Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1265/18.7BESNT
Secção:CA
Data do Acordão:08/30/2019
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:MATÉRIA DE FACTO
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
Sumário:1. O juiz “só deve pôr de parte, como irrelevantes, aqueles factos que não interessem à decisão da causa, em face de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito comporte”, bem como só deve atender à formulação das partes “sobre factos simples, e não sobre factos complexos, sobre factos puramente materiais e não sobre factos jurídicos, sobre meras ocorrências concretas, e não sobre juízos de valor, induções ou conclusões a extrair dessas ocorrências”.

2. O dever de aperfeiçoamento dirige-se a petição inicial que não obedeça aos requisitos formais específicos das alíneas a), b), c) e f) do artº 552º nº 1CPC e aos requisitos formais gerais dos actos escritos das partes, devendo o juiz no despacho pré-saneador convidar o autor a corrigir a irregularidade que se verifique – vd. artº 552º nº 2, b) CPC.

3. O convite ao aperfeiçoamento tem, exclusivamente, por objecto os requisitos formais das peças que as partes, através dos mandatários, juntam aos autos; não tem por objecto a articulação substancial de factos em consonância com o direito objectivo aplicável e as regras de ónus de prova.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Miguel .........., com os sinais nos autos, inconformado com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. Vem o Recorrente interpor recurso da sentença proferida pelo Tribunal a quo que decidiu improceder a providência cautelar intentada pelo mesmo sem necessidade de produção de qualquer prova em sede de diligência judicial;
2. A aplicação dos princípios da livre apreciação e da aquisição processual permitem ao Tribunal Central Administrativo Sul reponderar as questões em discussão, confirmando a decisão ou alterando-a;
3. Constam do processo os elementos que serviram de base à formação da convicção do julgador, podendo a mesma ser, naturalmente, sindicável;
4. Em 07.01.2019 o Recorrente foi notificado para, em respeito do princípio do dispositivo, “informar os autos sobre que matéria de tacto concretamente alegada pretende ouvir as testemunhas arroladas no segmento final do seu requerimento cautelar, bem como sobre que matéria de facto concretamente alegada pretende prestar declarações de parte", o que o Recorrente fez tempestivamente;
5. O Recorrente ficou assim na legítima expectativa de vir poder produzir prova em sede de diligência judicial dos factos que alegou no RI, em especial dos danos que a decisão da Entidade Recorrida lhe causa ou pode vir a causar;
6. Ao ter decidido como decidiu, ou seja, impedindo o Recorrente de produzir essa prova, o Tribunal a quo violou direito que ao Recorrente assiste (direito à prova) que tem inclusivamente dignidade constitucional;
7. Caso assim não se entenda, o requisito do periculum in mora foi devidamente alegado pelo Recorrente no RI,
8. Pelo que, ao não ter entendido assim, o Tribunal a quo violou o artigo 120° do CPTA;
9. O facto de o Recorrente ter que pagar uma multa como sanção de um processo disciplinar pejado de vícios e que contesta frontalmente e o averbamento dessa sanção no registo de sanções do Recorrente na OMD constituem circunstâncias mais do que notórias do periculum in mora que o Tribunal a quo entendeu não estar devidamente alegado,
10. Causadoras de danos patrimoniais e não patrimoniais irremediáveis ao Recorrente;
11. O fundado receio do Recorrente de que a execução da decisão da Entidade Recorrida venha a provocar na sua esfera jurídica prejuízos sérios e irreparáveis é mais do que legítimo;
12. Caso também assim não se entenda, o Tribunal a quo jamais convidou, como era sua obrigação, o Recorrente a aperfeiçoar a sua alegação quanto ao periculum in mora;
13. Ao não o ter feito e ao ter decidido como decidiu, em especial depois da notificação de 07.01.2019, o Tribunal a quo cometeu nulidade processual, nulidade essa que se estende até à decisão que ora se impugna e que tem importância decisiva nos autos, com repercussão notória na decisão da causa;
14. Submete-se, desta forma, o presente à apreciação dos Venerandos Juizes Desembargadores do Tribunal Central Administrativo Sul.
Termos em que, balizado o objeto do recurso e atentos os fundamentos do mesmo, deve a sentença ser revogada por outra nos termos supra alegados.


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A Ordem dos Médicos Dentistas, ora Recorrida, ~contra-alegou, sustentando a bondade do decidido.


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Com substituição legal de vistos pela entrega das competentes cópias aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.


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Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

