Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08461/12
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/14/2015
Relator:ANTÓNIO VASCONCELOS
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO.
OMISSÃO LEGISLATIVA.
DIREITO À ASSISTÊNCIA MATERIAL EM CASO DE DESEMPREGO INVOLUNTÁRIO – ARTIGO 59º Nº 1 AL. E) DA CRP.
Sumário:I – O legislador deve adoptar medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito social fundamental dos trabalhadores, previsto no artigo 59º nº 1 al. e)da Lei Fundamental.

II - Na sequência do Acórdão nº 474/02, do Tribunal Constitucional, foi publicada a Lei nº 11/2008, de 20 de Fevereiro que veio consagrar a protecção no desemprego à generalidade dos trabalhadores da Administração Pública vinculados por contrato. No entanto, continuaram de fora os casos de cessação de contrato antes da entrada em vigor deste diploma, como é o caso dos professores universitários que foram colocados numa situação de desemprego involuntário.

III – O artigo 22º da Lei Fundamental consagra a responsabilidade civil extracontratual do Estado pelos danos causados a um professor universitário associado do Sindicato Recorrido pela sua omissão legislativa ilícita e culposa.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em Conferência , na Secção de Contencioso Administrativo, 2º Juízo , do Tribunal Central Administrativo Sul:

O Ministério Público, em representação do Estado Português, inconformado com a sentença do TAC de Lisboa, de 2 de Maio de 2011, que julgou procedente a acção administrativa comum intentada pelo Sindicato Nacional do Ensino Superior, no interesse e em representação do seu associado Nigel …………., e consequentemente condenou o Réu Estado Português a pagar ao associado do Autor uma indemnização no montante global de €32.673, acrescido de juros moratórios, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento, dela recorreu e, em sede de alegações, formulou as seguintes conclusões (sintetizadas):

“ 1 –À data da cessação do contrato de provimento do associado do Autor – 31.08.2006 – “o nosso ordenamento jurídico, não continha normas que permitissem responsabilizar o Estado, por eventuais danos decorrentes do (in)exercício da função legislativa do Estado”.
2 – Foi expressa a opção do legislador nacional , em obediência ao principio da não retroactividade das leis , que o novo regime assim aprovado – Lei nº 11/2008, de 20.02. – tivesse efeitos a partir de 01.01.2008.
3 – Não pode o poder judicial, sob pena de violação do princípio constitucionalmente consagrado da separação de poderes, substituir-se aos órgãos que, na ordem jurídico – constitucional têm a exclusiva legitimidade para aprovar Leis e/ou Decretos-Lei, inexistindo, pois, base legal para o vencimento da pretensão do Autor.
4 – Mesmo a entender-se, como na sentença ora em recurso que o art. 22º da C.R.P. se aplica a todas as funções do Estado, incluindo a função legislativa, nem assim haveria fundamento para responsabilizar o Estado pelos danos eventualmente decorrentes da função legislativa, pois o preceito em causa estabelece apenas um princípio geral, não definindo quaisquer critérios que permitam minimamente delinear os contornos da efectivação da responsabilidade civil do Estado.
5 – E a sua inserção sistemática afasta-o, claramente, do regime dos direitos, liberdades e garantias individuais, não lhe sendo, nessa medida, extensível a regra da (sua) aplicabilidade directa, que é própria das normas que definem aquele regime, nos termos do art. 18º da C.R.P..
6 – Estatui o art. 283º nº 2 da C.R.P. que só o Tribunal Constitucional tem competência para apreciar e, caso a julgue verificada, limitar-se-á a dar conhecimento ao legislador, sem que possa substituir-se a este, pelo que a inconstitucionalidade por omissão não pode ser suprida pelos tribunais.
7 - Os tribunais, sob pena de violação do princípio da separação de poderes plasmado no artigo 111º da CRP., não podem substituir-se ao legislador na criação do direito inexistente em resultado de omissões legislativas, não sendo, por isso mesmo, convocáveis as regras gerais de integração de lacunas, designadamente, a interpretação extensiva ou a analogia, para o respectivo suprimento.
8 – E assim é, porque o ordenamento jurídico – constitucional português não admite o controlo jurisdicional concreto de omissões legislativas, ao contrário doq eu se verifica com a inconstitucionalidade por acção – Cfr. Acórdãos do S.T.A., de 03.05.89, P. 5206; 09.06.92, P. 27739; 30.04.97, P.16533; cfr, ainda, Acórdãos do supremo Tribunal de Justiça de 20.06.96, P. 96242 e 10.07.98, P. 98409, in www.dgsi.pt.
9 – Razão pela qual, no seu acórdão n.º 474/02, o Tribunal Constitucional se tenha limitado a verificar a ocorrência de uma omissão legislativa parcial, tendo considerado que o legislador deu execução à norma do artigo 59º, n.º1, al. e), da C.R.P. que o obriga a assegurar o direito à assistência material dos trabalhadores em situação de desemprego involuntário, mas apenas em relação a alguns deles, com exclusão da generalidade dos trabalhadores da função pública.
10 –Pelo que, a omissão legislativa verificada e declarada pelo tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 474/02, até 31.01.2008, não configurava um comportamento ilícito do legislador traduzido na violação de normas a que esteja (estivesse) sujeito e da qual resulte ofensa de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, pelo que soçobrava o requisito primeiro da actuação do instituto responsabilidade civil extracontratual e, por conseguinte, o fundamento do invocado dever de indemnizar por parte do Estado Português, o que faz cair pela base toda a argumentação da sentença.
11 – A existência de uma omissão legislativa, não exime o Autor de fazer prova que o seu associado ficara na situação de desemprego, que se verificavam os pressupostos da atribuição do respectivo subsidio e que requerera a concessão daquele subsídio.
12 – Por tudo o exposto, a sentença, de que ora se recorre, deve ser revogada, por violadora, por erro de julgamento, do preceituado nos art.s 22º, 204º, 277º, 280º e 111º da C.R.P., 6º e 7º do Decreto nº 8.051, de 21.12.1967, 487º, 483º, 564º, 566º, nº 3 do Código Civil e Decreto – Lei 220/2003 de 30.11, e, em consequência, absolver-se o Réu – Estado Português do pedido indemnizatório formulado pelo Autor”.

