Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:148/19.8BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:02/27/2020
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:ARBITRAGEM JURÍDICA EM DESPORTO;
MATÉRIA SANCIONATÓRIA;
INCONSTITUCIONALIDADES;
VALOR PROCESSUAL.
Sumário:I - Os artigos 204º nº 1, 208º e 209º do RD/FPF são inconstitucionais, por violação do princípio constitucional da imputação culposa em matéria sancionatória (cf. artigos 1º, 2º e 32º da Constituição).
II – A impugnação de ato administrativo que aplique a uma SAD uma multa (sanção de conteúdo pecuniário) tem o valor processual previsto no artigo 33º alínea b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos; é manifesto que não tem valor processual indeterminável.
III – O nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência “necessária” do “Tribunal Arbitral do Desporto” não é superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral.
IV – Os artigos 2.º n.ºs 1 e 4 da Portaria n.º 301/2015 e a primeira linha da tabela do seu Anexo I são inconstitucionais, porque violam o princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18.º n.º 2 da Constituição) e o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (cf. artigo 20.º n.º 1 e 268.º n.º 4 da Constituição).
Votação:MAIORIA com declaração de voto
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I – RELATÓRIO
F..... - FUTEBOL SAD intentou no T.A.D. processo arbitral “necessário” contra FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE FUTEBOL.
A pretensão formulada perante a instância arbitral foi a seguinte:
- Anulação da decisão administrativa colegial da Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol em 16/11/2018, que decidiu confirmar a decisão disciplinar proferida no processo disciplinar pela Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em formação restrita, no dia 16/08/2018, publicitado através do comunicado oficial nº 57 da L.P.F.P. sob o processo disciplinar nº 06/Disc.-18/19, através do qual foi a Demandante condenada em multas no valor total de 9.180,00 € (nove mil cento e oitenta euros), por factos ocorridos no jogo nº 100.00.001, entre a Demandante e a C………………… - Futebol SAD, realizado no dia 04/08/2018, a contar para a Supertaça Cândido de Oliveira, época desportiva 2018/2019.

Por DECISÃO ARBITRAL COLEGIAL, a instância arbitral privada recorrida decidiu, por maioria, julgar improcedente o “recurso”.

*
Inconformada, a impugnante F……… interpôs o presente RECURSO DE APELAÇÃO contra aquela decisão, ao abrigo da Lei do Tribunal Arbitral do Desporto, formulando na sua alegação o seguinte quadro conclusivo:
i.
O presente recurso tem por objeto o acórdão de 09.10.2018 do Tribunal Arbitral do Desporto, que confirmou a condenação da recorrente pela prática das infrações disciplinares p. e p. pelos arts. 204.°-1, 208.° e 209.° do RDFPF, alegadamente cometidas aquando do jogo realizado a 04.08.2018 (entre o F..... - FUTEBOL SAD e C..... - FUTEBOL SAD ), punindo-a em multas no valor total de €9.180,00, e fixando as custas no total de € 6.125,40.
ii.
Considerando as infrações p. e p. pelos arts. 204.°-1, 208.° e 209.° do RDFPF em causa nos autos, era necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da F................ — Futebol SAD, e ainda, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da F................ — Futebol SAD.
iii.
O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que não tem o arguido de provar que é inocente da acusação que lhe é imputada.
iv.
Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da ação disciplinar, vigora ainda o princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido — in casu a recorrente — o ónus de reunir as provas da sua inocência.
v.
É precisamente o princípio de inocência que exigia ao Tribunal formular um juízo de certeza sobre o cometimento das infrações para condenar a Recorrente.
vi.
Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 220° do RDFPF pode contrariar esta quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
vii.
À míngua de meios de prova demonstrativos da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou nos seus deveres, entendendo que caberia à demandante ilidir a presunção de culpa pela qual o Tribunal se segue; recorrendo a um critério da primeira aparência.
viii.
Resulta claro da leitura do acórdão que o Tribunal a quo confirmou a condenação da demandante somente com base na prova da primeira aparência e num esquema argumentativo e racional fundado numa distribuição de ónus da prova: à demandada, titular do poder punitivo disciplinar, cabe fazer a prova da primeira aparência; e à demandante, uma vez comprovada essa primeira aparência, compete refutá-la, destruindo essa indiciação.
ix.