A. Em 31-05-2016, a edição on-line da revista L... (l....pt) publicou um artigo com o título "Boxeur e vem a Portugal colocar novo sorriso”, com o teor constante de fls. 1 do Processo Administrativo -PA)
B. Por despacho de 30-06-2016 do Presidente do Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos foi instaurado processo disciplinar ao Requerente, o qual correu como processo n.° .../2016. (Cfr. fls. 2 e 3 do PA, que se têm por integralmente reproduzidas)
C. Em 2-09-2016, foi dado início à instrução do processo disciplinar. (Cfr. fls. 5 do PA)
D. Em 5-12-2016, constavam no certificado de registo disciplinar do Requerente uma pena disciplinar de multa no valor de € 900,00, aplicada por decisão de 18-04-2015, por divulgação da atividade profissional e uma pena disciplinar de censura, aplicada por decisão de 27-07-2014, por divulgação da atividade profissional. (Cfr. fls. 9 do PA)
E. Em 19-12-2016, o Requerente foi ouvido no processo disciplinar, tendo prestado as declarações constantes de fls. 10 e 11 do PA.
F. Em 16-01-2017 a Diretora da revista “C....” informou no processo disciplinar «que a notícia com o título "L.......... em Portugal a convite de Miguel ..........” foi feita com base num comunicado enviado pela agência de comunicação N.........., que assessora o referido médico". (Cfr. fls. 25 do PA)
G. Em 18-01-2017, o Requerente juntou ao processo disciplinar mensagem de correio eletrônico de L.......... de 16-01-2017, dirigida ao Requerente, com o seguinte teor:
«Assunto: L.......... "Eu, L.........., vim a Portugal em 2016 para realizar cuidados dentários na W.......... com o Dr. Miguel .......... e a sua equipa. A minha reputação enquanto antiga estrela de futebol, a minha abertura em relação à saúde mental e, agora, sendo pugilista, fizeram despertar o interesse da imprensa portuguesa em. relação à minha história, pelo que tive uma pequena reunião na W...........
Quando me perguntaram porque estava eu em Portugal, eu respondi-lhes o que tinha feito, que não tinha absolutamente nenhum problema e que estava muito satisfeito com o tratamento recebido. Em Inglaterra tinha ouvido grandes coisas sobre o Dr. .......... e para mim ele era a pessoa ideal para me tratar. Considero que Dr. .......... e sua equipa têm o mais alto padrão ético e aconselho a qualquer pessoa que procure os melhores conselhos e o melhor tratamento dentário que contacte o Dr. .......... e a sua equipa que são muito profissionais e amáveis.» (Cfr. fls. 26 a 34 do PA)
H. Em 15-01-2018, foi proferido despacho de acusação no processo disciplinar n.° .../2016, constando do mesmo, designadamente o seguinte:
«(...)
Está em causa nos presentes autos a divulgação da atividade profissional realizada pela Clínica de Medicina Dentária “W..........”
Decorrida que foi a fase de Instrução, a mesma se dá por terminada, consequentemente Deduzo, ACUSAÇÃO contra o Dr. Miguel .......... portador da cédula profissional n° ......
Porquanto:
1 - O arguido é médico dentista, portador da cédula profissional n° ..... e fundador da Clínica de Medicina Dentária “W..........’’, (cfr.fls.l)
2- No dia 1 de junho de 2016, foi publicada no site da referida clínica uma fotografia que divulgava o tratamento dentário realizado ao lutador de boxe britânico L...........
3- A referida publicação chamava atenção para a reportagem realizada pela revista C.... de fls. 1.
4- Do meio de comunicação social C...., consta a publicação de uma fotografia do aqui arguido acompanhado pelo “Boxeur", bem como a seguinte menção:
“O prestigiado lutador de boxe britânico L.......... veio a Portugal para um tratamento dentário a convite de Miguel .........., CEO e Fundador da W........... O desportista saiu da clínica com um novo sorriso após uma higienização, um implante de carga imediata (colocação da coroa no dia do implante) e duas cerâmicas nos dentes da frente, que estavam escurecidos.
5- A mesma imagem foi ainda divulgada pela Revista L..., na qual consta a publicação da fotografia do aqui arguido acompanhado do “Boxeur”, bem como a seguinte menção:
“O lutador de boxe L.......... veio a Portugal a convite do conhecido dentista Miguel .........., para um tratamento dentário. O boxeur britânico, de 37 anos, submeteu-se a uma higienização, a um implante e ainda à colocação de duas cerâmicas nos dentes da frente (que estavam escurecidos), saindo da clínica com um sorriso «novinho em folha»
6- Com o propósito de averiguar a origem da respetiva informação sobre o tratamento dentário divulgado, a OMD diligenciou por despacho, datado de 19 de dezembro de 2016, um pedido de informação a ambos os meios de comunicação social.
7- Em resposta ao despacho atrás mencionado, a 16 de janeiro de 2017, a Revista C.... alega que o conhecimento da notícia teve por base um comunicado enviado pela agência de comunicação N.........., que assessora o referido médico dentista.
8- Ora, o artigo 3 o, alínea a) do regulamento de divulgação da atividade profissional (regulamento interno n° 115/2007 publicado na 2a série do Diário da República de 14 de junho), proíbe o médico dentista de utilizar a identificação direta ou indireta dos pacientes, bem como qualquer alusão às suas caraterísticas.
9- A divulgação da fotografia do paciente nos diversos órgãos de comunicação social, a convite da referida clínica, (de fls. 1) consubstancia desta forma uma violação do referido preceito.
10- Ainda, a respetiva publicação descreve os atos médicos praticados pelo aqui arguido.
11- Tal comportamento, viola o preceituado no artigo 21° do Código Deontológico da OMD, o qual menciona que o médico dentista é obrigado a guardar sigilo profissional sobre toda a informação relacionada com o doente, constante ou não da sua ficha clínica, obtida no exercício da sua profissão.
12- Com efeito, qualquer divulgação de matéria sujeita a sigilo profissional depende de prévia autorização da OMD, algo a verificar-se no caso em apreço uma vez que a referida publicação não visa quaisquer fins académico-científicos.
13- No caso em concreto, tal autorização não foi requerida pelo aqui visado.
14- Ao proceder à divulgação de um comunicado para os referidos meios de comunicação social, o arguido agiu consciente e livremente sabendo bem, dada a sua experiência profissional, que a informação nele contida iria chamar atenção para a sua clínica, obtendo com isso benefícios económicos.
15- Perante o exposto anteriormente, o arguido violou intencionalmente o disposto no artigo 3º, alínea a) do regulamento de divulgação da atividade profissional (regulamento interno n° 115/2007 publicado na 2a série do Diário da República de 14 de junho), nos termos do qual, na divulgação da sua atividade, o médico dentista não pode identificar direta ou indiretamente os seus pacientes, ou fazer qualquer alusão às suas características, bem como o disposto no artigo 1º, ponto 1.3, alínea g) do mesmo regulamento e, ainda o disposto no artigo 21º, nº l do Código Deontológico da OMD.
16-Atentos os factos constantes da acusação e o grau de culpa dos mesmos, à infração em causa poderá ser aplicada uma pena de Multa.
Notifique-se o arguido deste despacho e de que dispõem do prazo de 30 (trinta) dias para apresentar defesa.» (Cfr. fls. 47 a 51 do PA, que se têm por integralmente reproduzidos)
I. Em 6-03-2018, o Requerente apresentou defesa, na qual requereu o arquivamento do processo disciplinar e a produção de diligências de prova. (Cfr. fls. 72 a 94 do PA, que se têm por integralmente reproduzidas)
J. Em 8-03-2018, o Requerente solicitou ao Presidente do Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas que afastasse o Relator do processo disciplinar, sendo nomeado outro. (Cfr. fls. 96 do PA)
K. Em 19-03-2018, o Presidente do Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas indeferiu o requerimento referido na alínea anterior. (Cfr. fls. 100 do PA)
L. Em 29-05-2018, o Requerente foi ouvido no processo disciplinar, tendo prestado as declarações constantes de fls. 153 e 154 do PA.
M. Em 18-10-2018, foi elaborado relatório no processo disciplinar n.° .../2016, constando do mesmo, designadamente o seguinte:
«(...)
Apreciadas que estão as questões prévias precedentes e, considerado que está não assistir qualquer razão ao arguido nas mesmas, designadamente que determinem algum impedimento à apreciação dos factos que consubstanciam o objeto deste processo, cumpre passar à apreciação do ponto v).
No entendimento do Relator, resulta da prova produzida nos autos que:
Factos provados
a) O arguido é médico dentista, portador da cédula profissional n° .....;
b) No dia 1 de junho de 2016, foi publicada no site da referida clínica pelo arguido que o lutador de boxe britânico L.......... é seu paciente (fls. 20).
