Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:226/09.1BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:02/11/2021
Relator:ANA PINHOL
Descritores:PODERES DE COGNIÇÃO;
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO;
ACTIVO IMOBILIZADO CORPÓREO.
Sumário:
I. O juiz é livre no tocante à definição e aplicação do direito ao caso concreto e não está limitado pelas regras de direito invocadas pelas partes ou sequer pela configuração jurídica do litígio que é apresentada.

II.O princípio do inquisitório tem por objetivo superar insuficiências de alegação e de prova das partes, mas move-se dentro dos limites fixados nos factos alegados e do conhecimento oficioso, não se podendo o juiz substituir as partes realizando ele a prova que partes tinham que produzir.
III.O activo imobilizado da empresa é o conjunto de bens que revestem um carácter de permanência, ou seja, os bens que a empresa pretende manter por mais do que um exercício económico.
IV.O que é determinante para a classificação de um elemento do património da empresa como parte integrante do activo imobilizado é a sua função dentro da empresa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO


I.RELATÓRIO
A FAZENDA PÚBLICA recorre da sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra que julgou procedente a impugnação judicial que D..............., LDA., (anteriormente designada “D..............., LDA), deduziu contra o acto de indeferimento de reclamação graciosa que apresentara com vista à anulação parcial da liquidação adicional de IRC n.º .............. e correspondente liquidação de juros compensatórios, n.º .............., do exercício de 2001, que deram origem à emissão da demonstração de acerto de contas n.º .............., de 07.11.2005, no valor de €206.250,04.

Terminou a sua alegação de recurso, formulando as seguintes conclusões:

«A) Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença que declarou procedente a Impugnação deduzida por D..............., Lda. contra a liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2001, identificada com o n.º .............., e correspondente liquidação de juros compensatórios, identificada com o n.º .............., que deram origem à emissão da demonstração de acerto de contas n.º .............., de 07.11.2005, no valor de €206.250,04, determinando a anulação parcial da liquidação impugnada, face à anulação da correção constante no ponto III. 1.6 do relatório de inspeção que motivou a liquidação em crise.

B) Em causa nos autos está a correção levada a cabo pelos Serviços de Inspeção Tributária, no âmbito de um procedimento externo de inspeção, ao abrigo da ordem de serviço n.º OI200500224, ao exercício de 2001, no valor de € 409.329,35, relativamente à reclassificação dos proveitos decorrentes da alienação de viaturas de serviço, de extraordinárias em operacionais.

C) Apurou a Inspeção Tributária, no âmbito da Inspeção Tributária supra referida, e no que a esta correção em particular diz respeito, o seguinte, [ponto III.1.6. do RIT]:

“O sujeito passivo evidencia o resultado decorrente da alienação de viaturas de serviço, como um ganho ou perda extraordinário* aplicando em consequência o normativo constante dos artigos 43.º a 45.º do CIRC, no tratamento fiscal das mais/menos valias apuradas. De facto, verificou-se que o sujeito passivo procede ao apuramento de mais ou menos valias contabilísticas, consoante haja lugar a ganho ou perda na alienação de viaturas de serviço, que se encontram contabilizadas no seu Imobilizado, procedendo à aplicação do mecanismo de ajustamento das mesmas, no quadro 07 da declaração Modelo 22, no sentido de sujeitar a tributação o resultado fiscal (positivo) assim apurado, nos termos do artigo 45° do CIRC.

Contudo, o tratamento fiscal a dar às viaturas de serviço alienadas, deve passar pela sua reclassificação como existências, e originar não, um proveito extraordinário previsto na alínea f) do n° 1 do artigo 20° do CIRC, mas um proveito operacional previsto na alínea a) do n.º 1 do citado artigo, pelos factos que seguidamente se apresentam:

- O negócio do sujeito passivo consiste no comércio de viaturas importadas ao seu fornecedor alemão D............. AG;

- As viaturas que adquiridas destinam-se a ser vendidas aos seus clientes;

- Na aquisição das viaturas o Sujeito passivo, precede à contabilização das mesmas na conta de existências;

- No exercício de sua actividade necessita de algumas viaturas, destinadas a deslocações, bem como para demonstração e experimentação da imprensa e concessionários;

- Aquando da afectação das viaturas à actividade, o sujeito passivo procede a uma reclassificação contabilística corroborada pela administração tributária, através de conta regularizações, passando as viaturas a estar registadas no activo imobilizado e em consequência a gerar os respectivos custos de utilização: amortização, combustíveis, seguros, conservação e reparação, sujeitando os mesmos a tributação autónoma quando respeitem a viaturas ligeiras de passageiros;

- Decorre do n° 3 do artigo 17º do CIRC, que a contabilidade deverá estar organizada de acordo com a normalização contabilística e outras disposições legais em vigor para o respectivo sector de actividade;

- Define o POC, imobilizado integra os imobilizados tangíveis, móveis ou imóveis, que a empresa utiliza na sua actividade operacional, que não se destinem a ser vendidos ou transformados, com carácter de permanência superior a um ano" e supletivamente a IAS n.°2 “São activos fixos tangíveis aqueles que sejam detidos por uma empresa para uso na produção ou fornecimento de bens ou serviços para arrendamento a outros ou para uso administrativo e que se espera que sejam usados por mais de um ano”;

- A alienação de grande parte das viaturas regista-se menos de um ano após ter sido afecta ao serviço da empresa;

- A alienação das viaturas é feita a concessionários, empresas e outros clientes;

- As viaturas, não obstante, estarem ao serviço da empresa, encontram-se permanentemente disponíveis para venda, segundo informação da mesma;

Assim, quando as viaturas, de acordo com política da empresa ou em consequência de possíveis negócios, deixam de estar ao serviço da empresa para sor remetidas ao sector de vendas de viaturas usadas, deverá ser efectuado o adequado registo contabilístico da transferência do imobilizado para uma conta de existências, pelo correspondente valor líquido contabilístico.

Desta forma, obtém-se uma melhor informação financeira já que, por um lado, o custo de depreciação dos bens é reconhecido durante o período (geralmente inferior a um ano) em que, de facto, o mesmo se verificou e em que deles resultaram benefícios económicos para a empresa e, por outro lado, o resultado apurado aquando da venda corresponde ao que a empresa efectivamente obtém - diferença entre o preço de venda e o valor liquido contabilístico à data da transmissão - e é tido pomo um resultado operacional (que de facto é), e não como um resultado de natureza extraordinária.

