Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:12735/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/15/2018
Relator:NUNO COUTINHO
Descritores:COMPETÊNCIA MATERIAL
ESTABELECIMENTO DE ENSINO SUPERIOR COOPERATIVO
Sumário:I – A competência dos tribunais em razão da matéria deve ser apreciada face ao pedido e à causa de pedir.

II – Sendo a acção, intentada por aluna que frequentou curso de ensino superior ministrado em universidade pertencente a Cooperativa de Ensino Superior, fundada em invocada violação de deveres contratais por parte da Ré, a jurisdição administrativa é materialmente incompetente para conhecer da pretensão formulada, dado a causa de pedir, o invocado incumprimento do contrato celebrado entre a aluna e a referida Cooperativa, não evidenciar qualquer indício que permita concluir-se estar-se perante uma relação jurídico-administrativa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório

Joana …………………. intentou, nas Varas Cíveis de Lisboa, acção contra a Cooperativa de Formação e Animação Cultural, C.R.L. na qual peticionou a condenação da Ré no pagamento da quantia de 36.276 € a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, quantia acrescida de juros de mora a contar da citação até integral pagamento.

Por decisão proferida pela 12ª Vara Cível de Lisboa foi a Ré absolvida da instância, com fundamento na incompetência em razão da matéria da jurisdição comum.

Remetidos os autos ao T.A.C. de Lisboa este Tribunal, por sentença datada de 22 de Junho de 2015, declarou-se materialmente incompetente para conhecer da pretensão formulada, absolvendo a Ré da instância.

Interpôs recurso a A. da referida decisão, sintetizado nas seguintes alegações:

“1 - A decisão de absolvição da R da instância prolatada pelo TAC de Lisboa em 22.6.2015, ora em recurso, veio a julgar os Tribunais Administrativos como incompetentes em razão da matéria porquanto, na sua óptica, a causa de pedir da acção - tal como equacionada pela A - estriba-se na responsabilidade civil por incumprimento de contrato de ensino universitário privado celebrado entre dois sujeitos privado, fundado em regime de direito privado, e não em regime de direito administrativo ou em actos praticado pela R no exercício de poderes administrativos.

2 - Como tal, e ao abrigo do previsto nos artº 278º, nº 1, a), 578º e 96º a 100º do CPC, aplicáveis ex-vi artº 1º do CPTA, declarou-se materialmente incompetente para tomar conhecimento e decidir do presente litígio.

3 - É desta decisão que ora se recorre por se entender ser a jurisdição administrativa a materialmente competente para o efeito.

4 - Como é sabido e consabido, a competência material do Tribunal afere-se pelos termos em que o A propõe a ação, seja pelos seus elementos objectivos (natureza do direito para o qual se pretende a tutela), seja pelos seus elementos subjetivos (identidade das partes) - artº 30º, nº 3 do CPC.

5 - É da competência jurisdicional dos Tribunais Administrativos o julgamento de acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídico-administrativas (artº 212º, nº 3 da CRP), por contraposição à competência residual ou supletiva dos Tribunais Judiciais (como é o caso das Varas Cíveis), que só exercem jurisdição em matéria cível em todas as áreas não atribuídas ás outras ordens jurisdicionais (artº 211º da CRP).

6 - Sempre que esteja em causa reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, designadamente quando se trate de questões relacionadas com a execução de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito que regulem aspectos específicos do seu regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública, é aos Tribunais da jurisdição administrativa que compete conhecer e decidir (artº 1º e 4º, nº 1, f) do ETAF).

7 - Independentemente da identidade privada ou publica do sujeito processual, a competência legal da jurisdição administrativa para dirimir o litigio impõe-se, por funcional.

