Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2784/12.4BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/25/2020
Relator:JORGE CORTÊS
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA INTENTADA POR PESSOA COLECTIVA DE UTILIDADE PÚBLICA ADMINISTRATIVA COM VISTA AO RECONHECIMENTO DE ISENÇÃO DE TAXAS MUNICIPAIS.
Sumário:No âmbito de acção administrativa de condenação de um município no reconhecimento da isenção de taxas em relação a pessoa colectiva de utilidade pública administrativa, perante o bem fundado da pretensão da autora, o réu deve ser condenado a reconhecer o direito da autora à isenção das taxas urbanísticas no âmbito dos processos administrativos em causa, abstendo-se de liquidar as mesmas.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão


I- Relatório

Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, melhor identificada nos autos, veio intentar acção administrativa especial, com vista à impugnação do acto de indeferimento do pedido de isenção do pagamento das taxas de licenciamento de operação urbanística no âmbito do processo n.º 7420/OTR/2011, pedindo a sua anulação e a condenação do Réu a reconhecer o seu direito à isenção de tais taxas.

O Tribunal Tributário de Lisboa, por sentença proferida a fls. 140 e ss, (numeração em formato digital – sitaf), datada de 15 de Julho de 2016, julgou procedente a acção, condenando o Município de Lisboa a reconhecer à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a isenção das taxas urbanísticas em causa no referido procedimento.