*

O ora Recorrido contra – alegou pugnando pela manutenção do decidido.

*

Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência para julgamento.

*

A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida a qual, se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663º nº 6 do actual Cód. Proc. Civil.

*

Tudo visto cumpre decidir.

Veio o presente recurso jurisdicional interposto da sentença do TAC de Lisboa que julgou procedente a acção administrativa comum intentada pelo Sindicato Nacional do Ensino Superior, no interesse e em representação do seu associado Nigel ……………., e consequentemente condenou o Réu Estado Português a pagar ao associado do Autor uma indemnização por responsabilidade civil extracontratual do Estado Português, in casu, por omissão legislativa do Estado de criar normas legais reguladoras de concessão de subsidio de desemprego para a generalidade dos trabalhadores da Administração Pública, indemnização essa que foi fixada no montante global de €32.673.
Em síntese, a sentença recorrida concluiu “ (…) que a omissão legislativa de criação ou institucionalização de um quadro legal que crie a protecção de desemprego para os trabalhadores da Administração Pública em geral, e em concreto, para os docentes do ensino superior, configura uma omissão ilícita e por outro lado, o arrastamento no tempo da omissão legislativa permite concluir que ocorreu culpa do Estado (…)”.
Assim, atenta a circunstância do associado do Autor ter exercido funções inerentes à categoria de professor do Departamento de Letras da Universidade doe Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) , de 1 de Outubro de 1990 a 30 de Setembro de 2006 – a referida vinculação decorreu de contrato administrativo de provimento celebrado ao abrigo do disposto nos artigos 33º e 34º do Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior Universitário -, e ter sido colocado numa situação de despedimento involuntário , a sentença recorrida reconheceu que a omissão legislativa “(…) impediu o representado do Autor de receber as prestações correspondentes ao subsidio de desemprego desde o momento em que se encontra em situação de desemprego, isto é, desde 31 de Agosto de 2006, deixando de auferir qualquer rendimento que lhe permita assegurar o seu sustento desde essa data.
Tendo visto involuntariamente cessada a sua única actividade profissional (…) os referidos danos ocorreram devido à ausência de legislação regulamentadora de protecção, designadamente da eventualidade do desemprego e nunca teria ocorrido se tal omissão não tivesse lugar (…)”, condenando assim o Réu Estado Português ao pagamento da respectiva indemnização por responsabilidade civil, decorrente da omissão legislativa existente quanto ao pessoal do ensino superior que involuntariamente viu cessado o seu contrato de docência antes da entrada em vigor da Lei nº 11/2008, de 20 de Fevereiro.
Insurge-se contra este entendimento o Recorrente ao afirmar, no essencial, que a situação de omissão legislativa invocada para garantir o mínimo de protecção exigida aos trabalhadores da Administração Pública em situação de desemprego involuntário e a consequente situação de incumprimento em que se encontravam os órgãos legislativos competentes foi colmatada com a publicação da Lei nº 11/2008, em 20 de Fevereiro, cumprindo-se, assim, o imperioso dever de legislar dos órgãos de soberania competentes e preenchendo-se o vazio jurídico existente nesta matéria.
Assim, sustenta o Recorrente que “(…) perante a emergência no ordenamento jurídico da referida Lei nº 11/2008, não pode falar-se na existência de caso omisso ou na estrita necessidade de intervenção legislativa, antes apenas no modo como o legislador modelou o conteúdo do direito fundamental social, a medida ou o quanto de protecção social garantido (…)” (negrito do Recorrente), reiterando que o órgão legislativo competente encetou todas as necessárias providências para assegurar a tarefa legislativa em falta e, assim, sanar a ausência de normas legislativas que permitissem exequibilidade ao plasmado na al. e) do nº 1 do artigo 59º da CRP, ou seja, o direito de todos os trabalhadores à assistência material quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego, desiderato que foi conseguido para todo o pessoal da Administração Pública com a publicação da Lei nº 11/2008.

Vejamos o que se nos oferece dizer.

A Constituição da República Portuguesa (CRP) prevê expressamente, na parte I , no título III, sob a epígrafe “ Direitos e Deveres Económicos, Sociais e Culturais”, no seu artigo 59º nº 1 al. e) que “ Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções politicas ou ideológicas, têm direito à assistência material, quando involuntariamente se encontrem em situação de desemprego”, consubstanciando assim um direito social fundamental dos trabalhadores, que se traduz num direito prestacional, de dimensão positiva ( cfr. Acórdãos do TC 148/87 e 581/95).
Com efeito, depois de consagrar em geral um conjunto de direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores e da organizações deles representativas e de proclamar o direito fundamental ao trabalho, a Constituição enuncia, no artigo 59º, um leque alargado de direitos económicos e sociais e culturais dos trabalhadores.
Aliás, destinatários deste artigo são todos os trabalhadores subordinados abrangendo também, obviamente, e utilizando a formula do artigo 269º da CRP , os trabalhadores da Administração Pública que se venham a encontrar numa situação de desemprego involuntário, conforme se sublinha no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 474/02 – cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS in CONSTITUIÇÂO PORTUGUESA ANOTADA, Tomo I, 2ª Ed., pág 1147 e segs.
Alega contudo o Recorrente que “(…) No caso está em causa a situação de um agente administrativo cuja relação jurídica de emprego já se encontrava extinta por caducidade do respectivo contrato administrativo de provimento, pelo que é a eventualidade de desemprego ocorrido no fim do mês de Agosto de 2006 não é subsumível à previsão legal que confere direito às prestações de protecção social no desemprego (…)
Ora, limitando-se a Constituição, como ocorre no caso sub judice com o artigo 59º nº 1 al. e), a enunciar o direito a impor ao legislador as condições que o tornem efectivo, intercede , aqui, a favor do Estado, um amplo espaço de conformação para concretizar o dever de protecção deste direito fundamental social, máxime para delimitar o seu âmbito temporal de vigência perante os recursos disponíveis (…)
Ou seja, aplicada ao caso o Sindicato representante do Autor /Recorrido apenas, e quanto muito, teria direito a ver editada a legislação em falta, mas não, o direito às prestações de desemprego com um determinado conteúdo ou medida de realização”.

