Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1612/16.6BELSB
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:10/04/2017
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:PEDIDO DE SUSPENSÃO DE EFICÁCIA DE ACTO NEGATIVO
ART.º 148.º DO CPA
CONCEITO RESTRITO DE ACTO ADMINISTRATIVO
ERRO NA QUALIFICAÇÃO DA PROVIDÊNCIA REQUERIDA
SUSPENSÃO DO PAGAMENTO DA REMUNERAÇÃO
SUSPENSÃO DO EXERCÍCIO DE FUNÇÕES
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA PERDA AUTOMÁTICA DE DIREITOS PROFISSIONAIS POR EFEITOS DA APLICAÇÃO DE UMA PENA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
JUÍZO DE ILEGALIDADE POR INCONSTITUCIONALIDADE
FUMUS BONI IURIS, NA SUA VERTENTE POSITIVA,
Sumário:I - Face ao art.º 148.º do CPA, conjugado com os art.ºs. 112.º e 120.º do CPTA, a tutela relativamente aos actos negativos, ainda que com efeitos positivos, deve fazer-se através de providências antecipatórias e não com um pedido de suspensão de eficácia do acto negativo.

II - O CPTA consagra no art.º 112.º uma cláusula aberta relativamente às providências cautelares que podem ser requeridas. As indicadas providências podem ser peticionadas de forma alternativa ou subsidiária, deixando-se ao tribunal o encargo de verificar qual das providências requeridas é a mais adequada a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, sendo também a menos lesiva para os interesses da contraparte – cf. art.ºs 112.º, n.º1 e 120, n.º 3 e 4 do CPTA.

III - Conforme art.º 120.º, n.º 3, do CPTA, o juiz não está adstrito a adoptar a precisa providência que foi requerida, mas pode adoptar qualquer outra, que julgue mais adequada ao caso.

IV- Existindo um erro na qualificação da providência requerida, o juiz pode, oficiosamente, proceder à correcção do pedido.

V - A suspensão do pagamento da remuneração, por aplicação dos arts.ºs 150.º e 276.º a 278.º da LGTFP, após a suspensão da prestação de trabalho, decorrente da suspensão do exercício em funções públicas determinada por decisão judicial no âmbito de um inquérito crime, não viola o princípio da presunção de inocência do arguido, nem o princípio da proibição da perda automática de direitos profissionais por efeitos da aplicação de uma pena.

VI – Nesses casos não existe uma perda automática e mecânica, ope legis, de direitos profissionais associada à decisão penal, mas antes, tal perda é intermediada por uma decisão judicial, que pondera a situação concreta do arguido.

VII – A invocação da ilegalidade da conduta da Administração que determina a suspensão do pagamento da remuneração, por aplicação dos arts.ºs 150.º e 276.º a 278.º da LGTFP, fundada inconstitucionalidade das citadas normas por violação do princípio da proporcionalidade, conjugado com os princípios da presunção de inocência do arguido e da automaticidade da perda de direitos profissionais por decorrência da aplicação de uma medida penal, não preenche o fumus bom iuris ora exigido pelo art.º 120.º, n.º1, do CPTA.

VIII - Ainda que esta última invocação suscite dúvidas quanto ao bom direito das alegações do Requerente, essas mesmas dúvidas não se têm por suficientemente fortes para se considerar preenchido o critério do fumus boni iuris, na sua vertente positiva, agora exigido pelo art.º 120.º do CPTA.

IX- A aferição da ilegalidade da conduta da Administração alicerçada em razões de inconstitucionalidade, quando não existem pronúncias prévias do TC sobre a questão, ou sobre as normas que, em concreto, são discutidas em juízo, baseia-se num raciocínio complexo e muito delicado, que a ter que ser feito numa providência cautelar deve rodear-se de fortes cautelas.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Recorrente: Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos
Recorrido: Ministério das Finanças