Nas alegações de fls. 185 e ss, (numeração em formato digital – sitaf), o recorrente, Município de Lisboa, formulou as conclusões seguintes:
«I - O ora Recorrente não se conforma com a douta sentença do tribunal a quo de que ora se recorre, e que julgou procedente a presente Ação, por provada, e, em conformidade, condenou o Recorrente a reconhecer o direito da Recorrida à isenção das taxas urbanísticas liquidadas no âmbito do processo administrativo n.º7420/OTR/2011.
II - O Decreto-Lei nº 40397 de 24 de Novembro de 1955 que determinava que a Misericórdia de Lisboa gozava de isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos foi expressamente revogado há 20 anos pelo Decreto - Lei nº 322/91 de 26 de Agosto que aprovou os então novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia, tendo sido mantida em vigor aquela norma de isenção por força do artigo 34º daquele Decreto - Lei nº 322/91, que estabelecia que "Mantêm-se, a favor da Misericórdia de Lisboa, todas as isenções que lhe foram conferidas por lei. tendo este, posteriormente, sido expressamente revogado sem qualquer ressalva, pelo artigo 4º do Decreto-Lei nº 235/2008 de 3 de Dezembro.
III - Logo, desde a entrada em vigor do Decreto-lei nº 235/2008, as isenções de taxas municipais, quanto à Recorrida, passaram a ser exclusivamente apreciadas pela Câmara Municipal de Lisboa, no âmbito e de acordo com as disposições regulamentares municipais aplicáveis às taxas municipais em causa.
IV-A sentença recorrida sufragou uma interpretação diversa que o Recorrente repudia e contraria com base na alteração constitucional de 2001 e a sucessão de diplomas legais em especial1 o RFALEI e a anterior LFL (Lei 73/2013, de 3 de setembro e a anterior Lei 2/2007, de 15 de janeiro) e o RGTAL que em 2007 vieram concretizar o principio da autonomia financeira das autarquias na sua vertente de atribuição de poderes tributários às autarquias consagrado no n.º 4 do artigo 238. º da CRP.
V - Com efeito e contrariamente ao que o tribunal a quo defende, por força daquele n.º 4 do artigo 238.º da CRP e dos diplomas legais que lhe vieram dar execução, em nome do princípio da autonomia financeira local materializado naqueles diplomas legais e do princípio da igualdade tributária cuja concretização e cumprimento são constitucional e legalmente confiados aos órgãos municipais, encontra-se vedada ao legislador ordinário, em especial ao Governo, a atribuição de isenções de taxas municipais criadas pelos municípios.
VI - Permitir que o legislador estabeleça isenções de taxas municipais criadas pelos competentes órgãos autárquicos - quando o mesmo legislador, em nome da autonomia financeira das autarquias, veio impor que essas mesmas isenções sejam criadas pelo órgão deliberativo da autarquia e vedar ao Governo a sua criação exceto em casos concretos previstos na lei (mas sempre mediante consulta dos municípios e havendo lugar a compensação em caso de discordância expressa das autarquias) seria uma subversão daquele princípio que, por essa via, correria o eminente risco de se ver esvaziado de conteúdo e logo, em frontal violação do mesmo.
VII - E tal imposição não resulta somente do disposto nos artigos 8.º e 17º do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais (RGTAL), mas também da própria Lei das Finanças Locais (LFL) constante da Lei n.º 2/2007, de 15 de Janeiro, no seu artigo 12 º (já revogada), quer da atualmente vigente Lei n.º 73/2013, de 03 de Setembro que aprovou o Regime Financeiro das Autarquias Locais e Entidades Intermunicipais (RFALEI), no seu artigo 16.º que reserva expressamente aos municípios a criação e fundamentação das isenções de impostos municipais e outros tributos próprios.
VIII - Já neste sentido vai a interpretação defendida pelo ilustre Professor SALDANHA SANCHES que entende que os poderes tributários das autarquias se lhes encontram reservados por via da articulação do disposto no nº 4 do aligo 238. º da CRP e da previsão legal dos mesmos na LFL e no RGTAL, ao dizer-nos que “No sistema constitucional português, os municípios dispõem de uma estrutura organizativa que conduz a uma larga autonomia em matéria financeira. Uma autonomia que inclui o exercício de poderes tributários: como escreve SÉRVULO CORREIA. A “administração autárquica possui uma legitimação democrático-representativa que não seria compatível com uma simples actividade de execução da lei". De onde se conclui que o princípio da autonomia administrativa, traduzida numa autónoma normação autárquica, se encontra numa relação não de contradição, mas antes de integração do princípio da legalidade”. Essa integração passou a ser feita, depois da última revisão constitucional mediante a interacção entre os n.ºs 3 e 4do artigo 238. º da Constituição e a legislação ordinária. 0 n.º 4 do artigo 238.º, introduzido na última revisão constitucional prevê a atribuição aos municípios, na aplicação de princípios como os que acima formulamos, de poderes tributários sem qualquer restrição de ordem material: ainda que sob a condição de uma formulação específica do conteúdo desses poderes por lei.
IX - Mas mesmo que se defenda uma interpretação restritiva do princípio da autonomia financeira das autarquias com faz o tribunal a quo, não poderá ainda assim, deixar-se de aceitar a limitação imposta pelo princípio da igualdade tributária também constitucionalmente consagrado, em especial, tratando-se de isenções subjetivas como nos lembra SÉRGIO VASQUES na sua obra citada na douta sentença, Regime das Taxas Locais - Introdução e Comentário, 2008, Almedina, e como é o caso da isenção sub judice: O que sempre se haverá de exigir do legislador, naturalmente, e porque o principio da equivalência não se fundamenta simplesmente no RTL mas representa uma projecção do princípio da igualdade tributária consagrado no artigo 13.º da Constituição da República, é que também estas isenções estabelecidas por lei se mostrem necessárias, adequadas e proporcionadas em face dos objectivos extrafiscais que estejam em causa, um exame que deve ser feito com especial rigor sempre que revistam carácter subjectivo.”.
X - No âmbito do seu poder tributário e das competências que lhe foram constitucional e legalmente atribuídas, o Município de Lisboa, através de deliberação da Assembleia Municipal, aprovou o Regulamento Municipal de Taxas Relacionadas com a Actividade Urbanística e Operações Conexas (publicado no DR – 2ª Série, nº 129 de 7 de Julho de 2009), atribui de forma geral e abstrata, isenções, conforme se encontra previsto no RGTAL, aplicáveis a todas as entidades que, à semelhança da Recorrida sejam "... associações públicas, pessoas coletivas de utilidade pública, instituições particulares de solidariedade social ou outras associações sem fins lucrativos, que prossigam fins culturais, sociais, religiosos, desportivos ou recreativos.", atribuindo assim uma isenção de carácter subjetivo mas cujos potenciais sujeitos passivos são abstratamente descritos, não se permitindo assim a verificação de desigualdades na atribuição de isenções tributárias que claramente tem lugar com a aplicação da alínea a) do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 40397.
XI - As entidades previstas no artigo 6º nº1 daquele Regulamento, beneficiam de uma redução de 30% do valor das taxas urbanísticas ali previstas, não se vislumbrando qualquer justificação para que, através da defesa da manutenção da norma legal de 1955, a Recorrida em exclusivo, beneficie de uma isenção total das mesmas taxas quanto às quais, v. g., o Banco Alimentar e a Fundação de Assistência Médica Internacional (AMI) - também elas pessoas coletivas de utilidade pública que prestam assistência social e de saúde aos mais desprotegidos -, apenas possam beneficiar de 30% de redução, antes se lobrigando a verificação da violação do princípio da igualdade tributária, em consequência da ilícita interpretação restrita do princípio da autonomia financeira das autarquias contido no artigo 238.º da CRP em violação das disposições legais supra citadas que o concretizam.
XII - Assim, sob pena de violação do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado e do princípio da autonomia financeira das autarquias, não é constitucional e legalmente defensável que a Recorrida beneficie de uma isenção total de taxas municipais quanto às quais outras entidades que prossigam fins estatutários idênticos ou tão meritórios quanto os seus, apenas beneficiem de uma redução de 30%.
XIII - Conforme nos diz Jorge Miranda "a superveniência da nova Constituição ou de uma sua revisão, acarreta ipso facto, pela própria função e força de que está investida, o desaparecimento das normas de Direito ordinário anterior com ela desconformes'
XIV - Assim, com a superveniência da norma constitucional que veio atribuir tais poderes tributários às autarquias através de previsão legal, previsão esta que veio a suceder em 2007 e a densificar-se em 2013, aquela norma de 1955, encontrando-se prevista num diploma legal emanado pelo Governo sem qualquer intervenção da autarquia local respetiva, resulta supervenientemente inconstitucional, devendo cessar a sua vigência desde a entrada em vigor daqueles diplomas legais de 2007.
XV - Encontra-se assim a douta sentença recorrida ferida de ilegalidade em virtude de condenar o ora Recorrente à prática de um ato que consistiria na aplicação de uma norma legal revogada ou ferida de inconstitucionalidade superveniente, por violação do artigo 238.º da CRP no seu todo, em especial dos seus n.ºs 1 e 4, uma vez que de acordo com o previsto neste n.º 4, o legislador, nos termos das alíenas i) e q) do n.º 1 do artigo 165.º da CRP, materializou o principio da autonomia financeira local na sua vertente de atribuição de poderes tributários às autarquias, prevendo o respetivo regime jurídico, que é contrário à isenção de taxas locais pretendida pela Recorrida ao abrigo daquela norma de 1955.
XVI - Mesmo que assim se não entenda, o que por mera cautela de patrocínio se admite, sempre se dirá que, ainda que se defenda que a vigência da norma contida no artigo 13. º do Decreto-Lei n.º 40397 de 24 de novembro de 1955, nunca a decisão contida na douta sentença recorrida, poderia ser no sentido que foi, na medida em que condena a ED a reconhecer um benefício fiscal que a lei dispensa de reconhecimento.
XVII - E assim sendo, consistindo a isenção invocada pela Recorrida numa isenção cuja natureza, nas palavras de Nuno Oliveira Garcia, será (i) subjectiva; (ii) permanente; (iii) total; e (iv) absoluta, a mesma seria “...não condicionada, por a sua eficácia não ter ficado dependente da verificação de qualquer pressuposto acessório’.
XVIII - Quer isto dizer que isenção invocada pela Recorrida, a par das restantes características ali indicadas e também em consequência delas, é uma isenção de aplicação automática, não lhe sendo aplicável o procedimento de reconhecimento de benefícios fiscais previsto no artigo 65.º do CPPT, pelo que à administração tributária apenas restaria não proceder sequer à liquidação do tributo a que a Recorrida se encontra sujeita, não sendo necessário qualquer impulso procedimental da Recorrida para que a isenção seja em concreto aplicada.
XIX - A decisão de condenação do Recorrente a reconhecer tal beneficio fiscal, padece do vício de ilegalidade por violação do disposto no mesmo artigo 13.º do Decreto-lei n.º 4039, que a considerar-se vigente, no que não se concede, determina a sua aplicação automática sem qualquer prévio ato de reconhecimento, determinando outrossim esta norma, a não liquidação de qualquer taxa à Recorrida e consequentemente, determinando a ilegalidade das liquidações de taxas que venham a ser emitidas.
XX - A haver lugar à condenação do Recorrente, esta sempre seria a de anulação das liquidações objeto dos presentes autos com o consequente reembolso dos valores eventualmente pagos pela Recorrida, e não a um ato de reconhecimento de um beneficio fiscal que afinal não tem previsão legal.
Deverá assim ao presente recurso ser concedido provimento e, em consequência ser revogada a douta sentença ferida de ilegalidade por violação das normas constitucionais e legais supra referidas.
Nestes termos e nos mais de direito e com as devidas consequências legais,
A) Deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a sentença ora recorrida, por não se encontrar em vigor a norma contida na alínea a) do artigo 13º do Decreto-Lei nº 40397 de 24 de Novembro de 1955, quer por ter sido revogada pelos Decretos-Lei nºs 322/91, de 26 de Agosto e 235/2008, de 3 de Dezembro, quer por se verificar a sua inconstitucionalidade superveniente por violação dos n.ºs 1,2,3 e 4 do artigo 238.º da CRP e principio da igualdade tributária previsto no artigo 13.º da CRP, e consequentemente, mantendo-se assim o ato impugnado pela Recorrida com todas as demais consequências legais.
B) Ou se assim se não entender, o que apenas por mera cautela de patrocínio se admite, deverá ser substituído o teor da decisão da douta sentença não se condenando o Recorrente a praticar um ato de reconhecimento de benefício fiscal que não tem previsão legal.
C) Caso se entenda não haver desde já lugar a recurso, mas a reclamação para a conferência, que seja o presente recurso convolado em reclamação para a conferência e remetido para o efeito ao douto tribunal a quo, nos termos previstos na lei
D) Caso se entenda que o presente recurso haveria antes de ser dirigido e remetido ao Supremo Tribunal Administrativo, nos termos previstos no artigo 280.º do CPPT, desde já se requer a sua remessa para aquele douto tribunal superior nos termos previstos na lei»
X