c) A referida publicação chamava atenção para a reportagem realizada pela revista C.... (fls. 22).
d) Do meio de comunicação social C...., consta a publicação de uma fotografia do aqui arguido acompanhado pelo “Boxeur", bem como a seguinte menção (fls. 22)
“O prestigiado lutador de boxe britânico L.......... veio a Portugal para um tratamento dentário a convite de Miguel ........... CEO e fundador da W...........
O desportista saiu da clínica com um novo sorriso após uma higienização, um implante de carga imediata (colocação da coroa no dia do implante) e duas cerâmicas nos dentes da frente, que estavam escurecidos. ”
d) A mesma imagem foi ainda divulgada pela Revista L...., na qual consta a publicação da fotografia do aqui arguido acompanhado do “Boxeur”, bem como a seguinte menção:
” O lutador de boxe L.......... veio a Portugal a convite do conhecido dentista Miguel .........., para um tratamento dentário. O boxeur britânico, de 37 anos, submeteu-se a uma higienização. a um implante e ainda à colocação de duas cerâmicas nos dentes da frente (que estavam escurecidos), saindo da clínica com um sorriso «novinho em folha»
e) O conhecimento da notícia teve por base um comunicado enviado pela agência de comunicação N.........., que assessora o referido médico dentista, (fls. 25)
f) Que a foto que foi publicada com ambos (arguido e paciente) foi tirada pela noiva do Boxeur.
g) Que o arguido não contactou pessoal e previamente a comunicação social para estar presente na clínica para fazer reportagem, tendo tal acontecido por contactos da agência que representa o Boxeur com a comunicação social nacional.
Factos não provados
1) Que na comunicação do J...., o arguido tenha descrito os tratamentos a que submeteu o paciente.
2) Que o arguido tenha ordenado à empresa N.......... o envio da publicação tal como publicada pela C...., como resulta da leitura do depoimento do arguido: “Questionado se alguma vez entrou em contacto com a revista L... e C.... alertando para o facto de terem sido divulgados os tratamentos prestados ao atleta, o arguido referiu que não.
Questionado se foi o arguido que convidou o atleta para se deslocar à sua. clínica, ou foi o atleta que tomou a iniciativa de contactar a W.........., o arguido referiu que a iniciativa partiu do atleta ou da sua equipa.
O arguido informou ainda que a testemunha Sofia .......... que era funcionária da W.......... à data dos factos e que continua a ser, não teve intervenção com a imprensa, apenas realizou o trabalho dela. que tem funções administrativas e controlo de qualidade, ou seja, recebeu o paciente e garantiu que estava tudo em ordem para realizar os tratamentos.”
*
Isto posto.
Tendo ficado demonstrado os factos aqui identificados sob as alíneas a) a g) resulta patente que no site do arguido (Miguel ..........) este assina um texto no qual identifica como seu paciente L...........
Compulsados os registos da OMD não foi por este requerida a dispensa de sigilo profissional para proceder a esta identificação.
A circunstância de não terem ficado demonstrado os factos 1 e 2 e de terem ficado demonstrado os factos identificados nas alíneas a) a g) não desqualifica, apesar disso, a verificação da infração disciplinar de que o arguido vinha acusado.
Com efeito, a violação do dever de não identificação dos pacientes fica concretizada -mesmo que não tivesse havido publicação deste facto na comunicação social - com o texto publicamente subscrito pelo arguido no Miguel .........., uma vez que no mesmo o arguido identifica claramente o paciente.
Acresce, por isso, que concluir que foi a namorada do Boxeur quem tirou a foto a ambos que foi colocada no site e depois divulgada resulta nos presentes autos irrelevante para a desconsideração disciplinar do comportamento do mesmo, uma vez que não é o paciente que dispensa o médico dentista do cumprimento do dever de siglo profissional, mas apenas e tão só o Conselho Deontológico e de Disciplina da OMD, nos termos e para os efeitos estatutariamente previstos.
Já a demonstração de que o paciente em causa veio espontaneamente e não por iniciativa do arguido ou da clinica que dirige e a circunstância de no texto subscrito a fls. 20 destes autos não ter o arguido identificado de forma expressa os tratamentos a que o mesmo foi submetido, apenas releva para efeitos de aferição do grau de culpa (premeditação) e da gravidade da violação dos deveres estatutários e deontológicos em causa, pelo que a circunstância de o arguido ter logrado demonstrar que se tratou de uma situação ocasional e não premeditada não o iliba de per se da prática da infração disciplinar, apenas permitindo situar a gravidade da sua atuação num patamar inferior ao constante da acusação o que se deverá refletir na sanção a aplicar.
Assim sendo, a conduta adotada pelo arguido, - identificação de paciente em texto destinado ao público - consubstancia uma violação do artigo 3.°, alínea a) do regulamento de divulgação da atividade profissional (regulamento interno n.° 115/2007 publicado na 2a série do Diário da República de 14 de junho), o qual proíbe o médico dentista de utilizar a identificação direta ou indireta dos pacientes, bem como qualquer alusão às suas caraterísticas, bem como a violação do artigo lº, ponto 1.3, alínea g) do regulamento de divulgação, bem como o artigo 21º, nº l do Código Deontológico.
A circunstância de o paciente em causa nos presentes autos ser uma figura pública mundial da área do desporto não atenua o dever de sigilo profissional que ao arguido competia respeitar.
O arguido agiu, portanto, com culpa grave, violando os deveres deontológicos já supra identificados, bem sabendo que como médico dentista e diretor clínico da clínica em causa não pode identificar, sem estar dispensado do sigilo profissional, os pacientes que trata. Apesar de estar consciente de tal dever e conhecendo-o, o arguido optou por ignorar o cumprimento do mesmo, tendo agido consequentemente na divulgação desta informação com dolo.
O arguido é reincidente constando nos registos disciplinares da OMD duas condenações por violação das regras atinentes à divulgação da atividade profissional em 18 de abril de 2015 e 27 de julho de 2014, tendo sido aplicada uma pena de multa e censura respetivamente, o que milita em seu desfavor como situação agravante.
Por esta razão, deverá, nos termos do artigo 83º nº 4 do Estatuto da OMD ser condenado com. pena disciplinar de multa, que se fixa em função da gravidade da infração e do grau de culpa com que foi praticada, em 10 vezes o valor, em vigor, da quota anual.» (Cfr. fls. 193 a 201 do PA)
N. Em 20-10-2018, o Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas proferiu o seguinte acórdão:
«Reunido o Conselho Deontológico e de Disciplina no dia 20 de outubro de 2018, procedeu ao julgamento do Processo Disciplinar n° .../2016. Analisado o conteúdo do dito processo e ponderado o teor do Relatório e Parecer elaborado pela respetiva Relatora, foi deliberado por unanimidade aprová-lo na íntegra.
Em consequência, pelos fundamentos e motivos constantes do relatório, que aqui se dão por integralmente reproduzidos, delibera-se pela aplicação ao arguido da Pena Disciplinar de MULTA, prevista no artigo 83º, nº l, alínea c) do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, correspondente a 10 (dez) vezes o valor anual das quotas, à data do presente acórdão, perfazendo o montante total de 1800,00€ (mil e oitocentos euros) que deve ser paga no prazo máximo de 15 (quinze) dias, nos termos do disposto no nº 1 do artigo 91º do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas, pela violação da alínea a) do artigo 3.°, alínea g) do ponto 1.3 do artigo 1°, ambos do Regulamento de Divulgação da Atividade Profissional, bem como do n.° 1 do artigo 21.° do Código Deontológico.
Notifique-se. » (Cfr. fls. 202 do PA)
O. Em 14-11-2018, o Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas emitiu ofício de notificação do acórdão referido na alínea anterior ao Mandatário constituído do Requerente. (Cfr. fls. 203 do PA)
P. O ofício referido na alínea anterior foi expedido por carta registada com aviso de receção, tendo sido recebido no escritório do Mandatário do Requerente em 15-11- 2018. (Cfr. fls. 203-B do PA)
Q. Em 14-11-2018, o Conselho Deontológico e de Disciplina da Ordem dos Médicos Dentistas expediu mensagem de correio eletrónico, dirigida ao endereço eletrónico do Requerente, a dar-lhe conhecimento do relatório e acórdão acima referidos. (Cfr. fls. 206 e 207 do PA)
R. A presente providência cautelar foi apresentada em 19-11-2018. (Cfr. fls. 2 dos autos)
S. O Requerente é conferencista habitual em vários países estrangeiros. (Acordo: art.° 118.°, n.°2do CPTA)



