Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:0278/04
Secção:CT - 2.º Juízo
Data do Acordão:10/04/2005
Relator:Francisco Rothes
Descritores:IRC
RELAÇÕES ESPECIAIS
CORRECÇÃO AO LUCRO TRIBUTÁVEL COM BASE EM RELAÇÕES ESPECIAIS
FUNDAMENTAÇÃO
ARTS. 57.º DO CIRC (VERSÃO ORIGINÁRIA) E 80.º DO CPT
Sumário:I - A factualidade respeitante à fundamentação formal integrante do acto tributário é do conhecimento oficioso, motivo por que nada obsta a que, mesmo em sede de recurso, o tribunal faça juntar aos autos cópia do relatório que serviu de base à correcção da matéria tributável que deu origem à liquidação impugnada.
II - A AT pode proceder a correcções ao lucro tributável ao abrigo do art. 57.º, n.º 1, do CIRC (na redacção inicial) desde que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos: existência de relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa; que entre ambos sejam estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes; que daquelas resulte um lucro tributável diverso do que se apuraria na sua ausência.
III - Nestes casos, a fundamentação daquelas correcções, para além de dever respeitar as exigências gerais de fundamentação relativas aos actos tributários, deve ainda observar os requisitos especialmente estabelecidos no art. 80.º do CPT (em vigor à data e a que hoje corresponde o art. 77.º, n.º 3, da LGT):
a) Descrição das relações especiais;
b) Descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias;
c) Descrição e quantificação do montante efectivo que serviu de base à correcção.
IV - Se a AT não fez constar no relatório da acção de fiscalização que utilizou para fundamentar a correcção do lucro tributável com base em relações especiais aqueles que seriam «os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias», não pode ter-se aquela correcção por devidamente fundamentada.
V - Nessas circunstâncias, a referida correcção é ilegal, repercutindo-se tal ilegalidade no acto de liquidação que se lhe seguiu.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 A Administração tributária (AT), na sequência de uma acção de fiscalização à sociedade denominada “F... - Comércio de Alumínios e Outros Metais, Lda.” (adiante Contribuinte, Impugnante ou Recorrente), considerou que os pagamentos mensais efectuados pela Contribuinte a uma outra sociedade no ano de 1993 em resultado de um contrato de prestação de serviços técnicos de administração e de gestão «resultam expressamente exagerados», pois passaram de esc. 37.500$00 em 1992 para esc. 637.500$00 em 1993, aumento este apenas justificado em razão das «relações especiais entre as empresas»(1). Consequentemente, não aceitou como custos parte desses pagamentos, que acresceu à matéria tributável, pelo que, com referência ao referido ano de 1993, liquidou adicionalmente à Contribuinte Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e juros compensatórios, dos montantes de, respectivamente, esc. 3.591.885$00 e esc. 1.468.288$00.

1.2 A Contribuinte deduziu impugnação judicial contra essa liquidação, alegando, em síntese e na parte que ora nos interessa considerar (2), que não está devidamente fundamentada a correcção com base nas relações especiais a que alude o art. 57.º do Código do Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas Colectivas(3) (CIRC), não obedecendo a declaração fundamentadora aos requisitos expressamente exigidos pelo art. 80.º do Código de Processo Tributário (CPT).
Concluiu pedindo ao Juiz do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Santarém a anulação da liquidação impugnada.

1.3 O Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria(4) proferiu sentença na qual julgou a impugnação judicial procedente com base no invocado vício de falta de fundamentação.
Em resumo, depois de enunciar os pressupostos da correcção da matéria tributável ao abrigo do art. 57.º, n.º 1, do CIRC, considerou que no relatório que serviu de base à correcção da matéria tributável e, consequentemente, à liquidação impugnada, «embora de forma muito sumária, existe descrição das relações especiais entre a impugnante e a “Hexal”, alicerçada na relação de domínio desta última sobre a Impugnante», mas já «no tocante à descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, o relatório é totalmente omisso».

