, relatado pelo Exmo. Juiz Conselheiro São Pedro, de 03-11-2005;
C) O regime da renda apoiada é, claramente, um regime em que são atribuídas às entidades aí referidas, Estado, Municípios, Regiões Autónomas e Instituições Particulares de Solidariedade Social poderes de autoridade unilaterais de conformação da situação jurídica de terceiros, poderes esses que escapam a qualquer lógica de equilíbrio entre prestações, nomeadamente a alteração, determinada unilateral mente e sem o assentimento dos requerentes, do regime jurídico que regia as relações entre as partes;
D) O regime da renda dita apoiada não é uma mera especialidade do regime do arrendamento urbano;
E) É um regime com normas de direito administrativo ditado por imperativos de ordem pública e com uma clara finalidade e interesse público imanente à garantia do direito à habitação;
F) Para tanto, tais normas definem um sem número de obrigações à autoridade que as aplica e às pessoas às quais tal regime é aplicado, nomeadamente a existência e necessidade de publicações, anúncios, organização de um local onde podem ser concedidos esclarecimentos, obrigatoriedade de entrega de documentação de cariz absolutamente pessoal à autoridade sob pena de resolução imediata do contrato de arrendamento, possibilidade da autoridade determinar a transferência de fogo de um morador etc.);
G) Estamos, assim, perante um regime jurídico totalmente estranho a uma relação jurídica de cariz privatístico;
H) Estamos, antes, perante uma autêntica relação jurídica administrativa, em que são concedidos poderes de autoridade unilaterais à entidade que as aplica (nomeadamente o de aplicar um regime jurídico totalmente estranho e alheio ao assentimento dado pelos visados, de fixação de preços técnicos e do valor de renda dita apoiada), por motivos e razões de ordem e interesse públicos, e na prossecução de poderes públicos dimanado de normas administrativas que estabelecem um iter procedimental também ele totalmente alheio às relações jurídicas privadas, como são os exemplos das normas contidas nos artigos 6o, 9o e 11o do Regime da Renda Apoiada;
I) Ao considerar a Jurisdição Administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer dos presentes autos, a mui douta sentença recorrida, violou, concomitantemente o disposto nos artigos 1o, 4o, n°1 (corpo e alínea d) do ETAF e 51°, n°2, do C.P.T.A. pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue os Tribunais Administrativos competentes em razão da matéria para conhecer do presente pleito.

Cumpre decidir.

Aos tribunais administrativos cabe apreciar, como regra, as acções e os recursos destinados a dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (art.º 1º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e art.º 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa).

Desde já se adianta que se mostra irrelevante para a questão aqui em apreço - a da competência dos tribunais administrativos para apreciar o pleito - saber se estará em causa na acção principal um acto ou um contrato. Essa questão apenas relevará, em termos adjectivos, para o efeito de determinar a forma processual.

Antes importa saber de que tipo de litígio se trata: de natureza jurídico-privada ou administrativa.

A propósito da competência dos Tribunais Administrativos formou-se o entendimento dominante, na doutrina e na Jurisprudência, de que as relações jurídico-administrativas se definem pelo exercício, por banda de pelo menos uma das partes, de uma função pública, com prerrogativas de autoridade, ainda que não envolva o uso de meios de coerção, com a consentânea envolvência de normas de direito público a reger tais relações jurídicas (vd. acórdãos do Tribunal de Conflitos, de 5.11.1981, recurso n.º 124, de 20.10.1983, recurso n.º 153, de 12.5.1994, recurso n.º 266, e de: 02-02-2005, recurso n.º 26/03; do Supremo Tribunal Administrativo de 6.11.1990, recurso n.º 26.049, de 12.4.1994, recurso n.º 32.906, e de 27.11.1997, recurso n.º 34.366; na doutrina, Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência ano 103, pags. 350-351, e Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª ed., I Vol., pags. 44 e segs.).

As Instituições Particulares de Solidariedade Social, como é o caso da Fundação D. Pedro IV, ora Recorrida, adquirem por efeito automático do respectivo registo, a natureza de pessoas colectivas de utilidade pública – art.º 8º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25.2.