DO DIREITO


O presente recurso tem efeito meramente devolutivo – cfr. artº 143º nº 2 b) CPTA.


1. decisão singular de mérito do relator - reclamação para a conferência;

O regime da decisão singular de mérito apenas proferida pelo Relator foi introduzido pelo DL 329-A/95, podendo a parte afectada pela decisão reclamar desta para a conferência conforme disposições conjugadas dos artºs. 705º e 700º nº 3 CPC, hoje, artºs. 656º ex vi 652º nº 1 c) e nº 3 CPC da revisão de 2013.
Deduzida reclamação para a conferência “(..) o colectivo de juízes reaprecia as questões que foram objecto da decisão singular do Relator e, nesse sentido, caso se esteja perante a decisão sumária do recurso, reaprecia novamente o recurso, naturalmente sem qualquer vinculação ao anteriormente decidido.
No entanto, se assim é, ou seja, se normalmente a intervenção da conferência, no caso em que se reclama de uma decisão sumária, faz retroagir o conhecimento do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão, importa ter presente que, nos termos gerais, no recurso ou na reclamação, o Recorrente ou o Reclamante podem restringir o seu objecto, isto é, o requerimento para a conferência (mesmo resultante de convolação do requerimento de interposição de recurso de revista) pode restringir o objecto próprio da reclamação, concretamente identificando a parte da decisão sumária de que discorda (da qual se sente prejudicado) (..)” – doutrina constante do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23.02.2015, tirado no rec. nº RP201502231403/04.7TBAMT-H.P1.