1.4 A Fazenda Pública, através do seu Representante junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, recorreu da sentença para este Tribunal Central Administrativo e o recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Apresentou alegações de recurso, que resumiu nas seguintes conclusões:
«
è A impugnante – F... – impugnou a liquidação adicional de IRC referente ao exercício de 1993, resultante de correcções em sede de fiscalização.
è Alega que o acto administrativo é ilegal por ausência de fundamentação.
è É razão expressa na douta sentença que aqui se recorre a total omissão de fundamentação no tocante à descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias (conforme art.º 80.º alínea b) do CPT).
è A sociedade F... mantém com a sociedade Hexal, relações especiais (relação de domínio – esta a partir de Abril/1987 passou a controlar aquela em 60% ).
è Em sede de inspecção à F..., apurou-se que entre estas duas empresas foi celebrado um contrato de prestação de serviços técnicos de administração e gestão em 20.01.1989.
è Deste contrato resultou para a Hexal – Empresa Prestadora, uma remuneração mensal de Esc. 37.500$00, donde resultam Esc. 450.000$00 anuais.
è A partir do ano de 1993, inexplicavelmente, tal remuneração mensal passou para Esc. 637.500$00.
è Tais valores além de exagerados, decorrem das relações especiais e de dependência existentes entre as empresas, infringindo por isso mesmo o art.º 4.º n.º 2 in fine, do DL 495/88, de 30/12 (com nova redacção pelo DL 318/94 de 24/12), que obriga as sociedade a praticarem valores de remuneração sem exceder os valores de mercado.
è Das conclusões da acção inspectiva, foram efectuadas as necessárias correcções em sede de IRC, totalmente justificadas e fundadas nas relações especiais existentes entre as duas empresas e os valores atribuídos pela prestação de serviços que excedem os valores normais que deveriam continuar a ser praticados, conforme análise comparativa efectuada nos diversos quadros constantes do relatório da inspecção.
è Além de que, apenas a remuneração à Hexal sofreu notável alteração, na medida em que a F... continuou a suportar os encargos normais, designadamente com a mensalidade do técnico de contas.
è O acto administrativo in casu encontra-se por isso elaborado dentro de todos os parâmetros legais, cumprindo com a fundamentação que lhe é exigida, ex vi art.º 57.º do CIRC e 80.º do CPT.
è Aliás desta forma foi também entendido pelo Digníssimo Procurador da República, no sentido de não se verificar o apontado vício de forma, visto que no relatório subjacente à liquidação em causa, não só se descrevem de forma, minimamente, fundamentada as relações especiais estabelecidas entre a impugnante e a Hexal, como também se refere que os encargos suportados, até Dezembro de 1992, eram os "normais", ou seja, isto é, os correntes no mercado. Observando, ainda que de forma sucinta a fundamentação exigida.

Nestes termos deve o presente recurso ser julgado procedente, considerando-se a liquidação legalmente efectuada, revogando-se a douta sentença da Meritíssima Juiz “a quo”, substituindo-a por outra em que seja julgada totalmente improcedente a presente impugnação judicial».

1.5 A Impugnante contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

1.6 Recebidos os autos neste Tribunal Central Administrativo, foi dada vista ao Ministério Público e o Procurador-Geral Adjunto, depois de promover a junção aos autos do relatório dos serviços de fiscalização que esteve na origem do acto impugnado, o que foi deferido, emitiu parecer no sentido de que seja negado provimento ao recurso.

1.7 Notificadas as partes da junção do referido relatório, a Recorrida veio dizer que «em sede de recurso só excepcionalmente é admissível a junção de documentos» e que os mesmos «não são novos», pois «fazem parte do processo administrativo e foram objecto da competente apreciação probatória e consequente julgamento em 1ª instância», terminando pelo requerimento de que «».

1.8 Colhidos os vistos dos Juízes adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

1.9 As questões que cumpre apreciar e decidir são as de saber:
se é admissível a junção aos autos dos documentos de fls. 94 a 107;
se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento por ter considerado que o acto de correcção da matéria tributável não estava devidamente fundamentado.


* * *

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1 DE FACTO

2.1.1 Na sentença recorrida, o julgamento de facto foi feito nos seguintes termos:

«Factos provados:

Atenta a prova documental e testemunhal produzida, dão-se como provados os seguintes factos, com relevância para a decisão:
A) A Impugnante foi alvo de uma acção inspectiva, que incidiu sobre os exercícios de 1992 a 1995.
B) Pelos Serviços de Fiscalização Tributária foi elaborado o relatório de fIs. 37 a 50 do apenso ao processo de impugnação n.º 37/98, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde consta, para além do mais, o seguinte:

«4.2- OUTRAS DILIGÊNCIAS:
Como já foi anteriormente referido esta firma faz parte de um grupo empresarial constituído por armazéns de distribuição de perfis de alumínio produzidos pela “EXTRUSAL – Companhia Portuguesa de Extrução, AS” com o NIPC 500.103.160 e sede em Aveiro, verdadeira “Mãe” do grupo mas com a qual não existia qualquer vínculo jurídico, embora existam obrigações mútuas que passam invariavelmente pela participação maioritária (entre 60% e 90%) ao capital dos armazéns por parte da “Hexal”.
Durante a acção de fiscalização foi detectada facturação da “Hexal” à “F...” que quer pelos elevados montantes envolvidos, quer pelo pouco detalhe dos serviços prestados quer ainda pela relação especial que se sabe existir entre as duas firmas (relação de domínio), levantou-nos logo algumas interrogações:
(...)
- A empresa suporta encargos normais com a mensalidade do Técnico de Contas [67.500$00 em 1993, 70.875$00 em 1994 e 75.000$00 em 1995 (valores sem IVA)].
- Regularmente são-lhe debitados serviços de apoio informático (30.000$00/mês em 1994 pela “PRÓXIMA”, empresa de igual modo ligada ao grupo).
- ainda mensalmente a “Hexal” debitou em 1991 e 1992, 37.500$00 (valor sem IVA). Em 1993 essa mensalidade passou para 637.500$00, sem qualquer explicação plausível, tendo-se mantido a partir daí nessa ordem de grandeza (ver QUADRO I).
- Para além da renda mensal, são emitidas facturas, fundamentadas no montante que falta para serem atingidos os valores consagrados em aditamentos anuais ao contrato de prestação de serviços celebrado em 20/01/89 com base em “acréscimo de serviço (...) e o seu previsível aumento até ao final do ano”.
- Em 20/01/89 foi celebrado entre a “Hexal” e a “F...” um contrato de prestação de serviços técnicos de administração e gestão que seriam remunerados em anos subsequentes por valores fixados em aditamentos anuais a este contrato. Assim, em 1992 a renda mensal que era de 37.500$00 durante 12 meses o que originava uma retribuição anual de 450.000$00, foi majorada por uma factura de 28/12/92 de 9.000.000$00 (valores sem IVA), por o aditamento prever um débito para esse ano de 9.450.000$00. Já em 1995 o objectivo de facturação previsto no aditamento não foi atingido (ver anexo III).
5- CONCLUSÕES
(...)
5.2- “Hexal - S. G.P.S., AS”
5.2.1- Correcções em IRC
Como foi anteriormente referido, reputamos de exagerados os valores por que a “Hexal” passou a facturar os serviços que presta à “F...” a partir de Dezembro de 1992. Assim aceitaremos os valores até então debitados aos quais atribuiremos o índice 100, indexando os anos seguintes aos volumes de negócio posteriormente verificados. De referir que em 1995, atendendo à indisponibilidade de dados da Declaração de Rendimentos de 1995 utilizámos o somatório das bases tributáveis das declarações periódicas de IVA. Os resultados resumem-se nos seguintes quadros: (...)
Não aceitaremos os custos de acordo com os valores constantes do QUDRO VI, nos termos do artº 57º do CIRC, já que tais valores resultam expressamente exagerados e decorrem de relações especiais e de dependência entre as empresas, com prejuízo para o sócio minoritário e para a “F...” na medida em que desviam recursos financeiros necessários ao autofinanciamento e afectam o grau de solvabilidade da empresa.
(...)”
C) A reclamante deduziu reclamação graciosa contra as liquidações adicionais de IRC e IVA, relativas aos exercícios de 1992 a 1994 - fls. 2 a 9 do apenso junto ao processo de impugnação n.º 37/98.
D) Esta reclamação foi objecto do despacho de indeferimento, constante a fls. 51 a 53 do referido apenso, que se dá por integralmente reproduzido, e notificado através do ofício n.º 1699, de 9 de Março de 1998 (fls... do apenso), onde entre o mais consta o seguinte:

“Relativamente aos montantes debitados pela Hexal, SGPS tecemos as seguintes considerações:
Embora o artº 4º do D.L. 495/88 de 30/12 com a redacção dada pelo D.L. 318/94 de 24/12 permita às SGPS a prestação de serviços técnicos de administração e gestão a todas ou algumas das sociedades em que detenham participações, com as quais tenham celebrado contratos de subordinação, tais serviços não podem ultrapassar o valor de mercado.
Tal como consta do relatório da fiscalização a reclamante pagou nos exercícios em questão, a um técnico de contas e também os serviços de apoio informático. Da importância mensal de 37.500$00 debitados pela Hexal nos exercícios de 1991 e 1992 passou inexplicavelmente para 637.500$00 o montante mensal debitado pela SGPS, mantendo-se o pagamento dos serviços ao técnico de contas. Esta conduta é elucidativa e contraria a legislação antes referida. (...)”.

