Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03285/09
Secção:CT - 2º Juízo
Data do Acordão:01/19/2010
Relator:ROGÉRIO MARTINS
Descritores:ACTO TRIBUTÁRIO
VALOR DO PRÉDIO
GARANTIA INIDÓNEA
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
CONVOLAÇÃO DO PROCESSO
Sumário:I – Trata-se de um acto tributário, judicialmente atacável, o despacho pelo qual se considera inidónea como garantia a hipoteca voluntária de um prédio com o fundamento de que o respectivo valor matricial não cobre o valor da dívida ao Fisco.

II – Neste caso, o meio processualmente adequado para questionar a validade do acto é a acção administrativa especial e não a impugnação judicial dado não estar em causa um acto de fixação de um valor patrimonial mas antes um acto que elegeu o valor matricial como critério para aquilatar a idoneidade de uma garantia prestada.

III – É de convolar, por se mostrar tempestiva, a petição inicial de impugnação em petição de acção administrativa especial, por força do disposto nos art.ºs 98º, n.º 4, do Código de Procedimento e Processo Tributário, 97º, n.3, da Lei Geral Tributária, e 199º, n.º1, do Código de Processo Civil.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

A...veio interpor contra a Fazenda Pública o presente RECURSO JURISDICIONAL do despacho do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 19.03.2009, a fls. 22-25, pelo qual foi liminarmente indeferida a petição inicial de impugnação judicial da decisão contida no ofício de 26.01.2009 da Direcção de Finanças de Faro.

Invocou para tanto que a sentença recorrida incorreu em errada interpretação e aplicação do disposto nos art.ºs 50º e 52º da Lei Geral Tributária.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O Ministério Público neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Na discussão do projecto de acórdão, em sessão de julgamento neste Tribunal Central Administrativo Sul, foi suscitada questão nova que, por essa natureza, foi submetida ao contraditório, nada tendo sido dito nesta parte.

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Cumpre decidir já que nada a tal obsta.
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São as seguintes as conclusões das alegações que definem o objecto do recurso jurisdicional:



1. Por Despacho de 28 de Outubro de 2008, foi deferido, pela Direcção de Finanças de Faro, o pagamento em prestações do IRS do ano de 2007, da ora Apelante;

2. Por escritura pública de hipoteca voluntária, outorgada em 22 de Janeiro de 2009, a ora Apelante constituiu hipoteca a favor da Fazenda Pública, através da Direcção Geral dos Impostos, sobre o prédio ali melhor identificado, para garantia do pagamento da dívida fiscal;

3. A Apelante prestou garantia real idónea, por forma a obter a suspensão do processo executivo;

4. Tal garantia foi, e encontra-se, devidamente registada a favor da Direcção Geral dos Impostos;

5. Posteriormente, foi a ora Apelante notificada da decisão proferida pela Direcção Geral dos Impostos, que determinou que o valor patrimonial do prédio a dar de garantia deveria ter o valor patrimonial igual ou superior a 90.725,29 euros;

6. Inconformada com tal decisão, a ora Apelante impugnou judicialmente tal decisão;

7. Não assiste razão ao Tribunal "a quo";

8. A ora Apelante invocou a errónea qualificação e quantificação do facto tributário em apreço;

9. Só depois da outorga da escritura pública de constituição de hipoteca a favor da Fazenda Nacional e do competente registo, veio a Direcção de Finanças de Faro entender que o valor patrimonial do bem dado de garantia deveria ter o valor patrimonial igual ou superior a 90.725,25 euros;

10. Até então, nunca a referida Direcção tinha exigido tal requisito ou condição;

11. Tal exigência, ao contrário do entendimento do Tribunal "a quo", não consubstancia um convite da Direcção de Finanças, mas sim um Despacho com força vinculativa;

12. A Apelante já havia procedido à outorga da escritura de pública hipoteca, bem como ao competente registo, não se mostrando justo ou sequer plausível onerar o contribuinte com uma duplicação de despesas para o mesmo fim;

13. Nos termos e ao abrigo do preceituado no Artigo 50° da LGT, o património do devedor constitui a garantia geral dos créditos tributários;

14. Só após o deferimento da pretensão da ora Apelante foi constituída hipoteca voluntária a favor da Fazenda Nacional;

15.Revela-se, não só, extemporâneo o Despacho em apreço da Direcção de Finanças de Faro, como, ainda inexigível, atentos os normativos invocados;