Neste sentido o resultado obtido na alienação das viaturas de serviço não poderá ser considerado como mais ou menos valia e, portanto, não terá aplicabilidade, ao caso em apreço, o regime previsto no artigo 45° do CIRC

Face ao exposto, procedeu-se è correcção a favor do Estado do montante de €207.683,02 (duzentos e sete mil seiscentos e oitenta e três euros e dois cêntimos), correspondente ao valor liquido considerado no quadro 07 da mod.22/IRC, individual e do grupo, ou seja, dedução de €409.329,35 (mais valia contabilística), e acréscimo de €201.646,33, correspondente a 50% x € 403.292,66 (mais valia fiscal), valores constantes do mapa 31, anexo às respectivas declarações (anexo n° 4, f)s. 4 a 6).”

D) Consideram os serviços de inspeção que, em face da atividade concreta do sujeito passivo (importação de viaturas para venda), e estando em causa as viaturas de serviço que se encontram permanente disponíveis para venda, a alienação das referidas viaturas de serviço não consubstancia proveitos extraordinários mas sim resultados operacionais, tendo ainda verificado que a aplicação do regime previsto nos artigos 43º a 45º do CIRC e o consequente ajustamento no quadro 07 da declaração modelo 22 de IRC não produz uma informação financeira correta.

E) A ora Recorrida afeta algumas das suas viaturas importadas para venda à sua utilização, seja dos seus quadros e trabalhadores, jornalistas ou clientes e quando o faz reclassifica aquelas viaturas de existências para ativo imobilizado corpóreo [ponto D) dos factos dados como provados].

Já quando a ora Recorrida vendia uma dessas viaturas que, devido à reclassificação anterior, faziam parte do imobilizado, não reclassifica as mesmas viaturas para existências, por considerar que as “viaturas de serviço” não se destinam a venda sendo a intenção relativa à sua utilização o elemento relevante da sua classificação.

F) Logo, a divergência entre a AT e a ora Recorrida reside exatamente na classificação em termos contabilísticos dessas viaturas de serviço e nos efeitos fiscais que tal classificação terá no momento da sua alienação, uma vez dessa qualificação dependerá a sua consideração como proveitos extraordinários ou como resultados operacionais.

G) Começemos por dizer que na fundamentação da sentença, se refere o seguinte, “Tendo presente o disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, à luz do qual, “o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”, bem como o que determina o artigo 94.º n.º 5 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável aos presentes autos por remissão do artigo 2.º alínea c) do CPPT, verificando-se que a questão decidenda foi já apreciada por este tribunal, em acção com idêntico objecto e fundamentação, interposta pela ora Impugnante, e que corre termos sob o n.º 1045/09.0BESNT, e sufragando o entendimento jurídico nele foi vertido, seguiremos de perto a fundamentação dela constante, na presente decisão”.

H) No entanto, constata-se que os factos dados como provados no âmbito do processo n.º 1045/09.0BESNT não correspondem inteiramente com os presentes.

Senão vejamos.

“a) A impugnante é uma sociedade dominante, para efeitos do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades (cfr. artigo 1.º da PI, e, ponto II. 2 do relatório de inspecção, de fls. 52 e ss. dos autos);

b) Do grupo a que se refere a alínea anterior, faz parte a sociedade M............., S.A. (cfr. ponto II.3.1 do relatório de fls 52 e ss. dos autos);

c) A actividade da sociedade M............., S.A. é a de importação e venda de viaturas automóveis da marca “M.............” (cfr. depoimento das duas testemunhas, e pontoII.3 do relatório de inspecção, de fls. 65 e ss. dos autos);

d) Das viaturas importadas, algumas são atribuídas à impugnante, para que esta a afecte à utilização dos seus trabalhadores, ou as ceda a jornalistas ou clientes (cfr. depoimento das duas testemunhas);

e) As viaturas a que se refere a alínea anterior são designadas como “viaturas de serviço” (cfr. relatório de inspecção de fls. 56 e ss. dos autos, ponto III – 1.1, e ponto PI e depoimento das duas testemunhas);

f) A impugnante comercializa na sua actividade normal, para além das viaturas novas, viaturas usadas (cfr. depoimento das duas testemunhas);

g) As viaturas usadas são vendidas, pelos concessionários que vendem da impugnante, através de uma consulta a base de dados, onde constam viaturas recompradas pela impugnante a empresas de renting (cfr. depoimento das duas testemunhas);

h) Existe uma segunda base de dados, onde os concessionários que vendem viaturas da impugnante, podem encontrar quais as “viaturas de serviço” que se encontram atribuídas (cfr. depoimento das testemunhas);

i) Os concessionários podem fazer propostas relativamente às viaturas de serviço que encontram na base de dados (cfr. depoimento das testemunhas);

j) As propostas de compra relativamente às viaturas de serviço não são sempre aceites pela impugnante (cfr. depoimento das testemunhas);

k) As “viaturas de serviço” não se encontram parqueadas para ser vistas por potencias compradores (depoimento da segunda testemunha);

(...)” sublinhado nosso.

I) As diferenças em matéria de probatório entre os dois processos são evidentes, conforme sublinhado.

Daí que a primeira questão que se coloca seja exatamente como se pode ter chegado à mesma decisão em dois processos com factos dados como provados tão diferentes?

Parece-nos que as diferenças entre o probatório nas duas decisões judiciais tem obrigatoriamente relevância no sentido das decisões.

J) Não pode ser irrelevante que no âmbito do processo n.º 1045/09.0BESNT tenha sido dado como provado que “A impugnante comercializa na sua actividade normal, para além das viaturas novas, viaturas usadas (cfr. depoimento das duas testemunhas); As viaturas usadas são vendidas, pelos concessionários que vendem da impugnante, através de uma consulta a base de dados, onde constam viaturas recompradas pela impugnante a empresas de renting (cfr. depoimento das duas testemunhas); Existe uma segunda base de dados, onde os concessionários que vendem viaturas da impugnante, podem encontrar quais as “viaturas de serviço” que se encontram atribuídas (cfr. depoimento das testemunhas); Os concessionários podem fazer propostas relativamente às viaturas de serviço que encontram na base de dados (cfr. depoimento das testemunhas)” [ pontos f) a i) dos factos dados como provados] e tal não conste do probatório da presente sentença do Tribunal a quo.

