Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:94/20.2BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:12/10/2020
Relator:JORGE PELICANO
Descritores:PROCESSO DISCIPLINAR
DIREITOS DE AUDIÊNCIA E DEFESA
Sumário:I. A decisão sobre a prática da infracção disciplinar não pode ser tomada sem antes se ter facultado à arguida o exercício dos direitos de audiência e defesa, conforme imposto pelo n.º 10 do artigo 32.º da CRP.
II. Tais direitos também devem ser assegurados no âmbito dos procedimentos disciplinares que seguem sob a forma de processo sumário previsto no RD da LPFP.
III. Não tendo sido facultado à arguida o exercício dos referidos direitos de audiência e defesa, a sanção disciplinar aplicada é nula nos termos do disposto no art.º 161.º, n.º 2, al. d) do CPA.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A Federação Portuguesa de Futebol, vem interpor recurso da decisão arbitral proferida pelo Tribunal Arbitral do Desporto no âmbito do processo n.º 21/2020, que anulou as decisões disciplinares proferidas, em formação restrita, em 3 de Março de 2020, mantidas pela deliberação do Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol em sede de recurso hierárquico impróprio interposto pela F... – Futebol, SAD, que sancionaram a ora Recorrida em multas no valor total de € 24.609,00 (vinte quatro mil seiscentos e nove euros), por violação do disposto nos artigos 127.°, n.° 1, 182.°, n.° 2 e 187.°, n.° 1, a) e b) do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal, por factos ocorridos no jogo n.° 12002 da Liga NOS, entre a ora Recorrida e a S... - Futebol SAD, realizado no dia 8 de Fevereiro de 2020, no Estádio do D..., e por violação do disposto nos artigos 182.°, n.° 2 e 187.°, n.° 1, a) e b) do RD, no jogo n.° 12108 da Liga NOS, entre a V... - Futebol SAD e a Recorrida, realizado no dia 16 de Fevereiro de 2020, no Estádio D....

A Recorrente, no recurso que dirigiu a este TACS, apresentou as seguintes conclusões com as suas alegações de recurso:
1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do DesP..., notificado em 25 de setembro de 2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora Recorrida, que correu termos sob o n.9 21/2020.
2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitrai em declarar nula a deliberação do Conselho de Disciplina que, sob a forma de Acórdão, condenou em multa a ora Recorrida pela prática de infração p.p. pelos artigos 127.9, n.9 1,182.9, n.9 2 e 187.9, n.9s 1, ais. a) e b) do RD da LPFP, porquanto decidiu que o artigo 214.5 do Regulamento Disciplinar da LPFP é materialmente inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.nº 10 da CRP.

3. Em tudo o mais, andou bem o Tribunal a quo ao considerar improcedentes as alegadas alteração substancial de factos e insuficiência fáctica e probatória para efeito de responsabilização disciplinar da Recorrida, o que, naturalmente, não constará do objeto do presente recurso.
4. A decisão arbitral de que ora se recorre, na parte decisória a que acima aludimos, é passível de censura porquanto existe um erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado, conforme se passa a demonstrar
Vejamos
5. O Colégio Arbitral entendeu que o artigo 214.º do RD da LPFP é materialmente inconstitucional e, em consequência, não podendo ter aplicação, o ato punitivo sub judice, praticado no procedimento administrativo de primeiro grau é nulo, o mesmo valendo para a deliberação que o manteve, ou seja, para o ato colegial praticado no procedimento administrativo de segundo grau.
6. Porém, como veremos, o TAD andou mal ao declarar a nulidade da deliberação impugnada, ignorando por completo todo o complexo normativo aplicável ao caso, designadamente o específico do ramo do Desporto, pelo que se impõe a confirmação da legalidade da decisão impugnada.
7. Atualmente, e no seguimento de um percurso histórico-legislativo, o quadro normativo que temos, constante do artigo 53.9 do RJFD, é o seguinte: apenas é exigível processo disciplinar para as infrações mais graves; estabelecimento da necessidade de audiência do arguido apenas nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; garantia de recurso quer tenha ou não existido processo disciplinar.
8. Tal pressupõe, o contrario, que: nas infrações menos graves não há necessidade de existir processo disciplinar, podendo as mesmas ser sancionadas sem atender a essa formalidade; não existindo processo disciplinar, não existe necessidade de audiência do arguido; tal é perfeitamente admissível e pretendido pelo legislador, tanto que existe garantia de recurso das sanções aplicadas quer tenha ou não existido processo disciplinar.

9. Vejamos, agora, como foi efetuada a transposição dos princípios constantes do mencionado artigo 53.º do RJFD para o RD da LPFP.

10. Desde logo, a celeridade do procedimento é uma preocupação facilmente constatável ao longo do RD da LPFP, bastando olhar para os prazos reduzidos que são estabelecidos em todas as fases.

