Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09688/16
Secção:CT
Data do Acordão:06/29/2017
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:CONTRATO – PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL/INTERPRETAÇÃO CONTRATO/PRESSUPOSTOS DE FACTO DA LIQUIDAÇÃO/CUSTOS DEDUTÍVEIS/IRC
Sumário:I – O Tribunal não se encontra vinculado à qualificação jurídica dada pelas partes a qualquer negócio que entre as mesmas tenha sido realizado, competindo-lhe interpretar o seu clausulado se são questionados os sentidos da declaração e os efeitos que através das mesmas se visam atingir.
II – Se as partes, num mesmo instrumento jurídico escrito, acordam em prometer comprar e prometer vender uma determinada fracção por um certo valor e, simultaneamente, acordam na realização de um conjunto devidamente identificado de obras, fixando autonomamente um preço a pagar pela sua realização, impõe-se concluir que esse instrumento jurídico titula dois acordos ou contratos: um contrato promessa de compra e venda e um contrato de empreitada (artigos 410.º e 107.º do Código Civil).
III – Se a liquidação adicional substancia as correcções aritméticas feitas pela Administração Fiscal num determinado exercício fiscal em sede de IRC por, na sequência de uma inspecção, ter concluído pela inexistência de documentos capazes de suportar a realização de determinadas obras e o pagamento efectivo do seu custo, impõe-se a sua anulação, por erro nos pressupostos de facto, se o sujeito passivo demonstra a realização das obras, o seu custo e a relação daquelas com a sua actividade.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO
A Fazenda Pública, inconformada com sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa - que julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade «S... – Viagens e Turismo, S.A.» contra a liquidação adicional de IRC, do ano de 1996, no montante de 2.645,82€ - dela veio interpor o presente recurso jurisdicional.

Nas alegações apresentadas, em que fundamenta a sua pretensão revogatória, conclui nos seguintes termos:

«I - Pelo elenco de razões acima arroladas, ressalve-se melhor entendimento, infere-se que a sentença proferida pelo Tribunal "ad quo", caiu em erro ao analisar os documentos probatórios disponíveis que, se devidamente analisados, conduziriam a uma decisão diferente da adotada pelo Tribunal ad quo. Como tal, somos levados a concluir pela existência de factos que pese embora tenham sido dados como provados, foram objecto de uma análise crítica deficiente, levando a decisão recorrida a enfermar ainda de falta de fundamentação.


II - Pronuncia-se a sentença em crise do seguinte modo: "Com efeito, resultando dos autos que a Impugnante celebrou com a sociedade C... um contrato promessa de compra e venda no qual foi identificado expressamente o valor venda no qual foi identificado expressamente o valor correspondente à fração e o valor correspondente das obras a realizar. Que a impugnante celebrou um contrato de leasing imobiliário, cujo valor residual já foi pago. Decorrendo ainda da alínea P) dos factos assentes, que a referida sociedade se dedica à negociação e venda de lojas sem o acabamento, e que este é realizado de acordo com a vontade do cliente, e que foi nestes termos que foi celebrado entre ambos materializado no contrato de promessa, conclui-se que se encontra demonstrado que o espaço em causa foi adquirido no estado de inacabado com o acordo das partes no sentido de as obras serem realizadas de acordo com as indicações da Impugnante, pagas pela Impugnante e faturadas pela sociedade construtora, devidamente contabilizada por ambas.

Do donde se conclui que não foi demonstrado que tenha havido simulação, incorrendo o ato impugnado do vício de violação de lei, por erro nos pressupostos."


Ill - Neste conspecto as correções dos Serviços de Inspeção Tributária no montante total de $920.000,00 a que, discriminadamente correspondem as amortizações relativas às faturas nºs 966 e 967, no valor de $ 820000,00 e, o valor de $120000,00 correspondente à sisa paga pela S... -SOCIEDADE DE LOCAÇÃO FINANCEIRA, SA, não padecem de qualquer ilegalidade.