K) Há uma profunda incongruência na fundamentação da sentença do Tribunal a quo, enfermando a mesma de vício de fundamentação por se mostrar dubitativa e não esclarecedora das similitudes com os factos e a situação sub judice no âmbito do processo n.º 1045/09.0BESNT para o qual remete.

L) Mais se refira ainda que no presente, a sentença do Tribunal a quo expediu o seguinte, “(…) Nesse caso, não oferece dúvidas, que, tendo em conta que num primeiro momento foram compradas para venda, sendo apenas posteriormente escolhidas para uso da sociedade na sua actividade, e novamente colocadas no mercado, como viaturas usadas, devem ser reclassificadas como existências, mas do relatório de inspecção não é possível retirar elementos que permitam concluir que as correcções efectuadas se referem a bens que a sociedade decidiu, depois de os usar, recolocar no mercado, sendo que na verdade o que resulta do relatório de inspecção, é que a mera venda das “viaturas de serviço” ainda que aquelas no momento se encontrassem afectas à empresa, nomeadamente a um trabalhador ou a um quadro, sempre implicaria a sua reclassificação, e é com este entendimento que o Tribunal não concorda, pois se desprende do elemento intencional. Em conclusão, tem-se por correcta a classificação das viaturas de serviço, impondo-se assim julgar procedente a presente impugnação, e determinar a anulação da liquidação impugnada.”

M) Parece-nos, da leitura a este segmento, que o raciocínio levado a cabo pelo Tribunal a quo é o seguinte.

Num primeiro cenário, teremos, a ora Recorrida compra as viaturas para venda. Posteriormente opta por utilizar as mesmas viaturas para uso da sociedade na sua atividade. E, posteriormente ainda coloca novamente as viaturas no mercado, como viaturas usadas.

Neste cenário, o Tribunal a quo considera que as viaturas no momento em que são novamente colocadas no mercado, como viaturas usadas, devem ser reclassificadas como existências.

Num segundo cenário, teremos, a ora Recorrida compra as viaturas, coloca-as para uso da sociedade na sua atividade e, posteriormente, vende-as como viaturas usadas.

Neste último cenário, o Tribunal a quo já considera que as viaturas não têm de ser reclassificadas como existências.

A diferença entre as duas situações reside no elemento intencional.

N) Segundo a Sentença do Tribunal a quo, de que ora se recorre, “(...) do Relatório de Inspeção Tributária não é possível retirar elementos que permitam concluir que as correcções efectuadas se referem a bens que a sociedade decidiu, depois de os usar, recolocar no mercado, sendo que na verdade o que resulta do relatório de inspecção, é que a mera venda das “viaturas de serviço” ainda que aquelas no momento se encontrassem afectas à empresa, nomeadamente a um trabalhador ou a um quadro, sempre implicaria a sua reclassificação, e é com este entendimento que o Tribunal não concorda, pois se desprende do elemento intencional”

Não podemos concordar com esta consideração.

O) É de salientar que a figura da “viatura de serviço” não se pode confundir com as viaturas usadas adquiridas, nomeadamente por retoma.

Importa aliás referir que o conceito de “viatura de serviço” constitui uma realidade bem conhecida da generalidade dos cidadãos, sendo inclusive facto público e notório. Com efeito, no setor da venda de viaturas automóveis uma “viatura de serviço” é uma viatura que o vendedor utiliza durante um período de tempo (geralmente curto), percorrendo em regra poucos quilómetros, pelo que estas são vendidas, não como viaturas “usadas”, mas precisamente sob a denominação específica de “viaturas de serviço”.

P) Não se compreende por isso como pode a douta sentença ter concluído que afinal as viaturas se encontravam afetas à atividade com caráter de permanência.

Q) Pelo contrário, o facto de as viaturas estarem permanentemente disponíveis para venda, e de serem igualmente utilizadas, torna co-natural que as viaturas não se encontrem expostas em concessionários. É igualmente natural relativamente às “viaturas de serviço” a possibilidade de as propostas de compra serem feitas pelos concessionários e de estas poderem ser ou não aceites, dado que importa certamente ter em conta, nomeadamente a oportunidade da venda em face do valor proposto, do estado da viatura e da eventual necessidade e disponibilidade de outras “viaturas de serviço” no local onde as mesmas se encontram.

R) Em suma, as vendas de viaturas de serviço não constituem um ganho ou uma perda extraordinários, mas sim um resultado normal da atividade.

S) O regime especial previsto no artigo 45º do CIRC visa regulamentar o tratamento fiscal dos ativos do imobilizado que o sujeito passivo tenha afetado ao seu uso permanente, motivo pelo qual se prevê um tratamento mais favorável e a possibilidade de declarar a intenção de reinvestimento.

T) No caso das “viaturas de serviço” é manifesta a falta de intenção de permanência no imobilizado, não sendo igualmente legítimo utilizar a opção de “reinvestimento” noutra viatura de serviço que fica igualmente disponível para venda.

Não obstante, se o sujeito passivo demonstrar que as viaturas de serviço tinham sido afetas à atividade e contribuíram para a obtenção de proveitos, poderão ser aceites amortizações durante esse período, bem como os custos associados.

U) Porém, face à intenção de alienar as viaturas estas terão de ser qualificadas como existências aquando da venda. Não se verifica assim qualquer incongruência, sendo dado o tratamento fiscal adequado à atividade desenvolvida.

V) É indiscutível que as viaturas de serviço se destinam a venda, ainda que possam temporariamente estar disponíveis para utilização.

W) Além disso, não ficou apurado nos autos quantas alienações foram feitas das designadas “viaturas de serviço”.

A verdade é que a intenção da ora Recorrida até podia ser a de usar as viaturas importadas por um período indefinido, até com caráter de permanência, mas se, ainda que com essa intenção, vendeu um número elevado de viaturas, parece-nos que o referido elemento intencional fica colocado em causa.

X) Padece a sentença de um défice instrutório, em pura violação dos princípios do inquisitório e da busca da verdade material.

Verifica-se um manifesto défice instrutório, que influi na decisão da causa, na medida em que a prova dos factos alegados nos autos que frontalmente afastam a pretensão da ora Recorrida é indiscutivelmente relevante para a justa composição da lide.