A argumentação do Recorrente não é de acolher pelas razões a expôr de seguida.
É ponto assente que no momento da rescisão do contrato administrativo de provimento que vinculou o associado do Recorrido à UTAD, durante 16 anos, não existia no ordenamento jurídico português qualquer diploma legal que regulasse a protecção da generalidade dos trabalhadores da Administração Pública no desemprego, ficando estes assim desprotegidos dos seus direitos sociais.
Por outro lado, assistiu-se à regulamentação de situações idênticas às do pessoal docente do Ensino Superior, nomeadamente foi aprovado o Decreto – Lei nº 67/2000, de 26 de Abril, que procedeu ao enquadramento no âmbito do regime da Segurança Social, dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário a exercer funções nos estabelecimentos de educação e de ensino público. De igual modo, viram os militares contratados e voluntários a sua situação regulamentada em caso de desemprego involuntário através do Decreto – Lei nº 320-A/2000, de 15 de Dezembro.
Tal omissão legislativa foi expressamente reconhecida pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 474/2002, que concluiu que, até à data (em 2002), era diminuto o grupo de trabalhadores da Administração Publica que eram beneficiários do regime geral da Segurança Social ou que se encontravam em situação de eventuais beneficiários de uma prestação de desemprego, salientando que para além dos contratos a termo certo e dos que excepcionalmente se encontravam vinculados à Administração por contrato individual de trabalho, como era o caso dos educadores de infância e dos professores do ensino básico e secundário a exercer funções docentes nos estabelecimentos de educação e ensino públicos, não existia no ordenamento jurídico português qualquer diploma normativo que protegesse o direito à assistência material dos trabalhadores da Administração Pública em situação de desemprego involuntário. Tal situação de desemprego involuntário prende-se, aliás, com a génese do “trabalho público”, encarado até então, como uma âncora vitalícia, excluindo a hipótese de desemprego e, como tal, não se vislumbrava a necessidade de protecção em caso de desemprego.
Na esteira do Acórdão do Tribunal Constitucional e para dar solução à situação de omissão parcial legislativa constatada por aquele Tribunal, os órgãos legislativos publicaram, 6 anos volvidos, a Lei nº 11/2008, de 20 de Fevereiro, que incluiu, entre outros, os trabalhadores da Administração Pública em regime de contrato administrativo de provimento e de contrato individual de trabalho que em 1 de Janeiro de 2008 exerciam funções na Administração do Estado – cfr. artigo 9º nº 1 e 11 e artigo 13º da referida Lei.
Tal circunstância serviu ao Recorrente para justificar nas suas alegações que “(…) A situação de omissão legislativa cessou com a publicação da Lei nº 11/2008, de 20 /2 cumprindo-se, assim, o dever de legislar a que os órgãos de soberania competentes se encontravam subordinados (…). Vale isto dizer que o órgão legislativo competente cuidou de assegurar a tarefa legislativa em falta como decorrida do imperativo constitucional (…)”.
O próprio Recorrente reconheceu no entanto, na sua alegação de recurso, que “(…) a eventualidade de desemprego ocorrida no final do mês de Agosto de 2006 não é subsumível à previsão legal que confere o direito às prestações de protecção social de desemprego” , concluindo destarte que, não obstante a regulamentação legislativa decorrente da Lei nº 11/2008, ainda continuam sem qualquer tipo de apoio social aquelas situações de desemprego involuntário antes da entrada em vigor do presente diploma, como é a situação sub judice.
A situação omissiva deve pois ser considerada ilícita e culposa tanto mais, como se evidenciou na sentença recorrida, que “não existe diferença entre o caso dos educadores de infância e dos professores dos ensinos básico e secundário contratados para o exercício de funções docentes nos estabelecimentos de educação e ensinos público (…) e dos militares contratados e voluntários relativamente aos docentes do ensino superior “.