16. Os bens imóveis que determinaram o cálculo do imposto de mais-valias, a liquidar em sede de IRS da Apelante, têm um valor patrimonial de cerca de 6.000,00 euros;

17. Contudo, os mesmos foram objecto de venda, em 2006, pelo preço de 1.300.000,00 euros.

18. O valor patrimonial dos bens imóveis não pode, nem deve, servir de índice ou de apreciação da idoneidade do bem a dar de garantia;

19.0 Tribunal "a quo"violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos Artigos 50° e 52° da LGT.

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I - Factos com relevo:

. Por despacho de 06.10.2008 do Director de Finanças de Faro, foi deferido o pedido deduzido pela impugnante, de pagamento em prestações mensais do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) no montante de € 72.580,23, relativo ao ano de 2007, ao abrigo do disposto no art.º 29º do Decreto-Lei n.º 492/88, de 30.12, nos seguintes termos (documento de fls. 10 que aqui se dá por reproduzido):

“ (…)

Verifica-se que o pedido é legal, feito em tempo e com legitimidade, pelo que face aos documentos apresentados, e, ao abrigo da delegação de competências por despacho de 15 de Maio de 2008, de Sua Excelência, o Subdirector-Geral de Cobrança, autorizo o pagamento do imposto no montante de € 72.580,23, de IRS de 2007, em 36 prestações mensais sucessivas, de harmonia com o "print" do plano prestacional em anexo, extraído do Sistema Informático, que faz parte integrante deste despacho conforme doutrina do art.° 36.° do citado Decreto-Lei.

Para tanto, deve o requerente apresentar, no prazo de DEZ DIAS, a contar da notificação que autoriza este pagamento em prestações, a referida garantia, a qual deverá ser prestada pelo valor da dívida e juros de mora, a contar até á data do pedido, acrescido de 25% da soma daqueles valores, e, deverá ser constituída para cobrir todo o período de tempo que foi concedido para efectuar o pagamento, acrescido de três meses, como dispõe o n.° 3 do art.º 32º do mencionado Decreto-Lei.

Caso não seja prestada esta garantia dentro do prazo de DEZ DIAS acima referido, fica sem efeito esta autorização para o pagamento da dívida em prestações, aplicando-se-lhe o disposto nos n.°s 2 e 3 do art.° 34º, como preceitua o n.° 4 do art.° 32º do Decreto-Lei atrás mencionado.

(…) ”

. Este despacho foi notificado à impugnante pelo ofício n.º 25924, de 28.10.2008, do qual se extrai o seguinte (documento de fls. 9 que aqui se dá por reproduzido):

“ (…)

A fim de dar cumprimento ao seu conteúdo, fica V. Exa por este meio notificado(a) do despacho que recaiu sobre o pedido de pagamento em prestações do IRS/IRC do ano de 2007, cuja fotocópia se anexa.

A garantia nele referida, calculada nos termos do n.° 2 do art.° 32.° do Decreto-Lei n.° 492/88, de 30 de Dezembro, deverá ser prestada no valor de € 90.725,29 e constituída para cobrir o período de tempo compreendido entre 01 de Novembro de 2008 e 31 de Janeiro de 2012, conforme dispõe o n.° 3 do mencionado artigo.

Juntam-se cópias do despacho e do "print” do plano prestacional.

Cálculo do valor da garantia:

Imposto em dívida …………………………………… € 72.580,23

Juros de mora até à data do pedido …………….. € 0,00

25% sobre a soma dos referidos valores………… € 18.145,06

TOTAL ………………………………………………….. € 90.725,29

(…) “

. A impugnante ofereceu como garantia idónea a constituição por escritura pública de uma hipoteca a favor da Fazenda Nacional sobre um prédio cujo valor patrimonial inscrito na matriz é inferior ao valor total de 90.725,29 euros (art.ºs 2º 4º e 10º da petição inicial, e documento de fls. 18).

. Através do ofício n.° 571, de 26.01.2009, da Direcção de Finanças de Faro/Divisão de Tributação e Cobrança, recebido em 28.01.2009, foi a requerente notificada do despacho ora impugnado, nos seguintes termos (documentos de fls. 18 a 20 que aqui se dão por integralmente reproduzidos):

“ (…)

Tendo-se verificado que a garantia idónea (Hipoteca) apresentada em nome do sujeito passivo A..., NIE 166.458.783, divergente quanto ao Valor mencionado no ofício n.° 8788, de 28 de Outubro de 2008, desta Divisão de Tributação e Cobrança, do qual se junta cópia, pelo que deverá ser corrigida de conformidade com o valor constante no mencionado ofício, ou seja, o valor de garantia será o valor do imposto em dívida e juros de mora até à data do pedido, acrescido de 25% daqueles valores, e o período de tempo concedido para efectuar o pagamento será acrescido de três meses, conforme dispõem os n.°s 2 e 3 do art.° 32.° do Dec.-Lei 492/88, de 30 de Dezembro.

