Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:792/16.5BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/27/2020
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:LEGITIMIDADE PASSIVA
Sumário:I - A. e o R. são partes legítimas quando têm interesse, respectivamente, em demandar e em contradizer;
II - Tal interesse se exprime pela utilidade e prejuízos derivados da procedência da acção;
III - A existência de interesse em demandar e em contradizer afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul


I - RELATÓRIO

O DMMP vem apresentar reclamação para a Conferência da decisão proferida pelo Relator, nos termos do art.º 652.º, n.º 1, al h), do Código de Processo Civil (CPC), ex vi art.º 1.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), que concedeu provimento ao recurso interposto por J……………………. e D…………………., relativamente à decisão do TAF de Sintra, que julgou verificada a excepção de ilegitimidade passiva do R. Estado Português (EP) e revogou essa decisão, julgando não verificada a indicada excepção de ilegitimidade passiva.
Em alegações tinham sido formuladas pelos Recorrentes, as seguintes conclusões: ” I. Retirando o substrato que alimenta e dá forma à petição inicial, verifica-se que o processo tem como objecto uma pretensão ao estado.
II. Pretensão esta decorrente de uma obrigação constitucional que lhe está adstrita, concretamente no artigo 64° e que formula a incumbência de assegurar o direito à proteção da saúde.
III. Tendo sido negada esta proteção à filha menor dos AA. pelos moldes como o Estado definiu o acesso ao SNS, é evidente que é a este que cabe a responsabilização pela recusa de atendimento e prestação de serviço.
IV. Os centros de saúde foram responsáveis pelas atitudes, mas não por legislar sobre as bases do SNS.
V. Daí se ter optado por esta via de ação administrativa para prática de acto devido, e não pela responsabilização civil.
VI. Ora, tendo sido pedido o acesso ao SNS, é o Estado o titular de interesses contrapostos, pois é este quem deve legitima e fundamentadamente contrariar, caso seja essa a sua vontade, a pretensão do Autor.
VII. Não se vê qual o interesse dos Centros de Saúde em responder à pretensão dos AA. de ver a sua filha cuidada e inserida no SNS quando não são eles quem decidem este acesso.
VIII. Ainda, no artigo 38° da Contestação, vem o réu afirmar: “ Solicitar a um Tribunal que condene o Estado Português a ministrar cuidados de saúde a um cidadão - seja ele quem for - é solicitar algo que não carece de tutela judicial, pois que é evidente que o Estado Português o tem de fazer, desde logo por imperativo constitucional e supra legal.”
IX. Sendo que é exactamente este o ponto crucial da questão e que está em debate. O Estado não ministrou nem garantiu. Principalmente tendo em conta o referido preceito constitucional em que diz “tendencialmente gratuito”.
X. Mais, o pedido b) é uma sanção pecuniária compulsória para o caso de continuação da omissão ou recusa do indevido, pelo que é ao Estado Português quem cabe contradizer o mesmo.
XI. O pedido C) é de restituição pela omissão e recusa do indevido pedida em a), pelo que é do maior interesse do Estado Português de se defender.
XII. Assim, descortinado o objecto, é notório que a ação deve ser proposta contra o Estado Português, pois é a outra parte na relação material controvertida.“

O Recorrido nas contra-alegações tinha formulado as seguintes conclusões: “I – O presente recurso tem por objeto a decisão, que julgou procedente a exceção da ilegitimidade passiva do Estado Português e determinou a sua absolvição da instância.
II – Face à relação material controvertida configurada pelos AA., a legitimidade passiva cabe a quem compete aferir do acesso e do cumprimento dos requisitos necessários para beneficiar dos cuidados de saúde no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
III – Pelo que a ação deve ser intentada contra a pessoa coletiva de direito público, a quem legalmente são atribuídos tais poderes, in casu , os Centros de Saúde da Lapa e Algés.
IV – Os centros de saúde são pessoas coletivas de direito público, distintas do Estado, suporte de direitos e obrigações e, portanto, com interesses próprios, repercutindo-se os atos praticados por aqueles na sua esfera jurídica.
V –Tendo os AA. proposto a presente ação administrativa contra o Estado, onde cumularam o pedido de reconhecimento de direitos, com o pedido de condenação à prática de atos materiais e administrativos, não é processualmente admissível tais pedidos contra o R. Estado Português, pelo que este é parte ilegítima na presente ação.
VI – Dado que não cabe ao Réu Estado a prática de qualquer ato ou omissão no que concerne aos pedidos efetuados, nem que dê ordens a quem quer que seja nesse sentido.
VII - Tanto mais, que o Estado Português não pratica atos administrativos, sendo tais atos praticados pelos respetivos Ministérios, ou no caso da administração indireta do Estado, pelas pessoas coletivas de direito público.
VIII - O R. Estado Português carece de legitimidade passiva, por ser completamente alheio à relação material controvertida descrita na petição inicial.
IX – Daí que, a procedência da ação seja insuscetível de causar ao R. Estado Português qualquer prejuízo, pelo que este não tem qualquer interesse em contradizer.
X – A sentença recorrida fez, pois, uma correta interpretação e aplicação dos factos e do Direito, não merecendo qualquer censura, pelo que deve ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão recorrida, nos seus precisos termos.”