Y) Atento os princípios de justiça, da procura da verdade material e do inquisitório, que impõem que o juiz realize ou ordene todas as diligências que considere úteis ao apuramento da verdade (cf. artigos 99.º, n.º 1, da LGT e 13.º, n.º 1, do CPPT), verificar-se nulidade processual por omissão de diligências probatórias ou défice instrutório.

Z) Padecendo os autos de défice instrutório, determinante da anulação da sentença recorrida (artigo 662.º do CPC, aplicável ex vi da alínea e) do artigo 2.º do CPPT) e da remessa dos autos ao tribunal “a quo” com vista à cabal averiguação dos factos alegados pela Fazenda Pública a esse respeito, indispensável à boa decisão da causa e posterior decisão em conformidade(1)

AA) Impunha-se à douta sentença recorrida, perante o probatório, fazer uma correspondência perfeita entre os factos dados como provados e o decidido, o que não aconteceu, manifestando a fundamentação jurídica da decisão uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária ou de todo insustentável, e por isso incorreta, o que conduziu à injusta decisão contra a ora Recorrente.

Pelo que, nestes termos se impõe a sua revogação e substituição por acórdão que, julgue procedente o presente recurso, e, consequentemente procedente a presente Impugnação Judicial, nos termos das conclusões que seguem e que V. Exas melhor suprirão, julgando legal a sobredita correção.

Termos em que, com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá ser considerado procedente o presente recurso e revogada a douta sentença, como é de Direito e Justiça.»


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A recorrida, M............., S.A., veio apresentar as suas contra-alegações, concluindo da seguinte forma:

«A. Relativamente à matéria de facto, a AT não pode ignorar que in casu o sentido da expressão “viaturas de serviço” corresponde aos veículos importados que a Recorrida afeta, sem prazo certo, à utilização pelos seus trabalhadores ou cede a clientes ou jornalistas (cf. alíneas d) e e) dos factos provados).

B. Aliás, é a própria AT que se refere aos veículos automóveis em questão como “viaturas de serviço” no relatório de inspeção que fundamenta as correções controvertidas à matéria coletável de IRC (cf. alínea m) dos factos provados e o excerto do relatório de inspeção transcrito na p. 4 da sentença).

C. Ademais, a utilização por um período de tempo geralmente curto que nas suas alegações de recurso a AT associa àquilo que comummente se designa como “viatura de serviço” não encontra suporte na prova produzida no caso concreto.

D. Por outro lado, a inserção destas viaturas de serviço numa base de dados autónoma e distinta da base de dados de veículos usados e a possibilidade de os concessionários fazerem propostas de compra não alteram o seu enquadramento como imobilizado corpóreo.

E. Em relação à questão de fundo, como bem entendeu o tribunal de primeira instância, a venda das viaturas de serviço inscritas na contabilidade como imobilizado, por si só, não é apta a determinar uma alteração da intenção do contribuinte relativamente àqueles ativos que provoque a reclassificação como existências (mercadorias).

F. A venda de uma viatura automóvel que se encontra a ser utilizada pela empresa na sua atividade – uma utilização que constitui facto assente e foi reconhecida pela AT – não implica uma reafectação ou modificação da intenção subjacente à detenção do ativo que imponha a sua reclassificação em termos contabilísticos.

G. Poderia ser diferente se a viatura em questão deixasse de ser utilizada na atividade comercial ordinária da empresa e fosse colocada no mercado para venda ao público – e.g. mediante a sua inserção na base de dados das viaturas usadas e exposição para visualização por terceiros –, mas não foi isso que sucedeu no caso sub judice.

H. Por conseguinte, bem andou o tribunal “a quo” atentos os fatos provados em considerar procedente a acção não padecendo esta – contrariamente ao alinhado em sede de Alegações pela AT- de qualquer incongruência na fundamentação pelo que não está eivada de qualquer vício.

I. No Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 01347/03, de 6 de julho de 2004, ficou decidido que “esses bens [ativo imobilizado corpóreo] poderão vir a ser vendidos proporcionando até ganhos à empresa ou sociedade” e que “se uma sociedade compra um prédio para seu escritório e o vende posteriormente, isso, só por si, não lhe retira a natureza de imobilizado”.

J. Refira-se, ainda, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 2977/99, de 18 de fevereiro de 2003, no qual ficou consignado que “não é o tratamento contabilístico que determina a natureza dos bens, mas antes esta resulta do destino que lhes é dado na empresa. A venda desse imóvel (…) é de considerar como liquidação do ativo efetuada pelo comerciante, pelo que os respetivos ganhos são (…) "mais-valias resultantes das atividades resultantes das atividades comerciais e industriais definidas nos termos do Código do IRC")”.

K. Ou o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 05032/11, de 21 de maio de 2015, do qual consta que “Dessa qualificação [como imobilizado] resulta que o ganho obtido com a sua venda é uma mais-valia, com todas as consequências fiscais de tal classificação (…) Com efeito, o que é determinante para a classificação de um elemento do património da empresa como parte integrante do ativo imobilizado é a sua função dentro da empresa”.

L. Ou o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 06848/13, de 12 de julho de 2017, no qual considerou que “A diferente classificação de um bem imóvel em imobilizado/património ou ativo permutável/existências deve atender à intenção que motivou a sua aquisição e a sua permanência na titularidade do alienante, por um determinado período (…) Daí que a qualificação do ganho como mais-valia se mostre justificada, não devendo ser posta em causa, nem desconsiderada, a contabilização do imóvel efetuada (como imobilizado), consentânea com a função que o imóvel assumiu na empresa e para o qual foi adquirido” (destaque nosso).

M. Ou o recente Acórdão do Tribunal Central Administrativo n.º 05955/12, de 18 de abril de 2018, segundo o qual “não será do exame do ato de venda do imóvel que se retira a conclusão do enquadramento do mesmo em sede contabilística (tal enquadramento retira-se do exame da intenção da sua aquisição)” (destaque nosso).

N. Pelas razões expostas, deve concluir-se que a sentença recorrida, que julgou a impugnação judicial apresentada pela ora Recorrida totalmente procedente, procedeu a uma correta leitura dos factos e aplicação do direito e deve ser integralmente mantida.

Termos em que o recurso interposto pela Fazenda Pública deve ser julgado totalmente improcedente, por não provado, com a consequente manutenção integral da sentença recorrida que, ao julgar procedente a impugnação judicial, determinou a anulação da liquidação adicional de IRC de 2005 e o pagamento de juros indemnizatórios à ora Recorrida.»