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

I - RELATÓRIO

O Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos, em representação do seu associado Hélder ……………., interpôs recurso da sentença do TAC de Lisboa que julgou improcedente o pedido de suspensão de eficácia do acto administrativo de não pagamento da remuneração do representado do A.
Em alegações são formuladas pelo Recorrente, as seguintes conclusões: «A) O representado do ora recorrente é trabalhador do mapa de pessoal da Autoridade Tributária e Aduaneira, serviço da administração central que integra o Ministério das Finanças e da Administração Pública, com a categoria de Técnico de Administração Tributário Adjunto nível 2, encontrando-se colocado a desempenhar funções no Serviço de Finanças de Lisboa 4;
B) Na sequência de uma operação dirigida pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa que teve lugar no passado mês de Abril de 2016, o representado do recorrente foi detido e constituí do arguido no processo de inquérito que corre termos na Comarca de Lisboa, Instância Central, 1ª Secção de Instância Criminal - Juiz 2, com o nº 1130/14.7TDLSB;
C) Por força do referido processo de inquérito, o representado do recorrente ficou sujeito às seguintes medidas de coação: termo de identidade e residência; suspensão do exercício de funções públicas e proibição de contacto com os restantes arguidos e demais intervenientes nas situações que em concreto lhe foram comunicadas (conforme cópia da notificação junta aos autos com a p.i. como documento nº 2);
D) Em consequência da aplicação da medida de suspensão do exercício de funções, a entidade demandada deixou de pagar ao representado do recorrente a sua remuneração mensal a partir de 20/06/2016 (conforme documento nº 1 junto aos autos com a p.i);
E) A suspensão do pagamento do vencimento do representado do A. fica a dever à suspensão do vínculo de emprego público que ocorre quando o impedimento temporário, por facto não imputável ao trabalhador, se prolongue por mais de um mês, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 150°, 276°, 277° e 278° da Lei Geral em Funções Públicas;
F) O que significa que, a partir do mês de Junho de 2016, e pelo período de tempo que durar o processo de inquérito nº 1130/14.7TDLSB, o trabalhador arguido ficará sem auferir qualquer vencimento;
G) O não pagamento da totalidade do vencimento ao seu representado, uma vez que ocorre em momento ainda anterior ao de ser proferido despacho de acusação, impede que durante todo o período que esse mesmo processo de inquérito e a respectiva medida de coacção possam durar, o trabalhador possa prover ao seu sustento, bem como que possa contribuir para o sustento dos seus filhos, violando vários princípios constitucionais, entre eles , o princípio da presunção de inocência do arguido.
H) Ao contrário do que a sentença em crise parece fazer supor, a decisão do Tribunal de Instrução Criminal que decretou a medida de coacção de suspensão do exercício de funções públicas não mandou suspender o pagamento da remuneração ao representado do ora recorrente;
1) A entidade empregadora pública do arguido, neste caso a Autoridade Tributária e Aduaneira, é que notificada daquela decisão judicial de aplicação da medida de coacção de suspensão de funções e interpretando-a, dela extraiu a consequência da suspensão do pagamento da remuneração ao representado do ora recorrente;
J) Essa interpretação é um acto próprio da Administração e, como tal, pode ser sindicada pelos tribunais administrativos do ponto de vista da sua conformidade com a lei e com o fim visado pela decisão judicial interpretada e, portanto, com a intenção dessa mesma decisão judicial interpretada;
K) O Tribunal a quo sustenta a sua decisão em jurisprudência que apreciou e decidiu com base em legislação ordinária que já não está em vigor e que foi substituí da por legislação ordinária muito mais gravosa;
L) É justamente essa alteração da legislação ordinária que está na base dos vícios de inconstitucionalidade assacados ao acto suspendendo, pelo que não se poderá considerar "evidente" que os vícios assacados pelo recorrente ao acto suspendendo venham a ser julgados são improcedentes, mesmo tratando-se de uma summario cognício:
M) Nem no domínio de vigência do Estatuto Disciplinar de 1984 (Dec.-Lei nº 24/84, de 16 de Janeiro) nem no domínio de vigência do Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas (Lei nº 58/2008, de 9 de Setembro), a aplicação da medida de coação de suspensão do exercício de funções públicas implicava a perda da remuneração;
N) Até à entrada em vigor da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas estiveram em vigor o "Regime e o Regulamento do Contrato de Trabalho em Funções Públicas", aprovado pela Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, e a "Lei das Carreiras, Vínculos e Remunerações dos Trabalhadores que exercem Funções Públicas", aprovada pela Lei nº nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, onde também se previa um regime de suspensão do contrato de trabalho fundado na impossibilidade temporária da prestação do trabalho por facto respeitante ao trabalhador por mais de 30 dias e determinava-se que, durante a suspensão, se mantinham os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho;
O) Todavia, no art. 85º da Lei nº 12-A/2008, de 27 de Fevereiro, previa-se a distinção entre a remuneração de categoria e a remuneração de exercício, iguais, respectivamente , a cinco sextos e um sexto da remuneração base;
P) Decorre do regime legal anterior à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas que, até 01/08/2014, numa situação como aquela sobre a qual nos debruçamos no presente caso - a de suspensão do vínculo laboral por motivo de aplicação de uma medida de coacção de suspensão de funções ou de prisão preventiva decretada por um Tribunal de Instrução Criminal de duração superior a trinta dias - o trabalhador em funções públicas perdia apenas o vencimento de exercício, isto é, perdia, apenas, um sexto do vencimento;
Q) A privação da totalidade da remuneração viola o disposto no nº 4 do art. 30° da Constituição, na medida em que, se nenhuma pena aplicada em processo - crime por decisão judicial transitada em julgado, e em que ficou definitivamente estabelecida a culpa do reú, envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, por maioria de razão não será de admitir que uma simples medida de coação de suspensão do exercício de funções públicas, aplicada numa fase em que o arguido ainda beneficia da presunção de inocência (nº 2 do art. 32° da Constituição) envolva como necessária ou automática a perda da totalidade da remuneração;
R) O acto suspendendo viola o art. 32° da Constituição da República Portuguesa. que garante ao arguido que a aplicação das medidas de carácter cautelar e de garantia patrimonial obedecerão a padrões de estrita proporcionalidade e de adequação, de forma a não atentar gravemente contra os seus direitos e liberdades fundamentais , servindo apenas a necessidade processual de descoberta da verdade material:
S) O princípio da presunção de inocência é um princípio geral do processo penal que está sujeito ao regime dos artigos 17° e 18° da Constituição da República Portuguesa, o que significa que beneficia do regime constitucional da contracção e limitação dos direitos constitucionais face a outros de igual valor, em situações de colisão e conflito, que deverá reger-se pelos três sub - princípios elementares: o princípio da necessidade, o princípio da adequação e da proporcionalidade:
T) No caso sob presença estaríamos em presença de um direito fundamental - o direito à presunção de inocência do arguido - que fica limitado pelo direito de o Estado Português defender o prestígio dos serviços públicos, impedir a continuação da eventual actividade criminosa e evitar o perigo de perturbação do inquérito, suspendendo de funções aqueles seus funcionários sobre os quais impende uma suspeita de eventual responsabilidade criminal;
U) A aplicação da medida de suspensão de funções do representado do ora recorrente implica o seu afastamento do seu local de trabalho e, no entendimento da entidade demandada, a consequente privação da totalidade dos seus rendimentos provenientes do trabalho, causando ao representante do recorrente um prejuízo desproporcionado, uma vez que ainda não foi acusado e já está impossibilitado de prover ao seu sustento e ao do seu agregado familiar;
V) A suspensão automática do direito à retribuição do trabalhador em funções públicas, quando se verifique um qualquer factor determinante do vínculo de emprego público que se prolongue por mais de um mês e este efeito automático, independente de qual o factor determinante da suspensão do vinculo contende com os apontados princípios constitucionais;
W) Nos arestos citados para fundamentar a sentença posta em crise, as medidas de coacção que determinaram a suspensão do contrato em funções públicas foram a prisão preventiva e a prisão domiciliária, as quais estão sujeitas a prazos máximos muito pouco extensos, o que não sucede no presente caso, uma vez que a suspensão de funções pode chegar aos três anos ;
X) A circunstância de estarmos perante um caso em que se suscita justam ente a inconstitucionalidade de legislação ordinária nova (a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, que entrou em vigor em Agosto de 2014) com regras muito diferentes sobre esta matéria (no anterior regime perdia-se apenas o vencimento de exercício, correspondente a 1/6 do vencimento base}; bem como o facto de estarmos perante uma medida de coaçcção distinta das apreciadas pelo Tribunal Superior, deveria ter conduzido o Tribunal a quo a considerar como verificado , na presente providência cautelar conservatória , o fumus bonis iuris.».
O Recorrido nas contra alegações formulou as seguintes conclusões: «1 - Por sentença datada de 21 de Outubro de 2016, ora recorrida, veio o Tribunal a quo indeferir o pedido de tutela cautelar, onde se requeria o pagamento de vencimento a um funcionário que está inibido de exercício de funções (por decisão em inquérito criminal).
II - Decisão que não merece qualquer censura, limitando-se a aplicar a Lei, como também bem julgou o TCA Sul em processo igual (aqui anexo).
III - No presente processo apenas estão em causa interesses patrimoniais, que seriam passíveis de ser ressarcidos futuramente.
IV- Esta regra pode sofrer desvios, quando está em causa a própria subsistência com dignidade do associado do Requerente.
V- Mas teria o Requerente de fazer tal prova. o que não sucedeu, desconhecendo o tribunal, de forma absoluta, qual o património do funcionário da AT.
VI- O tribunal conhece, porém, que o funcionário é titular de uma conta bancária e conhece a identificação da conta, mas desconhece, também em termos absolutos, quais as quantias monetárias ar depositadas.
VII- A eventual futura indemnização não é da responsabilidade da AT, que não teve qualquer decisão no processo, limitando-se a cumprir com a determinação judicial (inibição de exercício de funções) com as consequências legais inerentes (perda de vencimento, por impossibilidade de prestar trabalho); pelo que também não será da responsabilidade da AT minimizar danos, caso se venha a verificar a sua existência.
VIII- A decisão de suspensão de exercício de funções transitou em julgado, pelo que a administração terá de a cumprir integralmente, de forma acrítica, incluindo a suspensão dos pagamentos de vencimentos (que são contrapartida do trabalho efectivamente prestado), nos termos dos artigos 276° a 278° da LGTFP.
IX- E o cumprimento de uma decisão judicial (sem poder de decisão pela administração) não configura um acto administrativo que possa ser sindicado pelo tribunal a quo.
X- Caso o fizesse, o tribunal a quo estaria, na verdade, a sindicar a decisão de outro tribunal, sem ter competência para tal (e desconhecendo todo o processo, que está em segredo de justiça).
XI - O próprio Requerente reconhece que a legislação impõe a perda de vencimento no caso, apenas pede a desaplicação da norma. por a considerar inconstitucional.
VIII- Há, porém, diversa jurisprudência sobre a matéria, toda no sentido de que a inibição do exercício de funções implica a perda de vencimento, sem ofensa de qualquer preceito constitucional.
IX- Também o cotejo entre os interesses patrimoniais do associado do Requerente, por um lado, e os interesses públicos que o direito penal visa acautelar, por outro, conduziriam à mesma solução da sentença recorrida.
X- Tanto mais quando essa ponderação já foi feita por um tribunal, ao determinar aquela especifica medida de coacção, na sequência do inquérito criminal, tribunal esse que é competente na matéria e conhece os factos que determinaram tal medida (que nem são do conhecimento do tribunal administrativo).
XI- Com a determinação de suspensão de funções, a perda de vencimento é uma consequência directa prevista na Lei (artigos 276° a 278° da LGTFP), e a administração terá de presumir que o tribunal decisor conhece a extensão da sua decisão, onde se incluem os efeitos legais expressos (não se conhecendo doutrina nem jurisprudência que defenda que no segmento decisório o tribunal terá de elencar todas as consequências possíveis da sentença - tarefa, aliás, que nos parece impossível em muitos casos).
XII- Os vícios arguidos pelo requerente/recorrente deveriam ter sido invocados em sede própria (reagindo à decisão tomada no processo de inquérito criminal), antes do trânsito em julgado (que já se verificou).
XV - A administração não aplicou qualquer pena, limitando o seu comportamento ao cumprimento escrupuloso de uma decisão judicial (como está obrigada, até constitucionalmente), pelo que a sua conduta não merece qualquer censura.»
A DMMP apresentou a pronúncia de fls. 303 a 310 no sentido da improcedência do recurso.
Sem vistos, atenta a natureza urgente do processo, vem o processo à conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