IV - Portanto como consta dos factos provados a correção realizada fundamentou-se na verificação de que a impugnante "....celebrou, em 8/1/1996, um contrato de promessa de compra e venda com a firma C... no qual promete comprar a esta, o espaço n°5 (piso um) correspondente à fração autónoma letra AR, sito na Rua ..., 2-C, em Lisboa (...) pelo preço de venda de 120.000.000$00, sendo 80.000.000$00, o valor da firação e 40.000.000$00 referente a obras a realizar. O valor referente às obras no total de € 40.000.000$00 (S/IVA) foi faturado à S... pelas faturas n.°s 966 e 967, de 20/03/96 e 26/03/96 nos valores de 10.000.000$00 e 30.000.000$00 respetivamente. Na ação inspectiva realizada na firma "C..." foi-lhe solicitado a discriminação das entidades que efetuaram as obras à empresa "S..." não tendo a mesma justificado, claramente o total dos custos incorridos e dos quais faziam parte duas faturas da firma "E... - serviços nas várias lojas das galerias do referido prédio e não só na loja designada espaço 5 (...) Assim, de acordo com o exposto conclui-se que os valores debitados pelas faturas n°966 e 967 não têm consistência, pondo-se em causa a realização das referidas obras, uma vez que pelos elementos apresentados não foi demonstrado que foram executadas, estando-se perante a existência de operações simuladas. Relativamente às obras efetivamente realizadas à empresa "S...", apenas existe a fatura n°1077 de 10/12/96 que merece credibilidade pela existência de um fax de 29/02/96 enviado pela C... e no qual menciona o custo do granito que corresponde aproximadamente ao valor faturado. Desta forma as referidas faturas no total de 40.000.000$0 não se destinaram ao pagamento de obras, mas sim ao pagamento do restante da aquisição da loja espaço 5, (...) conforme o contrato de promessa de compra e venda já mencionado, uma vez que o preço ali ajustado é de 120.000.000$00 e as obras não foram realizadas. 2- A S... não chegou a efetuar a escritura de Compra do referido prédio, dado que cedeu a sua posição contratual à "S... - sociedade de locação financeira m 29/3/96, relativamente ao espaço 5, (...) sendo o valor do contrato de 80.000.000$00." - cfr. fls. 15 dos autos.


V - Contrariamente ao que foi decidido pelo Tribunal ad quo, não está em causa a não existência de negócio simulado, mas ao invés a qualificação desse negócio e a consequente declaração de validade ou invalidade das correções efetuadas por via dos documentos apresentados pela impugnante. Ora, a impugnante não cumpriu o ónus da prova que sobre si impendia pelo que deve improceder o pedido (art°342°, n°1, do CC e art°74° da LGT); conforme acima explanado.


VI - Isto porque a impugnante, após realização do contrato de promessa não celebrou o contrato de compra e venda nem justificou o valor das obras através de faturas, o que deve ser deve ser devidamente excogitado. Ora, corno tal, também não podia amortizar tais despesas relativas ao prometido contrato de compra e venda porque cedeu a sua posição contratual à S... -SOCIEDADE DE LOCAÇÃO FINANCEIRA, SA em 29/3/96.


VII - Ao não terem sido apresentados documentos contabilísticos que justificassem o valor das obras e das respetivas amortizações praticadas, o que sempre se imporia nos termos do art°40° n°1 do Código Comercial, a sentença recorrida não fez a apreciação crítica da prova, limitando-se à conclusão inócua de que não foi demonstrado que tenha havido simulação, entendendo, com o devido respeito, inopinadamente que, o ato impugnado padece do vicio de violação de lei, por erro nos pressupostos.


VIII - Isto quando ao invés, como doutrina o Prof. Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, pág. 353), deveria ter aplicado a teoria da substanciação como resulta do artigo 581°, n°4 do Cód. Proc. Civil. Seguindo esta teoria, apreciando o pedido, deveria ter especificado o ato ou facto jurídico de que deriva o direito em causa nos autos.


IX - Por outro lado, estando em causa um contrato, a decisão deveria ter ponderado a análise do mesmo, uma vez que o Tribunal não se encontra vinculado à qualificação jurídica dada pelas partes a qualquer negócio que, entre as mesmas se tenha sido realizado.


X - Como refere sabiamente o Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles no seu Manual dos Contratos em Geral, reprint 3ª edição, 1965, LEX, pág. 365 "O contrato, como a lei, precisa de ser interpretado. Para se determinarem os direitos e obrigações nascidos do contrato, o seu conteúdo e os seus limites, é necessário conhecer o conteúdo das declarações que o formam. A interpretação jamais pode dispensar-se, ainda quando se traduz em operação muito fácil e se realiza sem esforço, por as partes terem exteriorizado o seu pensamento límpida e coerentemente."