II – FUNDAMENTAÇÃO

A questão a decidir neste processo, tal como vem delimitada pelas conclusões de recurso, é:
- aferir do erro decisório porque a presente acção visa a condenação do EP a garantir o acesso da filha dos AA. e Recorrentes ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não apenas ao Centro de Saúde da Lapa e Algés.
Diga-se, desde já, que não se acompanha a decisão recorrida.
Conforme decorre da PI, os AA. e Recorrentes vieram pedir para “a) ser declarado que a filha menor dos AA. reúne as condições necessárias a beneficiar do Serviço Nacional de Saúde, na sua plena dimensão, abstendo-se o R. Estado de criar obstáculos à prestação de serviços médicos e clínicos à mesma:
b) ser o Estado condenado em sanção pecuniária em caso de não serem ministrados á filha dos AA. os cuidados médicos e ambulatórios de que a mesma careça:
c) ser o Estado condenado a restituir aos AA. as despesas por si suportadas com tratamentos médicos à sua filha por força da inabilidade do mesmo em obter tais tratamentos através do Serviço Nacional de Saúde, que se liquidam, desde já, em euros 795,10, acrescidos de juros á taxa legal desde a data da citação da R.
Para suportar estes pedidos, na PI os AA. alegam que são pais da menor Amélia Ricardo, nascida em 29-02-2012, que passaram a residir em Lisboa e que procederam à inscrição do seu agregado familiar no Centro de Saúde da Lapa, integrado na ARS de Lisboa, tendo-lhe sido atribuído, como médico de família, o Dr. J…………….. O A. marcou por telefone uma consulta nesse Centro, agendando-a para 21-10-2014, às 8h, directamente com o respectivo médico, mas na mencionada data o médico recusou a entrada da menor para o local de consulta, invocando que a mesma não tinha agendada qualquer consulta e que deveria aguardar fora do consultório. Dizem os AA. que a sua filha estava doente, com temperatura alta e tosse intensa e que não se deslocaram às urgências do Hospital D. Estefânia, exclusivamente em virtude de estar agendada aquela consulta.
Dizem os AA. que foi recusado o atendimento da menor, não obstante a funcionária administrativa se ter disponibilizado a tratar do assunto, para que a menor fosse vista pelo mencionado clínico. A consulta veio, depois, a ocorrer pelas 13 horas, mas de forma notoriamente anómala, pois a filha dos AA. não foi auscultada. Após, os AA. levaram a filha a outro médico, que teceu fortes críticas à medicamentação prescrita no Centro de Saúde, dizendo que era apropriada ao tratamento de doenças venéreas em adultos e substituiu a prescrição.
Alegam os AA. que porque se incompatibilizaram com o Dr. J………., aquele médico de família foi substituído pela Dr.ª G………., com quem foi agendada uma consulta, para a menor, no dia 12-03-2015. Esta última consulta foi solicitada pelo facto de a menor ter tido, por duas vezes, conjuntivite, revelando um entupimento do canal lacrimal do olho direito e em virtude de as respectivas educadoras terem aconselhado que fosse vista por um terapeuta da fala. Na consulta, foi analisado o olho da menor por uma enfermeira e a médica, sem mais exames, concluiu estar tudo normal. Quanto à questão da fala, a médica considerou ser normal pelo facto de a mãe ser estrangeira e falar com sotaque.
Na PI os AA. alegam, também, que entretanto mudaram a sua residência e pretendendo o A. inscrever o seu agregado familiar no Centro de Saúde de Algés, ao proceder à inscrição da sua filha foi-lhe exigida a apresentação do passaporte original da sua mulher. O A. terá retorquido que, tratando-se de cidadã europeia, bastava o seu cartão de identificação, acompanhado do registo de permanência de cidadão europeu em Portugal, elementos de que era portador, mas por causa da falta de apresentação do passaporte, a sua filha menor ficou sem ser chamada para efectuar a verificação das vacinas, não obstante o funcionário daquele Centro de Saúde ter referido que a mesma, por se tratar de uma menor, iria ser chamada para aquele fim, ainda que a sua inscrição tenha sido aceite.
O A. tentou marcar uma consulta no Centro de Saúde de Algés, mas foi permanentemente confrontado com a informação de falta de vaga e com a possibilidade de marcação de consulta só daí a 3 meses. Por causa disso o A. fez uma queixa junto da Inspecção Geral das Actividades em Saúde, tendo a ARS negado qualquer prática discriminatória.