II.1 – OS FACTOS

Em aplicação do art.º 663º, n.º 6, do Código de Processo Civil (CPC), ex vi art.ºs 1.º e 140.º, n.º 3, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), por não ter sido impugnada, remete-se a matéria de facto para os termos em que foi decidida pela 1.ª instância.

II.2 - O DIREITO

As questões a decidir neste processo, tal como vêm delimitadas pelas alegações e contra alegações de recurso e respectivas conclusões, são:
- da inexistência de um acto administrativo que pudesse ser sindicado pelo tribunal e objecto do pedido de suspensão de eficácia (cf. conclusões IX e XVII das contra alegações do Recorrido);
- do preenchimento dos pressupostos do art.º 120.º do CPTA para o deferimento da providência cautelar formulada e no âmbito destes, da averiguação da existência de fumus boni iuris, por a suspensão do pagamento do vencimento do representado do Recorrente, determinada a partir de 20-06-2016, de forma automática, com a invocação da aplicação dos art.ºs 150.º e 276.º a 278.º da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas (LGTFP), por o representado do Recorrente ter ficado suspenso do exercício em funções públicas por decisão judicial ocorrida no âmbito do inquérito n.º 1130/14.7TDLSB, que corre termos no Instância Central da 1.ª Secção da Instância Criminal – Juiz 2, da Comarca de Lisboa, violar de forma evidente o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no art.º 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), o principio da proibição da automaticidade da perda de direitos profissionais por decorrência da aplicação de uma medida penal, consagrado no art.º 30.º, n.º 4, da CRP e o principio da proporcionalidade, padecendo a interpretação e aplicação que foi feita, pelo Recorrido, daqueles artigos da LGTFP de inconstitucionalidade material.