XI - Segundo o ilustre doutor, num contrato deste tipo, em que o contrato se enquadra na categoria legal da compra e venda, as correspondentes disposições aplicam-se diretamente no seu todo, não apenas analogicamente a um segmento.


XII - Como se pode desse modo concluir, está em causa um contrato de compra e venda pelo preço global de venda de 120.000.000$00, sendo irrelevantes as prestações pagas para conclusão da obra porque não tendo a impugnante recorrido a terceiro para finalizar o acabamento, a venda, foi um negócio de prestação dividida, fracionada ou periódica (Pereira Coelho, Obrigações, 1964, 214 e Baptista Lopes, Compra e Venda, 213 e 214).


XIII - A Sisa paga pela S... também não pode, por razões óbvias, ser amortizada pela impugnante.


XIV - No contrato de leasing, a propriedade jurídica do bem é do locador, podendo ou não vir a concretizar-se uma aquisição da propriedade. Assim, por esse motivo a impugnante carecia de legitimidade para contabilizar qualquer custo relativo à propriedade do imóvel.


XV - Pelo que, com o muito devido respeito, o douto Tribunal "ad quo", não esteou a sua fundamentação de facto e de direito de acordo com a solução adotada pelo legislador errando na apreciação da prova constante nos autos e, nessa medida a decisão recorrida deve ser afastada da ordem jurídica.


Porém, V. EXAS DECIDINDO FARÃO COSTUMADA JUSTIÇA».


A Impugnante, doravante recorrida, notificada da admissão do recurso optou por não contra-alegar.


A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal Central, a que os autos foram com «Termo de vista», para emissão de parecer, pronunciou-se no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os «Vistos» das Exmas. Juízas Desembargadoras Adjuntas, cumpre, agora, decidir, submetendo-se, para esse efeito, os autos à conferência.


II - OBJECTO DO RECURSO

Como é sabido, sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que o recorrente remate a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.

Assim, e pese embora na falta de especificação no requerimento de interposição se deva entender que este abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (artigo 635.°, n.°2, do C.P.C.), esse objecto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.°3 do mesmo artigo 635.°). Pelo que, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, devem considerar-se definitivamente decididas e, consequentemente, delas não pode conhecer o Tribunal de recurso.

Acresce que, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo a já mencionada situação de questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, podemos de formas segura afirmar que o seu objecto está circunscrito à questão de saber de o Tribunal a quo, ao decidir pela anulação da liquidação impugnada por, contrariamente ao que fora o entendimento da Administração Tributária, não se ter comprovado ter existido simulação no contrato promessa celebrado, errou na valoração da prova produzida e nas ilações que extraiu dos factos apurados e, consequentemente, na subsunção desses factos ao direito que aplicou.

Ill – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Em 1ª instância foi fixada - como assente e com relevo para a apreciação do mérito dos autos - a seguinte factualidade:


A) A Impugnante exerce a actividade de operador turístico - cfr. relatório de inspecção a fls. 15 e ss dos autos;


B) A Impugnante está enquadrada, em sede de IRC, no regime geral - cfr. fls.15 dos autos;


C) Em 8/1/96, a sociedade C...- Construção Civil Lda., celebrou com a Impugnante um contrato promessa de compra e venda de uma loja com cerca de 450 m2, designada por espaço 5, fracção AR, no prédio construído por aquela, sito e Lisboa, na Rua ... ... - cfr. fls. 23 a 25 dos autos;


D) O preço "ajustado pela venda" foi de 120.000.000$00, sendo 80.000.000$00 o valor da fracção e 40.000.000$00 relativos à execução de obras de acabamentos e decoração de interiores, a executar por parte da referida C... - Construção Civil Lda - cfr. fls. 23 a 25 dos autos;


E) A fracção supra foi comercializada inacabada - cfr. fls. 129 dos autos;


