Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:358/23.3BESNT-A
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:04/20/2023
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INCIDENTE DE ESCUSA DO JUIZ
FUNDAMENTOS
Sumário:I-Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 119.º do CPC (pedido de escusa por parte do juiz), “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade.

II-O princípio do juiz natural só pode ser afastado em situações-limite, quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, como seja o da imparcialidade e isenção de juiz, o ponham em causa.

III-As relações de amizade entre juízes e advogados, recuando estas, muitas vezes, quer aos tempos de vida académica, quer profissional exercida anteriormente ao ingresso na magistratura, não constituem, por si só, fundamento de escusa, pois as relações de amizade entre ambos, pela própria natureza das coisas, serão inevitáveis.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: DECISÃO

1. Do objecto do incidente

O Senhor Juiz de Direito Dr. ………………… a exercer funções no Juízo administrativo comum do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, veio solicitar, ao abrigo do disposto nos artigos 119.º, n.ºs 1 e 3 e 120.º, n.º 1, al. g), ambos do CPC ex vi artigos 1.º e 35.º do CPTA, que lhe seja concedida dispensa de intervir nos autos de notificação judicial avulsa intentada pelo Município ………….. e que lhe foi distribuída sob o n.º 358/23.3BESNT.

A pretensão do Senhor Juiz é motivada no facto de conhecer e de ser amigo da Mandatária do Município de Cascais, Dra. ………………, desde Setembro de 2009, data em que ambos iniciaram funções como juristas no Departamento de Assuntos Jurídicos (DAJ) daquele Município. Mantendo ainda hoje, mesmo após o seu ingresso no CEJ para frequentar o III Curso dos Magistrados para os TAF, “laços de amizade, de grande estima pessoal e de imensa gratidão” com todos os elementos que integravam o DAJ. Alega ainda que é frequente o convívio “em almoços e aniversários em locais públicos de Cascais”. Razões que, de acordo com o seu ponto de vista, determinam, no plano das representações da comunidade, um motivo sério e grave susceptível de gerar a desconfiança dos cidadãos quanto à imparcialidade da decisão que viesse a proferir e, nessa mesma medida, desconfiança no sistema da justiça.

Com o pedido de escusa juntou cópia dos autos de notificação judicial avulsa bem como cópia simples da procuração outorgada pelo Município de ……….entre mais, a favor da Dra. …………...

As partes foram notificadas do pedido escusa e nada disseram.

Não havendo necessidade de proceder a qualquer outra diligência, cumpre decidir.

2. Apreciando:

Nos termos do artigo 119.º, n.º 1, do CPC (aqui aplicável por força do artigo 1.º do CPTA) o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de” intervir na causa quando se verifiquem alguma dos casos previstos no artigo seguinte e, além disso quando, por circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade”.

A lei não apresenta expressamente a definição de circunstâncias ponderosas, pelo que será a partir do senso e das regras da experiência comum que tais circunstâncias deverão ser ajuizadas, tendo sempre presente que o regime dos impedimentos/suspeições não se contenta com um qualquer motivo; ao invés exige que o motivo seja “sério, e grave” e “adequado a geral a sua desconfiança sobre a sua imparcialidade” (vide artigo 120º, nº1 do CPC).

A função jurisdicional e também a imparcialidade, a autonomia e a isenção que se pretendem com a actividade dos juízes e dos tribunais é assegurada pelo princípio da independência que é definida na Constituição pela sua definição objectiva - “independência dos tribunais” (artigo 203.º da CRP e artigos 3.º e 4.º do EMJ, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, na versão dada pela Lei n.º 67/2019, de 27 de Agosto).

Julgar com independência é fazê-lo sem sujeição a pressões, venham elas de onde vierem, deixando fluir o curso do pensamento com sujeição apenas à lei, à consciência e as decisões dos tribunais superiores e ser imparcial é posicionar-se numa posição acima e além das partes, dizendo o direito aplicável na justa composição de interesses cuja resolução lhe é pedida. Citando SALVADOR DA COSTA, “[a] exigência de imparcialidade é mais premente em relação ao juiz, certo que é a sua convicção, em cada caso que tem de resolver e decidir, que não pode deixar de ser formada com isenção e objectividade. Ele tem de estar acima e alheio aos interesses em causa no litígio, sob pena, por inidóneo, de ficar incapacitado de julgar com independência e imparcialidade” (in Os Incidentes da Instância, 2014, 7.ª ed., pp. 7-17).