E na medida em que, situações como as do associado do Recorrido, só vieram a ser protegidas com a entrada em vigor da Lei nº 11/2008, afigura-se-nos que se está perante um caso evidente de responsabilidade do Estado por omissão, referido no artigo 22º da CRP, que passamos a citar:
O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício das suas funções, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para outrém”.
A responsabilidade dos poderes públicos garante substantividade jurídico – constitucional sobretudo como um direito de defesa, legitimador de pretensões indemnizatórias, contra a violação de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
O sentido geral desta norma constitucional é, sem dúvida, consagrar o princípio da responsabilidade dos poderes públicos ( Estado e demais entidades públicas) pelos prejuízos causados por acções ou omissões dos titulares dos seus órgãos, lesivas de direitos e interesses dos particulares. Estabelecer, como princípio, a responsabilidade do estado e demais entidades públicas significa conferir dignidade constitucional a um princípio concretizador do Estado de direito superando definitivamente os regimes que durante muito tempo consagravam a irresponsabilidade civil dos actos do poder público. Responsabilidade do próprio Estado deve entender-se responsabilidade directa das entidades públicas por acções ou omissões dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes – cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA in CRP ANOTADA, $º Edição revista, pág. 425 e segs.
No artigo 22º, o legislador constitucional tem potencialmente em vista, não apenas as actuações administrativas, mas também as actuações politico-legislativas e jurisdicionais. Concretamente o artigo 22º da CRP fornece a base constitucional para que se possa afirmar o direito dos particulares, lesados por uma acção ou omissão legislativa ilícita ou censurável, a obter a reparação por danos causados.
Acresce dizer que o artigo 22º da CRP, na medida em que consagra um direito fundamental à reparação dos danos causados ilícita e culposamente pelo Estado ou demais entidades púbicas, constitui – por imperativo constitucional ( artigos 17º e 18º nº 1 da CRP)-, uma norma directamente aplicável, sendo aplicável não apenas contra legem, mas também na ausência de lei, cabendo ao órgão aplicador estabelecer, a partir das coordenadas constitucionais e do sistema legal, os critérios de decisão no caso concreto. Com efeito, nesta dimensão, o direito fundamental à reparação dos danos tem um conteúdo essencialmente determinável, apresentando uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias e beneficiando, portanto, nos termos do artigo 17º da CRP, do regime destes direitos – cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, ob. Cit. pag. 472 e segs.
JORGE PEREIRA DA SILVA in DEVER DE LEGISLAR, pag. 293, defende igualmente que “ O artigo 22º gerou à sua volta um largo consenso quanto ao facto de ter consagrado um princípio de responsabilidade do Estado Legislador, pondo fim à tradicional imunidade deste (…). O Estado é civilmente responsável pelas acções e omissões praticadas no exercício das suas funções de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias, consagrou o instituto da responsabilidade civil do Estado por actos de qualquer das suas funções, incluindo portanto a função legislativa”.