F) Em 20/3/96 a C... emitiu a factura n°966 à Impugnante no valor de 10.000.000$00 acrescido de IVA à taxa de 17% no valor de 1.7000.000$00, referindo da designação "Rua ... ..., 2 C" Pelos seguintes trabalhos executados no espaço n°5: "demolição do revestimento de paredes e tecto e sua remoção a vazadouro, preparação e limpeza do pavimento para receber novo revestimento, ajustamento da tubagem das instalações eléctricas e sistema de detecção de incêndios às novas dependências, instalação de redes de telefone abertura e tapamento de roços e sistema de ventilação com a abertura e passagem de ar " - cf. fls 148;


G) Em 26/03/96 foi celebrada escritura de compra e venda da referida fracção autónoma com a empresa S..., sociedade de locação financeira - cfr. relatório de inspecção e fls. 142 dos autos.


H) Em 27/3/96 a sociedade C... efectuou o depósito de cheque no valor de 80.000,000$00, em conta de que é titular - cf.fls.146;


I) No ano de 2001, a Impugnante foi sujeita a uma acção inspectiva externa que teve por objecto o exercício de 1996, da qual resultou, em sede de IRC, uma correcção no montante de Esc. 920.000$00 (€ 4.588,94), «relativa amortizações não aceites como custo resultantes das correcções efectuadas no exercício de 1996» - cf. fls. 18 dos autos;


J) A correcção realizada fundamentou-se no facto de, no âmbito da análise realizada ao exercício de 1996 «verificou-se que (...) celebrou, em 8/1/96, um contrato promessa de compra e venda com afirma C... no qual promete comprar a esta, o espaço nº5 (piso um) correspondente à fracção autónoma letra AR, sito na Rua ..., 2-C, em Lisboa (...) pelo preço de venda de 120.000.000$00, sendo 80.000.000$00, o valor da fracção e 40.000.000$00 referente a obras a realizar. O valor referente às obras no total dos 40.000.000$00 (S/IVA) foi facturado à S... pelas facturas n°s 966 e 967, de 20/03/96 e 26/03/96 nos valores de 10.000.000$00 e 30.000.000$00 respectivamente. Na acção inspectiva realizada na firma "C..." foi-lhe solicitado a discriminação das entidades que efectuaram as obras à empresa "S..." não tendo a mesma justificado, claramente o total dos custos incorridos e dos quais faziam parte duas facturas da firma "E... - Soc. de Pinturas e Estuques, Lda" (...) nos valores de 2.340.000$00 e 6.223.143$00 (...) foi ainda ouvido o Sr. J..., sócio da "E..." sobre os trabalhos efectuados no prédio da Q..., lote 10 o qual declarou ter prestado vários serviços nas várias lojas das galerias do referido prédio e não só na loja designada espaço 5 (...) Assim, de acordo como exposto conclui-se que os valores debitados pelas facturas n°966 e 967 não têm consistência, pondo-se em causa a realização das referidas obras, uma vez que pelos elementos apresentados não foi demonstrado que foram executadas, estando-se perante a existência de operações simuladas. Relativamente às obras efectivamente realizadas à empresa "S..." apenas existe a factura n°1077 de 10/12/96 que merece credibilidade pela existência de um fax de 29/2/96 enviado pela C... e no qual menciona o custo do granito que corresponde aproximadamente ao valor facturado. Desta forma as referidas facturas no total dos 40.000.000$$$0000 não se destinavam ao pagamento de obras, mas sim ao pagamento do restante da aquisição da loja espaço 5, (...) conforme o contrato promessa de compra e venda, já mencionado, uma vez que o preço ali ajustado é de 120.000.000$00 e as obras não foram realizadas. 2- A S... não chegou a efectuar a escritura de Compra do referido prédio, dado que cedeu a sua posição contratual à "'S... -sociedade de Locação Financeira, SA" com quem efectuou um contrato de locação financeira em 29/3/96, relativamente ao espaço 5, (...) sendo o valor do contrato de 80.000.000$00 correspondente ao valor de aquisição do imóvel, tendo sido paga a SISA pela S... no valor de 8.000.000$00.» - cf. fls. 15 dos autos.