11. Para o que ora nos interessa, tem lugar a aplicação do processo sumário quando estiver em causa o exercício da ação disciplinar relativamente a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.9 do RD da LPFP).
12. Nos termos do artigo 258.º, n.9 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito.
13. O Processo Sumário é configurado, também neste Regulamento Disciplinar, como um procedimento especial, propositadamente célere - Atente-se, ao disposto no artigo 259.9 do RD da LPFP.
14. Nesse sentido, para garantir a necessária celeridade deste tipo de processos, determina o artigo 249.º do RD da LPFF que "Salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar.".
15. Ora, no âmbito do processo sumário (artigo 259.º, número 1 do RD da LPFP) não se encontra consagrado o direito de audiência prévia ao arguido. E tal ocorre por existir flagrante delito, que para estes efeitos se traduz na perceção direta e clara de que aquele agente cometeu uma infração (artigo 258.º, número 2), ou baseado no relatório dos árbitros, da polícia ou do delegado, cujos factos deles constantes foram diretamente visionados pelos respetivos signatários.
16. De facto, a celeridade que se exige na tramitação de determinadas infrações disciplinares, que sublinhe-se correspondem a infrações leves ou cuja sanção não ultrapassa determinados limites, não se compadece com um procedimento disciplinar que consagre as garantias de defesa do arguido em toda a sua amplitude (como se, na verdade, de um procedimento criminal se tratasse).
17. É pois exigível, no especifico mundo das competições desportivas, um tipo de obtenção de decisão sancionatória que seja célere, de forma a acompanhar a dinâmica das competições e provas, que muitas vezes levam a que o jogo ou jogos seguintes, se venham a disputar no espaço de 48 ou 72 horas. Na verdade, não raras vezes, existem jornadas ao fim de semana e ao meio da semana.
18. Tal implica que o Conselho de Disciplina - composto por pessoas e não por máquinas - analise vários relatórios elaborados após cada jogo - de arbitragem, dos delegados, de policiamento disciplinar - que nem sequer ficam disponíveis logo após o jogo respetivo, verifique e enquadre juridicamente as eventuais incidências disciplinares, elabore o ato final e o publicite, em tempo útil, ou seja, antes da próxima jornada.
19. Como se depreende do acima exposto, aquilo que se pretende (e exige) é que a aplicação de sanções seja efetiva, isto é, que se projete da forma mais breve possível na competição ou prova que se desenrola, sob pena de se perderem os seus efeitos úteis.
20. Dessa forma - e só dessa forma - a defesa dos valores desportivos e as finalidades da sanção - prevenção especial e geral - se vêm alcançadas.
21. A preterição do direito de audiência prévia do arguido encontra fundamento nas especificidades do direito do desporto e, mais concretamente, na imposição de um normal desenrolar das competições desportivas, de forma a garantir a preservação da verdade desportiva e o equilíbrio da competição, através da aplicação de sanções em tempo célere e com efeito útil, para que as mesmas sejam cumpridas imediatamente ou nos jogos que se seguem.
22. As federações desportivas, embora sejam entidades de direito privado, participam na organização e gestão do serviço público desportivo, através da concessão do estatuto de utilidade pública desportiva.
23. A finalidade da atribuição desse estatuto às federações desportivas e, em particular, à ora Recorrente, é a de proporcionar meios e formas de atuação que revistam de interesse e utilidade para a comunidade em geral no âmbito do desporto.
24. Para isso são-lhe atribuídas um conjunto de prerrogativas de autoridade para o cabal exercício das suas legais competências, isto é, é investida dos poderes públicos, designadamente, de regulamentação e disciplina.
25. Através da concessão de poderes públicos, o Estado realiza as atribuições que lhe estão cometidas na Lei Fundamental: as federações exercem poderes de autoridade sobre as entidades integradas na sua organização e submetidas à sua ação reguladora.
26. O exercício do poder disciplinar, enquanto exercício de um poder público, no cumprimento de uma missão de serviço público, manifesta-se no sancionamento de uma multiplicidade de regras desportivas, de entre as quais, a violação das regras do jogo e as relativas à ética desportiva e ao combate à violência no desporto. (cfr. artigo 52.2 rjfd).
27. O exercício do poder disciplinar é, pois, não temos qualquer dúvida, um meio instrumental necessário da organização e gestão do desporto e uma forma de garantir o direito ao desporto constitucionalmente garantido.
28. Caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva, dever no qual foi, como infra melhor se explanará, constitucionalmente incumbida, levando inclusivamente a que as federações se vissem impossibilitadas de preencher o requisito da subalínea i, da alínea a) do artigo 2.º, com a epígrafe "Conceito de federação desportiva" do Regime Jurídico das Federações Desportivas.
29. Não podemos deixar de sublinhar que os factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa gozam de uma presunção de veracidade e é com base nesta presunção, ilidível em sede de recurso, que o Conselho de Disciplina irá aplicar as necessárias sanções, em prol do bom funcionamento e desenrolar das competições organizadas pela Recorrente e de uma boa administração da justiça.
30. Ademais, em bom rigor, o RD da LPFP consagra uma garantia mais ampla dos direitos do arguido do que aquela que é exigida pelo RJFD pois aquele Regulamento consagra uma real possibilidade de defesa, num segundo momento, através da previsão de recurso interno da decisão sumária, quer estejamos perante a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, ou não. Assim, o arguido tem oportunidade de apresentar a sua versão dos factos, ou seja, de efetivar o seu direito a uma defesa e a uma audiência em momento imediatamente posterior (leia-se, em sede de recurso para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos).
31. Atendendo, ainda, ao disposto no artigo 260.º, n.º 1 do RD da LPFP, a aplicação em sede de processo sumário só terá lugar quando o grau de certeza quanto à prática da infração disciplinar for quase absoluto. Existindo dúvidas quanto à prática da infração ou do infrator, dever-se-á proceder à instauração de processo disciplinar e cumprir-se com os trâmites, mais morosos, previsto para este procedimento comum.