Nas suas contra-alegações, a recorrida, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, formulou as conclusões seguintes:
«1ª – A questão subjacente á discussão do mérito da causa assenta na pretensa revogação, alegada pela recorrente, do disposto na alínea a) do artigo 13º, do Decreto-Lei nº 40.397 de 24 de Novembro de 1955, que confere à Recorrida o direito à isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado sejam de que natureza forem.
2ª - A Recorrida é, de acordo com o previsto no art.º 1º dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro, uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa.
3ª - Dada a sua natureza jurídica e os fins por ela prosseguidos, sempre existiu legislação especial a conferir à Recorrida determinados direitos e benefícios, nomeadamente no âmbito tributário e fiscal, destacando-se, entre tais normas, o estatuído no citado artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei 40.397, de 24 de Novembro de 1955.
4ª - Isto mesmo tem sido, pacificamente, reconhecido pela jurisprudência, defendendo, a propósito da interpretação da invocada al. a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40 397, a total irrelevância jurídica da natureza dos actos e operações em questão:”... Independentemente da natureza jurídica da denominada tarifa de conservação de esgotos torna-se irrelevante, na situação concreta dos presentes autos, determinar se estamos perante uma tarifa ou taxa pois que merecerá o mesmo tratamento jurídico quer se trate de uma ou outra realidade já que a mencionada isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza forem, sempre engobará, a quantia liquidada em apreciação nos presentes autos ainda que a mesma fosse de qualificar como tarifa" (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 2002.10.09, Pr. 0793/02).
5ª- De referir que a discutida norma até já foi objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional, tendo este concluído que esta norma “que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de taxas...não ofende o disposto nos nºs. 1 e 3 do artigo 238º da CRP” (cf. Acórdão de 2006.05.03, Proc. 1020/04 -1ª secção).
6ª- Contrariamente ao alegado pela Recorrente o facto de os actuais Estatutos da Recorrida, aprovados pelo Decreto-Lei nº 235/2008, de 3 de Dezembro, não conterem uma norma idêntica à do art. 34º dos anteriores Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto, não permite, de forma alguma, concluir pela revogação do art. 13º do Decreto-Lei n.º 40.397.
7ª- Se os anteriores Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto, não contivessem a mencionada norma do art. 34º, o discutido art. 13º do Decreto-Lei n.º 40.397 ter-se-ia mantido em vigor por ausência de norma revogatória.
8ª - Na verdade, o referido Decreto-Lei n.º 322/9191 de 26 de Agosto, a propósito da revogação da legislação anterior, estabelecia, no seu artigo 2º, o seguinte:
«À medida que entrarem em vigor as normas previstas nos Estatutos, deixam de se aplicar todas as normas legais e regulamentares relativas ou aplicáveis à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que contrariem o disposto nos mesmos Estatutos».
9ª – Com a publicação deste diploma, apenas, deixaram de estar em vigor as normas relativas à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que contrariassem o disposto nos Estatutos, entre os quais, logicamente, se não incluía o discutido art. 13º que, longe de colidir com os novos Estatutos, consagra um regime de favor à Recorrida, nomeadamente em isenções fiscais e parafiscais.
10ª - O discutido art.º 34.º, em termos de relevância jurídica, nada acrescentou ao quadro normativo vigente, uma vez que, não existindo revogação tácita ou expressa, ter-se-iam mantido em vigor todas as normas, nomeadamente as relativas a benefícios fiscais, que não contrariassem o disposto nos mesmos Estatutos (cfr. art. 2º, do Decreto-Lei n.º 322/91 de 26 de Agosto).
11ª - Se os Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/9191, de 26 de Agosto, não contivessem a norma do art.º 34.º, o quadro normativo seria idêntico uma vez que se manteriam, igualmente, em vigor todas as normas que não colidissem com os Estatutos, entre as quais se incluía, obviamente, o referido art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40.397.
12ª - A irrelevância jurídica do citado art.º 34.º quanto à manutenção em vigor da norma de isenção contida no art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40.397, fácil se torna concluir que o simples facto de os Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro, não conterem norma semelhante, não permite a ilação, infundadamente retirada pela Recorrente de que aquele artigo se encontra revogado.
13ª - Se tivesse sido intenção do legislador dos actuais Estatutos da Recorrida (aprovados pelo Decreto-Lei n.º 233/2008) revogar a discutida norma de isenção, com toda a certeza que não teria deixado de o fazer, expressamente, incluindo-a na norma revogatória contida no art. 4º do Decreto-Lei nº 235/2008, de 3 de Dezembro.
14ª- A omissão nos actuais Estatutos de norma idêntica à do art. 34º dos anteriores Estatutos está, precisamente, no reconhecimento, pelo legislador, da completa irrelevância jurídica de tal norma.
15ª – A alegação da Recorrente de que as isenções das taxas das autarquias locais devem constar do respectivo Regulamento, em nada contribui para o proveito da posição que sustenta.
Com efeito,
16ª - Nem o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais nem qualquer outra norma legal ou constitucional, nomeadamente o n.º 4 do art.º 238.º, da Constituição da República Portuguesa, confere aos municípios a competência exclusiva para a criação das referidas isenções pelo que estas poderão ser criadas ou mantidas através de outros diplomas, nomeadamente mediante decreto-lei.
17º - E como parece evidente, mesmo a proceder tal alegação, o que não se aceita, tal regulamento não teria a virtualidade de revogar um diploma com força de decreto-lei.
18ª - O quadro normativo actual parece, assim, claro quanto à manutenção em vigor do consagrado na alínea a), do artigo 13º, do Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955, concedendo à Recorrida o direito a beneficiar de «isenções de impostos, condições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza forem».
19ª - Conforme o entendimento do Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 285/2006, de 3 de Maio (Proc. 1020/04), referindo o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 6 de Outubro de 2004 (Proc. 0703/04), onde se pode ler: “O acórdão recorrido entendeu ser bastante, para reconhecer a isenção do pagamento da tarifa em causa nos autos, a estatuição constante da diploma de 1955. A fundamentação da decisão não assenta no teor do artigo 34.º dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, decorrendo antes de tal fundamentação que, para o efeito de reconhecer a isenção, se pode prescindir de tal norma, pois que a resultado decorre da aplicação do artigo 13.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 40.397”.
20ª - Assim sendo, o facto de o Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro, que aprovou os atuais Estatutos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e revogou os anteriores Estatutos, não conter qualquer norma idêntica ou semelhante ao previsto no art.º 34.º destes últimos, nenhuma implicação jurídica pode ter sobre a manutenção ou revogação do discutido art.º 13.º, al. a). do Decreto-Lei n.º 40.397 que, até à data, não foi objeto de revogação, nem mesmo implícita, por qualquer norma legal.
21ª - A alegação da Recorrente sobre a pretensa revogação das isenções concedidas à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa pela referida al. a) do art.º 13.º do Decreto-Lei n.º 40.397, baseada na revogação dos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei n.º 322/91, de 26 de Agosto, mostra-se, assim, manifestamente improcedente.
22ª - Igualmente, improcedente se mostra a alegação de que, face ao estabelecido no art.º 8.º, n.º 2, al. d), do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais, aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, ao legislador ordinário encontra-se vedada a possibilidade de legislar sobre o regime de isenção destas taxas o qual, segundo a Recorrente, deverá constar, exclusivamente, do respetivo regulamento.
23ª - É certo que a referida disposição consagra que "O regulamento que crie taxas municipais ou taxas das freguesias contém obrigatoriamente, sob pena de nulidade...as isenções e a sua fundamentação", mas nem o Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais nem qualquer outra norma legal ou constitucional, nomeadamente o n.º 4 do art.º 238.º da CRP, confere aos municípios a competência exclusiva para a criação das referidas isenções pelo que estas poderão ser criadas ou mantidas através de outros diplomas, nomeadamente mediante decreto-lei.
24ª – Já anteriormente a 2007, o Tribunal Constitucional havia apreciado o problema da inconstitucionalidade da discutida norma, tendo concluído que esta norma “que isenta a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de taxas...não ofende o disposto nos n.ºs 1 e 3 do artigo 238º da CRP” (cf. Acórdão de 2006.05.03, Proc. 1020/04 – 1ª secção).
25ª - O legislador ordinário pode, assim, legalmente, criar ou manter benefícios fiscais no âmbito dos tributos das autarquias locais sem que tal implique a violação do princípio da autonomia local e financeira ou de qualquer norma do Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais pelo que a alegação feita sobre a exclusiva competência dos municípios na fixação das isenções das taxas em questão e sobre a pretensa inconstitucionalidade da norma contida no art.º 13.º, al. a), do Decreto-Lei n.º 40.397 se mostra, manifestamente, improcedente.
26ª - Improcedente se mostra, igualmente, a alegação efetuada quanto à alegada inconstitucionalidade por pretensa violação do princípio da igualdade.
27ª – Sendo legalmente permitido, ao legislador ordinário, criar ou manter benefícios fiscais no âmbito dos tributos das autarquias locais é porque a própria lei, paralelamente às entidades beneficiárias da atribuição de isenções pelos municípios, reconhece existirem outras entidades que, pela sua natureza, atribuições e fins prosseguidos, justificam a atribuição de benefícios especiais e independentes dos atribuídos pelos municípios.
28ª – Nestes casos, como é evidente, não se verifica a violação do princípio da igualdade uma vez que, conforme é pacificamente entendido pela doutrina e jurisprudência, tal violação “pressupõe situações objectivamente iguais” (cf. Acórdão do STA, de 09/05/2007, Proc. 01223/06), o que não se verifica no caso dos autos.
Termos em que não deve ser concedido provimento ao presente recurso, mantendo-se a decisão proferida pelo Tribunal Tributário, encontrando-se em vigor a norma expressa na alínea a) do artigo 13º do Decreto-Lei n.º 40.397, de 24 de Novembro, que não viola o disposto no artigo 238º da CRP nem o principio da igualdade tributária, e consequentemente anular o acto de indeferimento do pedido de isenção do pagamento das taxas urbanísticas e reconhecido o direito à SCML da isenção das taxas urbanísticas, com todas as consequências legais.»
X