K) Em 28/9/2001 foi emitida a liquidação n°... respeitante ao exercício de 1996, no valor de 530.440$00, correspondente a €2.645,82 - cfr. fls 12;


L) A Impugnante foi notificada da mencionada liquidação em 18/10/2001 - cf. fls. 13;


M) As obras efectuadas no valor de 40.000.000$00 foram facturadas à S... pela C..., em 20/03/96 e 26/03/96, através das facturas n°s 966 e 967, nos valores de, respectivamente, 11.700.000$00 e 35.100.000$00, IVA incluído - cfr. fls. 35 a 42 dos autos;


N) A sociedade C... efectuou depósitos na conta de que é titular nos montantes de 11.700.000$00 e 35.100.000$00 conforme resulta de fls. 152 a 155 dos autos;


O) Com base em auto levantado em Junho de 2000, pelos Serviços de Inspecção Tributária à S... - Viagens e Turismo, foi aberto o processo de inquérito n° 55/01.0IELSB, que correu termos na 8ª Secção do DIAP, o qual foi arquivado, com base no despacho da Digna Magistrada do MP - cfr. fls. 128 dos autos;


P) Do despacho de arquivamento referido consta, além do mais, que: «Tiveram os autos por base um auto levantado, em 28 de Junho de 2000, pelos Serviços de Inspecção Tributária, contra "S... - Viagens e Turismo ", porquanto, no ano de 1996, com base na facturas com os n°s 966 e 967, emitidas pela empresa "C...", deduziu indevidamente "IVA", no montante de 6.800.000$00; apresentou custos excessivos decorrentes da amortização das supra referidas facturas e deveria ter pago "SISA" sob o valor de 120.000$00, o que não fez, assim indiciando estas condutas a prática de um crime de fraude fiscal, à data p.p 23, do RJIFNA, actualmente no artº1103, da Lei 15/2001, de 15 de Junho. Das diligências efectuadas, resulta que a empresa "C..." negoceia e vende as lojas sem os acabamentos, sendo estes efectuados de acordo com a vontade do cliente. Foi nestes termos que foi celebrado o negócio entre a "C..." e a "S...", o qual esteve na origem do auto de notícia. Pelas facturas 966 e 967, a "C... " procedeu à liquidação de "IVA", o qual recebeu. As referidas operações encontram-se contabilizadas por ambas as firmas e o "IVA" foi declarado e entregue ao Estado. Em sede de "IRC", resulta que a compra e as respectivas obras foram registadas pelas duas empresas; nos termos do art 11-1 e 5, do D. Reg. 2/90, de 12.01 o imóvel e as obras foram amortizadas pela "S... ", de acordo com a tabela II, do citado D. Reg. (...) de onde resulta não terem sido recolhidos elementos que permitam a imputação do (...) crime de fraude fiscal, ou qualquer outro.";


Q) Em 4/4/2002 a Impugnante prestou garantia que determinou a suspensão do processo de execução fiscal n°3344200201512242 desde 19/2/2003 - cf. fls. 96,189 e 190;


R) Por escritura pública celebrada em 28/11/2006 a sociedade T... -Crédito Especializado, Instituição Financeira de Crédito, SA, vendeu à Impugnante pelo preço residual, a fracção autónoma identificada em) por ter decorrido o período de vigência do contrato de leasing imobiliário - cf. fls. 169 dos autos;


S) Por despacho de 29/11/2009 foi declarada a caducidade da garantia mantendo-se a execução fiscal suspensa - cf. fls. 160.

Consta da mesma sentença em sede de julgamento de facto que «Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa» e que a decisão da matéria de facto se efectuou com base «no exame dos documentos, constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada item do probatório».

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Dos pontos I e II supra resulta claramente qual a pretensão da recorrente Fazenda Pública e os argumentos de facto e de direito em que assenta essa pretensão: este Tribunal Central deve revogar a sentença recorrida porque o juízo anulatório da liquidação impugnada assentou numa errada valoração dos factos e da prova que os suporta.

Será assim?

Manifestamente que não.

Como facilmente se surpreende do teor da petição inicial, a então Impugnante estava inconformada por, na sequência de uma inspecção dirigida, para o que releva nestes autos, ao ano de 1996, em sede de IRC, ter visto esse exercício ser objecto de correcções aritméticas que se traduziram na desconsideração de custos que havia declarado e provenientes de obras realizadas num imóvel que acordara vir a adquirir, negócio esse que a Administração Fiscal entendeu ser simulado por parte do preço aí fixado, e reportado a “custo de obras”, constituir verdadeiramente parte do preço de aquisição do mesmo imóvel.