Dizem os AA. que em face das dificuldades e obstáculos, gerados pelos serviços do Serviço Nacional de Saúde, a sua filha encontra-se, de forma discriminatória, impossibilitada de aceder aos mesmos, sendo-lhe negado o direito fundamental à saúde, assinalado no artigo 64.º da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), assumindo os médicos e demais funcionários uma atitude e comportamento claramente discriminatório, em função da nacionalidade da Autora, o que determinou o recurso a meios de prestação clínica privada e um gasto não inferior a €795,10, que de outro modo não seriam despendidos.
Como decorre da causa de pedir e dos pedidos formulados na presente acção, os AA. não visam impugnar quaisquer actos, comissivos ou omissivos, dos Centros de Saúde da Lapa e de Algés, mas visam reagir contra o facto de a sua filha não gozar de um acesso aos Centros de Saúde que fazem parte do SMS em condições plenas, porque de uma forma célere, com a garantia de todo o tipo de consultas, exames, tratamentos e verificações, as que entendem ser as necessárias ao seu estado de saúde.
Basicamente, os AA. alegam que no Centro de Saúde da Lapa tiveram um acesso deficiente aos cuidados de saúde e no Centro de Saúde de Algés aquele acesso mostrou-se demasiado moroso, motivado por razões administrativas, por uma prática clinica apressada e por deficiência de meios e condições. Por isso, consideram os AA. que não está a ser cumprido o direito à saúde, tal como decorre da CRP.
Nessa consonância, os AA. pedem nas als. a) e b) do petitório que seja declarado que a sua filha reúne as condições para beneficiar em pleno do SNS e para o EP ser condenado a prestar os cuidados médicos e ambulatórios que aquela careça. Quanto à al. c) do petitório, configura um pedido de indemnização decorrente da responsabilidade civil extra-contratual do Estado por actos ilícitos, por ter sido violado pelo EP aquele direito constitucional à prestação de cuidados de saúde.
Na presente acção não se pretende reagir contra uma concreta actuação dos Centros de Saúde em referência, mas requer-se uma pronúncia declarativa relativa aos direitos da filha dos AA., que passe a valer frente a qualquer serviço do SNS e nomeadamente naqueles Centros. Pede-se, também, a condenação do EP a indemnizar os AA. pelos gastos acrescidos que tiveram com a necessidade de recorrerem a serviços de saúde privados.
Nos termos do disposto nos art.ºs 9.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do CPTA (na versão anterior à Lei n.º 118/2019, de 17-09, aqui aplicável) e 30.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, o A. e o R. são partes legítimas quando têm interesse, respectivamente, em demandar e em contradizer.
Decorre do disposto no art.º 30.º, n.º 2, do CPC, que tal interesse se exprime pela utilidade e prejuízos derivados da procedência da acção.
Nos termos do art.º 30.º, n.º 3, do CPC, na falta de indicação da lei em contrário, a existência de interesse em demandar e em contradizer afere-se pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
Determina ainda o art.º 10.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPTA, que nos processos intentados contra entidades públicas, a parte demandada é a pessoa colectiva de direito público.
Na presente causa é demandado o EP por se considerar que o mesmo falhou nos seus deveres constitucionais de garantia do direito à saúde. Assim, a pessoa colectiva de direito público, EP, é quem tem interesse em contradizer nesta acção, pois é quem ficará prejudicado com a sua eventual procedência.
Ou seja, face ao critério meramente formal adoptado pela nossa lei processual civil, e considerando a causa de pedir tal como é configurada pelos AA., há que entender que o EP é parte legítima para ser demandado na presente acção.
Em suma, há que confirmar a decisão reclamada, dando procedência ao presente recurso e há que revogar a decisão recorrida, julgando não verificada a excepção de ilegitimidade passiva que foi suscitada.

III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam em:
- conceder provimento ao recurso interposto, revogar a decisão recorrida e julgar não verificada a excepção de ilegitimidade passiva;
- sem custas por isenção objectiva do Recorrido.

Lisboa, 27 de Fevereiro de 2020.
(Sofia David)

(Dora Lucas Neto)

(Pedro Nuno Figueiredo)