Este critério decisório viola o princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, direito fundamental de que a demandante é titular e, do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objetiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
x.
Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.°, n. 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.° da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14, www.dgsi.pt).
xi.
O critério decisório adotado pelo Tribunal a quo - da prova da primeira aparência, com imposição de ónus da prova ao arguido - contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo.
xii.
Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o Acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adote um critério decisório em matéria de VALORAÇÃO DA PROVA CONSENTÂNEO com o princípio da presunção de inocência, exigindo-se, designadamente, que a prova de todos os elementos constitutivos da infração corresponda a um convencimento para para além de qualquer dúvida razoável, e não numa convicção da verificação decorrente da verificação de simples indícios resultantes de uma prova de primeira aparência, e que não se imponha à demandante (arguida no processo disciplinar) o ónus de demonstração da não verificação de qualquer elemento tipicamente relevante,
xiii.
Mas mais, nem mesmo acolhendo a presunção de verdade prevista no art. 220.° do RDFPF ou jurisprudência recente do Supremo Tribunal Administrativo (processo n.° 297/2018 de 18-11-2018) se alcançaria a condenação da aqui recorrente, porquanto sempre se mostra por preencher PRESSUPOSTO DE IMPUTAÇÃO E CONDENAÇÃO: a atuação culposa da recorrente.
xiv.
Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa atuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a atuação culposa um dos "demais elementos das infrações" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 204.°, 208.° e 209.° do RDFPF.
xv.
Assim não se entendendo, antecipa-se como inconstitucional, por violação do princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.°s 2 e 10, da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da CULPA (art. 2.° da CRP), a interpretação dos 204.°, 208.° e 209.° do RDFPF, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.
xvi.
Tem-se como inconstitucional, por violação por violação do princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.° 5 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 204.°, 208.° e 209.° do RDFPF, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base com base no artigo 220.° do RDFPF, que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
xvii.
O parâmetro da violação do dever de prevenção adotado pelo Tribunal a quo é o mesmo para a imputação da infração p. e p. pelo art. 209.° do RDFPF, correspondente ao comportamento incorreto dos adeptos consubstanciado em cânticos grosseiros e ofensivos de terceiros.
xviii.
Acontece que é completamente impossível à recorrente impedir manifestações vocais desse tipo e fica sempre por demonstrar a efetividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.
xix.
Responsabilizar disciplinarmente os clubes pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa puni-los por algo que, objetivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objetiva.
xx.
Estando em falta um elemento imprescindível para a imputação da infração à recorrente: a capacidade de agir para dar cumprimento ao dever que impende sobre o agente, fica necessariamente prejudicada a decisão do Tribunal a quo ao confirmar a condenação da aqui recorrente.
xxi.
A MODIFICAÇÃO DO VALOR DA CAUSA promovida pelo Tribunal a quo para € 30.000,01 — ao invés do total da multa por que foi a recorrente condenada — foi feita em violação do previsto no art. 33.°, b) do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da ação no montante de € 9.180,00 daí se extraindo as devidas consequências.
xxii.
As custas fixadas pelo TAD comprometem de forma séria e evidente o princípio da tutela jurisdicional efetiva (arts. 20.°-1 e 268.°-4 da CRP).
xxiii.
Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (arts. 20.° e 268.°-4 da CRP) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efetivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
xxiv.
Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar O VALOR DAS CUSTAS finais (art. 2.°- 1 e -5, conjugado com a tabela constante do Anexo 1 (2a linha), da Portaria n.° 301/2015, articulado ainda com o previsto nos arts. 76.°/1/2/3 e 77.°/4/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.° da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.°-1 e 268.°-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.° da CRP).
Termos em que se requer a V. Exas. seja o presente recurso julgado procedente, revogando-se a decisão arbitral recorrida e assim também a condenação da recorrente pelas infrações disciplinares p. e p. pelos arts. 204., 208.° e 209.° do RDFPF, e anulando-se o correspondente ato administrativo do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, conforme o alegado em II e III supra.
Sem prescindir, caso se entenda não haver motivo para, de imediato, absolver a recorrente, requer-se a revogação do acórdão recorrido e o reenvio do processo ao TAD para que reaprecie a matéria de facto com base em critérios de valoração da prova consentâneos com o princípio da presunção de inocência do arguido, exigindo-se, nomeadamente, a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável e a não imposição de um ónus da prova à demandante.