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A Exma. Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, devidamente notificada para o efeito, ofereceu aos autos o seu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

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Colhidos os vistos legais dos Exmos Desembargadores adjuntos, cumpre apreciar e decidir.


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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Atentas as conclusões apresentadas, as questões a decidir são as seguintes:

(i) nulidade da sentença prevista no artigo 615.º, nº 1, alínea c) do CPC;

(ii) nulidade processual por violação do princípio do inquisitório e da verdade material;

(iii) défice instrutório;

(iv) erro de julgamento de direito.

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III. FUNDAMENTAÇÃO
A. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida fixou-se a matéria de facto e indicou-se a respectiva fundamentação nos seguintes termos:
«A) A Impugnante é a sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeitas ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) [acordo – cf. artigo 1.º da p.i. e fls. 5 do relatório de inspecção a fls. 55 dos autos].
B) A M............., S.A., faz parte do grupo de sociedades identificado no ponto anterior [cf. fls. 5 do relatório de inspecção a fls. 55 dos autos].
C) No âmbito da sua actividade a M............., S.A., adquire à sociedade “D............. AG”, viaturas novas destinadas a serem vendidas, registadas na conta #3 – existências [não controvertido – facto assente da articulação das alegações da Impugnante e do relatório de inspecção tributária, bem como resultante de prova testemunhal].
D) Alguns dos veículos identificados no ponto anterior são afectos a viaturas para serviço da própria empresa, nomeadamente para deslocações dos seus colaboradores, bem como para a demonstração e experimentação de clientes, concessionários e imprensa, pelo que a Impugnante procede à sua reclassificação contabilística, através da conta #38 – regularização de existências, passando a ser registadas no activo imobilizado corpóreo [não controvertido – facto assente da articulação das alegações da Impugnante e do relatório de inspecção tributária, bem como resultante de prova testemunhal].
E) Relativamente às viaturas identificadas no ponto anterior, a M............., S.A., reconhece os custos relativos a amortizações, combustíveis, seguros, conservação e reparação das viaturas automóveis [não controvertido – facto assente da articulação das alegações da Impugnante e do relatório de inspecção tributária, bem como resultante de prova testemunhal].
F) A M............. ......., S.A., é contactada por concessionários e empresas que solicitam um ou mais veículos usados, com determinadas características, que nem sempre estão disponíveis nas suas existências [facto assente resultante de prova testemunhal].
G) Os veículos identificados no ponto anterior não estão expostos em concessionários [facto assente resultante de prova testemunhal].
H) No ano de 2001 a M............. ......., S.A., procedeu ao apuramento de mais e menos-valias resultantes da alienação de viaturas de serviço que se encontravam registadas no activo imobilizado [não controvertido – facto assente da articulação das alegações da Impugnante e do relatório de inspecção tributária, bem como resultante de prova testemunhal].
I) Em cumprimento da ordem de serviço n.º OI200500224, com data de 09.05.2005, foi despoletada um procedimento externo de inspecção, à declaração do grupo do qual a ora Impugnante é sociedade dominante, de âmbito parcial em sede de IRC, que incidiu sobre o exercício de 2001 [cf. fls. 4 do relatório de inspecção a fls. 54 dos autos].
J) A 07.09.2005 foi elaborado o relatório de inspecção em sede do procedimento de inspecção identificado no ponto anterior, e onde consta nomeadamente o seguinte:
«imagem no original»

[cf. fls. cópia do relatório de inspecção a fls. 62 a 64 dos autos].
K) A 30.09.2005 foi emitida liquidação adicional de IRC, relativa ao exercício de 2001, identificada com o n.º .............., e correspondente liquidação de juros compensatórios, identificada com o n.º .............., que deram origem à emissão da demonstração de acerto de contas n.º .............., de 07.11.2005, no valor de €206.250,04, com data limite de pagamento a 14.12.2005 [cf. fls. 80 a 83 dos autos e fls. 111 do PAT em apenso].
L) A 13.12.2005 foi pago o montante de €206.250,04, identificado no ponto anterior [cf. fls. 83 dos autos e 111 do PAT em apenso].
M) A 14.03.2006 foi pela Impugnante apresenta reclamação graciosa contra a liquidação de IRC identificada em F) supra [cf. fls. 85 dos autos, e fls. 2 do processo de reclamação graciosa em apenso].
N) Por despacho de 10.02.2009 do Director de Finanças Adjunto da Direcção de Finanças de Lisboa, foi indeferida a reclamação identificada no ponto anterior [cf. fls. 104 a 110 do processo de reclamação graciosa em apenso].
O) Através do ofício n.º 011697, de 12.02.2009, da Direcção de Finanças de Lisboa, foi a Impugnante notificada a 16.02.2009, do teor da decisão identificada no ponto anterior [cf. fls. 111 a 114 do processo de reclamação graciosa em apenso].
P) A presente acção foi interposta a 03.03.2009 [cf. fls. 3 dos autos].
*

Nada mais se provou com interesse para a decisão a proferir.
Assenta a convicção deste Tribunal no exame dos documentos constantes dos presentes autos e no processo instrutor, não impugnados, referidos a propósito de cada alínea do probatório, e do depoimento das testemunhas que foi consistente, coerente e que demonstraram conhecer os factos sobre os quais depuseram.».

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QUESTÃO PRÉVIA

Preliminarmente importa referir que na al.J) da decisão da matéria de facto provada, consta, além do mais, o seguinte:

«J)A 07.09.2005 foi elaborado o relatório de inspecção em sede do procedimento de inspecção identificado no ponto anterior, e onde consta nomeadamente o seguinte:

“(…)

III. 1.6. Alienação de viaturas do serviço – Reclassificação em resultados operacionais

O sujeito passivo evidencia o resultado decorrente da alienação de viaturas de serviço, como um ganho ou perda extraordinário* aplicando em consequência o normativo constante dos artigos 43.º a 45.º do C1RC, no tratamento fiscal das mais/menos valias apuradas. De facto, verificou-se que o sujeito passivo procede ao apuramento de mais ou menos valias contabilísticas, consoante haja lugar a ganho ou perda na alienação de viaturas de serviço, que se encontram contabilizadas no seu Imobilizado, procedendo à aplicação do mecanismo de ajustamento das mesmas, no quadro 07 da declaração Modelo 22, no sentido de sujeitar a tributação o resultado fiscal (positivo) assim apurado, nos termos do artigo 45° do CIRC.