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No citado Acórdão da Relação do Porto é feita referência expressa aos termos gerais de direito no que respeita à possibilidade de, em sede de reclamação da decisão singular do Relator, o Recorrente restringir o abjecto do recurso, “(..) identificando os segmentos decisórios sobre os quais demonstra o seu inconformismo. Trta-se, na prática, de uma solução que se encaixa na possibilidade de desistência do recurso, nos termos que constam do artº 632º nº 5, com a especificidade de a extinção da instância ser, aqui, parcial. (..)” (1)
O que implica precisar o pressuposto legal de delimitação do âmbito da pretensão recursória e das hipóteses legais de modificação.
A delimitação objectiva do recurso é dada pelas conclusões, cfr. artºs. 635º nº 4, 637º nº 2 e 639º nºs 1 e 2 CPC, na medida em que “(..) A motivação do recurso é de geometria variável, dependendo tanto do teor da decisão recorrida como do objectivo procurado pelo recorrente, devendo este tomar em consideração a necessidade de aí sustentar os efeitos jurídicos que proclamará, de forma sintética, nas conclusões. (..)
Mas, independentemente do âmbito definido pelo recorrente no requerimento de interposição, é legítimo restringir o objecto do recurso nas alegações, ou, mais correctamente, nas respectivas conclusões, indicando qual a decisão (ou parte da decisão) visada pela impugnação. (..) A restrição pode ser tácita em resultado da falta de correspondência entre a motivação e as alegações, isto é, quando, apesar da maior amplitude decorrente do requerimento de interposição de recurso, o recorrente restrinja o seu âmbito através das questões que identifica nas conclusões. (..)”, cfr. artº 635º nº 4 CPC. (2)
No tocante à ampliação do objecto do recurso, o artº 636º nº 1 CPC permite que, embora a decisão seja favorável à parte e a parte vencida interponha recurso, caso no Tribunal a quo não tenha acolhido todos ou alguns dos fundamentos da acção (de facto ou de direito) suscitados pela parte vencedora, essas questões serão reapreciadas pelo Tribunal ad quem a requerimento do Recorrido em alegações complementares, isto é, o Tribunal de recurso reapreciará os fundamentos do segmento da sentença recorrida em que a parte vencedora tenha decaído.

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Do complexo normativo citado se conclui que o acto processual de convocação da conferência no regime do artº 652º nº 1 c) e nº 3 ex vi 656º CPC não é configurado como meio adjectivo próprio para alterar as conclusões de recurso, ressalvada a hipótese já mencionada de limitação do objecto (artº 635º/4 CPC), nem para desistir do recurso (artº 632º º 5 CPC), posto que “(..) a desistência do recurso apenas é possível até à prolação da decisão, tornando-se agora inequívoca a solução que já anteriormente se defendia. Representa uma medida que que valoriza o papel do tribunal superior, evitando que o recorrente accione o mecanismo da desistência depois de ter sido confrontado com o resultado do recurso.
Aliás, o momento que releva para o efeito nem sequer é o da notificação da decisão, mas antes o da sua prolação (..)”,. (3)
Neste sentido, junta aos autos a decisão singular de mérito sobre o objecto do recurso proferida pelo relator (artº 652º/1 c) ex vi 656º CPC) ocorre nessa data a preclusão de exercício do direito de desistência por parte do recorrente, cfr. artº 632º nº 5 CPC.
A reclamação para a conferência constitui o meio adjectivo próprio ao dispor da parte que se sinta prejudicada pela decisão individual e sumária do relator sobre o objecto do recurso, podendo o recorrente/reclamante, nessa reclamação, restringir o objecto do recurso no uso do direito conferido pelo artº 635º nº 4 CPC, mas não pode ampliar o seu objecto, faculdade limitada ao recorrido nos termos do artº 636º nº 1 CPC, isto é, limitada à parte vencedora que tendo decaído em alguns dos fundamentos da acção, apesar disso, obteve vencimento no resultado final.
Como se diz no Acórdão da Relação do Porto acima citado, no regime do artº 652º nº 1 c) e nº 3 ex vi 656º CPC a reclamação para a conferência da decisão sumária proferida apenas pelo relator faz retroagir o conhecimento em conferência do mérito da apelação ao momento anterior àquela decisão sumária, conhecimento limitado às questões especificadas pelo recorrente nas conclusões de recurso, sem prejuízo de o recorrente, ora reclamante, restringir na reclamação o objecto recursório anteriormente definido nos termos do artº 635º nº 4 CPC.

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No caso concreto, a intervenção da conferência vem requerida pelo Recorrente, pelo que cumpre apreciar as questões suscitadas em sede de conclusões, fazendo retroagir o conhecimento do mérito do recurso ao momento anterior à decisão singular de mérito apenas proferida pelo Relator.


2. prova testemunhal arrolada - impugnação da decisão sobre a matéria de facto;

Nos itens 1 a 11 das conclusões o Recorrente assaca a sentença de incorrer em violação primária de direito adjectivo na medida em que
“(..)
4. Em 07.01.2019 o Recorrente foi notificado para, em respeito do princípio do dispositivo, “informar os autos sobre que matéria de facto concretamente alegada pretende ouvir as testemunhas arroladas no segmento final do seu requerimento cautelar, bem como sobre que matéria de facto concretamente alegada pretende prestar declarações de parte", o que o Recorrente fez tempestivamente;
5. O Recorrente ficou assim na legítima expectativa de vir poder produzir prova em sede de diligência judicial dos factos que alegou no RI, em especial dos danos que a decisão da Entidade Recorrida lhe causa ou pode vir a causar;
6. Ao ter decidido como decidiu, ou seja, impedindo o Recorrente de produzir essa prova, o Tribunal a quo violou direito que ao Recorrente assiste (direito à prova) que tem inclusivamente dignidade constitucional;
7. … o requisito do periculum in mora foi devidamente alegado pelo Recorrente no RI;
13. Ao não o ter feito e ao ter decidido como decidiu, em especial depois da notificação de 07.01.2019, o Tribunal a quo cometeu nulidade processual, nulidade essa que se estende até à decisão que ora se impugna e que tem importância decisiva nos autos, com repercussão notória na decisão da causa; (..)”.
*
No caso presente o Tribunal a quo considerou expressamente que o estado dos autos permitia o conhecimento imediato do mérito da causa cautelar, tendo declarado a suficiência da prova documental integrante do procedimento administrativo.
Neste sentido, indeferiu a produção de prova testemunhal requerida bem como a prestação de declarações de parte, ao abrigo do regime constante do artº 118º nº 5 CPTA.
Ao trazer a recurso a questão da essencialidade da produção de prova testemunhal arrolada tal significa que o Recorrente impugna o elenco da matéria de facto levada ao probatório em 1ª Instância fundada em meio probatório documental.