Vejamos.

A fundamentação da liquidação adicional impugnada encontra-se, no essencial, vertida nos factos apurados:

«A correcção realizada fundamentou-se no facto de, no âmbito da análise realizada ao exercício de 1996, «verificou-se que (...) celebrou, em 8/1/96, um contrato promessa de compra e venda com afirma C... no qual promete comprar a esta, o espaço nº5 (piso um) correspondente à fracção autónoma letra AR, sito na Rua ..., 2-C, em Lisboa (...) pelo preço de venda de 120.000.000$00, sendo 80.000.000$00, o valor da fracção e 40.000.000$00 referente a obras a realizar. O valor referente às obras no total dos 40.000.000$00 (S/IVA) foi facturado à S... pelas facturas n°s 966 e 967, de 20/03/96 e 26/03/96 nos valores de 10.000.000$00 e 30.000.000$00 respectivamente. Na acção inspectiva realizada na firma "C..." foi-lhe solicitado a discriminação das entidades que efectuaram as obras à empresa "S..." não tendo a mesma justificado, claramente o total dos custos incorridos e dos quais faziam parte duas facturas da firma "E... - Soc. de Pinturas e Estuques, Lda" (...) nos valores de 2.340.000$00 e 6.223.143$00 (...) foi ainda ouvido o Sr. J..., sócio da "E..." sobre os trabalhos efectuados no prédio da Q..., lote 10 o qual declarou ter prestado vários serviços nas várias lojas das galerias do referido prédio e não só na loja designada espaço 5 (...) Assim, de acordo como exposto conclui-se que os valores debitados pelas facturas n°966 e 967 não têm consistência, pondo-se em causa a realização das referidas obras, uma vez que pelos elementos apresentados não foi demonstrado que foram executadas, estando-se perante a existência de operações simuladas. Relativamente às obras efectivamente realizadas à empresa "S..." apenas existe a factura n°1077 de 10/12/96 que merece credibilidade pela existência de um fax de 29/2/96 enviado pela C... e no qual menciona o custo do granito que corresponde aproximadamente ao valor facturado. Desta forma as referidas facturas no total dos 40.000.000$$$0000 não se destinavam ao pagamento de obras, mas sim ao pagamento do restante da aquisição da loja espaço 5, (...) conforme o contrato promessa de compra e venda, já mencionado, uma vez que o preço ali ajustado é de 120.000.000$00 e as obras não foram realizadas. 2- A S... não chegou a efectuar a escritura de Compra do referido prédio, dado que cedeu a sua posição contratual à "'S... -sociedade de Locação Financeira, SA" com quem efectuou um contrato de locação financeira em 29/3/96, relativamente ao espaço 5, (...) sendo o valor do contrato de 80.000.000$00 correspondente ao valor de aquisição do imóvel, tendo sido paga a SISA pela S... no valor de 8.000.000$00.» [alínea G) do probatório].

Em suma, entendeu a Administração Tributária, finda a inspecção e realizadas as diligências que considerou devidas, que a recorrida tinha efectivamente celebrado um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, acordando que o valor ou preço de compra seria de Esc.120.000.000$00, e não, como a recorrida quis fazer crer, de Esc. 80.000.000$00, porque uma parte do referido preço (Esc. 40.000.000$00), que naquele contrato se encontra formalmente imputado a um conjunto de obras a realizar e que traduziria o seu custo, não corresponde à realidade, como é revelado pela inexistência de documentos capazes de comprovar a realização das obras e o seu pagamento.

Não questionando a recorrente os factos apurados – como de forma clara resulta da leitura de todas as conclusões do recurso transcritas no ponto I supra, especialmente da primeira, - mas apenas as ilações deles extraídas e que suportaram a decisão de anulação, importa, então, apreciar aqueles, adiantando-se, desde já, que este Tribunal Central não extrai dos factos apurados, globalmente considerados e conjugados a mesma conclusão que a Fazenda Pública. Nem cremos, distintamente do que preconiza a recorrente, que a interpretação do contrato, só por si, inviabilize ou imponha a conclusão que ora pretende que este Tribunal de recurso extraia.

Senão, vejamos.