Factos não provados:

Com interesse para a decisão não se provaram outros factos.


*

A convicção do tribunal baseou-se na análise crítica do conjunto da prova produzida, com destaque para o relatório da inspecção e demais documentos referidos nas alíneas antecedentes».

2.1.2 Porque concordamos integralmente com o julgamento de facto efectuado em 1.ª instância e porque este não vem posto em causa pela Recorrente, consideramos fixada a matéria de facto acima transcrita.

2.2 DE FACTO E DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR

A AT, na sequência de uma acção de fiscalização, considerou inaceitáveis parte dos custos declarados no ano de 1993 pela “F...” relativamente aos pagamentos feitas a uma outra sociedade no âmbito de um contrato de prestação de serviços técnicos de administração e gestão por considerar que os mesmos «resultam expressamente exagerados», pois passaram de esc. 37.500$00 em 1992 para esc. 637.500$00 em 1993, aumento este apenas justificado em razão das «relações especiais entre as empresas».
A Contribuinte pediu a anulação dessa liquidação em impugnação judicial e o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria decretou a peticionada anulação. Isto, com fundamento no invocado vício de falta de fundamentação formal, por no relatório da referida acção de fiscalização, que a AT assumiu como declaração fundamentadora da correcção da matéria tributável que deu origem à liquidação impugnada, não haver a «descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias», descrição essa que constitui um dos requisitos cumulativos da fundamentação da correcção efectuada com base em relações especiais, nos termos do disposto no art. 80.º do CPT.
Insurge-se a Fazenda Pública contra o decidido. Segundo ela, a fundamentação da correcção da matéria tributável obedece a todos os requisitos legais de fundamentação, designadamente ao que a sentença considerou em falta. Se bem interpretamos as alegações de recurso e respectivas conclusões, entende a Recorrente que tais valores são «exagerados» e «decorrem das relações especiais e de dependência existentes entre as empresas, infringindo por isso mesmo o art. 4.º, n.º 2 in fine, do DL 495/88, de 30/12 [...], que obriga as sociedades a praticarem valores de remuneração sem exceder os valores de mercado», pois no âmbito do contrato a remuneração acordada até 1992 era de esc. 37.500$00 por mês e no ano de 1993 passou para esc. 637.500$00 «inexplicavelmente»; mais entende que as conclusões da acção inspectiva estão «totalmente justificadas e fundadas nas relações especiais existentes entre as duas empresas» e que os valores atribuídos em 1993 pela prestação dos serviços «excedem os valores normais que deveriam continuar a ser praticados».
Por isso, como deixámos dito em 1.9, a questão que cumpre apreciar e decidir nos presentes autos é a de saber se a sentença recorrida fez ou não correcto julgamento quando considerou que o acto de correcção da matéria tributável está insuficiente fundamentado por na respectiva declaração fundamentadora se não ter observado o requisito da alínea b) do art. 80.º do CPT.

Previamente, e face à posição assumida pela Recorrida quando notificada da junção aos autos pelo relator de cópia do relatório que constitui a fundamentação (per relationem) da correcção da matéria tributável, impõe-se ainda uma breve nota justificativa daquela junção

2.2.2 DA LEGALIDADE DA JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM FASE DE RECURSO

A junção aos autos do relatório da acção inspectiva que deu origem e serve de fundamentação à correcção da matéria tributável foi ordenada pelo relator, aliás mediante promoção do Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal Central Administrativo.
Isto, porque o referido relatório, apesar de referido na sentença, não estava junto a este processo Aliás, o Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria deixou dito na sentença que o relatório se encontrava junto do apenso ao processo de impugnação judicial n.º 37/98. Salvo o devido respeito, deveria o Senhor Juiz ter providenciado oportunamente pela junção a estes autos da cópia do relatório por forma a poder usá-lo, como usou, como meio de prova.
Seja como for, no contencioso de anulação, em que se enquadra a impugnação judicial dos actos tributários, é de conhecimento oficioso pelo tribunal que conhece de facto a fundamentação formal integrante do acto, nada obstando, por isso, e antes se impondo ao Tribunal que conheça oficiosamente dos factos que respeitam à fundamentação formal do acto impugnado e faça juntar aos autos os documentos pertinentes (5). Tal regra decorre, aliás, do disposto no art. 514.º, n.º 2, do Código de Processo Civil(6).
Nada obsta, pois, à junção aos autos dos documentos de fls. 94 e segs., desatendendo-se o requerido a fls. 111.