Não obstante não ter feito expressa menção à prorrogativa do art.º 636.º, n.º 1, do CPC, de possibilidade de ampliação do âmbito do recurso relativamente a um fundamento da defesa que tenha decaído, face ao conteúdo das contra-alegações de recurso, ter-se-á de entender que o Recorrido pretendeu fazer abranger o âmbito do recurso à questão que já havia suscitado na contestação da inexistência de um acto administrativo que pudesse ser alvo de um pedido de suspensão de eficácia. Essa questão foi julgada pela sentença recorrida a título de excepção, por ineptidão da PI, ali se entendendo a excepção improcedente por, no caso, existir um acto omissivo, que se pretendia suspender.
O Recorrente apresentou o presente pedido cautelar de suspensão “do acto administrativo de não pagamento da remuneração ao representado do A.”, pretendendo com tal pedido que se mantivesse o pagamento daquela remuneração.
O novo Código de Procedimento Administrativo (CPA) adoptou um conceito restrito de acto administrativo, ali se considerando como tal apenas “as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta”. Ora, no caso dos autos é afirmado pelo Recorrente querer reagir contra uma omissão de uma conduta fáctica da Administração, não contra uma conduta comissiva. O Recorrente não indica existir uma decisão concreta da Administração, no sentido de ser suspenso o pagamento da retribuição do seu associado, prolatado por um dado órgão, numa data certa, com determinados fundamentos. Diferentemente, o Recorrente diz que na sequência da decisão judicial tomada no processo penal que foi movido contra o seu associado, por decorrência do regime estipulado nos art.ºs 150.º e 276.º a 278.º LGTFP, o Recorrido deixou de pagar a correspondente remuneração.. Ou seja, dos autos é claro que se pretende reagir relativamente a uma conduta inerte, que não configura uma decisão produzida pela Administração no âmbito dos seus poderes de autoridade, visando produzir efeitos jurídicos externos na esfera jurídica do associado do Requerente. Inexiste, portanto, um acto administrativo cuja eficácia possa ficar suspensa.
Antes do actual art.º 148.º do CPA a jurisprudência entendia que existiam actos negativos que apenas o eram aparentemente, ou que desses actos podiam existir efeitos positivos, pelo que, nesses casos, sempre seria possível o pedido de suspensão de eficácia de actos negativos. Essa admissão tinha a vantagem de permitir o decretamento da providência conservatória requerida, de suspensão de eficácia, ao abrigo dos critérios exigidos para esse tipo de providências, mais brandos que os que se impunham para as providências antecipatórias no que concerne ao fumus boni iuris. Porém, tal jurisprudência, face ao actual art.º 148.º do CPA, conjugado com os art.ºs. 112.º e 120.º do CPTA, deixou de fazer sentido, porquanto os actos negativos, sejam eles puramente negativos ou aparentemente negativos, podem agora ser tutelados por providências antecipatória e estas passaram a reger-se pelos mesmos critérios das providências conservatórias.
Consequentemente, estando em causa nos autos um acto negativo, não faz agora sentido discutir os seus efeitos positivos para admitir um eventual pedido de suspensão de eficácia desse acto negativo, para assim melhor proteger a posição do particular requerente. Neste seguimento, no caso em apreço, haverá que considerar que não existe um acto administrativo que possa ficar suspenso, não obstante se poder configurar a providência requerida como correspondendo a um pedido para o decretamento de uma medida provisória de pagamento da remuneração do associado do Recorrente.
Ou seja, a decisão recorrida errou quando manteve a configuração do pedido cautelar como sendo requerido contra um acto administrativo, passível de ver sua eficácia suspensa. Porém, o pedido cautelar poderia sempre ser conhecido com a finalidade que o Requerente queria ver verificada – a de ser atribuída ao seu associado, a título provisório, a correspondente remuneração, não obstante a medida criminal que lhe foi aplicada de suspensão do exercício de funções públicas. Tal atribuição ainda resulta do petitório e do próprio intróito da PI, nada obstando que o pedido formulado na PI possa ser oficiosamente corrigido.
O CPTA consagra no art.º 112.º uma cláusula aberta relativamente às providências cautelares que podem ser requeridas, permitindo que seja solicitada a adopção de qualquer providência, conservatória ou antecipatória, que se mostre adequada a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal.
Quanto ao elenco do art.º 112.º, n.º 2, do CPTA, é meramente exemplificativo.
Igualmente, nos termos do art.º 112.º do CPTA, não está o Requerente da providência obrigado a indicar uma única medida. Diferentemente, é-lhe permitido solicitar uma ou mais providências, de forma alternativa ou subsidiária, deixando ao tribunal o encargo de verificar qual das providências requeridas é a mais adequada a assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, sendo também a menos lesiva para os interesses da contraparte – cf. art.ºs 112.º, n.º1 e 120, n.º 3 e 4 do CPTA. Na mesma lógica, conforme art.º 120.º, n.º 3, do CPTA, o juiz não está adstrito a adoptar a precisa providência que foi requerida, mas pode adoptar qualquer outra, que julgue mais adequada ao caso. Mário Aroso de Almeida, a este propósito, fala numa “compressão do princípio do dispositivo”, sendo o objecto do processo cautelar a pretensão do requerente e não o pedido imediato que tenha feito na acção (cf. neste sentido, ALMEIDA, Mário Aroso de - Manual de Processo Administrativo. 2.º ed. Coimbra: Almedina, 2016. ISBN 978-972-40-4349-4, pp. 422- 423; ALMEIDA, Mário Aroso de; CADILHA, Carlos Alberto Fernandes - Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos. 4.ª ed. Coimbra: Almedina, 2017. ISBN 978-972-40-6910-4, pp. 913, 920-922 e 981-982; Cf. também ANDRADE, José Carlos de Vieira de – A Justiça Administrativa, (Lições). 15.ª Ed.. Coimbra: Almedina, 2016. ISBN 978-972-40-6731-5, pp. 314-315).
Existindo um erro na qualificação da providência requerida, nomeadamente porque o Requerente não qualificou correctamente a conduta da Administração contra a qual queria reagir, não adoptando o conceito de acto administrativo que ora resulta do art.º 148.º do CPA, um conceito restrito, que não abrange a inércia da Administração, compreendendo-se qual é o pedido material que se quis formular, há apenas que corrigir aquela errada qualificação jurídica, conhecendo da providência cautelar que se quis realmente formular, considerando-a procedente, ou não.
Em suma, considera-se que com a presente providência o Requerente visou pedir a manutenção da remuneração do seu associado durante o tempo em que o mesmo se encontra suspenso do exercício de funções públicas por força da decisão tomada no processo criminal que contra aquele está a correr. A errada qualificação feita pelo A. desta acção, ora Recorrente, daquele pedido como sendo uma “suspensão de eficácia de um acto administrativo”, não inibe o juiz de qualificar a indicada pretensão correctamente, considerando que se pretendeu apenas pedir uma medida provisória para a continuação do pagamento da remuneração do associado do Recorrente. Igualmente, aquela errada qualificação jurídica não inibe que o processo prossiga com a aferição do indicado pedido.
Em suma, nesta parte a sentença errou na sua fundamentação, mas está correcta no seu sentido decisório, pois era sempre viável o prosseguimento do processo com o conhecimento do pedido de manutenção do pagamento, a título provisório, da remuneração do associado do Recorrente.
Assim, porque os critérios para a atribuição de quaisquer providências cautelares – conservatórias ou antecipatórias – estão inscritos no art.º 120.º n.º1, do CPTA, haverá que subsumir a factualidade apurada nessa previsão legal.