O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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II- Fundamentação.
2.1 De Facto.
A sentença recorrida considerou provados os factos seguintes:
« A. A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa (cfr. Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro, publicado no Diário da República nº 234, I Série).
B. Em 30.12.2011, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa recepcionou o ofício da Câmara Municipal de Lisboa, datado de 26.12.2011, no âmbito do Processo nº 7420/OTR/2009 relativo ao pedido de licenciamento de ocupação de via pública na Rua ……………n.ºs .. a …., da freguesia dos Anjos, com o seguinte teor (cfr. fls. 18 dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«Nos termos e para os efeitos do artigo 66. º do Código do Procedimento Administrativo, notifica-se V/Exa. que o pedido apresentado, acima identificado, foi deferido nos termos do Edital n.º 108/1992, de 23 de Julho (Regulamento de Ocupação de Via Pública) por despacho proferido a 18/11/2011, como consta da informação e despachos, cuja(s) fotocópia(s) se anexa(m).
Extinto o procedimento nos termos do artigo 106. º do Código do Procedimento Administrativo o processo em causa seguirá para o Arquivo.
Com o deferimento foram liquidadas as taxas nos termos e em conformidade com o Regulamento Municipal de Taxas relacionadas com a actividade urbanística e operações conexas (RMTRAUOC), no valor constante da folha de cálculo de taxas, que se junta em anexo.
As taxas devidas devem ser pagas, aquando do pagamento das que estiverem associadas ao alvará a emitir no âmbito do processo 1593/EDI/2007, nos serviços de tesouraria desta Câmara Municipal, no Campo Grande n.º25, Piso 0, das 9h às 16h (...)».
C. No âmbito do processo n.º 7420/OTR/2009, a Unidade de Coordenação Territorial da Câmara Municipal de Lisboa liquidou a taxa administrativa e taxa de ocupação da via pública, no valor total de € 2.903,60 (cfr. fls. 25 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas).
D. O ofício datado de 08.08.2012, da Direcção Municipal de Finanças da Câmara Municipal de Lisboa, foi remetido à mandatária da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa informando do seguinte (cfr. fls. 27 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas):
«(...) por despacho datado de 2012/08/03, foi indeferido o pedido de isenção das taxas e reconhecido o benefício fiscal da redução do pagamento das taxas, com os fundamentos constantes dos pareceres jurídicos proferidos nas Informações n.ºs 124 e 233/DMF/DAAT/DPTF/12 (...)»
E. Em 04.04.2012, a Divisão de Procedimento Tributário e Financeiro do Departamento de Apoio Jurídico à Actividade Tributária da Direcção Municipal de Finanças da Câmara Municipal de Lisboa elaborou a Informação n.º 124/DMF/DAAR/DPTF/12 com o seguinte teor (cfr. fls. 29 a 36 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas):
«(...) 6. No que respeita à vigência do art. 13.º do Decreto -Lei nº 40.397, de 24 de Novembro, entendemos que o mesmo se encontra revogado por força da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 235/2008, de 3 de Dezembro, em Janeiro de 2009, porquanto que, com a entrada em vigor deste diploma - que veio aprovar as actuais estatutos da SCML - foi revogada toda a disciplina contida nos anteriores estatutos aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 469/99, de 6 de Novembro - conforme resulta do art. 4.ºpreambular, são revogados: a) o Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto; b) O Decreto-Lei nº 469/99, de 6 de Novembro.";
7. Nesta senda, e considerando que a alínea a) do artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, de 24 de Novembro - “ a misericórdia de Lisboa goza de isenção de: a) Impostos, contribuições, taxas ou licenças de Estado ou dos corpos administrativos, sejam de que natureza forem” -, operava por remissão expressa do art. 34.º do Decreto-Lei n.º 322/91 - mantém-se, a favor da Misericórdia de Lisboa, todas as isenções que lhe foram conferidas por lei." - então revogado pelo actual Decreto-Lei n.º 235/2008, e que este último não compreende nenhuma norma de concessão automática de benefícios ou análoga à disposição preconizada no supradito art. 34.º, entende-se que a Reclamante não beneficia da isenção propugnada. (...)
9. De salientar que a operação urbanística que originou a presente taxa foi movida ao abrigo dos novos estatutos e regem a Reclamante que, e reitera-se, não estabelecem quaisquer benefícios fiscais decorrentes da sua natureza ou objecto. (...)
14. Atento o exposto, somos parecer de propor o indeferimento do pedido de isenção da taxa liquidada e pela aplicação da disciplina contida no n.º 1 do artigo 6. ºdo Regulamento Municipal de Taxas Relacionadas com a Actividade urbanística e Operações Conexas, deferir a redução de 30% do valor da taxa.»
F. Em 20.06.2012, a Divisão de Procedimento Tributário e Financeiro do Departamento de Apoio Jurídico à Actividade Tributária da Direcção Municipal de Finanças da Câmara Municipal de Lisboa elaborou a Informação n.º 233/DMF/DAAR/DPTF/12 com o seguinte teor (cfr. fis. 28 dos autos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas):
«(...) Assim, reiteramos, nesta sede, os fundamentos jurídicos apresentados no parecer jurídico proferido na Informação n.º 124/DMF/DAAT/DPFT/12, onde se conclui que o Decreto-Lei n.º 40.397, de 24 de Novembro encontra-se actualmente revogado pelo Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro, em que não procedem os argumentos aduzidos pela Reclamante (...)».
*
a. Factos não provados: inexistem, com relevância para a decisão da causa.
*
b. Motivação de Facto: A matéria de facto julgada provada foi a considerada relevante para a decisão da causa, assentando a convicção deste Tribunal no teor dos documentos integrantes do processo judicial e do processo administrativo junto aos autos e,
bem assim, na posição assumida pelas partes nos articulados.»