Contudo, o tratamento fiscal a dar às viaturas de serviço alienadas, deve passar pela sua reclassificação como existências, e originar não, um proveito extraordinário previsto na n.º 1 do citado artigo, pelos factos que seguidamente se apresentam:

- O negócio do sujeito passivo consiste no comércio de viaturas importadas ao seu fornecedor alemão D............. AG;» [cf. fls. cópia do relatório de inspecção a fls. 62 a 64 dos autos].»

O princípio contido no artigo 249.º do Código Civil, de rectificação de lapso manifesto, é aplicável a todos os actos processuais e das partes e segundo o mesmo o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, dá direito à sua rectificação. (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 21.05.2020, proferido no processo n.º 015/19.5BALSB, disponível em texto integral em wwww.dgsi.pt).

Há erro de escrita quando se escreve ou representa, por lapso, coisa diversa da que se queria escrever ou representar, sendo que se consideram manifestos os erros quando estes são de fácil detecção, isto é, quando a própria declaração ou as circunstâncias em que ela é feita permitem a sua imediata identificação.

Como se pode ver do confronto entre o segmento da al.J) dos Factos Provados (supra transcrito) com o meio probatório que o suporta (Relatório de Inspecção), verifica-se, que estamos perante um manifesto erro de escrita e porque não colide com o sentido da decisão proferida nos autos, é rectificável nos termos do disposto no artigo n.º 3 do artigo 614.° do CPC.

Por esse motivo, impõe-se a rectificação da al.J) do probatório (no segmento supra transcrito), que passa a ter a seguinte redacção.

« III. 1.6. Alienação de viaturas do serviço – Reclassificação em resultados operacionais

A M............. ....... –…, S.A. efectuou a alienação de viaturas de serviço, que estavam contabilizadas no seu imobilizado, tendo para efeitos do apuramento do respectivo resultado utilizado o regime das mais e menos- valias previsto no art. 43.º do CIRC. Em consequência apurou um gano extraordinário, em vez de um proveitos operacional de € 409.329,35, tendo procedido à sua dedução no Q07 da mod.22/IRC, já que, nos termos da alínea f) do n.º1 do art. 20.º do CIC, são as mais valias realizadas que se consideram proveitos para efeitos fiscais.

Igualmente, apurou um saldo positivo entre as mais-valias e menos-valias fiscais, no montante de € 403.292,68, tendo para efeitos de apuramento do lucro tributável, acrescido o valor de € 201.646,33 (50%x € 403.292,66), em virtude de ter manifestado a intenção do reinvestimento do valor de realização, nos termos do art.45.º do CIRC, beneficiando assim de exclusão parcial de tributação de 50%.

Com efeito, o tratamento fiscal na alienação de viaturas de serviço deve passar pela sua reclassificação como existências, originando assim um proveito operacional tributável nos termos da alínea a) do n.º1 do citado artigo, atendendo a que:

- A actividade da empresa consiste no comércio de viaturas importadas da Alemanha à D............. AG; (…)».


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B. FUNDAMENTO DE DIREITO

Na Conclusão K) refere a Fazenda Pública (doravante recorrente) que «Há uma profunda incongruência na fundamentação da sentença do Tribunal a quo, enfermando a mesma de vício de fundamentação por se mostrar dubitativa e não esclarecedora das similitudes com os factos e a situação sub judice no âmbito do processo n.º 1045/09.0BESNT para o qual remete.».

Percorrendo a alegação produzida no recurso e suas conclusões, nestas não se encontra o normativo legal que suporta o vício imputado à sentença sob recurso e mencionado na Conclusão K).

Nos casos, como o presente, em que está em causa aplicação de regras de direito que não foram, como o dissemos já antes, invocadas pela recorrente nas alegações e conclusões recursórias, cabe a este Tribunal interpretar e a aplicar as normas legais que considere adequadas perante a matéria alegada.

Com efeito, segundo o artigo 5.º, n.º 3 do CPC «O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.».

O que significa que o juiz é livre no tocante à definição e aplicação do direito ao caso concreto e não está limitado pelas regras de direto invocadas pelas partes ou sequer pela configuração jurídica do litígio que é apresentada « [j]á que lhe cabe, na sua função jurisdicional, não apenas interpretar e aplicar a lei, mas também interpretar e apreciar correctamente, sem formalismo exagerados, os factos alegados, sendo livre na sua qualificação jurídica (art. 664.º do CPC).» (Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 7.11.2012, proferido no processo n.º 01109/12, disponível em www.dgsi.pt).

E assim sendo, nesta lógica de raciocínio, consideramos que a alegação da recorrente é subsumível à previsão legal da alínea c) do n.º 1, do artigo 615.º do CPC.

Passemos ao seu conhecimento.

Nos termos da citada disposição legal a sentença é nula, quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

Esta incongruência lógica ou jurídica pode traduzir-se numa oposição entre os fundamentos e a decisão ou nos fundamentos entre si (os necessários para a decisão) ou no próprio conteúdo decisório em si mesmo. A razão de ser da nulidade é, em qualquer dos casos, a mesma: não se pode aproveitar, de todo, uma sentença cujo sentido lógico ou jurídico não se pode alcançar. (Neste sentido vide: Acórdão deste Tribunal Central Administrativo de 10.11.2005, proferido no processo n.º 01051/05, disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

No caso concreto, a sentença embora aderindo por inteiro à fundamentação de direito inscrita no processo n.º 1045/09.0BESNT, não deixou de proceder à fixação da matéria de facto que resultou dos presentes autos.

Ora, se o decidido é contraditório e/ou desacertado, estar-se-á perante erro de julgamento e não de nulidade da sentença por contradição entre os fundamentos e a decisão.

Termos em que, se conclui que a sentença não enferma da apontada nulidade.

Chegados aqui, impõe-se o conhecimento do mérito do recurso.

Conforme resulta dos autos, foi realizada pela Direcção de Serviços de Inspecção Tributária, ao abrigo da Ordem de Serviço n.º OI 1200500224, de 09.05.2005, uma acção inspectiva externa de âmbito parcial, à declaração do Grupo liderado pela Impugnante (doravante recorrida) relativa ao ano de 2001, da qual resultaram diversas correcções, e ao que aqui releva, a relativa à reclassificação, com resultados operacionais, do produto da alienação de viaturas de serviço, que deu origem à liquidação adicional de IRC e correspondente liquidação de juros aqui impugnados.