Determina o art.º 120.º, n.º 1, do CPTA, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 214-G/2015, de 02-10, que para o decretamento de qualquer providência cautelar devam verificar-se de forma cumulativa dois requisitos: o periculum in mora e o fumus boni iuris. Ou seja, terá de ficar indiciariamente provado nos autos que existe um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado, ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal e, ainda, que é provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente.
O fumus boni iuris que ora se exige encontra-se na sua formulação positiva, requerendo-se que haja uma séria possibilidade de procedência da pretensão principal, que seja "provável" a aparência do bom direito. Por seu turno, esta apreciação deve ser feita em termos de summario cognitio, com base em juízos de verosimilhança, de mera previsibilidade ou razoabilidade, face aos factos e alegações (indiciários) que são trazidos pelo Requerente para os autos.
A falta de qualquer um daqueles requisitos faz logo claudicar a providência cautelar que tenha sido requerida
Mas ainda que se preencherem os dois requisitos referidos, haverá, depois, que ponderar os interesses em confronto, nos termos do n.º 2 do art.º 120.º do indicado preceito.
Ora, no caso dos autos falha o indicado fumus boni iuris, pois não existe uma probabilidade suficientemente séria, num critério de verosimilhança, para concluir pelo êxito da acção principal.
Na verdade, conforme decorre da matéria indiciariamente provada e das próprias alegações do Recorrente, o Recorrido determinou a suspensão do pagamento do vencimento do representado do Recorrente a partir de 20-06-2016, por aplicação dos art.ºs 150.º e 276.º a 278.º da LGFP, limitando-se a cumprir a lei.
O representado do Recorrente ficou suspenso do exercício em funções públicas por decisão judicial ocorrida no âmbito de um inquérito crime. Portanto, por força desta decisão suspendeu a sua prestação de trabalho. Consequentemente, por aplicação dos art.ºs 276.º, n.º 1 e 277.º, n.º 1, da LGTFP, uma vez suspensa a prestação de trabalho teria necessariamente que também ficar suspenso o pagamento das correspondentes retribuições.
Como decorre dos citados preceitos legais, a causa da suspensão do pagamento da remuneração do associado do Recorrente não é uma decorrência directa, imediata e automática da punição penal. Diversamente, é uma decorrência automática da suspensão de funções, imposta pelos art.ºs. 276.º, n.º 1 e 277.º, n.º 1, da LGTFP.
Nos termos dos art.ºs 276.º, n.º 1 e 277.º, n.º 1, da LGTFP, suspende-se o pagamento da remuneração por força da suspensão da prestação de trabalho, por diversas causas temporárias, v.g., por acidente, serviço militar ou doença – cf. a referência a esta última causa no art.º 278.º, n.º 1, da LGTFP. Verificada a suspensão de funções, então, cessa o pagamento pelas funções (não) exercidas, podendo a eventualidade que deu causa à suspensão da prestação de trabalho estar protegia pelo sistema de segurança social – ou não. Por exemplo, nas situações de doença, essa eventualidade, em princípio, gozará de protecção social, sendo atribuído ao trabalhador uma outra prestação para substituir a remuneração que cessou. Mas já a eventualidade em causa nos autos – a medida de coacção aplicada em sede de processo-crime – não se encontra outra protecção legal, porque o legislador assim não quis.
O associado do Recorrente foi alvo de um processo-crime e nesse processo foi determinado, por despacho judicial, como medida de coacção, a suspensão do exercício de funções.
Consequentemente, é notório que a indicada medida – com as suas consequências legais - não viola o princípio da presunção de inocência do arguido.
O associado do Recorrente terá sido constituído arguido nesse processo e aí terá tido todas as garantias de defesa. Quanto à suspensão do pagamento da sua remuneração, como dissemos, não decorre directa, imediata, ou automaticamente de uma norma penal, ou sequer dos preceitos da LGTFP, mas antes, deriva, de forma mediata, da suspensão de funções que foi decretada judicialmente. Visto noutro prisma, a suspensão do pagamento da sua remuneração decorre da suspensão de funções que se verificou e não da punição penal em si mesma, ou por si só. A decisão penal de suspensão de funções, enquanto mera medida de coacção, não implicou que o associado do Recorrente fosse considerado culpado nesse processo penal, nem implica o apuramento de qualquer culpa no âmbito da sua relação jus-laboral, assim como não implica de forma directa, imediata e automática que haja uma suspensão do pagamento da remuneração. Diversamente, a medida penal implicou que o Recorrente suspendesse as suas funções públicas, este deixou de prestar trabalho e como tal ficou suspensa a remuneração devida pelo trabalho que prestava.
Neste ponto, remete-se para a jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC) que vem entendendo que a garantia da presunção de inocência do arguido “não torna ilegítima toda e qualquer suspensão de funções do arguido, que seja funcionário ou agente, aplicada antes do trânsito em julgado da sentença de condenação. A própria prisão preventiva é admitida pela Constituição, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», no caso de «flagrante delito» ou «por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena maior» [artigo 27º, nºs 2 e 3, alínea a)]. A suspensão só será constitucionalmente ilegítima quando viole o princípio da proporcionalidade, «o qual - como se lê no citado acórdão nº 282/86 - encontra afloramento no artigo 18º, nº 2, da CRP e sempre há-de reputar-se como componente essencial do princípio do Estado de direito democrático (cf. o artigo 2º da CRP)”- cf. Ac. do TC n.º 439/87, de 04-11-1987.
O mesmo raciocínio leva-nos à conclusão de que não existe aqui, com uma probabilidade séria, a violação art.º 30.º, n.º 4, da CRP e da proibição da perda automática de direitos profissionais por efeitos da aplicação de uma pena. Como dissemos, a automaticidade constitucionalmente proibida não existe no caso dos autos.
É jurisprudência pacífica do TC que o art.º 30.º, n.º 4, da CRP, proíbe que a lei preveja a perda automática e mecânica de direitos profissionais, civis, ou políticos como consequência de uma condenação penal, quer essa perda surja ligada à condenação em determinada pena (principal), quer apareça, antes, referida à condenação por certo crime. O que significa que não fica afastada a possibilidade de existir aquela punição profissional, desde que intermediada por uma decisão judicial, que pondera a situação concreta e a culpa do arguido. Proíbe-se efeitos puramente ope legis, não a aplicação judicial de sanções profissionais associadas a outras medidas penais - cf. neste sentido, os Acs. do TC n.º 748/2014, de 11-11-2014, n.º 461/2000, de 25-10-2000, n.º 442/93, de 14-07 ou n.º 284/89, de 09-03-1989.
Refira-se, igualmente, o Ac. do TC n.º 62/2016, de 07-03-2016, que a propósito do art.º 38.º, n.º 1, do Regulamento Disciplinar da PSP - que determinava que o despacho de pronúncia ou equivalente com trânsito em julgado em processo penal por infracção a que correspondesse pena de prisão superior a três anos determinava a suspensão de funções e a perda de um sexto do vencimento base até à decisão final absolutória, ainda que não transitada em julgado, ou até à decisão final condenatória - se pronunciou pela inconstitucionalidade do citado preceito, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, mas porque naquele caso se verificava uma verdadeira automaticidade da punição profissional face à punição penal. Aí, o que se discutiu foi o “efeito automático da prolação do despacho de pronúncia, sem qualquer ponderação de um juízo de necessidade no contexto do caso concreto. A sujeição do arguido a uma medida, ainda que de natureza cautelar, que se baseie num juízo de probabilidade de futura condenação viola prima facie o princípio da presunção de inocência que se encontra constitucionalmente garantido até à sentença definitiva, pois que é aplicada com o exclusivo fundamento numa presunção de culpabilidade” – cf. Ac. do TC n.º 62/2016, de 07-03-2016 (cf. no mesmo sentido o Ac. do TC n.º 273/2016, de 04-05-2016.