Sendo assim, há especialidades adjectivas a observar.

De acordo com a lei adjectiva, o objecto do recurso é delimitado pelos fundamentos que sustentam as razões pelas quais se pede a modificação ou a anulação da sentença, sintetizados nas conclusões, vd. artº 639º nºs. 1 e 2 CPC (ex 685º-A, nºs. 1 e 2); todavia, não consta das presentes conclusões que o objecto do recurso inclua a reapreciação da prova mediante a impugnação da decisão proferida sobre pontos determinados da matéria de facto com fundamento nos documentos juntos aos autos.
Na hipótese de o Recorrente impugnar a decisão relativa à matéria de facto, impõe-se-lhe, desde logo, explicitar em sede conclusões essa finalidade impugnatória do probatório consignado na sentença, não bastando concluir pelo fundamento genérico de que “seria essencial ouvir-se as testemunhas arroladas”, atendendo a que, por um lado, o objecto do recurso resulta das conclusões e, por outro, o erro de julgamento em matéria de facto tem um leque de causas muito vasto e nem todas implicam a observância do ónus estabelecido no artº 640º nºs. 1 e 2 CPC (ex 685º -B).
Ou seja, se a matéria de facto levada ao probatório em sede de sentença for objecto de impugnação no recurso, recai sobre o recorrente o ónus de “(..) especificar sob pena de rejeição os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da adoptada pela decisão recorrida (..)”,vd. artº 640º nºs. 1 a) e b) CPC [ex 685º -B, nº 1 a) e b)] ónus que se impõe em igual medida sobre o recorrido quando exerça esta faculdade - vd. artºs. 640º nº 3 CPC (ex 685-B nº 5).
A lei é de tal modo detalhada nesta matéria que, na circunstância de ter ocorrido a gravação da prova testemunhal produzida, por disposição expressa do artº 640º nº 2 a) CPC (ex 685º -B nº 2) impõe-se, ainda, “(..) a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda a impugnação da decisão de facto (..) o não cumprimento deste ónus implica a imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto (..)”. (4)
No caso verifica-se que o normativo processual não foi observado, pois nem as conclusões nem o corpo alegatório cumprem as especificações legais acima expostas.
Efectivamente, o Recorrente não identifica os pontos de facto constantes do articulado inicial que, no seu entender e em função do sentido devido ser diverso do constante da sentença sob recurso tenham sido, por um lado, (i) indevidamente julgados provados na base dos documentos especificados, e, por outro, (ii) se mostrem carecidos de produção da prova testemunhal arrolada tendo em conta a formulação da matéria de facto por si alegada no articulado inicial.

*
Quanto ao meio de prova testemunhal requerido, o Tribunal a quo para além de ter declarado a suficiência da prova documental integrante do procedimento administrativo, apreciou especificamente o modo de articulação da matéria pelo ora Recorrente no requerimento inicial, como se transcreve:
“(..)
Nesta parte, os pontos invocados como justificadores da produção de prova (pontos 127.° a 132.° do requerimento inicial) não revelam qualquer necessidade de prova adicional.
Seja porque são factos que decorrem da análise documental (pontos 127.° e 131.°), seja porque estão em causa juízos de intenção ou alegações que não relevam para a decisão administrativa (pontos 128.° a 130.°), baseada na indevida identificação de pacientes, ou são considerações meramente conclusivas (ponto 132.°).
A produção de prova só poderia ser atendível para efeitos de factos que pudessem fundar o requisito comummente denominado de periculum in mora, relativamente ao qual se refere o alegado no ponto 139.° do requerimento inicial.
Aí se aduz, desde logo, que a execução do ato causa “um dano não patrimonial fortíssimo ao Requerente”, o que não configura uma alegação de facto suscetível de prova, porque genérica e não concretizada em danos concretos.
Mais alega o Requerente prejuízos decorrentes do registo da sanção disciplinar e da sua comunicação às entidades previstas no n.° 1 do art.° do Estatuto da Ordem dos Médicos Dentistas (EOMD), aprovado pela Lei n.° 110/91, de 29 de agosto e alterado, com republicação, pela Lei n.° 124/2015, de 2 de j setembro, “circunstância que, do ponto de vista financeiro, constitui um duro golpe ao Requerente porque o mesmo é conferencista habitual em vários países estrangeiros; essa comunicação fará com que o Requerente deixe de ser tantas vezes convidado para estar presente nessas conferências, o que lhe inflige um tremendo e imediato impacto económico, sobretudo quando se sabe da facilidade com que este tipo de informações, nos dias de hoje, circula - o Requerente vive da sua reputação”.
Ora, a alegação de que o Requerente é conferencista habitual em vários países estrangeiros não foi objeto de oposição, podendo considerar-se assente (art.° 118.°, n.° 2 do CPTA), assim como é facto notório que o Requerente é um profissional com exposição mediática, sendo a sua atividade frequentemente referida nos meios de comunicação social (art.° 5.°, n.° 2, al. c) do CPC).
a alegação da produção de um duro golpe do ponto de vista financeiro não é suscetível de prova, porque não concretizada em factos concretos que consubstanciem esse '‘duro golpe”, ainda, para mais, porque baseada num juízo hipotético de que passaria a ser menos vezes convidado para estar presente em conferências.
Não tendo sido também alegados concretos, suscetíveis de prova, que permitam associar a diminuição de convites para conferências com esse alegado duro golpe financeiro.
Sem prejuízo do exposto, não pode deixar de ser também considerado que, atendendo à natureza dos factos alegados para consubstanciar o prejuízo irreparável, em especial pelo seu carácter marcadamente genérico, eventual e conclusivo, e atendendo também aos factos que já se referiram ser de considerar assentes, não se vislumbra que contribuição poderia a prova testemunhai requerida trazer pára efeitos da verificação do requisito do perigo na mora.
Nestes termos, ao abrigo do n.° 5 do art.° 118.° do CPTA, indefere-se a prestação de declarações de parte e a produção de prova testemunhai requerida pelo Requerente, proferindo-se, de imediato, sentença. (..)”
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Nada há a censurar ao discurso jurídico fundamentador na exacta medida em que, como nos diz a doutrina da especialidade, “(..) o juiz só deve pôr de parte, como irrelevantes, aqueles factos que não interessem à decisão da causa, em face de qualquer das soluções plausíveis que a questão de direito comporte (..)”, bem como, para efeitos de produção de prova e para determinar os pontos de facto sobre que há-de incidir a decisão do tribunal, só deve atender à formulação das partes “(..) sobre factos simples, e não sobre factos complexos, sobre factos puramente materiai,s e não sobre factos jurídicos, sobre meras ocorrências concretas, e não sobre juízos de valor, induções ou conclusões a extrair dessas ocorrências. (..)” (5)