Sempre sem prescindir, e uma vez mais subsidiariamente, requer-se a V. Exas. se dignem julgar inconstitucional a norma resultante da conjugação do disposto art. 2., n.° 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I, 2 linha, da Portaria n. 301/2015, com o previsto nos artigos 76° 1/2/3 e 77.°/4/5/6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva (art. 20.°-1 e 268.°-4 da CRP) e da proporcionalidade (art. 2.° da CRP), com as legais consequências.
*
A recorrida contra-alegou, concluindo assim:
1.
O presente Recurso de Apelação foi interposto pela Recorrente do Acórdão do Tribunal Arbitrai do Desporto, datado de 9 de outubro de 2019, que confirmou a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol que sancionou a Recorrente em multas por aplicação dos artigos 204, 208 e 209 do RDFPF.
2.
Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos da F…… e a responsabilização desta sociedade anónima desportiva por violação de deveres a que estava adstrita de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos, em jogo em que a equipa da ora Recorrente participou.
3.
Sinteticamente, de acordo com os relatórios do jogo e de policiamento desportivo, os adeptos da Recorrente arremessaram objetos para o terreno de jogo, rebentaram objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo e levaram a cabo outros comportamentos incorretos. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4.
Os relatórios dos delegados e de policiamento desportivo, que servira de base ao processo disciplinar em causa nos autos, têm, como se sabe, presunção de veracidade dos respetivos conteúdos.
5.
Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta dos Relatórios dos Delegados e do Relatório de Policiamento Desportivo) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo, o que, como se sabe, não é possível.
6.
Assim, os Relatórios elaborados pelos Delegados, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente no caso concreto.
7.
Isto não significa que o Relatório dos Delegados contenha uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
8.
Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova, colocando em causa aquela veracidade. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346 do Código Civil.
9.
Ao contrário do que afirma a Recorrente, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter-se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
10.
Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios elaborados pelos Delegados, pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
11.
De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
12.
Decorre de forma claríssima da Regulamentação aplicável que os clubes e sociedades desportivas podem (e devem) impedir comportamentos como os sub judice através do cumprimento dos deveres in formando e in vigilando dos seus adeptos.
13.
Com efeito, a imputação culposa das condutas infratoras dos adeptos da Recorrente, pelas quais esta é diretamente responsável (tal como determina a previsão legal das infrações disciplinares em causa), resulta, pois, do incumprimento culposo de deveres de prevenção e de ação no âmbito da violência associada ao Desporto que lhe estão cometidos e que levaram, em nexo de causalidade adequado e direto, ao resultado aqui verificado: os comportamentos perigosos e incorretos dos seus adeptos e simpatizantes, num espetáculo desportivo.
14.
Ainda que se entenda — o que não se concede — que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido — a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres —foi retirado de outros factos conhecidos.
15.
Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência, quer dos tribunais comuns, quer dos tribunais administrativos.
16.
Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente, assim como o STA por mais de 10 vezes em sede de recurso de revista e o TCA Sul uma vez em sede de recurso de apelação.
17.
Carece de fundamento a alegação de que as normas dos artigos 204, 208 e 209 do RDFPF são inconstitucionais, porquanto o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou em matéria em tudo idêntica, defendendo a responsabilidade subjetiva neste âmbito, o que se revela conforme à CRP.
18.
Em causa no presente recurso de apelação está, ainda, um alegado erro na fixação do valor da causa em eur. 30.000,01 (trinta mil e um euros) e, por conseguinte, a violação dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva.
19.
Sinteticamente, entendeu o Tribunal a quo que, in casu, preponderará o critério relativo a bens imateriais do artigo 34, n 1 do CPTA.
20.
De facto, o interesse imaterial que subjaz à pretensão da Recorrente é muito mais do que uma mera revogação de uma decisão disciplinar, indo muito além do valor económico que as sanções pecuniárias que estão em análise demonstram.
21.
Ao aludir ao princípio da culpa, constata-se que os interesses invocados, são de ordem constitucional e excedem claramente meros limites quantitativos, motivo pelo qual o Tribunal a quo, ao utilizar o critério supletivo constante do artigo 34º do CPTA, não violou o disposto no artigo 33, al. b) do mesmo Código.