Como vimos, esse não é o caso dos presentes autos, onde a determinação para a suspensão de funções, que depois determinou a suspensão de remunerações por aplicação da LGTFP, foi decidida no âmbito de um despacho judicial proferido em sede penal.
Em suma, no caso dos presentes autos não se considera provável a procedência da alegação do Requerente relativa à violação art.º 30.º, n.º 4, da CRP.
Mas já quanto à alegada violação do princípio da proporcionalidade, conjugado com os supra indicados princípios da presunção de inocência do arguido e da automaticidade da perda de direitos profissionais por decorrência da aplicação de uma medida penal, a questão é muito menos evidente.
Na verdade, a suspensão do exercício de funções públicas que foi determinada judicialmente implica que o associado do Recorrido tenha de suspender as funções que presta no Ministério das Finanças. Por seu turno, esta suspensão de funções determina, nos termos dos art.ºs 150.º e 276.º a 278.º da LGTFP, a suspensão da sua remuneração pelo seu valor total. Consequentemente, face a esta última suspensão, caso o trabalhador suspenso não tenha outros rendimentos, ficará privado de meios de subsistência.
O actual regime laboral da função pública, para estes casos, não prevê que possa haver um pagamento, ainda que residual, que funcione como rendimento de substituição. Portanto, caso o trabalhador não aufira outros proveitos, pode a sua sobrevivência económica ficar, de imediato, ameaçada. É certo que este mesmo trabalhador e sua família não ficam excluídos de outras formas gerais de protecção social, nomeadamente, se necessário, de um rendimento mínimo de inserção. Mas o seu rendimento de trabalho fica suprimido e não está previsto que possa vir a auferir um rendimento de substituição, atribuído para cobrir a eventualidade da suspensão do exercício das suas funções em virtude da decisão judicial prolatada.
Acresce, que a medida judicial decretada, de suspensão de funções, teve lugar no âmbito de um processo de inquérito, sendo uma mera medida de coacção, que não tem por fim punir o arguido. Diferentemente, a medida de coacção visa apenas prevenir uma situação de perigo. Neste momento também ainda não há uma culpa formada, gozando o arguido, plenamente, da presunção de inocência.
Neste enquadramento, não será despicienda a invocação da ilegalidade da conduta da Administração por aplicar preceitos que ofendem o princípio da proporcionalidade, em conjugação com os princípios da presunção de inocência do arguido e da automaticidade da perda de direitos profissionais por decorrência da aplicação de uma medida penal,
Neste sentido, o TC já se pronunciou numa situação paralela - em que estava em causa uma decisão administrativa de suspensão de funções e da totalidade do vencimento de um trabalhador por estar pronunciado em processo crime – considerando aquele Tribunal existir uma violação do art.º 32.º, n.º 4, da CRP, com o seguinte argumentário: “Hoje em dia, deve ter-se por restritivo o entendimento tradicional do princípio da presunção de inocência do arguido em termos de o equiparar ao princípio in dubio pro reo. Com efeito, para além de uma regra válida em matéria de prova, é irrecusável que o princípio consagrado naquela norma constitucional contém implicações ao nível do próprio estatuto ou da condição do arguido em termos de, seguramente, tornar ilegítima a imposição de qualquer ónus ou a restrição de direitos que, de algum modo, representem e se traduzam numa antecipação da condenação.
A este respeito, bem pode dizer-se, acompanhando Mário Torres, «Suspensão e demissão de funcionários ou agentes como efeito de pronúncia ou condenação criminais», Revista do Ministério Público, n.º 26, Abril/Junho, 1986, pp. 161 e segs., que «a sujeição do arguido a uma medida que tenha a mesma natureza de uma pena e que se funde num juízo de probabilidade de futura condenação viola intoleravelmente a presunção de inocência que lhe é constitucionalmente garantida até à sentença definitiva, pois tal antecipação de pena basear-se-á justamente numa presunção de culpabilidade. É porque se julga o arguido culpado — antes de a sua culpa ser firmada em sentença transitada — que se lhe aplicam antecipadamente verdadeiras penas (eventual­mente a descontar na pena definitiva)».
Na situação em apreço, por força da aplicação da norma questionada, o Recorrente ficou privado, na sequência da prolação do despacho de pronúncia, e durante a suspensão da mesma decorrente, da totalidade do seu vencimento, isto é, não só do vencimento de categoria, mas também do vencimento de exercício (nos termos dos artigos 16.º do Decreto n.º 19 478, de 18 de Março de 1931, e 12.º, § 1.º, do Decreto n.º 26 115, de 23 de Novembro de 1935, o vencimento dos funcionários civis do Estado divide-se em vencimento de categoria e vencimento de exercício, correspondendo aquele a 5/6 e este a 1/6 do vencimento total).
Ora, com semelhante configuração — ocasionando a perda integral do vencimento por tempo concretamente indeterminado (até ao trânsito em julgado da decisão final) — a suspensão resultante da pronúncia apresenta-se como uma antecipação dos efeitos da pena de demissão sendo certo que nem sequer se acha, no diploma em causa, explicitamente garantida a reparação do lesado na hipótese de, por força de recurso, o despacho de pronúncia vir a ser revogado.
Trata-se, verdadeiramente, de uma aplicação provisória da pena de demissão (cfr. artigos 354.º e 356.º do Estatuto do Funcionalismo Ultramarino) com base num mero juízo indiciário, não judicialmente firmado, que não pode deixar de se considerar incompatível com o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
Não se ignora que este princípio constitucional «na sua desimplicação histórica, assume uma pluralidade de sentidos que exigem a sua concretização e o seu detalhamento progressivos perante as diversas situações processuais que para ele apelam; mas sentidos, também, que não podem ser arbitrária ou desrazoavelmente multiplicados ou estendidos, atento o perigo de que, assim possam vir a entrar em contradição com a razão de ser do princípio como um dos fundamentos do processo penal do Estado de direito democrático» (cfr. Acórdão n.º 168 da Comissão Constitucional, apêndice ao Diário da República, de 3 de Julho de 1980, e ainda Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., 1.º vol., 2.ª ed., pp. 215 e segs., e Pinheiro Farinha, Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pp. 29 e segs.).
Com efeito, o princípio sob análise não proíbe a antecipação de certas medidas cautelares e de investigação (de outro modo, numa visão radical do seu alcance, concluir-se-ia pela inconstitucionalização da instrução criminal em si mesma) ou, como no caso da instauração de processo disciplinar, a suspensão do exercício de funções e a suspensão do vencimento de exercício, esta, enquanto lógica consequência da cessação da actividade profissional.
É que, medidas cautelares desta natureza — suspensão do exercício de funções e do respectivo vencimento de exercício — não colidiriam com o princípio da proporcionalidade ancorado no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição e componente essencial do Estado de direito democrático (cfr. neste sentido o Acórdão n.º 282/86, Diário da República, I Série, de 11 de Novembro).
