Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:40/21.6 BELSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:04/18/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CONFLITO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO ADMINISTRATIVO COMUM
JUÍZO ADMINISTRATIVO SOCIAL
Sumário:
Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
DECISÃO


I. Relatório

A Senhora Juíza do Juízo social do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa veio, na mesma decisão em se declarou materialmente incompetente para o conhecimento da causa, requerer oficiosamente junto deste Tribunal Central Administrativo Sul e ao abrigo do disposto na alínea t) do n.º 1 do artigo 36.º do ETAF a resolução do conflito negativo de competência, em razão da matéria, suscitado entre si e a Senhora Juíza do Juízo administrativo comum do mesmo Tribunal. Ambas as Magistradas atribuem-se mutuamente competência, negando a própria, para conhecer da acção administrativa que P ………………….. intentou naquele Tribunal contra o Instituto de Acção Social das Foças Armadas, I.P. (IASFA).

Neste TCA Sul foi cumprido o disposto no artigo 112.º, n.º 1 do CPC, nada tendo sido dito.

Os autos foram com vista ao Digno. Procurador-Geral Adjunto, conforme dispõe o artigo 112.º, n.º 2, do CPC, que emitiu pronúncia no sentido de a competência material caber ao Juízo administrativo comum do TAC de Lisboa.



I. 1. QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR:

A questão colocada consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para apreciar e decidir a presente acção administrativa: se o juízo administrativo social do TAC de Lisboa ou se o juízo administrativo comum do mesmo Tribunal.

II. Fundamentação

II.1. De facto

Para julgamento do presente conflito, julgam-se relevantes as seguintes ocorrências processuais (documentalmente comprovadas):

1. Em 11.01.2021 P …………….. intentou no TAC de Lisboa uma acção administrativa contra o Instituto de acção Social das Forças Armadas, I.P., onde impugnou a decisão do Chefe de Divisão de Gestão daquele Instituto, comunicada a coberto da carta registada com a Refª …………… que determinou unilateralmente o valor da renda relativa ao contrato de arrendamento celebrado, ao abrigo do regime de renda económica, sobre a fracção sita na Rua ……………, nº ., .º Dto., em Lisboa (cfr. p.i. e 8 documentos juntos, a p. 5 e s. do proc. no SITAF).

2. Por sentença de 19.01.2021, a Senhora Juíza do juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, a quem os autos tinham sido, entretanto, atribuídos, excepcionou a incompetência em razão da matéria daquele tribunal e determinou a remessa dos autos ao juízo administrativo social do mesmo Tribunal, por entender ser esse o juízo competente (idem, p. 69).

3. Nessa sequência, a Senhora Juíza desse juízo administrativo a quem os autos foram distribuídos, em sentença datada de 14.02.2022, declarou aquele juízo igualmente incompetente, em razão da matéria, cometendo a competência para apreciar a acção ao juízo administrativo comum do mesmo Tribunal e requereu a este Tribunal Superior a resolução do conflito negativo de competência aberto entre si e a Senhora Juíza do juízo administrativo comum do TCAL (idem, p. 187 e s.).

4. As decisões em conflito transitaram em julgado (cfr. consulta do SITAF).



II.2. DE DIREITO

Nos termos do artigo 36.º, n.º 1, alínea t) do ETAF, compete ao Presidente de cada Tribunal Central Administrativo “conhecer dos conflitos de competência entre tribunais administrativos de círculo, tribunais tributários ou juízos de competência especializada, da área de jurisdição do respectivo tribunal central administrativo”, sendo que no âmbito do contencioso administrativo, os conflitos de competência jurisdicional e de atribuições se encontram regulados nos artigos 135.º a 139.º do CPTA.

Estabelece-se no n.º 1 do artigo 135.º do CPTA que a resolução dos conflitos “entre tribunais da jurisdição administrativa e fiscal ou entre órgãos administrativos” seguem o regime da acção administrativa, com as especialidades resultantes das diversas alíneas deste preceito, aplicando-se subsidiariamente, com as necessárias adaptações, o disposto na lei processual civil (cfr. artigos 109.º e s. do CPC).