8 - Ou seja, sempre que estiver em causa o exercício da função administrativa de qualquer agente (publico ou privado), por via da sua inserção na Administração Publica (estadual ou local), ou por via do seu estatuto normativo, prerrogativas legais ou poderes atribuídos ou concessionados, estamos em pleno domínio das relações jurídico-administrativas

9 - Cumpre então apreciar a determinação da competência material do Tribunal nos termos em que a A formulou a sua pretensão e dos fundamentos em que a estribou, à luz deste princípios e regras gerais (no fundo, do seu quid disputatum), e independentemente do mérito da pretensão deduzida (do seu quid decisum).

10 - Assim sendo, é face à relação material controvertida, e face aos factos - às acções e omissões da R - alegadas na PI para sustentar a sua causa de pedir, é este Tribunal Administrativo o materialmente competente para apreciar e conhecer do mérito dos pedidos em causa.

11 - A ré é uma cooperativa do ensino superior que obteve o reconhecimento do interesse público da ULHT, nos termos do artigo 1º do Decreto-Lei nº 92/98, de 14/04.

12 - Por via dos factos alegados para sustentar a causa de pedir, a responsabilidade civil da R decorre de actos ou omissões praticados pela mesma no exercício de funções de um estabelecimento de ensino superior sujeito a fiscalização governamental, nos termos do artigo 11º nº 1 e nº 5 da Lei nº 62/2007, de 10/09.

13 - A competência material dos tribunais da ordem judicial assume natureza residual, no sentido de que são da sua competência as causas que não estejam legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional (artigo 64º do CPC, artigo 18º nº 1 da L.O.F.T.J, aprovada pela Lei nº 3/99, de 13/01, e artigo 26º nº 1 da Lei nº 52/2008, de 28/08).

14 - O art.º 212.º/3 da C.R.P. preceitua que compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Nestas se integrando "(...) litígio emergente de relações jurídico- administrativas, reguladas por normas materialmente administrativas, no âmbito de actuações de entidades que exerçam concretas competências de direito público, dotadas de ius imperii.» (Acórdão do TRLx de 21.11.2013, disponível no sítio da internet da DGAJ).

15 - O âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é fixado no artigo 1º, nº 1 do ETAF dispondo que «os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais».

16 - A relação jurídica administrativa é «aquela em que, pelo menos, um dos sujeitos é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido». 12

17 - O que no fundo, a autora imputa à ré é a prática de actos e omissões no exercício de um poder público, e actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido, e independentemente da natureza pública ou privada da sua identidade.

18 - O litígio em causa situa-se, por isso, no âmbito de uma relação jurídico­ administrativa, tal como se encontra definida na Doutrina, algo que é determinante da atribuição da competência aos tribunais administrativos nos termos do citado artigo 1º nº 1 do ETAF.

19 - O art.º 4.º, nº 1, a) e f) do ETAF estabelece que compete aos tribunais de jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham por objeto a tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como questões relacionadas com a execução de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito que regulem aspectos específicos do seu regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública

20 - No mesmo sentido, o artigo 37º nº 2 alíneas c), d), f) e H) do CPTA preceitua que segue a forma de acção administrativa, a acção que vise a condenação da administração à adopção de comportamentos necessários ao restabelecimento de direitos ou interesses violados, e ao pagamento de indemnizações por efeito da responsabilidade civil, e a relativa á execução de contratos (como é o caso).

21 - Assim sendo, como de facto e de direito é, a presente causa está atribuída à jurisdição do Tribunal Administrativo visto que tem por objecto um litígio emergente de uma relação jurídico-administrativa e a autora pretende o pagamento de uma indemnização pelos actos ou omissões praticados pela ré, na qualidade de estabelecimento de ensino superior sujeito a fiscalização governamental e no âmbito do interesse público que lhe foi reconhecido.

22 - A Sentença de absolvição da R da instância com base na incompetência absoluta do Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa para conhecer do pedido sofre de vício de violação de lei (sobre a competência dos Tribunais), mais concreta e objectivamente, das regras sobre competência material contidas nos artº 209º, 211º e 212, nº 3 da CRP, artº 1º e 4º, nº 1, f) do ETAF, e artº 96, a) e 99º do CPC (este ultimo "a contrariu"), ambos aplicáveis ex-vi artº 1º e 42º do CPTA.