Antes de avançarmos para a questão de fundo colocada em recurso, convém ter presente que a correcção, a que nos referimos supra, tem subjacente o entendimento de que o tratamento a dar às viaturas de serviços alienadas, deveria passar pela sua reclassificação como existências, e originar não um proveito extraordinário previsto na alínea f) do n.º1 do artigo 20.º do CIRC, mas um proveito operacional de acordo com a alínea a) do n.º1 do mesmo diploma legal.

Dito isto, vejamos então se pode ser concedida razão à recorrente.

A sociedade ora recorrida reclamou graciosamente da liquidação de imposto e respectivos juros compensatórios (no segmento relativo à correcção relativa à reclassificação, com resultados operacionais, do produto da alienação de viaturas de serviço) e, na sequência do indeferimento da reclamação graciosa, apresentou impugnação judicial.

O Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra julgou a impugnação judicial procedente e anulou a liquidação na parte correspondente, com base na fundamentação aposta na sentença sob recurso e da qual se destaca:

« [t]endo em conta que num primeiro momento foram compradas para venda, sendo apenas posteriormente escolhidas para uso da sociedade na sua actividade, e novamente colocadas no mercado, como viaturas usadas, devem ser reclassificadas como existências, mas do relatório de inspecção não é possível retirar elementos que permitam concluir que as correcções efectuadas se referem a bens que a sociedade decidiu, depois de os usar, recolocar no mercado, sendo que na verdade o que resulta do relatório de inspecção, é que a mera venda das “viaturas de serviço” ainda que aquelas no momento se encontrassem afectas à empresa, nomeadamente a um trabalhador ou a um quadro, sempre implicaria a sua reclassificação, e é com este entendimento que o Tribunal não concorda, pois se desprende do elemento intencional.

Em conclusão, tem-se por correcta a classificação das viaturas de serviço, impondo-se assim proceder a presente impugnação, e anular a liquidação impugnada

Segundo a recorrente houve violação dos princípios do inquisitório e da busca da verdade material, impondo-se, em seu entender que seja declarada a nulidade processual por omissão de diligências ou défice instrutório.

Alega, em sustentação da sua posição, que não ficou «[a]purado nos autos quantas alienações foram feitas das designadas “viaturas de serviço”» e por outro lado, embora reconheça que as viaturas de serviço se destinaram a venda, diz recorrente que « A verdade é que a intenção da ora Recorrida até podia ser a de usar as viaturas importadas por um período indefinido, até com caráter de permanência, mas se, ainda que com essa intenção, vendeu um número elevado de viaturas, parece-nos que o referido elemento intencional fica colocado em causa.» [Conclusão W)].

Não se prefiguram, motivos para que este Tribunal subscreva a posição da recorrente quanto a esta concreta questão.

Senão vejamos.

Quando ao primeiro fundamento avançado é suficiente uma mera leitura do Anexo n.º4 que integra o Relatório de Inspecção para se verificar que foram alienadas 68 viaturas de serviço no ano de 2001.

Aliás, a ter-se como verdadeira a afirmação da recorrente, caberia perguntar: com base em que realidade (n.º de veículos vendidos) a Administração Tribuária procedeu à correcção em causa e corrigiu o lucro tributável referente ao exercício de 2001.

De resto, tal alegação, apenas se compreende por uma leitura menos atenta da fundamentação que a própria Administração Tributária externou quanto à correcção sindicada nos autos.

Defende ainda a recorrente que o Tribunal «a quo» está obrigado a realizar todas as diligências que consideradas necessárias para a descoberta da verdade material, não o tendo feito verifica-se a nulidade processual por omissão de diligências de prova ou de défice instrutório.

Estabelece o artigo 195.º, n.º 1 do CPC, que: «Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admite, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.»

E, o n.º 2. do mesmo preceito legal dispõe que «Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente: a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes.».

Da conjugação das normas em referência resulta que a nulidade processual só ocorrerá se verificado um destes casos: a) quando a lei expressamente a decreta; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

No que especificamente respeita à falta de inquirição das testemunhas, como sabemos, não consta do rol exaustivo de nulidades insanáveis constante do artigo 98.º do CPPT, nem constitui uma nulidade processual à luz do regime do artigo 195.º e segs. do CPC, segundo o qual «a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa». (…)».

Por essas razões, a omissão de diligências de prova não acarreta nulidade processual, na medida em que a lei confere ao juiz o poder de ajuizar da necessidade da sua produção pode sim afectar o julgamento da matéria de facto, acarretando a anulação da sentença por défice instrutório com vista a obter o devido apuramento dos factos. (Neste sentido, vide, entre outros o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 23.10.2013, proferido no processo n.º 0388/13, disponível em texto integral em www.dgsi.pt).

Para mais, é bom notar, que se por força dos princípios do inquisitório e da verdade material o Tribunal deve realizar ou ordenar oficiosamente todas as diligências que se lhe afigurem úteis para conhecer a verdade material relativamente aos factos alegados, no entanto não pode substituir-se às partes realizando ele a prova que as partes tinham que produzir.

De resto, não indica a recorrente nem este Tribunal vislumbra que outras diligências (para além das efectuadas) pudessem ser realizadas quando nem a própria recorrente requereu nestes autos a produção de qualquer uma das provas previstas na lei.

O que ficou dito, não obsta a que a omissão de diligências de prova possa afectar o julgamento da matéria de facto e acarretar, nessa medida, a anulação da sentença por défice instrutório.

Resta, por tudo quanto se disse, concluir pela improcedência da pretensa nulidade processual.

Decidida esta questão, importa agora avançar para a análise da questão de fundo colocada nas conclusões de recurso.

Conforme se alcança do teor da sentença recorrida, o Tribunal « a quo» considerou que as viaturas em causa deveriam ter sido reclassificadas como existências, contudo, também o disse não ser possível retirar do Relatório de Inspeção «[e]lementos que permitam concluir que as correcções efectuadas se referem a bens que a sociedade decidiu, depois de os usar, recolocar no mercado, sendo que na verdade o que resulta do relatório de inspecção, é que a mera venda das “viaturas de serviço” ainda que aquelas no momento se encontrassem afectas à empresa, nomeadamente a um trabalhador ou a um quadro, sempre implicaria a sua reclassificação, e é com este entendimento que o Tribunal não concorda, pois se desprende do elemento intencional.»