Encontra-se provado nos autos, e nesta parte todos estão de acordo, que a recorrida celebrou um primeiro contrato, qualificado pelas partes como contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, mais concretamente, do imóvel sito Rua ... ..., ..., em Lisboa, designado por espaço 5, fracção “AR”.


E se, como a recorrente diz, e muito bem, a qualificação jurídica do contrato não vincula o Tribunal - a quem compete em caso de litígio na sua interpretação aferir, pelo seu clausulado, qual foi a real vontade dos declarantes, isto é, qual a vontade que estava subjacente à celebração do mesmo, que efeitos efectivamente pretendiam que a sua declaração produzisse – importa, então, face ao teor do contrato e aos demais factos que foram dados como provados, decidir a quem assiste razão: à recorrente, ao defender que o imóvel foi vendido por Esc. 120.000.000$00 ou à recorrida, posição que o Tribunal a quo acolheu, ao defender que o valor de venda foi de Esc. 80.000.000$0, constituindo o remanescente [Esc. 40.000.000$00] o valor ou custo de obras acordadas que foram efectivamente realizadas e por esta suportadas.

Começamos por dizer que, se em tese, o clausulado geral do contrato-promessa em questão se mostra compaginável com um vulgar contra-promessa de compra e venda de imóvel, já a análise mais cuidada do conteúdo de algumas das suas cláusulas e anexos aí referidos impõe acrescida reflexão, o que nos reconduz, como de resto pede a recorrente, à necessidade da sua interpretação.


Ora, compulsado esse teor – vertido no probatório - constata-se que:


- a “S...” pretendia adquirir um imóvel para aí desenvolver a sua actividade - loja com cerca de 450 m2, designada por espaço 5, fracção AR, no prédio construído por aquela, sito e Lisboa, na Rua ... ..., ..., tendo, nesse sentido, celebrado com a proprietária do mesmo um contrato pelo qual se obrigou a adquirir aquele imóvel, no estado em que o mesmo se encontrava, pelo preço de 80.000.000$00 (”valor da fracção”) – factualidade vertida em C) e E), do ponto III supra.


- a promitente compradora acordou que as obras que entendeu como necessárias ao desenvolvimento da sua actividade nesse local - que ficaram discriminadas em anexo ao contrato e expressamente previram como fazendo parte desse contrato, qualificadas globalmente no contrato como de “acabamentos e decoração” - seriam realizadas pela empresa construtora/promitente vendedora, fixando, antecipadamente, como preço total das obras a executar, o valor de 40.000.000$00 ( valor “relativos à execução de obras de acabamentos e decoração de interiores”) – factualidade vertida em C) do ponto III supra;


- a recorrida entregou à promitente vendedora, a título de sinal e principio de pagamento, a quantia de Esc. 1.000.000$00, comprometendo-se a entregar o remanescente do valor de aquisição da fracção e o valor de execução das obras aquando da celebração da escritura pública – cfr. factualidade vertida em C), do probatório.


Neste contexto de facto, vertido no probatório, não temos dúvidas em extrair desde já uma primeira conclusão, qual seja, a de que o acordo celebrado não titula apenas um singelo contrato-promessa de compra e venda, mas dois contratos: um contrato promessa de compra e venda de imóvel [a Impugnante e a C... prometeram, respectivamente, comprar e vender uma determinada fracção urbana por um determinado preço (artigo 410.º do Código Civil)] e um contrato de empreitada [a C... obrigou-se a realizar determinadas obras nesse imóvel mediante um preço que igualmente foi fixado (artigo 1207.º do Código Civil)], sendo importante realçar, ainda, que a razão de ser deste último contrato ou parte do acordo se mostra “justificada” quer no clausulado do próprio contrato, quer pela actividade que, pelo menos até então, era típica da promitente vendedora: venda de imóveis “em tosco”, isto é, sem os “acabamentos”, como foi o caso da fracção dos autos (e que nesse estado se prometia adquirir sem que satisfizesse integralmente os propósitos subjacentes a essa aquisição), acabamentos ou obras essas que expressamente ficaram previstas de forma autónoma e a que se reporta no contrato o preço de Esc. 40.000.000$00.


Mas, sendo assim, a única questão que se coloca é a de saber se as ditas obras foram ou não realizadas pela empreiteira (e também promitente-vendedora) e por quem foram suportadas.