2.2.3 DA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ACTO DE CORRECÇÃO DO LUCRO TRIBUTÁVEL

A questão da fundamentação do acto de correcção do lucro tributável com base em relações especiais tem sido abundantemente tratada pela jurisprudência(7). Limitar-nos-emos a seguir a posição que aí tem vindo a ser seguida.
O legislador fiscal consagrou no art. 57.º do CIRC, na sua versão original (8), que é a aplicável aos factos, a possibilidade de a AT «[...] efectuar as correcções que sejam necessárias para a determinação do lucro tributável sempre que, em virtude das relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa, sujeita ou não a IRC, tenham sido estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes, conduzindo a que o lucro apurado com base na contabilidade seja diverso do que se apuraria na ausência dessas relações».
Assim, o art. 57.º consagra como pressupostos da correcção da matéria tributável nele prevista que:
a) existam relações especiais entre o contribuinte e uma outra entidade sujeita ou não ao regime do IRC;
b) em virtude dessas relações, sejam estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes;
c) conduzindo ao apuramento ao apuramento de uma base tributária distinta da que seria apurada na ausência de tais relações (9).
No art. 80.º do CPT, em vigor à data a que se reportam os factos (10), fixavam-se especiais requisitos na fundamentação da correcção à matéria tributável com base em relações especiais(11), exigindo-se a:
«
a) Descrição das relações especiais;
b) Descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias;
c) Descrição e quantificação do montante efectivo que serviu de base à correcção».
Face à matéria de facto que ficou dada como assente, designadamente ao teor já referido relatório, e às exigências de fundamentação decorrentes da lei, fácil se torna concluir pela insuficiência da fundamentação relativamente ao requisito dito em b).
Na verdade, a fundamentação aduzida pela AT é claramente insuficiente como «descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias».
Para satisfazer tal exigência deveria a AT ter indicado, de forma minimamente clara e objectiva, qual o tipo normal de relações que, relativamente a operações da mesma natureza, decorrem entre empresas independentes e em idênticas circunstâncias. Não serve tal desiderato, contrariamente ao sustentado pela Recorrente, a afirmação, conclusiva, do exagero das importâncias pagas pela Recorrida em 1993 à sociedade “Hexal”, por comparação aos pagamentos efectuados em ano anterior, nem da manutenção dos preços relativamente a outros serviços contratados com outras pessoas, antes se impondo que a AT alegasse quais os preços normais que decorreriam das relações entre “pessoas independentes”.
Assim, porque não se descrevem os termos em que decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias, insinuando-se apenas que em condições normais não teriam ocorrido as relações que se descrevem no relatório pelo preço declarado pela Contribuinte, não pode ter-se como fundamentada a correcção da matéria tributável.
Como é sabido, fundamentar o acto tributário consiste na indicação dos factos e das normas jurídicas que o justificam, na exposição das razões de facto e/ou de direito que determinam a AT a decidir num determinado sentido, e não noutro.
Bem andou, pois, o Juiz do Tribunal a quo ao julgar insuficientemente fundamentado o acto de correcção da matéria tributável e ao anular o consequente acto de liquidação, abstendo-se, por isso, de apreciar o invocado vício de violação de lei.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:
I - A factualidade respeitante à fundamentação formal integrante do acto tributário é do conhecimento oficioso, motivo por que nada obsta a que, mesmo em sede de recurso, o tribunal faça juntar aos autos cópia do relatório que serviu de base à correcção da matéria tributável que deu origem à liquidação impugnada.
II - A AT pode proceder a correcções ao lucro tributável ao abrigo do art. 57.º, n.º 1, do CIRC (na redacção inicial) desde que se verifiquem, cumulativamente, os seguintes requisitos: existência de relações especiais entre o contribuinte e outra pessoa; que entre ambos sejam estabelecidas condições diferentes das que seriam normalmente acordadas entre pessoas independentes; que daquelas resulte um lucro tributável diverso do que se apuraria na sua ausência.
III - Nestes casos, a fundamentação daquelas correcções, para além de dever respeitar as exigências gerais de fundamentação relativas aos actos tributários, deve ainda observar os requisitos especialmente estabelecidos no art. 80.º do CPT (em vigor à data e a que hoje corresponde o art. 77.º, n.º 3, da LGT):
a) Descrição das relações especiais;
b) Descrição dos termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias;
c) Descrição e quantificação do montante efectivo que serviu de base à correcção.
IV - Se a AT, pese embora tenha respeitado os requisitos ditos em a) e c) do número anterior, não fez constar no relatório da acção de fiscalização que utilizou para fundamentar a correcção do lucro tributável com base em relações especiais aqueles que seriam «os termos em que normalmente decorrem operações da mesma natureza entre pessoas independentes e em idênticas circunstâncias», não pode ter-se aquela correcção por devidamente fundamentada.
V - Nessas circunstâncias, a referida correcção é ilegal, repercutindo-se tal ilegalidade no acto de liquidação que se lhe seguiu.