32. Ora, atendendo ao exposto, parece-nos óbvio que toda a especificidade inerente à atividade desportiva federada não se compadece com os morosos tempos de espera que o exercício do contraditório poderia ditar.
33. Dúvidas disto não teve, nem o legislador ordinário, nem a própria Recorrida, aquando da aprovação do RD da LPFP.
Prosseguindo,
34. A existência de processos sumários, sem audição do arguido, foi expressamente aprovada pela Recorrida, em sede de Assembleia Geral da LPFP pelo que, por essa via, operou uma verdadeira autorrestrição de direitos.
35. Ora, não obstante o acima exposto, é manifesto que neste complexo jogo normativo há que ter em conta o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da CRP.
36. A garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá que se harmonizar com o direito ao desporto que, tal como aquele, é um direito constitucionalmente consagrado.
37. É que, consabidamente, mesmo no âmbito dos direitos fundamentais plasmados na Constituição da República Portuguesa, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, não existem direitos absolutos.
38. Com efeito, mesmo quando estamos perante direitos fundamentais, estes não vivem isolados, cada um na sua ilha, sem qualquer intercomunicação, independentemente da sua qualificação como de direitos, liberdades e garantias ou direitos económicos, sociais e culturais.
39. Torna-se, nesta senda, imprescindível, em sede de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, realizar uma tarefa de ponderação com outros direitos ou interesses fundamentais consignados na Constituição, pois que, apenas essa leitura conjugada pode oferecer reposta cabal à questão concreta que se coloque, seja ela qual for e de que natureza for.
40. Desde logo, determina o artigo 79.º da CRP que "1. Todos têm direito ò cultura fisica e ao desporto 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto".
41. Esta afirmação genérica de que todos têm direito ao desporto tem sido - e deve ser - lida com amplitude máxima, cobrindo todo o setor desportivo, incluindo o desporto profissional e o direito das pessoas coletivas, nos termos do disposto no artigo 12.9, n.9 2 da CRP, em dele serem também titulares não só na perspetiva da participação em competições e provas desportivas, mas ainda na da organização dessas mesmas competições desportivas.
42. Aqui chegados, temos, por um lado, o direito à audiência do arguido e, por outro, um conjunto de direitos fundamentais e valores recolhidos pela CRP, todos ligados ao desporto e às competições desportivas, que não podem ser afetados no seu núcleo essencial.
43. A delimitação do «conteúdo essencial» dos direitos fundamentais só se coloca, porque estes podem ser objeto de restrições. Na verdade, como acima se mencionou, não existem direitos fundamentais absolutos. Sucede que, as restrições dos direitos fundamentais têm sempre um limite, já que não poderá ser ofendido aquele mínimo para além do qual o direito fundamental deixa de o ser, fica esvaziado enquanto tal.
44. Sendo verdade que o Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, não temos qualquer dúvida que no núcleo essencial deste direito estão incluídos o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.
45. Ora, caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários que, sublinhe-se novamente, pretende sancionar infrações menos graves ou puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos, a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva do Futebol nas suas diferentes variantes.
46. Ainda, não temos qualquer dúvida que a restrição do direito a uma audiência prévia, consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da CRP, operado por via do RJFD e pela existência do processo sumário tal como consagrado no RD da LPFP - com preterição dessa audiência tal como previsto no artigo 214.º do mesmo Regulamento - é proporcional, isto é, afigura-se necessária, adequada e proporcional em sentido estrito.
47. Com efeito, apenas a não consagração desta audiência prévia permite o normal desenrolar das competições, o que compreende a sua vertente sancionatória, enquanto elemento de equilíbrio competitivo, pelo que é absolutamente necessária; é adequada porquanto é a única que permite cumprir com os exigentes prazos impostos para decisão face à continuidade das competições; e é estritamente proporcional ou seja, equilibrada, na medida em que se permite que também de forma célere, o arguido possa ainda decorrer dentro do mesmo órgão disciplinar, procurando rapidamente inverter, se for o caso, a sanção que lhe foi aplicada.
48. Por último, estamos perante, assim o vemos, de mais uma precipitação prática da compaginação entre o estado e as organizações desportivas quanto à resolução de litígios desportivos, neste caso de vertente disciplinar.
49. Uma das características do direito do desporto é a integração das federações desportivas nacionais em organizações desportivas internacionais (no caso, a UEFA e a FIFA) as quais são dotadas de fortes poderes normativos e sancionatórios sobre as federações nacionais, num designado fenómeno de "administração transnacional não estadual" do desporto.
50. Este domínio normativo - normas do ordenamento jurídico desportivo e normas do direito estatal - tem vindo nas duas últimas décadas, cada vez mais, a pautar-se por relações de integração, procurando-se e obtendo-se as soluções possíveis à luz dos dois ordenamentos normativos (o privado desportivo e o estatal).
51. Ou seja, reafirme-se, os dois sistemas normativos, o estatal e o das organizações desportivas, através inclusive de Lei da Assembleia da República, construíram um modelo equilibrado, não colocando em crise o essencial dos direitos fundamentais e, do mesmo passo, dando resposta adequada às especificidades do desporto de competição.
52. Em suma, a concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP.
53. Não obstante, esta audiência e defesa será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos.
54. O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita do Tribunal, pura e simplesmente colapsariam.
55. Face ao exposto, fica demonstrado que o Acórdão recorrido merece a censura que lhe é apontada e deve ser revogado, sendo mantida a decisão proferida pelo CD.”