Simplesmente, a norma do artigo 353.º, § 2.º, na parte em que consente a perda total do vencimento do funcionário suspenso por força do despacho de pronúncia contra ele proferido, para além de se traduzir na antecipação de um quadro de efeitos semelhantes aos da pena disciplinar de demissão, revela-se também afrontadora do princípio da proporcionalidade, dada a manifesta desconformidade entre a medida cautelar assim imposta e o fim que através dela se pretendia atingir — meras considerações de ordem funcional, orientadas na defesa do prestígio dos serviços públicos [cfr., sobre matéria similar à presente, o Acórdão n.º 198/90, Diário da República, II Série, de 17 de Janeiro de 1991, e também Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, 1.º vol., 2.ª ed., 1985, n.º 1.5.2.1, e João Castro Neves, «O Novo Estatuto Disciplinar (1984) — Algumas Questões», Revista do Ministério Público, vol. 20, p. 7, e vol. 21, p. 9].
De tudo isto decorre, com evidência, a inconstitucionalidade da norma em causa, por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 2, e 18.º, n.º 2, da Constituição”
Por seu turno, no Ac. do TC n.º 439/87, de 04-11-1987, entendeu-se, para uma outra situação similar, não haver violação do art.º 30.º, n.º 4, da CRP, por estar assegurada uma parte do vencimento (no caso, o vencimento de exercício, que representava 1/6 do valor total).
Não obstante a citada jurisprudência, é também certo que nos presentes autos o associado do Recorrente invoca a ilegalidade da conduta administrativa com base em preceitos diversos daqueles que foram os apreciados nos acórdãos antes indicados. Igualmente, os art.ºs 150.º e 276.º a 278.º da LGTFP, enquadram-se num novo contexto de direitos e deveres dos trabalhadores da Administração Pública, mais próximos dos trabalhadores privados e menos garantísticos. Ora, no Código de Trabalho encontramos no art.º 295.º, n.º 1, uma cominação idêntica à que ora se verifica na Administração Pública.
Depois, a razão da suspensão do pagamento das remunerações decorre do facto de também cessar temporariamente a correspondente contrapartida jus-laboral: o trabalhador deixa de prestar serviço naquela entidade patronal. O sinalagma obrigacional quebrou-se, portanto. Não auferindo do trabalho, a entidade patronal deixa também de ter que dar uma contrapartida – monetária – ao trabalhador. Quanto à cessação temporária da prestação de trabalho, tem por base razões alheias à própria entidade patronal, mas que poderão vir a ser imputáveis, no final do processo crime, a título de culpa, ao próprio trabalhador.
Assim, raciocinando noutro prisma, defender que no caso sub judice compete à entidade patronal continuar a assegurar a totalidade da remuneração de um trabalhador que não já presta trabalho, é um entendimento que pode também implicar uma ofensa ao princípio da proporcionalidade, por se estar a exigir da entidade patronal algo desequilibrado e desajustado face ao sinalagma contratual a que se vinculou. Ou seja, a ter-se que manter um rendimento de subsistência do trabalhador, a obrigação do seu pagamento pela entidade patronal, pela totalidade do valor da remuneração, não é algo nada linear.
Admite-se, que aqui seja passível de discutir-se a obrigação – constitucional - de manter um rendimento mínimo de sobrevivência para os casos como o dos autos (e não um rendimento igual ao valor da remuneração total). Mas, ainda assim, nesta óptica, seria possível também discutir-se se tal obrigação decorre da não manutenção do pagamento de uma parte da remuneração pela entidade patronal ou, antes, é imputável a uma obrigação genérica do Estado de acautelar um rendimento de substituição em sede de prestações sociais para todas as situações de suspensão da prestação do trabalho.
No demais, a supressão remuneratória a que o trabalhador fica sujeito é meramente temporária. O pagamento da remuneração fica suspenso, não cessa em definitivo, podendo a situação vir a reverter-se para futuro. Esta circunstância da temporalidade da situação terá que ser necessariamente equacionada na apreciação que se faça da inconstitucionalidade invocada.
Acresce aos raciocínios acima elencados, a existência de jurisprudência dos tribunais administrativos e nomeadamente deste TCS que para casos paralelos entendeu não preenchido o fumus boni iuris – cf. neste sentido os Acs. do TCAS n.º 12219/15, de 09-07-2015, n.º 1613/16.4.BELSB, de 20-04-2017 ou Ac. n.º 08465/12, de 08-03-2012.
Indique-se, igualmente, o Ac. TRL n.º 25106/15.8T8LSB.L1-4, de 19-04-2017, que considerou que um trabalhador que foi alvo de uma medida penal, se por essa razão deixa de prestar trabalho, deixa também de ter direito ao pagamento da correspondente retribuição – cf. identicamente neste sentido o Ac. do TCAS n.º 08465/12, de 08-03-2012. Ou o Ac. do TRL 89/13.2TTEVR.E1, de 16-012014, que entendeu que o impedimento temporário do exercício de funções por decorrência de uma medida penal é imputável a culpa do trabalhador, gerando a impossibilidade do trabalhador prestar o seu trabalho.
Em suma, ainda que hajam dúvidas quanto ao bom direito das alegações do Requerente, essas mesmas dúvidas não se têm por suficientemente fortes para se considerar preenchido o critério do fumus boni iuris, na sua vertente positiva, agora exigido pelo art.º 120.º do CPTA. Não existe aqui uma probabilidade suficientemente séria e forte do bom direito.
Antes da última revisão do CPTA, apreciando o critério fumus boni iuris da alínea b) do n.º 1 do art.º 120.º, menos exigente que o actual, o STA proferiu o Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2016, de 05-02-2015, nos termos do qual decidiu “que mera possibilidade de uma determinada norma vir a ser considerada inconstitucional no processo principal não é necessariamente de molde a fundar o preenchimento do requisito do fumus boni juris, na sua formulação negativa, tal como consta da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA”. (cf. no mesmo sentido, o Ac. do Pleno do STA n.º 985/14, de 16-12-2015).”
A aferição da ilegalidade da conduta da Administração alicerçada em razões de inconstitucionalidade, quando não existem pronúncias prévias do TC sobre a questão, ou sobre as normas que, em concreto, são discutidas em juízo, baseia-se num raciocínio complexo e muito delicado, pois o juiz administrativo não tem as prorrogativas políticas do juiz constitucional, não podendo sancionar ou substituir-se ao legislador na tomada das suas opções primárias. Ao juiz administrativo é apenas permitido julgar com base em critérios de estrita jurisdicidade, nunca com fundamentos em escolhas políticas. Nessa medida, a aferição do fumus boni juris que ocorra numa providência cautelar, se baseado em fundamentos de ilegalidade por inconstitucionalidade, há que rodear-se de ainda de maiores exigências. Ou seja, nestes casos o fumus boni iuris é apreciado na sua vertente positiva, tal como agora exige o art.º 120.º, n.º 1, do CPTA, mas associa-se a esse fumus uma obrigação de auto contenção judicial, evitando-se que com base em análises perfunctórias, de verosimilhança, muito mais leves, se invada, ainda que com efeitos provisórios, um espaço que apenas pertence ao legislador e ao TC.
Portanto, pelas razões acima expostas, considera-se não existir uma probabilidade suficientemente séria de a pretensão formulada no processo principal vir a ser considerada procedente, não estando, por isso, preenchido o fumus boni iuris exigido para a procedência da providência requerida.
Claudicando essa verificação, fraqueja necessariamente a providência requerida, pois os critérios exigidos pelo art.º 120.º do CPTA são cumulativos.
Fica, portanto, prejudicado o conhecimento dos restantes pressupostos do art.º 120.º do CPTA.


III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam em:
- em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a decisão recorrida, com a fundamentação ora adoptada.
- custas pelo Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe for concedido.

Lisboa,4 de Outubro de 2017.
(Sofia David)

(Nuno Coutinho)

(José Correia