Por sua vez, o artigo 136.º do mesmo diploma estatui que “a resolução dos conflitos pode ser requerida por qualquer interessado e pelo Ministério Público no prazo de um ano contado da data em que se torne inimpugnável a última das decisões”. Este preceito corresponde ao artigo 111.º do CPC, que dispõe o seguinte: “1 – Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir. 2 – A resolução do conflito pode igualmente ser suscitada por qualquer das partes ou pelo Ministério Público, mediante requerimento dirigido ao presidente do tribunal competente para decidir”.

Continuando, sob a epígrafe “[c]onflito de jurisdição e conflito de competência” estatui o artigo 109.º do CPC, aqui aplicável “ex vi” artigo 135º do CPTA, que:

1 – Há conflito de jurisdição quando duas ou mais autoridades, pertencentes a diversas actividades do Estado, ou dois ou mais tribunais, integrados em ordens jurisdicionais diferentes, se arrogam ou declinam o poder de conhecer da mesma questão: o conflito diz-se positivo no primeiro caso e negativo no segundo.

2 – Há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão.

3 – Não há conflito enquanto forem susceptíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência.

O legislador do ETAF plasmou no artigo 44.º-A, aditado pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, e para os casos em que tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, os critérios de eleição para determinar a sua habilitação funcional. De acordo com o citado artigo 44.º-A do ETAF, sob a epígrafe “Competência dos juízos administrativos especializados”, passou a dispor-se o seguinte:

1- Quando tenha havido desdobramento em juízos de competência especializada, nos termos do disposto no artigo 9.º, compete:

a) Ao juízo administrativo comum conhecer de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que incidam sobre matéria administrativa e cuja competência não esteja atribuída a outros juízos de competência especializada, bem como exercer as demais competências atribuídas aos tribunais administrativos de círculo;

b) Ao juízo administrativo social, conhecer de todos os processos relativos a litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de proteção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

c) Ao juízo de contratos públicos, conhecer de todos os processos relativos à validade de atos pré-contratuais e interpretação, à validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes, e à sua formação, incluindo a efetivação de responsabilidade civil pré-contratual e contratual, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei;

d) Ao juízo de urbanismo, ambiente e ordenamento do território, conhecer de todos os processos relativos a litígios em matéria de urbanismo, ambiente e ordenamento do território sujeitos à competência dos tribunais administrativos, e das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei.

2- Quando se cumulem pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a ação ser proposta no juízo competente para a apreciação do pedido principal.

Daqui resulta que o juízo administrativo comum funciona como juízo de competência material residual: caso as matérias em dissídio não estejam incluídas no âmbito dos juízos especializados, a competência para as apreciar cabe ao juízo administrativo comum. A competência material especializada prevalece, assim, sob a competência material comum, precisamente porque esta é residual.

E na delimitação de competências entre o juízo comum e os diferentes juízos especializados dos tribunais administrativos (e estes entre si), afigura-se-nos evidente que o legislador atendeu ao objecto material das causas, relevando as especificidades que decorrem do direito substantivo que regula as correspondentes relações jurídicas, associando, no que aqui importa, as áreas de competência do juízo administrativo social, o conhecimento dos litígios emergentes do vínculo de trabalho em funções públicas e da sua formação, ou relacionados com formas públicas ou privadas de protecção social, incluindo os relativos ao pagamento de créditos laborais por parte do Fundo de Garantia Salarial.

A competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pelos pedidos e causas de pedir.

É entendimento generalizado da Jurisprudência dos Tribunais Superiores e da Doutrina que a competência do tribunal “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)” (…) A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor compreendidos aí os respectivos fundamentos, não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão” (cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, p. 91 e, por todos, o acórdão do Tribunal de Conflitos de 4.07.2006, proc. n.º 11/2006).

Em suma, a competência afere-se pela substância do pedido formulado e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da causa de pedir. E em conformidade com o disposto no artigo 13º do CPTA, o seu conhecimento é oficioso e precede o conhecimento das demais questões.

Feito este enquadramento inicial, vejamos o caso concreto, devidamente recortado pela factualidade que deixámos fixada.

Recorde-se que na presente acção administrativa o Autor veio pedir ao tribunal a anulação do acto administrativo consubstanciado na decisão da autoria da Chefe de Divisão de Gestão aquele Instituto, comunicada a coberto da carta registada com a Refª ……….., (notificado em 24.08.2020) que determinou unilateralmente que o valor da renda relativa ao contrato de arrendamento celebrado, em regime de renda económica, com o IASFA, I.P.- proprietário da fracção sita na Rua …………., nº., .º Dtº, em Lisboa - passaria para o valor de EUR 567,16.