* * *

3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida.

Sem custas, por delas estar isenta a Recorrente.


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Lisboa, 4 de Outubro de 2005

(1) As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.
(2) A Impugnante também invocou o vício de violação de lei, mas, como se verá adiante, esse vício, que não chegou a ser apreciada na 1.ª instância, também aqui não será objecto de conhecimento, por se considerar prejudicada a respectiva questão.
(3) Todas as referências ao CIRC se reportam ao código na sua redacção inicial, ou seja, na anterior à que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho.
(4) O Tribunal Tributário de 1.ª instância de Santarém foi extinto nos termos do art. 10.º do Decreto-Lei n.º 325/2003, de 29 de Dezembro, sendo que a partir de 1 de Janeiro de 2004 a competência para conhecer das impugnações judiciais e na área do distrito de Ourém passou a ser do Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, nos termos dos arts. 45.º, n.ºs 1 e 3, e 49.º, n.º 1, alínea a), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro, dos arts. 3.º, n.ºs 1 e 2, e 7.º, n.º 1, do referido Decreto-Lei n.º 325/2003 e do mapa anexo ao mesmo, bem como do art. 1.º, n.º 2, alínea h), da Portaria n.º 1418/2003, de 30 de Dezembro.
(5) Neste sentido, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de Abril de 2002, proferido no processo com o n.º 26635 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 8 de Março de 2004, págs. 1130 a 1146.
(6) Disposição legal que estipula:
«Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra destes factos, deve fazer juntar ao processo documento que os comprove».
(7) Vide, entre outros, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, alguns dos quais também citados na sentença recorrida:
de 6 de Novembro de 1996, proferido no processo com o n.º 20.188 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 28 de Dezembro de 1998, págs. 3260 a 3268, confirmado pelo acórdão do Pleno de 16 de Dezembro de 1998, publicado no Apêndice ao Diário da República de 18 de Maio de 2001, págs. 206 a 213;
de 14 de Fevereiro de 2001, proferido no processo com o n.º 21514 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 27 de Junho de 2003, págs. 431 a 440, e que veio a ser confirmado pelo acórdão do Pleno de 25 de Setembro de 2002, publicado no Apêndice ao Diário da República de 21 de Novembro de 2003, págs. 320 a 331;
de 14 de Março de 2001, proferido no processo com o n.º 25.744 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 27 de Junho de 2003, págs. 431 a 440;
de 26 de Setembro de 2001, proferido no processo com o n.º 25.553 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 10 de Julho de 2003, págs. 1989 a 1999;
de 21 de Janeiro de 2003, proferido no processo com o n.º 21.240 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 25 de Março de 2004, págs. 136 a 142;
de 22 de Setembro de 2004, proferido no processo com o n.º 119/04 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 14 de Janeiro de 2005, págs. 1194 a 1207;
de 17 de Novembro de 2004, proferido no processo com o n.º 915/04 e publicado no Apêndice ao Diário da República de 6 de Julho de 2005, págs.1683 a 1691.
Do nosso Tribunal, vide, entre outros, os acórdãos de 16 de Dezembro de 2004 e de 1 de Fevereiro de 2005, proferidos nos processos com os n.ºs 272/04 e 284/04, respectivamente, e em que a questão que se coloca respeita à mesma contribuinte e é idêntica à dos autos, referindo-se, no entanto, a IVA.
(8) O art. 57.º veio a conhecer nova redacção, dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro.
(9) Cfr. PAULA ROSADO PEREIRA, O Novo Regime dos Preços de Transferência, Fiscalidade, n.º 5, 2001, pág. 25.
(10) Hoje, corresponde-lhe o art. 77.º, n.º 3, da LGT.
(11) Esta particular exigência na fundamentação visa por certo obviar reduzir ao mínimo a margem de discricionariedade que poderia resultar da utilização de conceitos indeterminados. Com interesse, vide o acórdão n.º 252/2005 do Tribunal Constitucional, proferido em 10 de Maio de 2005 no processo com o n.º 560/01, da 1.ª