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A F... – Futebol, SAD, ora Recorrida, apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões:
A. Funda-se o presente recurso numa total desconsideração dos princípios estruturantes do processo disciplinar portadores de estatuto constitucional, que não poderão deixar de abranger o exercício do poder sancionatório previsto no Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional — motivo pelo qual sempre deverá improceder.

B. Outra não podendo ser a conclusão alcançada, senão a de que, como acertadamente decidiu o Tribunal a quo, o acto punitivo proferido em 03-03-2020, e mantido pela Deliberação emitida em 12-05-2020 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - através da qual foi aplicada à Recorrida uma pena de multa — é nulo por violação dos direito de audiência e defesa da aqui Recorrida, e bem assim por violação do princípio da presunção da inocência.

-II-
C. No âmbito de processo disciplinar sumário, o Conselho de Disciplina da FPF decidiu aplicar à arguida, aqui Recorrida, uma pena de multa no montante total de € 24.609,00, em virtude da condenação pela prática das infracções p. e p. pelos arts. 187.71, a) e b), 127.71 e 182.72 doRDLPFP.
D. Diga-se, porém, que em momento algum, prévio à notificação desta decisão punitiva, teve a Recorrida oportunidade de conhecer as imputações disciplinares que lhe eram dirigidas, nem, tão-pouco, possibilidade de sobre as mesmas apresentar a sua versão ou posição.
E. Constituindo o processo sumário um procedimento disciplinar de natureza sancionatória e pública, não pode descurar-se a imperatividade de aplicação de determinadas garantias constitucionais - até por razões de similitude de essência com o próprio processo penal - das quais avultam os direitos de audiência e de defesa consagrados em benefício do arguido (art. 32.º 10 da CRP).
F. No caso dos processos sancionatórios disciplinares, o legislador constitucional reforçou, aliás, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa ao estabelecer expressamente tais garantias no caso dos processos disciplinares públicos (art. 269.º 3 CRP).
G. Bem andou por isso o Tribunal a quo ao decidir que "o ato praticado, em formação restrita, pelo Conselho de Disciplina da Demandada encontra-se irremediavelmente inquinado, de um prisma jurídico (...). E assim - diga-se, de modo totalmente claro - dado que tal ato foi praticado no âmbito de um procedimento, no qual a Demandante não pôde exercer o seu direito - desde logo, de fonte constitucional - à audiência prévia’.
H. Note-se que, a jurisprudência emanada pelo Tribunal Constitucional é. aliás, absolutamente clara na afirmação da fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, tendo-se por "inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas" (cf. Acórdãos do TC n.° 659/2006, n.° 180/2014, n.° 457/2015 e n.° 338/2018).
I. Em igual sentido, tem-se pronunciado também este Tribunal ad quemvide, a título de exemplo, a argumentação expendida nos acórdãos proferidos no âmbito dos processos n.°s 49/19.0BCLSB, 4/19.0BCLSB, 35/19.0BCLSB, 146/19.0BCLSB, 147/19.0BCLSB e 14/20.4BCLSB.
J. Assomando-se, pois, indubitável que a interpretação do disposto nos artigos 214.° e 259.º 1 do RD no sentido de que a decisão condenatória, proferida em sede de processo sumário, pode ser tomada sem que ao arguido seja previamente dada a conhecer a imputação disciplinar que lhe é dirigida e concedida oportunidade para sobre ela se pronunciar é inconstitucional, por violação dos direitos de audiência e defesa previstos no art. 32.°/10 da CRP.
K. Por via de tal também a norma plasmada no art. 13.°, do RD, quando aplicada ao procedimento disciplinar sumário nos sobreditos termos, é materialmente inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência, uma vez que os factos constantes dos relatórios de arbitragem e do delegado da Liga, na medida em que não podem ser contraditados antes da produção do acto punitivo, derivam, em rigor, de uma presunção inilidível, estando, na realidade, definitivamente fixados com a respetiva inserção nos aludidos relatórios.
L. A atribuição normativa de presunção de veracidade aos factos susceptíveis de fundamentar a responsabilidade disciplinar do arguido - como a que se prevê no art. 13.°/f) do RD - representa uma restrição do direito à presunção de inocência — cf. Acórdãos do TC n.° 89/2000, n.° 62/2016 e n.° 103/2007.
M. Restrição que só não acontecerá se ao arguido for dada a possibilidade de ilidir a presunção de veracidade antes de esta ser accionada para dar como provados factos susceptíveis de determinar a sua responsabilização disciplinar.
N. Em suma, a interpretação conjugada dos art. 13./f), 214.° e 259./1 do RD no sentido de que um facto susceptível de sustentar a responsabilidade disciplinar do arguido pode ser dado como provado em virtude de beneficiar de uma presunção de veracidade, fundada na circunstância de constar das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga como factos por eles percepcionados no exercício das suas funções, sem que ao arguido seja concedida uma prévia oportunidade de ilidir tal presunção é inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência (art. 32.º/10 da CRP).
O. Pelo que nenhuma censura merece o acórdão recorrido - o qual deverá manter-se in totnm.
-III-
P. Sem prescindir, no recurso apresentado aos autos consigna ainda a Recorrente que ‘‘em tudo o mais, bem andou o Tribunal a quo ao considerar improcedentes as alegadas alteração substancial de factos e insuficiência fáctica e probatória para efeito da responsabilização disciplinar da Recorrida
Q. Ora, conhecido que é o estalão normativo de apreciação probatório preconizado quer pela Recorrente, quer pelo próprio Tribunal a quo a págs. 35 da decisão recorrida - na linha da mais recente jurisprudência deste Supremo Tribunal Administrativo -, no sentido de que a prova do primeiro elemento típico (que o comportamento socialmente incorrecto ou antidesportivo foi da autoria de sócio ou simpatizante do Clube) é bastante para que se prove também o segundo elemento típico, designadamente, se o Clube em apreço não demonstrar que tudo fez para evitar tal resultado,
R. reputa-se desde já como inconstitucional, por violação por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32. /10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20./4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP). a interpretação dos artigos 127.M, 182.°-2, 187.°-1 a) e b) e 258.°-1, do RDLPFP no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 13.°, f), do RDLFPF. que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
S. Como se reputa inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°/4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 127.°-1, 182,°-2, 187.M a) e b) e 258.°, n.° 1. do RDLPFP, no sentido de que se pode dar como provado, por presunção, que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes com base no facto de que esses sócios ou simpatizantes adoptaram um comportamento social ou desportivamente incorrecto, previamente também dado como provado por presunção, radicada no artigo 13.°, al. f), do RDLFPF.
Termos em que se requer a V. Exas. se dignem julgar improcedente o recurso interposto pela FPF, confirmando-se integralmente o decidido no douto acórdão arbitral recorrido.
*
O Digníssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que defende que deve ser negada procedência ao recurso.

Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à Conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.
*
Há, assim, que decidir, perante o alegado nas conclusões de recurso, se a decisão arbitral recorrida sofre do erro de julgamento que lhe é imputado por ter anulado as deliberações punitivas de 03/03/2020 e a deliberação de 12/05/2020, proferida em sede de recurso pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, com fundamento na inconstitucionalidade material da norma que consta do art.º 214.º do RDLPFP, por violação do direitos de audiência e defesa.
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Dos factos.
Na decisão recorrida foi fixada a seguinte matéria de facto:
A. No dia 08 de fevereiro de 2020, no Estádio do D..., no P..., realizou-se o jogo n.° 12002 {203.01.173) entre a Demandante e o S... - Futebol SAD, a contar para a “Liga NOS” (cfr. a página 27 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Árbitro, Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 38 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio).
B. No jogo referido em A), adeptos afetos à Demandante, localizados nos sectores 9 e 10 da bancada Topo Sul, local exclusivamente reservado aos adeptos da Demandante, em concreto ao GOA “S...", identificados por tarjas de incentivo, cachecóis e vestes, fizeram deflagrar quatro tochas (uma ao minuto T da l.a parte, uma ao minuto 10' da 1 .a parte e duas ao minuto 38’ da 1 .a parte), cinco petardos (um ao minuto 10’ da Ia parte, três ao minuto 38’ da 1 .a parte e uma ao minuto441 da 1 .a parte), dois flashlight (um ao minuto T da 1 .a parte e outro ao minuto 10’ da l.a parte) (cfr. a página 27 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).
C. No jogo referido em A), adeptos afetos à Demandante, localizados no sector 28 da bancada Topo Norte, local exclusivamente reservado aos adeptos da Demandante, em concreto ao GOA “C…", identificados por tarjas de incentivo, cachecóis e vestes, fizeram deflagrar quatro tochas (ao minuto 1 ’ da parte) e um petardo (ao minuto 1 ’ da 2.a parte) (cfr. as páginas 27 e 28 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).
D. No jogo referido em A), a Demandante não impediu que os seus referidos adeptos e simpatizantes, bem como os adeptos da equipa visitante entrassem e permanecessem no recinto desportivo com objetos não autorizados, designadamente os referidos materiais pirotécnicos (tochas, petardos e flashlights), que acabaram por fazer rebentar nas circunstâncias de tempo, modo e lugar indicadas em A), B), e C) supra (cfr. a página 28 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos:
Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).

E. No jogo referido em A), os adeptos do GOA “S...”, mantiveram- se de pé durante todo o jogo, obstruindo as vias de acesso e evacuação dos sectores que ocupavam (cfr. a página 28 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).