No essencial, as razões da discordância da recorrente incindem, na classificação em termos contabilísticos dessas viaturas de serviço e nos efeitos fiscais que tal classificação terá no momento da sua alienação, uma vez dessa qualificação dependerá a sua consideração como proveitos extraordinários ou como resultados operacionais.

Dos autos resulta assente que a recorrida é a sociedade dominante de um grupo de sociedades sujeitas ao regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) (cfr. al.A) do probatório).

A «M............. ......., S.A.», faz parte do grupo de sociedades sujeitas regime especial de tributação dos grupos de sociedades (RETGS) do qual a recorrente é a sociedade dominante (cfr. al.B) do probatório).

No âmbito da sua actividade a «M............. ......., S.A.», adquire à sociedade “D............. AG”, viaturas novas destinadas a serem vendidas, registadas conta #3 – existências (cfr. al.B) do probatório). Mais ficou provado, que algumas daquelas viaturas são afectas a viaturas para serviço da própria empresa, nomeadamente para deslocações dos seus colaboradores, bem como para a demonstração e experimentação de clientes, concessionários e imprensa, sendo reclassificadas através da conta #38 – regularização de existências, passando a ser registadas no «Activo Imobilizado Corpóreo» com o suporte dos custos de utilização (amortização, combustíveis, seguros, conservação e reparação) daí advenientes.

Não vem questionado nos autos que o lançamento contabilístico – reclassificação - operada pela recorrida mereceu a concordância da Administração Tributária em sede de procedimento de inspecção, conforme demonstra a seguinte passagem, extraída do Relatório de Inspecção: « Aquando da afectação das viaturas à actividade, o sujeito passivo procede a uma reclassificação contabilística, corroborada, pela administração tributária, através da conta regularizações, passando às viaturas a estar registadas no activo imobilizado e em consequência a gerar os respectivos custos de utilização: amortização, combustíveis, seguros, conservação e reparação, sujeitando os mesmos a tributação autónoma quando respeitem a viaturas ligeiras de passageiros» (cf. alínea J) do probatório)

No plano conceptual a expressão «activo imobilizado» das empresas, como já o dissemos, no acórdão, deste Tribunal Central, relatado no processo n.º 5032/11, DE 21.05.2015, «[é] o conjunto de bens que revestem um carácter de permanência, ou seja, os bens que a empresa pretende manter por mais do que um exercício económico.

Tem a doutrina considerado que se trata de bens que não são produzidos ou adquiridos com vista sua revenda com o objectivo de obtenção de lucro, mas antes de bens duradouros, que se encontram indisponíveis para venda, por se destinarem produção, a utilização, ou obtenção de rendimentos periódicos ou por se encontrarem em reserva, para serem utilizados ocasionalmente ou vendidos apenas em situações de necessidade de alcançar liquidez. (Neste sentido, vide: Vitor Faveiro, in Noções Fundamentais de Direito Fiscal Português, II Vol., pág. 763, Rogério Ferreira, Balanços, pág. 211, e António Cardoso Mota, C.I. Mais-Valias, 2ª Edição, pág. 70).

Por outras palavras, os elementos do activo imobilizado são os recursos que uma empresa utiliza para realizar as suas operações (objecto social) e que não se destinam a venda no âmbito da sua actividade operacional, caracterizam-se, assim, pela sua aptidão para contribuírem para as operações do ente empresarial em causa durante um determinado período de tempo, sendo que, com algumas excepções, essa aptidão vai decrescendo ao longo da sua vida útil.

Em suma, o que é determinante para a classificação de um elemento do património da empresa como parte integrante do activo imobilizado é a sua função dentro da empresa.

No caso concreto, as viaturas foram alienadas enquanto veículos utilizados pela recorrida na sua actividade (cfr. D) do probatório), logo assentando a qualificação de um bem como elemento do activo imobilizado, na questão material e objectiva da função desse bem na actividade da empresa a sua alienação não os desclassifica enquanto imobilizado corpóreo.

Na perspectiva da recorrente, embora reconhecendo que a recorrida efectuou prova de que as viaturas de serviço tinham sido afectas à actividade e contribuíram para a obtenção de proveitos, vem manifestar a sua discordância com o decidido, alegando que está em causa «[u]m número elevado de viaturas» e por esse motivo, afirma « [p]arece-nos que o referido elemento intencional fica colocado em causa».

Ora, ponderando o argumento apresentado pela recorrente, constatar-se-á facilmente que é incapaz de abalar o decidido porque e desde logo se tratar de um mero juízo de valor, sem suporte a qualquer realidade que importe apurar para aferir da legalidade da actuação da Administração Tributária.

O que significa que a Administração Tributária não se desonerou do ónus que sobre si impendia de fundamentar a legalidade da sua actuação conducente à liquidação sindicada. Isto porque como sabemos, o artigo 75.º, n.º 1 da LGT estabelece uma presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes, bem como dos dados que constam da sua contabilidade e escrita: «presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal».

Em face do que se deixa dito, improcede, o recurso.

IV. CONCLUSÕES

I. O juiz é livre no tocante à definição e aplicação do direito ao caso concreto e não está limitado pelas regras de direito invocadas pelas partes ou sequer pela configuração jurídica do litígio que é apresentada.
II.O princípio do inquisitório tem por objetivo superar insuficiências de alegação e de prova das partes, mas move-se dentro dos limites fixados nos factos alegados e do conhecimento oficioso, não se podendo o juiz substituir as partes realizando ele a prova que partes tinham que produzir.
III.O activo imobilizado da empresa é o conjunto de bens que revestem um carácter de permanência, ou seja, os bens que a empresa pretende manter por mais do que um exercício económico.
IV.O que é determinante para a classificação de um elemento do património da empresa como parte integrante do activo imobilizado é a sua função dentro da empresa.

V.DECISÃO
Pelo exposto, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 1.ª Subsecção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso.
Custas pela recorrente.


Lisboa, 11 de Fevereiro de 2021

[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento, Isabel Fernandes e Jorge Cortês]
Ana Pinhol


___________________
(1) Veja-se o Acórdão do STA, 1.ª Secção, de 19 de abril de 2012, recurso n.º 0471/11, disponível em www.dgsi.pt