X
2.2. De Direito
2.2.1. A presente intenção recursória tem por objecto a sentença proferida a fls. 140 e ss, (numeração em formato digital – sitaf), datada de 15 de Julho de 2016, a qual julgou procedente a acção administrativa em apreço, condenando o Município de Lisboa a reconhecer à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a isenção das taxas urbanísticas em causa no referido procedimento. O segmento decisório sob escrutínio é o seguinte: «anula-se o acto de indeferimento da isenção do pagamento de taxas urbanísticas, referentes ao procedimento de licenciamento n.º 7420/OTR/2011 e condena-se o Município de Lisboa a reconhecer à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a isenção das taxas urbanísticas em causa no referido procedimento».
2.2.2. Para julgar procedente a presente acção administrativa, a sentença atendeu ao disposto no artigo 13.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 40397, de 24/11/1955 [diploma que aprovou o estatuto jurídico da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa], nos termos do qual, «A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa goza de isenção de Impostos, taxas, ou licenças do Estado ou dos corpos administrativos, seja de que natureza forem».
2.2.3. O recorrente assaca à sentença sob recurso erro de julgamento, quanto ao direito aplicável, no que respeita aos itens seguintes:
i) Ocorreu a revogação do Decreto-Lei n.º 40397, de 24 de Novembro, que determinava que a Misericórdia de Lisboa gozava de isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, através da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro [conclusões I) a VIII)]
ii) O preceito do artigo 13.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 40397, de 24/11/1955 cessou vigência, seja por ser incompatível com o princípio da autonomia fiscal do Município, concretizada no Regime Geral das Taxas das Autarquias Locais [RGTAL], aprovado pela Lei n.º 53-E/2006, de 29 de Dezembro, mas também no artigo 12.º da Lei das Finanças Locais (Lei n.º 2/2007, de 15.01 - LFL), seja por ser incompatível com o princípio da igualdade tributária, dado que entidades de cariz semelhante à recorrida não beneficiam de idêntico regime de isenção integral de taxa; tais princípios e os regimes que os concretizam são postergados, na medida em que os mesmos reservam expressamente aos municípios a criação e fundamentação das isenções de impostos municipais e outros tributos próprios [conclusões IX) a XV)].
iii) A sentença sob escrutínio padece do vício de ilegalidade por violação do disposto no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 40397, de 24/11/1955, que «a considerar-se vigente, no que não se concede, determina a sua aplicação automática sem qualquer prévio ato de reconhecimento, determinando outrossim esta norma, a não liquidação de qualquer taxa à Recorrida e consequentemente, determinando a ilegalidade das liquidações de taxas que venham a ser emitidas». [conclusões XVI) a XX)].
2.2.4. No que respeita ao esteio de recurso referido em (i), cumpre desde já referir que o discurso argumentativo que fez vencimento na instância não enferma do erro de julgamento que lhe vem apontado.
A este propósito, reitera-se a fundamentação do Acórdão deste TCAS, de 07.06.2018, P. 199/11.0BELRS.
Aí se consigna que:
«Explicitemos, então, porque assim o julgámos, realçando que o artigo 13º, alínea a) do Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955 - diploma que procedeu à reorganização da Santa Casa da Misericórdia ..... e cuja vigência ou não vigência constitui o cerne da nossa decisão - dispõe que “A Misericórdia goza de isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou dos corpos administrativos, sejam de que natureza forem”.
A propósito da qualificação da isenção prevista no referido normativo, defendeu já a doutrina que“partindo do pressuposto que uma isenção é um benefício fiscal, a isenção de 1955 a favor da Misericórdia ..... é juridicamente qualificável como (i) subjectiva (ou pessoa) no sentido em que dá-se o afastamento total da tributação efectiva à Misericórdia em particular; (ii) permanente, posto que foi estabelecida para o futuro sem predeterminação da respectiva duração; (iii) total, pois ao invés da mera desagravação da obrigação tributária, estatui antes a sua extinção completa; e (iv) absoluta, ou não condicionada, por a sua eficácia não ter ficado dependente da verificação da qualquer pressuposto acessório.”
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto e a aprovação dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia, relativamente a essas isenções ficou definido o seguinte regime:(i) à medida que forem entrando em vigor as normas previstas nos Estatutos, deixam de se aplicar todas as normas legais e regulamentares aplicáveis à Santa Casa da Misericórdia .....e que contrariem o disposto nos mesmos Estatutos (artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 322/91); (ii) mantem-se a favor da Misericórdia todas as isenções que lhe foram conferidas por lei (artigo 34.º dos Estatutos da SCM…).
Na sentença recorrida, a Meritíssima Juiz começou, bem, por recordar que a questão sobre a vigência do artigo 13º, alínea a) do Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955 ou da sua revogação não é nova, tal como o não é a questão da constitucionalidade do Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto. E tem razão, uma vez que ambas as questões foram analisadas em diversos arestos, designadamente no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 6 de Outubro de 2004 - em que o Município de Oeiras se apresentou em juízo a defender a mesma posição do ora Recorrente Município ..... e com base nos mesmos argumentos de direito, isto é, defendendo que a norma deixara de vigorar na ordem jurídica por ter sido revogada pela Constituição da República Portuguesa de 1976 ou, a não se entender assim, pela Lei nº 1/79 (Lei das Finanças Locais), que passou a regular tudo o que respeita a receitas municipais, sendo que o Diploma que substituiu o Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955, isto é, o Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto era inconstitucional, na parte em que regulava sobre isenções respeitantes às finanças locais, por o Governo não estar provido da necessária credencial passada pela Assembleia da República, pois se estava no domínio reservado desta e que o artigo 29º do Decreto-Lei nº 98/84 (2ª Lei das Finanças Locais) passou a estabelecer quais as entidades isentas de taxas, aí não figurando a SCM…e no acórdão do Tribunal Constitucional de Acórdão nº 285/2006, de 3 de Maio de 2006, que teve por objecto a apreciação de constitucionalidade realizada naquela decisão do Supremo Tribunal Administrativo.
No acórdão do Supremo Tribunal Administrativo não foi reconhecida razão ao Município em nenhum dos argumentos então esgrimidos.
Relativamente ao primeiro, por se ter entendido que o facto de estar estabelecido que o Estado e seus institutos e organismos autónomos personalizados (e a Misericórdia ..... era então não um instituto público mas uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa) estão isentos de taxas não significa que outras entidades não estejam igualmente isentos das referidas taxas. Essencial, disse o Supremo Tribunal Administrativo, é que diploma legal apropriado fixe tais isenções para outras entidades. (…) // Vejamos, então, que alterações se verificaram na ordem jurídica e se delas resulta a afectação daquela vigência, muito especialmente, se com base nessas alterações legais deve ser reconhecida razão ao Recorrente.
Diz o Município ..... que através do Decreto-Lei nº 235/2008, de 3 de Dezembro, foram aprovados os novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia ..... diploma que, entrando em vigor em 2 de Janeiro de 2009, procedeu, no seu artigo 4º, à revogação expressa dos anteriores Estatutos regidos pelo Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto. E, adianta ainda o Recorrente, não contendo este novo diploma norma similar à que se encontrava consagrada no artigo 34.º do DL 322/91, ou seja, não existindo qualquer menção quanto aos benefícios fiscais e isenções de impostos, taxas e outros emolumentos a favor da autora, a norma do artigo 13º, alínea a) do Decreto--Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955, que era a que estabelecia precisamente tais isenções – e que, em seu entender, no limite, apenas se manteve em vigência por via daquele artigo 34º dos Estatutos da Recorrida - deixou de vigorar.
Sendo assim, conclui, a Recorrida deixou de beneficiar da isenção de taxas, impostos e outros emolumentos.
Acontece, porém, como deixámos já expresso através das transcrições dos arestos citados, que a norma habilitante para a concessão de isenção à Santa Casa da Misericórdia ..... não se encontrava consagrada nos Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto, mas na alínea a) do artigo 13º do Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955. Ou seja, contrariamente ao que continua a professar a Recorrente, da entrada em vigor dos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia..... aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto, não resultou qualquer alteração ou afectação da vigência da norma que concedia a isenção à Recorrida, uma vez que aquela isenção não passou a estar dependente do que vinha consagrado no seu artigo 34.º, antes subsistindo por força do que anteriormente já estava consagrado no artigo 13º, alínea a) do Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955.
Tal como se disse, e se mantém, o único efeito ou, em rigor e para o que ora releva, o único efeito útil a extrair da entrada em vigor do Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto, em termos de sucessão de leis, traduziu-se na revogação de todas as normas legais e regulamentares relativas ou aplicáveis à Santa Casa da Misericórdia .... que se mostrassem contrárias ao disposto nos mesmos Estatutos.
E o mesmo se diga relativamente à entrada em vigor dos novos Estatutos da Recorrida. Efectivamente, com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 235/2008, de 3 de Dezembro, foram revogadas as normas cuja introdução no ordenamento jurídico se processou através do Decreto-Lei n.º 322/91, incluindo, pois o seu artigo 34.º. Porém, não tendo o preceituado no artigo 13.º, al. a), do Decreto – Lei n.º 40397, de 24-11-1955, sido expressamente revogado, permaneceu, assim, plenamente vigente na ordem jurídica.
Assim sendo, impõe-se concluir que a revogação do Decreto-Lei nº 322/91, de 26 de Agosto, pelo Decreto-Lei nº 235/2008, de 3 de Dezembro, que aprovou os novos Estatutos da Recorrida não produziu, só por via dessa consequência jurídica, a revogação do artigo 13º, alínea a) do Decreto-Lei nº 40.397, de 24 de Novembro de 1955.»
A sentença recorrida ao julgar no sentido referido não incorreu em erro, pelo que deve ser confirmada na ordem jurídica.
Termos que se impõe julgar improcedentes as presentes conclusões de recurso.
2.2.5. No que respeita ao esteio de recurso referido em (ii), cumpre desde já referir que o discurso argumentativo que fez vencimento na instância não enferma do erro de julgamento que lhe vem apontado.
A este propósito, cumpre reiterar a fundamentação do Acórdão deste TCAS, de 07.06.2018, P. 199/11.0BELRS.
Aí se consigna que:
«E, como se disse na sentença recorrida, o julgamento que vimos fazendo não resulta comprometido com a aprovação do actual regime geral das taxas das autarquias locais pela Lei nº 53-E/2006, de 29 de Dezembro, designadamente pelo preceituado no 8º, nº 2, alínea d)– que estabelece que “O regulamento que crie taxas municipais ou taxas das freguesias contém obrigatoriamente, sob pena de nulidade: (…) d) as isenções e a sua fundamentação”, por desta exigência de menção obrigatória não ser de extrair qualquer imperativo de exclusividade de atribuição deste tipo de isenções nos referidos regulamentos.
Aliás, é este, se bem vemos, o entendimento que vem sendo veiculado pela doutrina relativamente à possibilidade de criação de isenções de taxas locais por meio de lei:

-
“[d]iremos sumariamente que o princípio da autonomia financeira local não surge consagrado na Constituição da República em termos tais que ao legislador fique vedada a introdução de benefícios fiscais em tributos da titularidade das autarquias, tudo se resumindo num exercício de ponderação entre a autonomia financeira local e os demais princípios ou valores que com ela se confrontem.” -“na consagração constitucional do princípio da independência financeira das autarquias, encontramos valores como o da “solidariedade” – a “justa repartição dos recursos públicos” que se lê no artigo 240.º, n.º 2 da CRP [1976] – e da correcção das desigualdades no cerne da emanação do poder local. Nessa medida, não se vislumbram razões suficientes no sentido do princípio da autonomia do poder local ser entendido com extensão tal de “fazer cessar” as isenções subjectivas no que respeita a taxas cobradas pelos municípios. Na verdade, não nos parece possua um conteúdo material suficiente para questionarmos se a isenção de 1955 deve ou não sobrevigorar.”.
Em suma, a interpretação constitucionalmente conforme do artigo 8.º, nº 2, alínea d), do RGTAL implica que este normativo não seja interpretado como uma norma revogatória de isenções prévia e legalmente estabelecidas, mas, tão só, como uma norma reguladora de futuras isenções concedidas através do exercício regulamentar das autarquias.