Não se tratam, portanto, de entidades privadas, sem mais.

São pessoas colectivas privadas associadas à prossecução dos “objectivos de desenvolvimento social global de que o Estado é o superior garante” – preâmbulo do Decreto-Lei n.º 119/83, parte final do sexto parágrafo; cfr., também o art.º 1º, n.º 1, do Estatuto aprovado por este diploma. Ver ainda sobre este tema os acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo de 8.10.2002, recurso n.º1308/02 e de 14-03-2006, recurso n.º 976/05 (o primeiro anotado nos Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 55 (Janeiro/Fevereiro de 2006, p. 17).

No caso concreto a Recorrida, entre outros fins, publicita o apoio à integração social e comunitária, bem como a resolução de problemas habitacionais, nomeadamente a habitação protegida para idosos e outros estratos de população vulnerável (ver http://www.fundacaodpedroiv.org/?id_page=16).

De todo o modo, para resolver a questão da competência também não é decisivo saber se a Demandada, ora Recorrida, é uma pessoa colectiva pública ou privada.

Tanto as pessoas públicas como as privadas podem ser sujeitos de relações jurídico-administrativas.

Como nos diz Mário Aroso de Almeida, em O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos, 2005, p. 57, “as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas, como ainda pretendem alguns, segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teleológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis”.

Ora, reportando-nos de novo ao caso concreto, o que está em causa é uma deliberação e subsequentes notificações com vista à aplicação do regime da renda apoiada aos fogos habitados pelos Recorrentes, regime este regulado no Decreto-Lei n.º 166/93, de 7.5.

Tal regime não é um regime de direito privado.

Não é fixado por acordo das partes, ao contrário do que sucede com os regimes de renda livre e de renda condicionada – art.º 77º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/1990 de 15 de Outubro.

Tem por objecto “todas as habitações destinadas a arrendamento de cariz social” – preâmbulo do Decreto-Lei n.º 166/93, 2º parágrafo.

E estabelece prerrogativas de autoridade que não existem no arrendamento de natureza jurídico-privada:

- A possibilidade de a entidade locadora solicitar aos arrendatários, a todo o tempo, documentos e esclarecimentos tidos por necessários – (art.º 9º, n.º 2);
- O poder de aplicar uma sanção, correspondente à totalidade do preço técnico, no caso de incumprimento desta solicitação (art.º 9º, n.º 3);
- A possibilidade de determinar a transferência dos arrendatários dos fogos que ocupam para outros em caso de subocupação (art.º 10º, n.º 2);
- O poder de aplicar uma sanção, correspondente à totalidade do preço técnico, no caso de incumprimento desta determinação (art.º10º, n.º 3);

Prerrogativas estas, que se compreendem face aos fins de natureza social que a Recorrida prossegue, cooperando com o Estado na oferta de habitação a custos suportáveis para os “estratos de população vulnerável”.

Também só face a este escopo de natureza pública se compreende a cedência, sem qualquer contrapartida e sem sujeição às formalidades previstas na lei, de imóveis públicos, incluindo arruamentos, para instituições privadas (art.º 4º da Lei da Assembleia da República n.º 55-B/2004, de 30.12).

Caso contrário, teríamos, sob a cobertura de uma Lei do Orçamento, a rapina privada de bens públicos, descaradamente publicitada.

De resto, concorda-se na íntegra com o teor do acórdão deste Tribunal Central Administrativo, proferido sobre o mesmo tema, de 18.5.2006, no recurso n.º 01620/06.
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Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, revogar a sentença recorrida por improcedência da excepção de incompetência material, ordenando a baixa do processo à 1ª Instância para aí se conhecer de mérito do pedido, fixando-se a pertinente matéria de facto, se nada mais a tal obstar.

Não é devida tributação, por dela estar isenta a Recorrida.
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Lisboa, 18 de Janeiro de 2007

(Rogério Martins)
(Coelho da Cunha)
(Cristina Santos)