Pode dizer-se, de um modo geral, que a causa de recusa do juiz, ou pedido de escusa do juiz, há-de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com algum dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o objecto da sua decisão.

Esses especiais contactos e/ou relação(ões) deverão ser de molde a criarem uma predisposição favorável ou desfavorável no julgamento e deverão ser aferidos tendo em conta o juízo que um cidadão médio, representativo da comunidade, possa, fundadamente, fazer sobre a imparcialidade e independência do juiz (cfr. ac. Relação de Évora de 5.03.96, CJ, tomo II, p. 281).

A imparcialidade é um atributo fundamental dos juízes e da função judicial que visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo. Recai sobre os julgadores o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa-fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.

É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa” , estando constantemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…” (Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade”, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP).

No incidente de escusa de juiz não relevam as meras impressões individuais, ainda que fundadas em situações ou incidentes que tenham ocorrido entre o peticionante da escusa e um interveniente ou sujeito processual, num processo ou fora dele, desde que não sejam de molde a fazer perigar, objectivamente, por forma séria e grave, a confiança pública na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do tribunal. De outro modo, poder-se-ia estar a dar caução, com o pedido de escusa, a situações que podiam relevar de motivos mesquinhos ou de formas hábeis para um qualquer juiz se libertar de um qualquer processo por razões de complexidade, de incomodidade ou de maior perturbação da sua sensibilidade. (2) – O motivo de escusa apresentado tem de ser sério e grave, objectivamente considerado, isto é, do ponto de vista do cidadão médio, que olha a justiça como uma instituição que tem de merecer confiança. (3) – A regra do juiz natural ou legal, com assento na Constituição -art.32.º, n.º9º, só em casos excepcionais pode ser derrogada, e isso para dar satisfação adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade, contido no n.º1 do mesmo normativo. Mas, para isso, é preciso que essa imparcialidade esteja realmente mesmo em causa, em termos de um risco sério e grave, encarado da forma sobredita” (Ac. do STJ de 14.06.2006, proc. n.º 1286/06-5).

Sendo certo que “[o] juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados” (cfr. Ac. do STJ de 11.03.2021, proc. n.º 322/17.1YUSTR.L1.S1). E como, de igual forma, se afirma no recente acórdão de 1.03.2023 do STJ, no processo n.º, 122/13.8TELSB-BQ.L1-A.S1, “[a]abertura do leque da escusa (ou recusa) sem critério exigente, além de torpedear o princípio constitucional do juiz natural e de limitar o poder e o direito judicatório do mesmo, acabaria por fazer implodir o sistema judiciário com as sucessivas escusas (ou recusas)”.

Deste breve excurso, podemos resumir os contornos essenciais da questão - escusa - a um único objectivo ou finalidade qual seja o de garantir a imparcialidade do juiz, que se presume e que só em situações limite por motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, conforme é exigência legal, deve o mesmo ser escusado de intervir num processo.

Por seu turno o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem tem vindo a entender imparcialidade e objectividade exigidas para se dizer o direito, deve ser apreciada num duplo sentido: “numa aproximação subjectiva ou objectiva. Na perspectiva subjectiva, importa conhecer o que o juiz pensava no seu foro íntimo em determinada circunstância; esta imparcialidade presume-se até prova em contrário. Mas esta garantia é insuficiente; necessita-se de uma imparcialidade objectiva que dissipe todas as dúvidas ou reservas, porquanto mesmo as aparências podem ter importância de acordo com o adágio do direito inglês justice must not only be done; it must also be seen to be done. Deve ser recusado todo o juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade, para preservar a confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos cidadãos.» que é tanto a subjectiva como a objectiva.” (cfr. notas para um processo equitativo, análise do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, à luz da jurisprudência da Comissão e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem», in Documentação e Direito Comparado, nºs. 49/50, pp. 114 e 115).