F. Em vários momentos do jogo referido em A), ouviram-se cânticos por parte de adeptos do GOA “S...” tais como "B... é merda” e “filhos da puta S...” (cfr. a página 28 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).

G. Antes do início do jogo referido em A), adeptos do GOA “S..." tentaram interpelar de forma agressiva elementos do staff do S... que se encontravam em viatura de apoio técnico, estacionada em frente ao Pl. (cfr. a página 28 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).

H. Ao minuto 18’ da 2.a parte do jogo referido em A), adeptos afetos à Demandante arremessaram uma cadeira e alguns pequenos objetos não identificados na direção do jogador n.° 99, O..., da S... SAD, quando este se preparava para repor a bola em jogo, não tendo os referidos objetos atingido qualquer agente desportivo, causado qualquer dano físico ou motivado qualquer interrupção (cfr. a página 29 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 171, 172 e 200 a 202).
I. No dia 16 de fevereiro de 2020, no Estádio D..., em G..., realizou-se o jogo n.° 12108 (203.01.188) entre a V... - Futebol SAD e a Demandante, a contar para a "Liga NOS" (cfr. a página 29 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 181, 182 e 220 a 224).

J. No jogo referido em I), adeptos afetos à Demandante, identificados por tarjas, bandeiras, cachecóis e camisolas, localizados na bancada Topo Norte Superior, fizeram deflagrar ao minuto 10' da l.a parte 2 tochas e 1 flashlighí e rebentamento de 1 petardo; ao minuto 12’ da l.a parte, um flashlight; ao minuto 13’ da l.a parte arremessaram 2 flashlighí na direção da bancada nascente (ocupada por adeptos afetos à equipa visitada); ao minuto 15’ da 2.a parte fizeram deflagrar um flashlight (cfr. a página 29 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 181, 182 e 220 a 224).

K. No jogo referido em I), ao minuto 10’ da primeira parte registou-se o arremesso de tochas entre adeptos dos dois clubes, localizados na bancada Nascente Inferior (adeptos do clube visitado) e na bancada Topo Norte Superior (adeptos do clube visitante); foram ainda arremessados os seguintes objetos da bancada Superior Norte, onde se encontravam os adeptos da Demandante, para a bancada inferior nascente, onde se encontravam os GOA’s do V…: - 17h42 - várias cadeiras; - 17h44 - 2 flashlight; - 17h46 - 1 garrafa de água; - 18h49 - várias cadeiras; - 18h52 - 1 cadeira; - 19h27 - 2 cadeiras. Às 17h56 foi também arremessada uma garrafa de água da bancada Superior Norte, local onde se encontravam adeptos e GOA's da F... (S... e C…), para a bancada poente inferior (cfr. as páginas 29 e 30 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 181, 182 e 220 a 224).

L No jogo referido em I), ao minuto 15’ da 2a parte, foram arremessadas várias cadeiras da bancada Topo Norte Superior, ocupada por adeptos da Demandante, para a zona localizada entre a linha de publicidade e a vedação que separa a referida bancada, não tendo causado qualquer constrangimento no normal desenrolar do jogo (cfr. a página 30 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 181, 182 e 220 a 224).

M. No jogo referido em I), adeptos e GOA's da Demandante (S... e C…), localizados na bancada superior Norte entoaram cânticos "G... filhos da puta" (cfr. a página 30 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: Relatório de Delegado e Relatório de Policiamento Desportivo - fls. 48 a 53 do processo atinente ao recurso hierárquico impróprio e esclarecimentos a fls. 181, 182 e 220 a 224).

N. À data dos jogos referidos em A) e I) e na época desportiva 2019/2020, a Demandante já havia sido sancionada, por decisão definitiva na ordem jurídica desportiva, pelo cometimento de diversas infrações disciplinares: (cfr. a página 30 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: cadastro disciplinar do F..., a fls. 113 a 132 do processo atinente ao recurso hierárquico impróprio).

O. Em 3 de março de 2020, no seguimento de um processo sumário no qual a Demandante não foi ouvida, o Conselho de Disciplina da Demandada, em formação restrita, aplicou à Demandante um leque de sanções disciplinares, publicitadas através do comunicado oficial n.° 180 da Contrainteressada, sancionando-a em multas no valor total de € 24.609,00 (vinte quatro mil seiscentos e nove euros), por violação do disposto nos artigos 127.°, n.° 1, 182.°, n° 2 e 187.°, n.° 1, o) e bj do RD, por factos ocorridos no jogos referidos em A) e em I), ambos a contar para a “Liga NOS” (cfr. a página 5 do ato impugnado e os demais elementos documentais aí referidos: as fls. 1 a 35 do processo administrativo atinente ao recurso hierárquico impróprio).

P. Na sequência das decisões sancionatórias referidas em O), foi interposto recurso hierárquico impróprio, tendo, nesse âmbito, sido promovida a audição da Demandante, e praticado o ato impugnado, pelo qual foram mantidas as decisões disciplinares referidas em O) (cfr. o processo atinente ao recurso hierárquico impróprio e, em particular, o ato impugnado constante do mesmo).