O contrato de arrendamento foi celebrado para fins habitacionais e está sujeito ao regime nomeadamente o regime jurídico do arrendamento das casas de renda económica do IASFA, vertido no Decreto-Lei n.º380/97, de 30 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º83/2019, de 27 de junho.

E se é certo que o complexo normativo que regula a cedência dos fogos municipais configura um regime jurídico de regras específicas que não podem deixar de ser qualificadas como de direito público, uma vez que têm em vista os contratos celebrados por entidades que gerem recursos públicos para a satisfação de necessidades colectivas (vide ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.05.2011 - Processo nº8272/09.9TBCSC.L1-2), certo é também que o contrato de arrendamento em causa nos autos não corresponde a nenhuma das categorias de contratos submetidos à parte II do CCP, nem está sujeito ao regime substantivo dos contratos públicos inscrito na sua parte III (artigo 280º do CPC.). Antes se integra numa categoria de contratos expressamente excluídos do âmbito de aplicação do CCP (art. 4.º, n.º 2, al. c), do CCP).

Pode, pois, dizer-se, aliás, em consonância com o repetidamente decidido neste Tribunal Superior (vide, i.a., a decisão proferida no processo n.º 378/19.2 BELRS) que estamos na presença de um “contrato administrativo de direito administrativo geral não especialmente regulado no CCP”, para usar a expressão empregue por Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos (cfr. Contratos Públicos, Direito Administrativo Geral, Tomo III, p. 62).

O que vale por dizer que o objecto dos presentes autos não se reporta a um litígio emergente de contrato de procura pública com interesse concorrencial, mas antes de uma relação jurídica estabelecida sob a égide do regime de arrendamento de habitação de interesse social, sendo por conseguinte, incompetente para conhecer da causa o juízo de contratos públicos por a competência caber ao juízo administrativo comum.

Efectivamente, para que se considere que um determinado contrato está sujeito às normas da contratação pública, é necessário que haja procura pública, no sentido de corresponder esta à satisfação de um interesse próprio e de uma necessidade da entidade adjudicante (cfr., a este propósito, Pedro Costa Gonçalves, Direito dos Contratos Públicos, 4.ª ed., 2020, p. 312 e s.). O que não é seguramente o caso dos presentes autos, como acima já se deixou dito.

Como se afirmou na recente decisão sumária por nós proferida no processo n.º 1077/14BELSB, em que estava em causa situação análoga:

“O contrato em questão seguiu as regras da contratação pública? Não. Foi celebrado ao abrigo de acordos-quadro? Não. Os aspectos da execução do contrato estão sujeitos à disciplina do CCP? Não. A sanção por incumprimento encontra-se prevista nos artigos 325.º e s. do CCP? Não. Donde, não estarmos perante uma situação-tipo susceptível de ser inscrita no catálogo dos litígios emergentes da formação e execução de contratos (administrativos) sujeitos ao regime da contratação pública. É que, como se afirmou na decisão de 18.01.2021 da Exma. Presidente do TCAN, proc. n.º2063/06.6BEPRT, «o juízo de contratos públicos é, a final, o juízo da contratação pública e não o juízo residual de todo e qualquer contrato (administrativo ou de direito privado) celebrado por entidades ou sujeitos na órbita da Administração Pública»”.

Em face do que fica dito, teremos que concluir, perante o teor da alínea b) do n.º 1 do artigo 44.º-A do ETAF e tendo presente o objecto do litígio (v. supra) que a competência material para apreciar a natureza da relação em conflito não cabe ao juízo de contratos públicos do TAC de Lisboa, mas sim ao juízo administrativo comum do TAC de Lisboa, por força da conjugação do disposto nos artigos 9.º, nºs 4 e 5 e 44.º-A, n.º 1, alínea a) do ETAF (na versão que lhe foi dada pela Lei nº 114/2019, de 12 de Setembro), artigo 1º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 174/2019, de 13 de Dezembro e artigo 1.º, alínea a), da Portaria n.º 121/2020, de 22 de Maio.



III. Decisão

Pelo exposto, decide-se o presente conflito pela atribuição de competência para a tramitação e decisão do processo ao juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa (área administrativa).

Sem custas.
Notifique.

O Juiz Presidente do TCA Sul

Pedro Marchão Marques