Concluímos do exposto que o artigo 22º da Lei Fundamental transporta regras imediatamente aplicáveis no sentido de que o Estado e as demais pessoas colectivas são responsáveis por acção e por omissão. Como tal, têm de assumir necessariamente a responsabilidade por todos os danos causados aos particulares e, em consequência, podem ser demandados em acções de responsabilidade civil sempre que sejam responsáveis pelos danos causados aos particulares. Como evidenciam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, ob. Cit. , pag. 430, “ sob o ponto de vista jurídico-constitucional, não há qualquer fundamento para não aplicar o princípio geral da responsabilidade do Estado às acções ou omissões normativas ilícitas (legislativas e outras) (…) desde que seja possível recortar no exercício destas funções os pressupostos de culpa, ilicitude e nexo de causalidade, indispensáveis para a efectivação da responsabilidade civil do Estado (…).
No que se refere à responsabilidade pela função normativa, não é despropositado considerar que quem edita normas exerce uma função e tem o dever jurídico-funcional e jurídico-constitucional de observar as vinculações jurídicas próprias de um Estado de direito (…). Por isso, no caso dos prejuízos causados directamente por uma norma julgada inconstitucional (ou pelo não exercício de uma obrigação normativa) o Estado fica constituído no dever de indemnizar, cabendo à lei geral sobre a responsabilidade do Estado a definição dos pressupostos deste dever”.
Por conseguinte, o que aqui importa dilucidar é tão somente a qualificação da conduta do legislador como ilícita e culposa, ou seja, nas palavras do Acórdão do TCAN in Proc. nº 03047/04.4BELSB, disponível em www.dgsi.pt(…) In casu a actividade jurisdicional em crise reconduz-se à análise e verificação dos pressupostos legalmente enunciados como necessários e conducentes à efectivação da responsabilidade civil do Estado-Legislador, actividade essa eminentemente jurisdicional e que nada tem a ver com uma qualquer evasão da função ou da actividade legislativa.”
Tal entendimento serve para rebater a tese do Recorrente de que a solução adoptada na sentença recorrida viola o principio da separação de poderes plasmado no artigo 111º da CRP, na medida em que os tribunais, e por maioria de razão a Administração, não podem substituir-se ao legislador na criação de direito inexistente em resultado de omissões legislativas.
Assim, a invocada omissão legislativa do Estado Português relativamente à criação ou institucionalização de medidas de protecção da eventualidade de desemprego dos docentes do ensino superior só será elemento para fundar qualquer pretensão indemnizatória quando seja ilícita e culposa. Como tal, a responsabilidade civil extracontratual por acto ilícito do Estado decorre dos artigos 483º e segs. do Código Civil e acontece quando verificados os requisitos da obrigação de indemnização: facto voluntário do agente, ilicitude do facto, imputação do facto ao lesante (culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e os danos causados).
No caso, como ficou bem evidenciado na sentença recorrida, houve uma conduta ilícita e culposa do Estado Português na medida em que foi declarada em 2002 a omissão legislativa pelo Tribunal Constitucional no Acórdão citado nº 474/02, proferido no âmbito do Proc. nº 489/94, e só em 2008, 6 anos volvidos, através ad Lei nº 11/2008, de 20 de Fevereiro, veio o legislador corrigir tal omissão de medidas legislativas necessárias para tornar exequível o direito previsto na al. e) do nº 1 do artigo 59º da CRP.
Como tal, não pode de modo algum o Estado pretender eximir-se da responsabilidade de indemnizar por todos os danos sofridos pelo associado do Recorrido, mormente a indemnização pelos danos patrimoniais no valor global das prestações de subsídio de desemprego, com o argumento que legislou sobre esta matéria com a Lei nº 11/2008, tanto mais que subsistem os casos dos docentes universitários que viram a sua carreira cessada involuntariamente e colocados numa situação de desemprego antes da entrada em vigor do presente diploma legislativo, como é o caso dos autos. O entendimento em sentido contrário pelo Recorrente conduziria, aliás, a uma violação grosseira do principio da igualdade inserto noa artigo 13º da CRP.