Assim, no caso em apreço, deverá ser corrigida aquela hipoteca a favor do Instituto de Gestão, Tesouraria e Crédito Público, IP (IGCP), recaindo a mesma sob prédio ou prédios inscritos na matriz predial com a titularidade pertencente ao sujeito passivo e valor patrimonial igual ou superior a € 90.725,29, devendo cobrir o período compreendido entre 01 de Fevereiro de 2009 a 30 de Abril de 2012.

(…)»

. A petição inicial da presente impugnação foi apresentada na Direcção de Finanças de Faro em 23.02.2009, conforme carimbo aposto no documento a fls. 4 dos presentes autos.

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II – O enquadramento jurídico:

Desde logo importa afirmar que o acto impugnado não veio, inovatoriamente, determinar que o valor da garantia a prestar deveria cobrir o valor de 90.725,29 euros.

Tal determinação já resultava do despacho que autorizou o pagamento em prestações, esclarecido através do ofício que dele deu conhecimento à requerente (documentos de fls. 9 e 10).

Nessa vertente o despacho em apreço não é impugnável por não constituir um acto definidor da situação jurídica tributária da requerente mas o mero esclarecimento de acto anterior.

Mas também não se trata, como se sustentou na sentença recorrida, de um mero convite, insusceptível de impugnação judicial.

Na verdade o despacho recorrido não se limita a fazer um convite à impugnante: determina, ao invés, que a garantia prestada “deverá ser corrigida”.

E pressupõe, nessa determinação, que a hipoteca do prédio em questão não constitui garantia idónea para o pagamento da dívida de IRS.

Trata-se de um acto unilateral e impositivo da Administração Tributária que qualifica como inidónea a garantia prestada no pressuposto de que o valor do prédio para o efeito de aquilatar a segurança da garantia prestada é o do seu valor matricial e não o seu valor venal.

Na perspectiva da requerente está em causa a errada avaliação do valor da hipoteca oferecida como garantia do pagamento da dívida fiscal, consistente na eleição do valor matricial de um prédio como valor a ter em conta para decidir da idoneidade dessa hipoteca (cfr. art.º 10º da petição inicial).

Vistas as coisas nesta perspectiva - que reputamos adequada – a sentença recorrida não se pode manter na ordem jurídica.

A questão que se coloca agora é a de saber qual o meio idóneo à realização da pretensão da ora recorrente.

A ora Recorrente optou pela impugnação judicial, ao abrigo do disposto na aliena a), do art.º 99º, e n.º 2, do art.º134º, ambos do Código de Procedimento e Processo Tributário, conjugados com o disposto no art.º 52º, n.º2, da Lei Geral Tributária.

Isto no pressuposto de estar em causa a errada quantificação do valor da garantia prestada e, consequentemente, a errada qualificação da dessa garantia como inidónea.

Determina o artigo 99.º do Código de Procedimento e Processo Tributário:

«Constitui fundamento de impugnação qualquer ilegalidade, designadamente:
a) Errónea qualificação e quantificação dos rendimentos, lucros, valores patrimoniais e outros factos tributários;
b) Incompetência;
c) Ausência ou vício da fundamentação legalmente exigida;
d) Preterição de outras formalidades legais.»

Por seu turno dispõe o art.º 134º do mesmo diploma, sob a epígrafe, “Objecto da impugnação”:

“1 - Os actos de fixação dos valores patrimoniais podem ser impugnados, no prazo de 90 dias após a sua notificação ao contribuinte, com fundamento em qualquer ilegalidade.
2 – Constitui motivo de ilegalidade, além da preterição de formalidades legais, o erro de facto ou de direito na fixação.”

Sucede que aqui se prevê a impugnação judicial de actos praticados no procedimento administrativo que determinem, directa e imediatamente, a fixação de valores patrimoniais e incorrecções de inscrições matriciais, como decorre da expressão, utilizada neste último preceito, de “actos de fixação dos valores patrimoniais”.