23 - Pelo que deverá ser a mesma anulada e revogada, bem como substituída por diversa e superior decisão desse Tribunal de recurso que reconheça a competência material da jurisdição administrativa para conhecer da causa e respectivo pedido,

24 - e determine em conformidade a baixa do processo ao Tribunal Administrativo do Circulo de Lisboa para tal efeito, uma vez que é este, dentro da jurisdição em causa, o competente de acordo com o artº 19º do CPTA.”

As contra-alegações da recorrida mostram-se sintetizadas nas seguintes conclusões:

“A. A sentença recorrida ignorou, como não devia, os actos e omissões alegadamente praticados pela Universidade, enquanto entidade de interesse público, susceptiveis de gerar uma obrigação de indemnização, posto ter concluído, erradamente, pela existência de um contrato privado de ensino universitário.

B. A inscrição e a frequência pela A. de um curso ministrado pela Universidade decorreu da prática de sucessivos actos administrativos, fundados no exercício de poderes públicos, conferidos pelo Estado ao estabelecimento de ensino, e, simultaneamente, à sua entidade instituidora.

C. E, a um breve relance, logo ressalta uma diferença de perspectiva quanto à natureza da indemnização, que, segundo acima se sustentou, deve deslocar-se para o domínio da responsabilidade civil extracontratual.

D. Tratar-se-ia, por conseguinte, de invocar as invalidades cujo fundamento se prende com a pretensão da A. e, consequentemente, com o reclamado direito de indemnização.

E. Vale isto dizer que haveria a A., de molde a determinar com precisão quais as invalidades em causa, de identificar, rigorosamente, os actos administrativos objecto de impugnação e os vícios que lhes reconhece.

F. Na prática, apreciar a invalidade de procedimentos, o que valeria reconhecer que se encontra sob análise a preterição de formalidades: essenciais, gerando a nulidade dos actos finais; não essenciais, podendo configurar urna anulabilidade ou a simples irregularidade.

G. Em matéria de direito processual, em sentido estrito, tendo em conta a regra da incompatibilidade entre a acção administrativa comum e o acto administrativo, importa assinalar que esta fórmula processual não pode ser utilizada para processos cujo objecto implique pretensões emergentes da prática ou omissão ilegal de actos administrativos (artº 46º, nº 1, do CPTA).

H. Ficam, nessa medida, prejudicadas as disposições que seguem a acção administrativa especial, em particular o prazo substantivo (3 meses) estabelecido para o exercício do direito de acção de invalidade - anulabilidade de acto administrativo (artº 58°, nº 2, al. b) e 69° do CPTA).

L. Assim, e desde já prevenindo a eventualidade de recurso para outra sede jurisdicional, se alega expressamente o erro na forma de processo, devendo este constituir o verdadeiro fundamento da extinção da instância e que, apenas por falta de oportunidade processual, não foi invocado pela Ré.

J. Mas, considerando que, afinal, a pretensão da A. segue a forma de acção administrativa especial, não pode o reconhecimento desta vicissitude processual significar o aproveitamento de actos já praticados que impliquem a diminuição das garantias da Ré, renovadas pela segunda vez sob o mesmo motivo.

II) Para apreciação do presente recurso importa dar como assentes os seguintes factos:
A)
A Ré é uma cooperativa de ensino superior que obteve o reconhecimento do interesse pública da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.
B)
A ora recorrente foi aluna do Curso de Ciências Equinas ministrado pela Universidade Lusófona de Lisboa, nos anos lectivos de 2010/2011 e 2011/2012.