Quando a independência do juiz possa ser legitimamente questionada e/ou quando ocorram situações susceptíveis de gerarem dúvidas sobre a sua imparcialidade, o accionamento do mecanismo de escusa constitui um poder-dever a exercer criteriosamente pelo juiz.

Vejamos então.

Neste incidente de escusa não se discute a imparcialidade subjectiva do Senhor Juiz escusante (que, aliás, se presume até prova em contrário). O que aqui se nos coloca, é outrossim, aferir se os motivos de escusa apresentados pelo Senhor Juiz são de molde a fazer perigar objectivamente, por forma séria e grave a confiança que o cidadão médio deposita na administração da justiça e, particularmente, a imparcialidade do Tribunal. E não são.

Os factos invocados dizem respeito aos contactos profissionais, às relações de proximidade que na sequência de um certo período de tempo e em que por via das suas anteriores funções no DAJ da Câmara Municipal de Cascais se geraram entre os todos os juristas, à data seus colegas. Ora, essas relações decorrem, necessariamente, da vida em sociedade e da vida profissional prévia ao ingresso na magistratura, sendo até expectável que muitas outras situações equiparáveis possam ocorrer, sem que dessa realidade possa decorrer uma facilitação da concessão das escusas de juiz. A não ser assim, a breve trecho significaria uma efectiva postergação do princípio do juiz natural e consubstanciaria uma autorização genérica para o juiz se furtar a decidir um predeterminado universo de processos, o que é intolerável à luz da Constituição e da Lei.

Como se sumariou no recente acórdão de 15.02.2023 do STJ, proc. n.º 16/20.0GALLE.E1-A.S1:

I- o motivo, necessariamente sério e grave, apropriado a gerar a desconfiança ou suspeição sobre a imparcialidade do juiz há-de resultar de uma concretização material, assente em razões objectivamente valoradas à luz da experiência comum e conforme juízo de pessoa-média, não valendo, para o afastamento do juiz do processo, qualquer fundamento de desconfiança situado abaixo de um patamar mínimo de importância.

II- A relação de amizade entre juiz e mandatário de sujeito processual não constitui necessariamente fundamento de escusa, pois as relações de amizade entre magistrados e entre estes e advogados, pela própria natureza das coisas, serão inevitáveis.

(…).”

Ou como já se tinha concluído no acórdão 8.06.2022 do STJ, proc. n.º 27/16.0GEMMN.E1-A.S1, aqui aplicável com as devidas adaptações:

“(…)

VII - O requerimento de escusa funda-se na relação de amizade entre o relator do recurso e o mandatário do arguido, sendo acentuada a intensidade e publicidade do convívio entre ambos, no círculo de amigos comuns.

VIII - As relações de amizade entre magistrados judiciais, do MP e advogados, são frequentes, recuando, muitas vezes, aos tempos de vida académica. São, em regra, proporcionadas por circunstâncias como a formação comum, a vida judiciária, atividades de formação ou o convívio organizado pelas associações profissionais, a nível local.

IX - A ligação de Desembargador relator e de advogado com o processo é profissional e orientada, num e noutro caso, por regras legais e normas deontológicas e éticas rigorosas.

(…)”.

Ora, no caso concreto vem evidenciada uma apreensão do Senhor Juiz caso seja chamado a decidir o processo – no caso, uma notificação judicial avulsa -; cautela que se aceita. Porém, não basta uma apreensão qualquer, antes terá que existir um motivo “sério e grave”, de modo a cumprir a exigência legal e afastar o princípio do juiz natural.

A mera desconfiança sem fundamento sério ou motivação grave, suscetível de ser entendida como tal pelo cidadão médio, não integra razão para escusa de juiz.

Concluímos, pois, que os fundamentos invocados pelo Senhor Juiz requerente não têm a virtualidade de fundamentar a requerida escusa, já que não se verifica qualquer motivo adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade na condução do processo e, muito menos, um motivo sério e grave.

3. Decidindo:

Pelo exposto, indefere-se o pedido de escusa apresentado, devendo, por conseguinte, manter-se o Senhor Juiz de Direito, Dr. …………….., para intervir nos autos, como o titular do processo em causa.

Sem tributação.

Notifique.

Lisboa, em 20 de Abril de 2023


O Juiz Presidente do TCA Sul

PEDRO MARCHÃO MARQUES