Pressupõem, directa e imediatamente, a avaliação de um bem.

São, mais concretamente, os que na sisa, no imposto sobre sucessões e doações, na contribuição autárquica e no IMI servem de base à liquidação do tributo (ver a este propósito Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário, anotado e comentado, I volume, ed. 2006, p. 960, nota 2).

No caso concreto não foi fixado o valor patrimonial do prédio da recorrente; apenas foi considerado que a garantia prestada pela hipoteca voluntária do mesmo não cobria o valor da dívida fiscal, no pressuposto de que para o efeito se deve atender ao valor matricial e não ao valor venal.

Não há sequer qualquer discussão sobre qualquer destes valores do prédio. Apenas se escolheu um deles, o previamente fixado na matriz, como critério para aquilatar da idoneidade da garantia prestada.

A discussão com a Administração Tributária centra-se, assim, apenas na validade do pressuposto eleito para determinar a idoneidade da garantia, o valor da matriz, este incontroverso em si mesmo.

Ora determina o artigo 46.º, n.º1, do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, aplicável por força do disposto nos art.ºs 2º, al. a), e 97º, n.º 2, do Código de Procedimento e Processo Tributário:

“ Seguem a forma da acção administrativa especial, com a tramitação regulada no capítulo III do presente título, os processos cujo objecto sejam pretensões emergentes da prática ou omissão ilegal de actos administrativos, bem como de normas que tenham ou devessem ter sido emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo”.

E o n.º 2 do mesmo preceito:

Nos processos referidos no número anterior podem ser formulados os seguintes pedidos principais:
a) Anulação de um acto administrativo ou declaração da sua nulidade ou inexistência jurídica;

Tendo sido invocada a invalidade do pressuposto de um acto administrativo de natureza fiscal que não se prende, como vimos, com a avaliação de um bem mas que define, ao invés, a inidoneidade de uma garantia prestada, a causa de pedir e o pedido formulados adequam-se à forma de processo disciplinada nestes últimos preceitos.

Isto sendo certo que não estamos perante acto praticado em execução fiscal.

Nessa hipótese o meio processual adequado seria a reclamação para o juiz da execução fiscal, nos termos do disposto no art.º103º, n.º 2, da Lei Geral Tributária, e no art.º 277º, n.º1, do Código de Procedimento e Processo Tributário.

E não seria possível a convolação processual dada a intempestividade da reclamação: o acto foi notificado em 28.01.2008 (ver fls. 20) e a petição deu entrada em 23.02.2009 (ver fls. 4), ou seja, para além do prazo de dez dias a que alude o n.º 2 do art.º 277º do Código de Procedimento e Processo Tributário.

Mas, como se referiu, o meio processual adequado é a acção administrativa especial por não se estar perante acto praticado em execução fiscal.

Circunstância que não obsta ao prosseguimento do processo, num caso, como o dos autos, em que foi respeitado o prazo de 3 meses a que alude o art.º 58º, n.º2, al. b), do Código de Processo nos Tribunais Administrativos.

O legislador privilegia as decisões de fundo sobre as decisões de forma, impondo, designadamente, que se convole o processo e se aproveite os actos já praticados que sejam aproveitáveis, no caso de erro na forma de processo - art.º 98, n.º 4, do Código de Procedimento e Processo Tributário, 97°, n.º 3 da Lei Geral Tributária, e art.º199º, n.1, do Código de Processo Civil.

No caso concreto apenas foi praticado um acto processual pelas partes, a petição inicial, que pode ser aproveitada como petição de acção administrativa especial.

E foi proferida decisão liminar de rejeição que tanto poderia ter sido proferida, nos seus fundamentos, em processo de impugnação judicial como em acção administrativa especial, embora deva ser revogada por, como vimos, ter procedido ao um desadequado enquadramento legal do caso dos autos.

Pelo que deve ser revogada e substituída por decisão que determine os subsequentes actos processuais, em acção administrativa especial, se nada mais a tal obstar.


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Pelo exposto, os juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso jurisdicional, pelo que, revogam a sentença recorrida, determinando que o processo continue os seus termos legais como acção administrativa especial, se nada mais a tal obstar.

Não é devida tributação, por a Fazenda Pública não ter apresentado contra-alegações - art. 2.º, n.º 1, alínea g), do Código das Custas Judiciais.

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Lisboa, 19 de Janeiro de 2010

(Rogério Martins)

(Lucas Martins)

(Magda Geraldes)