Por fim, e para que de todo o modo fiquem cabalmente respondidos todos os argumentos invocados neste recurso, rematamos a nossa decisão salientando duas notas.
A primeira – que de forma directa responde à alegada inaplicabilidade da doutrina expendida nos arestos do Supremo Tribunal Administrativo e Tribunal Constitucional citados no caso em apreço por entretanto ter sido publicado o DL n.º 235/2008 - prende-se com o facto de muito recentemente, e tendo já por objecto a eventual revogação da isenção consagrada no artigo 13.º, a) do Decreto Lei n.º 40397, de 24 de Novembro de 1955 na sequência da entrada em vido do DL 235/2008, ter sido proferido acórdão por aquele Supremo Tribunal que mantém integralmente o fundamento jurídico que anteriormente havia assumido quanto à vigência da referida norma concedente da isenção.
Reportámo-nos ao acórdão de 14-4-2018, de que transcrevemos o essencial:
«[…] A questão que se coloca nos presentes autos consiste em saber se após a entrada em vigor do DL n.º 235/2008 de 12.03, e durante a sua vigência, a recorrida beneficiava, e beneficia, de isenção de impostos, contribuições, taxas ou licenças do Estado ou corpos administrativos, seja de que natureza forem, tal como era expressamente referido pelo artigo 13º, al. a) do Decreto-Lei n.º 40397, de 24.11.1955.
Tais isenções constantes daquela norma foram expressamente mantidas pelo legislador em 1991 ao elaborar os novos Estatutos da Santa Casa da Misericórdia ..... e os Regulamentos dos Departamentos de Gestão Imobiliária e de Património e de Jogos (DL n.º 322/91, de 26.08) por força do artigo 34º daqueles mesmos estatutos -Artigo 34.º, Isenções, Mantêm-se, a favor da Misericórdia .... todas as isenções que lhe foram conferidas por lei.
Contudo, no artigo 2º daquele DL não deixou o legislador de esclarecer que, à medida que entrarem em vigor as normas previstas nos Estatutos, deixam de se aplicar todas as normas legais e regulamentares relativas ou aplicáveis à Santa Casa da Misericórdia .... e que contrariem o disposto nos mesmos Estatutos, ou seja, deixavam de se aplicar as normas que até aí regiam a existência e funcionamento de tão vetusta instituição e que se encontravam consagradas no DL n.º 40397.
Portanto, com a entrada em vigor do DL n.º 322/91 deixaram de estar vigentes todas as normas constantes de legislação que regulasse as mesmas matérias reguladas por este DL, sendo certo que o legislador manteve as isenções fiscais que já anteriormente existiam.
Porém, com a entrada em vigor de mais um novo estatuto, aprovado pelo DL n.º 235/2008, aquele DL n.º 322/91 foi expressamente revogado, cfr. artigo 4º, desaparecendo, por isso, também aquele artigo 34º, onde se referia expressamente que se mantinham a favor da Misericórdia .... todas as isenções que lhe foram conferidas por lei.
Importa, assim, saber se a revogação deste artigo permite concluir que se mantém vigente o disposto no artigo 13º, al. a) do Decreto-Lei n.º 40397, de 24.11.1955, que consagrava a isenção fiscal agora pretendida.
Não nos parece determinante agora a classificação desta isenção cujo reconhecimento é pretendido pela recorrida, quer em função do sujeito, quer em função do objecto, quer em função da sua duração temporal, quer em função da necessidade ou não de reconhecimento expresso por parte de órgão da administração. É certo que, a concluir-se pela sua existência, se tratará de um benefício fiscal de natureza automática, cfr. artigos 2º, n.º 2 e 5º, n.º 1 do EBF.
Já sabemos que este Supremo Tribunal no acórdão datado de 06.10.2004, recurso n.º 0703/04, esclareceu: Defende o recorrente que o art. 34° do Decreto-Lei n.º 322/91, de 26/8 é inconstitucional, já que este Diploma, no que contende com as finanças locais é inconstitucional, por não estar o governo provido com a necessária credencial da Assembleia da República para legislar no sentido de isentar a Santa Casa da Misericórdia ..... da tarifa em causa.
O art. 34° do citado diploma estatui: "mantêm-se a favor da Misericórdia ..... todas as isenções que lhe foram conferidas por lei". Significa isto desde logo que o legislador ordinário entende que o referido Dec.-Lei nº 40397 estava em vigor, no tocante à referida isenção, ao referir expressamente a palavra "mantêm-se".
A alegada inconstitucionalidade desta norma, mesmo a verificar-se, não pode ter pois a virtualidade pretendida pelo recorrente.
Assim, e no tocante à citada isenção, a mesma encontra arrimo legal na já citada alínea a) do art. 13° do Decreto-Lei n. 40397.
Ou seja, este Supremo Tribunal já esclareceu que o DL n.º 322/91 não “afectou” a vigência do referido artigo 13º, al. a), pelo que, a revogação deste DL 322/91 pelo DL n.º 235/2008 é irrelevante para efeitos de eliminação da norma constante do dito artigo 13º, al. a) do DL n.º 40397, que só desaparecerá da ordem jurídica quando for expressamente revogada pelo legislador ordinário, ou quando colida frontalmente com norma de hierarquia superior, o que não é o caso».
Efectivamente, como veremos de seguida, a questão da violação dos parâmetros constitucionais suscitada pelo recorrente também não ocorre pelas razões já apontadas pelo Tribunal Constitucional em apreciação daquele acórdão deste STA, cfr. ac. do TC n.º 285/2006, datado de 03.05.2006.
Entende o recorrente que o disposto naquele artigo 13º, al. a) ofende o disposto no artigo 238.º, n.º 4 da CRP.
Dispõe este preceito constitucional sob a epígrafe “Património e finanças locais”:

1. As autarquias locais têm património e finanças próprios.
2. O regime das finanças locais será estabelecido por lei e visará a justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias e a necessária correcção de desigualdades entre autarquias do mesmo grau.
3. As receitas próprias das autarquias locais incluem obrigatoriamente as provenientes da gestão do seu património e as cobradas pela utilização dos seus serviços.
4. As autarquias locais podem dispor de poderes tributários, nos casos e nos termos previstos na lei.
Naquele referido acórdão do TC escreveu-se com interesse para o que aqui nos interessa:

Atento o teor do artigo 13º, alínea a), do Decreto-Lei nº 40397, de 24 de Novembro de 1955, pese embora o recorrente se refira genericamente à autonomia local, importa considerar especificamente a autonomia financeira das autarquias locais – «um pressuposto ou um elemento da autonomia local» –, que o artigo 238º da CRP caracteriza «pela existência de “património e finanças próprias”, incluindo obrigatoriamente nas receitas próprias “(…) as cobradas pela utilização dos seus serviços”» (Artur Maurício, «A garantia constitucional da autonomia local à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional», Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa, vol. I, Coimbra Editora, 2003, p. 644 e s.). De facto, a questão que se põe nos presentes autos é a de saber se a autonomia financeira das autarquias locais, assim caracterizada, é ofendida pela norma que isenta a Santa Casa da Misericórdia .... de taxas (no sentido de a tarifa de conservação de esgotos ser uma taxa, cf. Acórdão do Tribunal Constitucional nº 76/88, Diário da República, I Série, de 21 de Abril de 1988).
Com interesse para a presente decisão pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 288/2004 (Diário da República, II Série, de 9 de Junho de 2004) – aresto que apreciou a norma que atribuía à concessionária de serviço público de telecomunicações o direito de ocupação e utilização de vias de comunicação do domínio público, com isenção total de taxas e quaisquer outros encargos, sempre que tal se mostre necessário à implantação das infra-estruturas de telecomunicações ou para a passagem de diferentes partes da instalação ou equipamentos necessários à exploração do objecto da concessão – o seguinte:
«Também quanto à norma do artigo 29º, alínea e), do Decreto-Lei n.º 40/95, de 15 de Fevereiro, ora em causa, se impõe a conclusão de que ela não viola, nem a autonomia financeira, nem a garantia de obtenção de receitas a partir do património das autarquias locais.
Importa começar por notar que está em causa a prossecução de uma indiscutível finalidade pública – assegurar a existência de um serviço público de telecomunicações (cfr. o artigo 8º, n.º 1, da citada Lei n.º 91/97, segundo o qual ao Estado incumbe assegurar a existência e disponibilidade de um serviço universal de telecomunicações) – com clara relevância constitucional, e que tem de ser prosseguida a nível nacional.
Ainda que não expressamente autonomizada como incumbência do Estado – ao contrário do que acontece noutras Constituições (assim, na Lei Fundamental alemã, onde a própria estrutura federal do Estado torna necessária uma norma como o artigo 73º, n.º 7, que atribui à Federação competência exclusiva em matéria de telecomunicações) – a manutenção, ou a criação de condições para a existência, de um serviço público de telecomunicações constitui uma forma de prossecução de objectivos com relevância constitucional (…).
A existência e a disponibilidade de um serviço público de telecomunicações de âmbito nacional corresponde, pois, a um interesse público que transcende o âmbito das autarquias locais. Trata-se, também aqui, de uma matéria que respeita “ao interesse geral da comunidade constituída em Estado”, e que ultrapassa “o universo dos interesses específicos das comunidades locais, aquele mesmo que se desenvolve num horizonte de proximidade, participação, controlabilidade e auto-responsabilidade e que funda a legitimação democrática do poder local”».
Também quanto à norma que importa apreciar nos presentes autos é de afirmar que estão em causa interesses que transcendem o âmbito das autarquias locais, ultrapassando o universo dos interesses específicos das comunidades locais, atendendo aos fins estatutários e ao âmbito territorial da Santa Casa da Misericórdia ..... (artigos 2º e 4º dos Estatutos, aprovados pelo Decreto-Lei nº 322/91). Nomeadamente, por esta pessoa colectiva de utilidade pública administrativa prosseguir humanitária e benemerentemente fins de acção social, prestação de cuidados de saúde, de educação e cultura e de promoção da qualidade de vida, sobretudo em proveito dos mais desprotegidos (artigos 1º, nº 1, e 2º, nº 1, dos Estatutos), com clara relevância constitucional (cf. artigos 63º, nº 5, 64º, nº 1, 65º, nº 1, e 73º, nº 1, da CRP e, ainda, Acórdão do Tribunal Constitucional nº 309/2001, Diário da República, II Série, de 19 de Novembro de 2001).
Assim sendo, a norma que isenta a Santa Casa da Misericórdia ..... de taxas, contida na alínea a) do artigo 13º do Decreto-Lei nº 40397, de 24 de Novembro de 1955, não ofende o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 238º da CRP.
E o mesmo, e mais, se poderá dizer no que toca ao disposto no n.º 4 do mesmo preceito constitucional uma vez que a referida isenção não afecta os eventuais poderes tributários que sejam ou possam a vir ser reconhecidos às autarquias locais na medida em que não contendem com a concreta cobrança da taxa em questão.
Ou seja, todas as questões que o recorrente agora coloca já anteriormente foram resolvidas, quer por este Supremo tribunal, quer pelo Tribunal Constitucional nas decisões anteriormente referidas.».
O recorrente invoca também a violação do princípio da igualdade tributária, por parte do entendimento que fez vencimento na instância, ao não remeter para os regulamentos municipais a concessão de isenções sobre taxas urbanísticas do município. Destarte, não se vê em que medida a concessão de uma isenção de taxas municipais através de lei, possa só por si, sem mais, consubstanciar preterição do princípio da igualdade tributária. No caso, estão em causa interesses supra municipais, que se prendem com o reconhecimento da utilidade pública administrativa da pessoa colectiva em apreço. Pelo que a presente linha de argumentação não se mostra procedente.
A sentença recorrida ao julgar no sentido referido não incorreu em erro, pelo que deve ser confirmada na ordem jurídica.
Termos que se impõe julgar improcedentes as presentes conclusões de recurso.
2.2.6. No que respeita ao esteio de recurso referido em iii), o recorrente assaca à sentença sob recurso erro de julgamento, no que se refere ao segmento condenatório da mesma, dado que estando em causa de benefício fiscal de natureza automática, não há lugar à prática de acto de reconhecimento do mesmo.
A este propósito, cumpre reiterar a fundamentação do Acórdão deste TCAS, de 07.06.2018, P. 199/11.0BELRS.
«A segunda nota é a de que, no entanto, e distintamente do que ficou decidido na sentença recorrida, e como igualmente salientado no acórdão do Supremo Tribunal administrativo em último transcrito, a isenção que resulta do referido artigo 13º, al. a) do DL n.º40397, de 24 de Novembro de 1955 constitui um benefício fiscal automático, isto é, que não carece de reconhecimento, conforme artigo 5º, n.º 1, do EBF. E, sendo assim, não se justifica a condenação do Recorrente a reconhecer o benefício como peticionado mas, sim, a abster-se de liquidar as taxas urbanísticas no âmbito dos processos administrativos n.ºs ...../2008 e ...../2009».
A sentença recorrida ao condenar o recorrente na prática do acto de reconhecimento da isenção das taxas em causa incorreu em erro, pelo que deve ser substituída por decisão que, julgando procedente a acção administrativa e condenando o recorrente a reconhecer o direito à isenção das taxas urbanísticas no âmbito dos processos administrativos em causa, se a abstenha de liquidar as respectivas taxas.
Termos em que se julgam procedentes as presentes conclusões de recurso.

DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam, em conferência, os juízes da secção de contencioso tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder parcial provimento ao recurso, substituindo o segmento decisório da sentença pelo seguinte:
Julga-se procedente a acção administrativa e condena-se o recorrente a reconhecer o direito da recorrida à isenção das taxas urbanísticas no âmbito dos processos administrativos em causa, abstendo-se aquele de liquidar as respectivas taxas.

Custas pelo recorrente e pela recorrida, fixando-se a proporção do decaimento em 5/6 para o primeiro e um sexto para a segunda.
Registe.
Notifique.


(Jorge Cortês - Relator)



(1º. Adjunto)

(2º. Adjunto)