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Na medida em que toda esta identificação a que o direito adjectivo obriga se mostra omissa, improcedem as questões trazidas a recurso itens 1 a 11 das conclusões.


3. função do Tribunal - convite ao aperfeiçoamento de articulados e conclusões - limites - ónus das partes;

Dispõe o artº 639º nº 3 CPC que pode o recorrente ser convidado a aperfeiçoar as conclusões das suas alegações sempre que elas sejam deficientes, obscuras, complexas ou não respeitem o conteúdo legalmente exigido, despacho que integra o uso de um poder discricionário do juiz do processo, artº 630º nº 1 CPC.
Todavia, este convite para aperfeiçoar as conclusões – e não as alegações, que consubstanciam a indicação dos fundamentos do pedido de alteração ou anulação da decisão recorrida – não pode redundar, a favor da parte convidada, num alargar de prazo de recurso, em desfavor dos princípios processuais da imparcialidade do tribunal e da igualdade das partes, este último consagrado no artº 4º CPC, cujo destinatário é, precisamente, o tribunal.
Salvo o devido respeito por entendimento distinto que não se desconhece, este artº 4º CPC (6) no que tange à função do tribunal de garantir a igualdade substancial das partes, deve ser interpretado no sentido negativo, ou seja, entendendo-se que se proíbe que o tribunal promova a desigualdade das partes, e não no sentido positivo, isto é, de cometer ao juiz a promoção da igualdade das partes no processo e de, eventualmente, auxiliar a parte necessitada.
Em síntese, ao tribunal é proibido promover a desigualdade das partes não tendo, contudo que a promover, essa é tarefa geral do legislador, aperfeiçoando o direito objectivo (substantivo ou processual), ou particular do advogado constituído nos autos, no âmbito do exercício do direito de defesa dos interesses do seu cliente na instância processual.

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Ao juiz cabe, por atribuição constitucional, declarar o Direito e a Justiça do caso concreto; não lhe cabe substituir-se ao legislador nem ao advogado constituído nos autos para remediar as eventuais imperfeições da lei ou de exercício do direito de acção.
O juiz não pode nem deve extravasar da função de mero auxiliar no simples aperfeiçoamento de articulados e conclusões de recurso, artºs 590º e 639 CPC, não lhe sendo lícito assumir uma acção salvífica de articulados que nada contenham ao nível dos factos essenciais à individualização da situação jurídica e procedência da acção ou excepção, ou de recursos que nada aleguem ao nível dos fundamentos e questões de recurso.
Mesmo que se sufragasse, o que não é o caso, a tese de sentido positivo na interpretação do artº 4º CPC, a dimensão normativa dos convites ao aperfeiçoamento de articulados, alegações e conclusões de recurso não consente um alargamento do âmbito de interpretação a ponto de defender que o Tribunal, pela sua intervenção auxiliadora no processo, supra o incumprimento dos ónus que competem às partes.