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Direito
A Recorrente defende, em síntese, que a decisão arbitral recorrida fez uma errada aplicação do direito por não ter atendido a “todo o complexo normativo aplicável ao caso”, designadamente ao disposto no art.º 53.º do RJFD e aos artigos 213, n.º1, al. b), 257.º, 258.º, 259.º 260.º, n.º 1, todos do RD da LPFP e ter efectuado uma errada interpretação do art.º 214.º do mesmo RD da LPFP e das normas que constam do art.º 32.º, n.º 10 e do art.º 70.º, n.º 1, ambos da CRP.
Entende que, no âmbito do processo sumário, não tem de ser facultado o exercício do direito de audição e defesa ao arguido, por se tratar de uma forma especial de processo que é instaurada nas situações em que estão em causa infracções disciplinares menos graves, ou puníveis com suspensão por período de tempo igual ou inferior a um mês, ou por quatro jogos e em que se tem em consideração a prova resultante dos relatórios da equipa de arbitragem, das forças policiais, ou dos delegados da liga, ou de auto lavrado por infracção verificada em flagrante delito.
Refere ainda que se trata de um processo célere que tem de ser decidido em cinco dias após a recepção dos relatórios pela Secção Disciplinar, a fim da aplicação da sanção disciplinar se poder repercutir no mais curto espaço de tempo na competição desportiva e, por essa forma, se poderem salvaguardar as finalidades de prevenção especial e geral da aplicação da sanção, bem assim como fazer valer a defesa dos valores desportivos ainda no decurso da competição.
Diz que o direito de audiência e defesa do arguido estão assegurados em sede de recurso para o Pleno da Secção, onde os arguidos poderão apresentar a sua versão dos factos, bem assim como os meios de defesa.
Não nos parece que se possa reconhecer razão à Recorrente.
O n.º 10 do art.º 32.º da CRP determina que ao arguido são assegurados os direitos de audição e defesa.
Tal direito impõe que, antes de se emitir a decisão disciplinar, se comuniquem ao arguido os factos de que é acusado e se lhe faculte o exercício do contraditório, de modo a poder apresentar a sua versão dos factos e os respectivos meios de prova.
No âmbito do processo sumário regulamentado no ED da LPFP, tal direito não se encontra assegurado, conforme resulta do respectivo art.º 214.º, uma vez que o arguido é confrontado com a aplicação da decisão punitiva sem ter sido ouvido previamente.
No presente caso foi observado o processo sumário, conforme resulta da al. O) do probatório.
O que significa que o conteúdo essencial do direito de audição e defesa previsto no n.º 10 do art.º 32.º da CRP, foi totalmente postergado no âmbito do procedimento administrativo de primeiro grau.
A preterição de tal direito não é consentida pelo n.º 3 do art.º 18.º da CRP e importa a nulidade da decisão punitiva, conforme determina o art.º 161.º, n.º 1, al. d) do CPA.
A CRP, no art.º 18.º, n.º2, permite que se proceda à restrição dos direitos, liberdades e garantias para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente garantidos.
A Recorrente invoca o direito ao desporto a que se refere o n.º 2 do art.º 79.º da CRP, alegando que, para salvaguarda desse direito, se impõe a adopção do processo sumário nos termos em que se encontram previstos no RD da LPFP, em que não há lugar ao exercício do direito de audição e defesa a não ser em sede de recurso para o Pleno da Secção, sob pena do exercício da acção disciplinar não acompanhar “a dinâmica das competições e provas, que muitas vezes levam a que o jogo ou jogos seguintes, se venham a disputar no espaço de 48 ou 72 horas”.
A restrição aos direitos, liberdades e garantias pode resultar directamente da Constituição, de lei por esta expressamente autorizada a operar a restrição, ou, então, nos casos de restrições não expressamente autorizadas pela Constituição, quando as restrições resultem de “limites imanentes” ao exercício do próprio direito – cfr. Gomes Canotilho, “Direirto Constitucional e Teoria da Constituição”, Almedina, 7ª ed., pág. 450 e Jorge Pereira da Silva, “Direitos Fundamentais Teoria Geral”, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 217 e segs.
No caso, a restrição ao direito de audição e defesa no âmbito do processo sumário não se encontra prevista directamente na Constituição, nem em lei por esta autorizada, nem nos parece que estejamos perante um caso em que, para salvaguarda do direito ao desporto invocado pela Recorrente, haja que reconhecer um qualquer limite ao exercício daquele direito.
A Recorrente não prova que o cumprimento do direito de audição e defesa no âmbito do processo sumário, impossibilite o normal desenrolar das competições desportivas, ou que fique impossibilitada de “promover e desenvolver a modalidade desportiva do Futebol nas suas diferentes variantes”.
É que, conforme se refere na decisão arbitral recorrida, sempre se poderá conceder um prazo curto para o exercício do direito de audição e defesa que se coadune com a urgência invocada pela Recorrente, para além de que o exercício desse direito já é facultado nos casos das infracções mais graves, em que o processo disciplinar segue a tramitação “normal”, não decorrendo daí prejuízo para o normal desenrolar das competições desportivas.
O que significa que, para efeitos do n.º 2 do art.º 18.º da CRP, a restrição operada pelo art.º 214.º do RD da LPFP, ao dispensar o exercício do direito de audiência e defesa no âmbito do processo sumário, não se pode ter por proporcional, por, desde logo, não se mostrar necessária.
Alega ainda a Recorrente que a Recorrida aprovou o regulamento disciplinar (RD da LPFP) que foi aplicado, pelo que, diz, aceitou a restrição ao exercício do referido direito de audiência e defesa.
Não cremos que lhe assista razão.
Desde logo porque a Recorrente, apesar de ser uma associação de direito privado, se apresentar a exercer poderes regulamentares e disciplinares que têm natureza pública (cfr. artigos 10.º e 11.º do RJFD e art.º 1.º dos seus estatutos), o que significa que não estamos no âmbito de uma mera relação de direito privado, em que qualquer das partes possa conformar a situação de acordo com os seus interesses particulares.
O que, no caso, se mostra bem evidenciado pela norma que consta do art.º 53.º, alíneas e) e f) do RJFD, que impõe que o regulamento disciplinar a instituir pelas federações desportivas deve prever, entre outras, as seguintes matérias:
“(…)
e) Exigência de processo disciplinar para a aplicação de sanções quando estejam em causa as infrações mais graves e, em qualquer caso, quando a sanção a aplicar determine a suspensão de atividade por um período superior a um mês;
f) Consagração das garantias de defesa do arguido, designadamente exigindo que a acusação seja suficientemente esclarecedora dos factos determinantes do exercício do poder disciplinar e estabelecendo a obrigatoriedade de audiência do arguido nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; (…)”.