Ora, também relativamente a estas questões o probatório não permite que haja dúvidas uma vez que ficou directamente comprovado que as obras de “acabamento e decoração de interiores” e que ora se discutem - por na génese da liquidação adicional estar precisamente a desconsideração do seu custo - foram efectivamente realizadas e facturadas à S... pela C... em 20 de Março de 1996 e 26 de Março de 1996, através das facturas n°s 966 e 967, nos valores de, respectivamente, 11.700.000$00 e 35.100.000$00, IVA incluído, nas quais estão devidamente discriminados os trabalhos realizados [cfr. factualidade apurada em I), J), K), L) e M), do ponto III deste acórdão].


Acresce que ficou ainda provado que as obras a que se reportam as ditas facturas, e que são as acordadas, foram pagas pela recorrida à C... que procedeu ao depósito dos mesmos valores em conta bancária de que é titular [cfr. factualidade apurada em M) e N), do ponto III deste acórdão].


O que vimos expondo é, só por si, suficiente para que se compreenda a bondade da sentença recorrida, especialmente o seu acerto na parte em que julga verificado o erro nos pressupostos de facto que suportou a emissão da liquidação impugnada.


Efectivamente, como deixámos exposto, a liquidação adicional encontra-se, do ponto de vista fáctico, suportada num não juízo de realização das obras e, consequentemente, de não admissibilidade de dedutibilidade do custo que contabilisticamente lhe está associado. Donde, tendo ficado provada a realização das obras e provado o pagamento do seu custo é, pelo menos para nós, evidente o erro no pressuposto de facto de que a Administração Fiscal partiu.


E não diga a recorrente que, não tendo a promitente-compradora adquirido o imóvel, tais custos, para além de inexistentes, nunca poderiam ser fiscalmente deduzidos ou, em bom rigor, fiscalmente relevantes.


Desde logo, porque o que está em causa não é, contrariamente ao que pretende agora fazer crer a Administração Tributária, a compra do imóvel mas as obras, o custo destas e a sua relação com a actividade da Impugnante. Neste contexto, para além do que já avançamos, importa reter que ficou provado que a escritura definitiva relativa ao referido contrato-promessa foi celebrada a 26 de Março de 1996, isto é, após a realização das obras, entre a promitente vendedora e uma terceira empresa, de leasing, pelo preço de venda acordado, isto é, por Esc. 80.000.000$00 (que a promitente vendedora depositou em conta bancária de que é titular) e que simultaneamente, isto é, na mesma data, esse imóvel foi objecto de contrato de locação financeira imobiliária entre aquela adquirente e a ora recorrida para aí exercer a sua actividade comercialcfr. contratos dados como provados nos pontos G), H), e T) do probatório, especialmente a cláusula II das condições particulares do contrato de locação, relativa à afectação do imóvel; “Pelo presente contrato, o imóvel permanecerá afecto à actividade que o LOCATÁRIO exerce, de acordo com o seu objecto social”.


Depois, porque a promitente compradora (Impugnante) efectivamente adquiriu o imóvel, pelo preço residual, em 2006, aí continuando a desenvolver a sua actividade [cfr. alínea R) do ponto III supra].


Em suma: estando a liquidação adicional impugnada fundada no pressuposto de que os custos deduzidos com obras realizados num imóvel onde a recorrida exerce a sua actividade não foram por si suportados porque tais obras nem sequer se realizaram, deve essa liquidação ser anulada se a Impugnante comprova a realização de tais obras no local onde exerce a sua actividade e o pagamento dos custos delas decorrentes nos exactos termos por si declarados.


É, pois, de confirmar, nos termos expostos, a sentença recorrida.


V- DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, confirmando a sentença recorrida, em negar provimento ao recurso jurisdicional interposto pela Fazenda Pública.


Sem custas, por destas a Fazenda Pública estar isenta (artigos 14.º nº1 e 161 n°1, do Decreto-Lei n°324/2003 de 27-12 (C.C.J.) e nº 4 do artigo 8° da Lei 7/2012 de 13-2).

Registe e notifique.

Lisboa, 29 de Junho de 2017

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[Anabela Russo]

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[Lurdes Toscano]



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[Ana Pinhol]