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A levar o sentido securitário e garantístico tão longe, teremos como consequência que a autoria de articulados, alegações e conclusões de recurso seria, não da parte, mas do juiz, em desrespeito absoluto aos princípios constitucionais da independência dos Tribunais e insusceptibilidade de responsabilização do juiz pela decisão do processo, cfr. artºs. 203º e 216º nº 2 CRP.
A direcção da causa pelo juiz através do convite ao aperfeiçoamento a ponto de lhe autorizar a iniciativa de alegação de direito substantivo e a condução da iniciativa processual a investir nos autos, traduz-se em que esse concreto juiz desse concreto processo deixa de ser o juiz da causa para se transmutar na causa do juiz configurando-se como responsável pela decisão tomada, na medida em que o direito substantivo alegado e/ou a oportunidade de intervenção na instância são suas e não do advogado constituído, demonstrada pelo conteúdo dos despachos de aperfeiçoamento em matéria de direito substantivo e adjectivo, pelos quais, em concreto, auxiliou aquela parte, também em concreto.
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Esta questão dos convites a suprir deficiências tem merecido pronúncia do Tribunal Constitucional, tanto no âmbito do artº 412º do Código de Processo Penal como do regime paralelo consagrado nos artºs. 690º nºs. 1 e 2 e 690º-A do Código de Processo Civil/1961, chamando-se aqui à colação, por todos, o recente Acórdão nº 140/04/Tribunal Constitucional – procº nº 565/03, publicado in DR II Série, nº 91 de 17.ABR.
No citado aresto foi discutida e decidida a questão de saber se é inconstitucional a interpretação no sentido de que a falta de especificação legalmente exigida, tanto na motivação como nas conclusões de recurso, tem como efeito a improcedência deste sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
O que o Tribunal Constitucional tem sancionado no domínio penal, é a interpretação no sentido do efeito cominatório preclusivo do recurso com base na falta de concisão das conclusões, ou da indicação nas conclusões das menções contidas no então artº 690º nº 2 a), b) e c) CPC, sem que tenha havido prévio convite ao recorrente para suprir tais deficiências, considerando aquele Alto Tribunal que tal imediato efeito preclusivo constitui uma interpretação normativa eivada de acentuado formalismo que, em consequência, vem postergar a garantia constitucional do acesso ao direito e aos tribunais consagrada no artº 20º nº 1 CRP, nela incluída o direito ao recurso – vd. pontos 10.3 e 10.4 do citado aresto.
Não assim nos casos em que a rejeição do recurso se fundou na insubsistência legal do requerido segundo convite à consisão de conclusões nem no facto de o conteúdo das conclusões visar não a sentença recorrida mas o acto administrativo inicialmente impugnado – vd. pontos 11.1 e 11.3 do citado aresto.
Sobre este segundo fundamento, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 374/2000, de 13 de Julho, in DR, 2ª série, nº 285, de 12.12.2000, proferido em processo de natureza administrativa.
Mais.
No que importa ao disposto no artº 639º CPC, ou seja, no domínio não penal, o Tribunal Constitucional tem entendido que, com sublinhados nossos, “(..) do artº 20º nº 1 da Constituição não decorre um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento (..).
(..) Uma outra situação parece justificar ainda que não seja proferido despacho de aperfeiçoamento, a ela se aludindo no Acórdão nº 374/2000, de 13 de Julho: aquela em que, da análise da peça processual oferecida pelo recorrente, decorre que não se está perante o deficiente cumprimento de um ónus (no caso, perante uma eficiente identificação do objecto do recurso), mas perante um pedido que não pode deixar de improceder. O despacho de aperfeiçoamento, na linha de pensamento deste acórdão, não serviria para o tribunal se substituir à vontade do recorrente, convidando-o a submeter à sua apreciação um objecto diverso.
(..) nem da jurisprudência deste Tribunal relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional) nem da relativa aos recursos de natureza não penal pode retirar-se que o despacho de aperfeiçoamento seja uma exigência constitucional, naqueles casos em que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação ou todos os fundamentos possíveis de motivação. Tal equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso. (..)
(..) Sendo a decisão da matéria de facto cindível, na medida em que existem tantos julgamentos quantos os pontos de facto submetidos à consideração do tribunal a quo, é evidente que, se o recorrente/assistente não cumprir na especificação a que aludem os nºs. 3 e 4 do artigo 412º do CPP, o tribunal ad quem desconhecerá a vontade do recorrente e pronunciar-se-á sobre um objecto da sua própria escolha, o que frontalmente contraria a própria ideia de recurso (..)”, correspondendo, em sede adjectiva cível, ao disposto no artº 690º - A nº 1 alíneas a) e b) CPC.
O Tribunal Constitucional, é, assim, muito claro: justifica-se um juízo de inconstitucionalidade sobre a interpretação de omissão de convite e rejeição imediata do recurso apenas quando, “(..) se está perante deficiências relativas apenas à formulação das conclusões e não já perante faltas imputadas ao próprio conteúdo daquelas.
Neste último caso não se vê que a Constituição possa impor qualquer dever de convidar o interessado a corrigir ou completar a peça processual em causa, ou as suas conclusões.(..)” – vide Aresto citado.

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No domínio do CPC vigente em via das alterações introduzidas pela Lei 41/2013, 26.06, a doutrina salienta em comentário ao regime do artº 590º nº 2 b) e nº 3, que o dever de aperfeiçoamento se dirige a “(..) petição inicial que não obedeça aos requisitos formais específicos das alíneas a), b), c) e f) do artº 552º nº 1 e bem assim aos requisitos formais gerais dos actos escritos das partes (..) [sendo que ] o juiz do processo deve no despacho pré-saneador convidar o autor a corrigir a irregularidade que se verifique (nº 2, b) (..)
O despacho de aperfeiçoamento proferido perante articulado irregular é um despacho vinculado (..) [cuja] omissão constitui nulidade processual (..)” (7)
Portanto, o convite ao aperfeiçoamento tem, exclusivamente, por objecto os requisitos formais das peças que as partes, através dos mandatários, juntam aos autos.
Não tem por objecto a articulação substancial de factos em consonância com o direito objectivo aplicável e as regras de ónus de prova, isto é, sendo o articulado omisso de alegações de matéria de facto, sibi imputet.

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Pelo exposto, improcede a questão trazida a recurso nos itens 12 e 13 das conclusões


***

Tudo visto, acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença proferida.

Custas a cargo do Recorrente.

Lisboa, 13.AGO.2019


(Cristina dos Santos) …………………………………………….

(Paulo Gouveia) ..……………………………………………….

(Tânia Cunha) .…………………………………………………


















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(1)Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, Almedina/2013, pág. 85.
(2)Abrantes Geraldes, in Recursos no novo Código de Processo Civil, págs. 115, 84/85.
(3)Abrantes Geraldes, Recursos do novo Código de Processo Civil, págs. 71/72.
(4)Lebre de Freitas, CPC – Anotado, Vol. 3º Tomo I, 2ª ed. Coimbra Editora/2008, págs.61/62, 45/65/124.
(5)Alberto dos Reis, Código de Processo Civil – anotado, Vol. III, Coimbra Editora/1981, pág. 215 e 222.
(6)Artº 4ºCPC – “O tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.”
(7)Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil – anotado, Vol. 2º, Almedina/2018, págs. 630-632.