III) Fundamentação jurídica

Sendo o recurso balizado pelas conclusões das respectivas alegações importa entrar na análise do mesmo, que tem como objecto a decisão de absolvição da Ré da instância, dado o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa ter julgado verificada a excepção dilatória de incompetência da jurisdição administrativa para conhecer da pretensão formulada, tendo concluído que a causa de pedir não assentava em direitos da ora recorrente fundados em regimes de direito administrativo ou em actos praticados pela Ré no exercício de poderes administrativos.

Vejamos:

A competência dos tribunais em razão da matéria deve ser apreciada face ao pedido e à causa de pedir. No caso em apreço, a ora recorrente intentou a presente acção contra a recorrida – pessoa colectiva de direito privado – peticionando a condenação desta no pagamento de indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, fundada em incumprimento, como refere na p.i., de contrato jurídico bilateral, estabelecido por via da matrícula da recorrente no Curso de Ciências Equinas, ministrado pela Universidade Lusófona, por força da qual a referida Universidade se obrigou a ministrar o Curso de Ciências Equinas “…nos termos pela mesma publicitados, e de acordo com o respectivo conteúdo e condições curriculares, e aquela se obrigou a pagar a respectiva propina mensal, bem como os demais encargos associados (artº 405 e segs. do Cód. Civil).”

Lida a p.i. – cfr. a título de exemplo o item 21º – constata-se que o fundamento da presente acção são as “…irregularidades na não aplicação e/ou incumprimento do Regulamento Funcional e Pedagógico do curso e do Regulamento Geral de Avaliação e Conhecimento (….), assim como, na frequente ausência de rigor pedagógico e desconformidade com os objectivos traçados para a componente prática do curso (tão realçada em fase de companha promocional) designadamente, com o impróprio funcionamento da proclamada e prestigiada Academia de Dressage, sem falar das graves lacunas administrativas(….)”, invocando assim a recorrente a violação de vínculos de natureza obrigacional por parte da ora recorrida – cfr. itens 115º a 117º da p.i..

Ao contrário do sustentado pela recorrente, em sede de alegações, e olhando ao modo como a causa de pedir foi gizada na p.i. não se detecta o exercício, por parte da Ré, de qualquer actividade administrativa, mas sim o incumprimento, por banda da recorrida, de invocados vínculos contratuais, estabelecidos entre dois sujeitos de direito privado, conclusão que não é afectada pela circunstância de a Universidade Lusófona se encontrar sujeita a fiscalização governamental, nos termos do artigo 11º nº 1 e nº 5 da Lei nº 62/2007, de 10 de Setembro – diploma que aprovou o regime jurídico das instituições de ensino superior – dado tal fiscalização governamental não relevar para efeitos de determinação da jurisdição competente para apreciar o presente litígio, que passa pela apreciação do pedido e da causa de pedir, não permitindo a p.i. antever estar em causa, ao contrário do alegado, um litígio emergente de uma relação jurídica administrativa, nos termos previstos no artigo 1º do ETAF.

Na verdade, o que está em causa, nos moldes em que a recorrente gizou a sua pretensão, é o incumprimento de um contrato celebrado entre a A. e a Ré - por força da qual esta se obrigou a ministrar o Curso de Ciências Equinas da Universidade Lusófona “…nos termos pela mesma publicitados, e de acordo com o respectivo conteúdo e condições curriculares” – cfr. item 115º da p.i. - o que não terá sido cumprido por parte da Ré não se detectando na causa de pedir que funda a pretensão indemnizatória formulada pela ora recorrente qualquer traço que permita concluir estar-se perante uma relação jurídica administrativa, mas sim uma relação jurídica que se estabeleceu entre dois sujeitos de direito privado, por força do invocado contrato, pelo que deve improceder o recurso interposto da decisão proferida pelo T.A.C. de Lisboa.

III) Decisão

Assim, face ao exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em negar provimento ao recurso.
Lisboa, 15 de Março de 2018

Nuno Coutinho

José Gomes Correia

Paulo Vasconcelos