Desde logo, a ilicitude decorre da circunstância de inexistirem razões válidas e legitimas que justifiquem que a diversidade e desigualdade de tratamento legal que situações semelhantes tiveram e têm tido por parte do legislador; de igual modo, mostra-se preenchido o requisito da culpa uma vez que “(…) o legislador se não foi antes, aquando e quando pôs cobro a várias situações de omissão legislativa quanto a outros trabalhadores da Administração Pública, pelo menos desde 2002, com a prolação do Acórdão do Tribunal Constitucional , sabia que permaneciam ainda outras situações que reclamavam a sua intervenção tendente a eliminar a inconstitucionalidade pelo não cumprimento ad CRP, por omissão de medidas necessárias para tornar exequível o direito previsto no seu artigo 59º nº 1 al. e) (…)” – cfr. Acórdão do TCAN nº 03047/04.4BELSB.
No tocante ao requisito do dano, também o mesmo se tem por verificado, limitando-nos aqui a citar o conteúdo de fls. 28 e 29 da sentença recorrida, que passamos a transcrever:
Se o legislador tivesse criado e regulamentado, a atribuição de um subsídio de desemprego para todos os trabalhadores contratados pelo Estado, designadamente para os professores contratados por Universidades, quando desempregados, nos mesmos moldes em que o fez para os restantes trabalhadores, era provável que o representado do A. pudesse vir a auferir desse subsídio, pois preencheria os prazos de garantia exigidos.
A situação de desemprego involuntário decorre directa e imediatamente da não renovação do contrato e a ilicitude da conduta do Estado deriva de não ter criado uma protecção para esse desemprego.
Resta, assim, aferir o quantum indemnizatório, ou seja, qual o valor do dano sofrido pelo representado do A., pelo facto de o Réu não ter sido institucionalizado o mencionado subsídio.
Dos autos resulta que o associado do A. está em situação de desemprego desde 30 de Setembro de 2006, e que nesta data auferia o vencimento mensal líquido de € 1.675,54, tendo desempenhado funções na UTAD desde 01 de Outubro de 1990 a 30 de Setembro de 2006.
Se tivesse sido instituído o subsídio de desemprego para os trabalhadores da Administração Pública, nos mesmos moldes que foi estabelecido para os demais trabalhadores , teria o mesmo direito a um montante diário de subsídio de desemprego igual a 65% da remuneração de referência e calculado na base de 30 dias por mês – cfr. artigo 28.º, n.ºs 1, 2 e 3, e ss do DL n.º 220/2006, de 03/11), pelo período de 30 meses – cfr. art. 37.º, n.º 1, al. d), ii) do citado DL 220/2006.
Face às regras dos citados preceitos, o representado do A. receberia a título de subsídio durante 30 meses 65% da remuneração de referência, que no caso seria correspondente a 65% da remuneração correspondente ao valor ilíquido de € 1.675,54.
Ora, 65% do montante de € 1.675,54., corresponde ao valor de € 1.089,10, que multiplicado por 30 meses corresponde ao valor peticionado nesta acção pelo A., isto é, €32.673.
Assim sendo, resulta que se não tivesse havido omissão ilícita era provável que ao representado do A. fossem aplicadas regras idênticas às aplicáveis aos demais trabalhadores, pois, como se disse, o legislador quando instituiu o regime do subsídio de desemprego para os docentes do ensino não superior e para os militares contratados remeteu para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, e metodologia idêntica seguiu com a criação do regime de protecção no desemprego dos trabalhadores da Administração Pública, nos termos da Lei n.º 11/2008, de 20 de Fevereiro – cfr. artigo 9.º n.º 2 da Lei 11/2008.
Assim, afigura-se-nos equitativo fixar o quantum indemnizatório a atribuir ao representado do Autor, no valor pela mesma peticionado de € 32.673, a título de danos patrimoniais. (…)”