Tais matérias encontram-se excluídas do poder de disposição das partes.
Conforme refere Jorge Pereira da Silva, “Direitos Fundamentais Teoria Geral”, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 401 402, os parâmetros que regem a renúncia a direitos fundamentais no âmbito das relações entre o Estado e os cidadãos são distintos dos aplicáveis às relações jurídicas privadas, uma vez que aqueles respeitam à vinculação das entidades públicas, na perspectiva dos direitos de defesa e dentro de um contexto de relações de poder que não se enquadra na óptica das relações horizontais em que se admite a negociabilidade (ainda assim não irrestrita) de posições com relevância jusfundamental. O Estado está vinculado a deveres de protecção, devendo promover a efectividade dos direitos fundamentais e não a renúncia aos mesmos por parte dos cidadãos, sob pena de incorrer em verdadeiro contrassenso.
Pelo que não se acolhe a tese de autorrestrição de direitos que a Recorrente veio defender.

A questão da inconstitucionalidade do art.º 214.º do DR da LPFP já foi tratada, entre outros, pelo acórdão n.º 4/19.0BCLSB, de 10/12/2019, deste TCAS, que decidiu pela apontada inconstitucionalidade.
Recentemente, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 594/2020, datado de 10/11/2020, também julgou inconstitucional “a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”, o que fez de acordo com a seguinte fundamentação:
“(…)

A República Portuguesa, enquanto Estado Democrático de Direito, garante a existência de um processo disciplinar justo. Sendo um instrumento para apurar e punir infrações disciplinares, o processo disciplinar apresenta relações com o Direito Processual Penal, designadamente na medida em que se encontra também necessariamente subordinado a princípios e regras que assegurem os direitos de defesa.
A Constituição assume aquela relação, no artigo 32.º, sob a epígrafe “garantias do processo penal”, ao assegurar, no n.º 10, as garantias do direito de audiência e defesa nos processos contraordenacionais e em «quaisquer processos sancionatórios». Esta norma constitucional foi introduzida pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios.
De acordo com Germano Marques da Silva e Henrique Salinas «O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09, esclarecendo-se ainda, no Ac. n.º 469/97, que esta exigência vale não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo» (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (coord.), vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 537).
Pronunciando-se sobre o sentido da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 135/2009, do Plenário, ponto 7:
«(…) [C]omo se sustentou nos Acór­dãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nes­ses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressa­mente assegurados aos argui­dos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspon­dente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qual­quer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qual­quer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defen­der-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejei­tada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garan­tias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitu­cional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assem­bleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466)».

No Acórdão n.º 338/2018, da 3.ª Secção, ponto 14, o Tribunal voltou a afirmar:
«No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)».

Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).
Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.

14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.
Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. (…)”.

Tal entendimento, com que se concorda inteiramente, é aqui plenamente aplicável, dada a identidade da situação.
Há, assim, que concluir que o acto administrativo que sancionou disciplinarmente a Recorrida sofre de vício de violação de lei por violação dos direitos de audiência e defesa (n.º 10 do artigo 32.º da CRP), o que importa a nulidade do mesmo nos termos do art.º 161.º, n.º 2, al. d) do CPA, pelo que há que manter a decisão arbitral recorrida por não sofrer do erro de julgamento que lhe é imputado.
Decisão
Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da secção de contencioso administrativo do TCA Sul em negar provimento ao recurso e manter na ordem jurídica a decisão arbitral recorrida.
Custas pela Recorrente, por ter ficado vencida – art.º 533.º do CPC.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2020

O relator consigna, nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 03.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, que têm voto de conformidade com o presente acórdão os restantes Juízes Desembargadores que integram a formação de julgamento.

Jorge Pelicano

Celestina Castanheira

Ricardo Ferreira Leite.