Finalmente, ainda na sede dos requisitos exige-se o nexo de causalidade entre o facto e o dano, o qual consiste na interacção causa /efeito, de ligação positiva entre a lesão e o dano, através ad previsibilidade deste em face daquele, a ponto de poder afirmar-se que o lesado não teria sofrido tal dano se não fosse a lesão. Ou seja, para aferir se um facto é causa de um dano é necessário haver uma relação intrínseca entre o facto e o dano, de modo a concluir-se pela consequência normal e típica daquele.
Ora, na situação sub judice tem-se por adquirida a verificação deste requisito, já que não fora a ausência de previsão legal asseguradora da protecção/assistência material da situação de desemprego por parte do associado do Recorrido e este não teria sofrido o dano ou a perda patrimonial que ocorreu.
Em face do que ficou exposto, é forçoso concluir pelo preenchimento de todos os requisitos condicionadores da existência de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito do Estado, enquanto Estado-Legislador, pelo que o mesmo se constitui na obrigação de indemnizar o associado do Recorrido pelos danos sofridos, nos precisos termos em que foi fixado na sentença recorrida, ou seja na quantia global de € 32.673 (trinta e dois mil seiscentos e setenta e três euros) a título de danos patrimoniais acrescida de juros desde a citação.

Termos em que, seguindo a linha argumentativa do Recorrido e da sentença, improcedem todas as conclusões da alegação do Recorrente, sendo de negar provimento ao presente recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida.
*
Acordam, pois, os juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo, 2º Juízo, deste TCAS, em negar provimento ao presente recurso jurisdicional e confirmar a sentença recorrida, com a consequente condenação do Réu nos termos e para os efeitos sobreditos .

*

Sem custas por isenção .

Lisboa, 14 de Maio de 2015
António Vasconcelos
Pedro Marchão Marques
Conceição Silvestre