22.
Por outra parte, o valor das custas finais fixado pelo Tribunal a quo não é, como alega a Recorrente, desproporcional, nem compromete, de forma séria e evidente, o princípio da tutela jurisdicional efetiva (artigos 20, n 1 e 268, n 4 do CRP).
23.
Neste sentido entendeu, e bem, o Tribunal Constitucional, mediante Acórdão datado de 16 de outubro de 2019, não julgar inconstitucionais as normas constantes do artigo 2, ns 1 e 4, da Portaria n.° 301/2015, de 22 de setembro, em conjugação com a primeira linha da tabela do seu Anexo I.
24.
Motivo pelo qual deverá, também, improceder a inconstitucionalidade suscitada resultante da conjugação do disposto no art. 2, ns 1 e 5 (e respetiva tabela constante do Anexo I, 2° linha, da Portaria n.º 301/2015), com o previsto nos artigos 76, n.s 1, 2 e 3 e 77.2, n.s 4, 5 e 6 da Lei do TAD, por violação dos princípios da tutela jurisdicional efetiva e da proporcionalidade.
25.
O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira — limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
26.
Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pelas infrações disciplinares p. p. pelo artigo 204.2, 208. ° e 209. ° do RDFPF.
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Cumpridos que estão neste tribunal superior os demais trâmites processuais, vem o recurso à conferência para o seu julgamento.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DA APELAÇÃO - QUESTÕES A DECIDIR
Os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do colégio arbitral a quo, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso. Esta alegação apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de Direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.
Assim, tudo visto, cumpre a este tribunal apreciar e resolver aqui o seguinte:
1 -Erro de julgamento de direito quanto à punição disciplinar:
a decisão arbitral condenatória da F……., SAD, relativa aos ilícitos disciplinares previstos nos artigos 204º/1, 208º e 209º do RD/FPF, violou o PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA EM PROCESSOS SANCIONATÓRIOS e ainda o consequente princípio da repartição do ónus da prova em tais processos; aquele princípio constitucional tem COROLÁRIOS em sede de AVALIAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA produzidos no processo disciplinar, corolários que aqui foram desrespeitados - valoração da prova consentânea com o princípio da presunção da inocência;
é assim inconstitucional, por violação por violação do princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.° 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do PRINCÍPIO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA CULPA (art. 2.° da CRP), a interpretação dos 204.°, 208.° e 209.° do RDFPF, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube;
é assim inconstitucional, por violação por violação do princípio da PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.° 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do PRINCÍPIO JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA CULPA (art. 2.° da CRP), a interpretação dos artigos 204.°, 208.° e 209.° do RDFPF, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base no artigo 220.° do RDFPF, que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
2 -Erro de julgamento de direito quanto à fixação do valor da causa em 30.000,01 euros, com violação dos artigos 33º-b) e 34º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;
3 -Erro de julgamento de direito quanto à fixação do valor das custas processuais, por inconstitucionalidade.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
II.1 – FACTOS PROVADOS
A instância arbitral a quo fixou o seguinte quadro factual:
a)No dia 4 de agosto de 2018, em Aveiro, no Estádio Municipal teve lugar o jogo n.° 100.00.001, relativo à Supertaça Cândido de Oliveira, entre a F........... — Futebol SAD (considerado o clube visitado) e a C........... — Futebol SAD(considerado o clube visitante), com arbitragem de L…………….., árbitro, R…………………., árbitro assistente n.° 1, P………………, árbitro assistente n.° 2, e H………………, 4.° árbitro, que terminou com o resultado final, registado no tempo regulamentar, de 3-1 para a F………………;
b) A promoção e a organização do jogo da Supertaça Cândido de Oliveira pertencem exclusivamente à Federação Portuguesa de Futebol;
c)O referido jogo:
- não foi alvo de observação por parte de observador do Conselho de Arbitragem da FPF;
-foi acompanhado por Delegado da FPF;
-o policiamento foi efetuado por 230 agentes da Polícia de Segurança Pública - Comando Distrital de Aveiro;
-e teve no serviço de segurança 218 ARD da Empresa de Segurança Privada …….
d)No jogo estiveram presentes 28923 espectadores;
e)O 1.° e 2.° anéis do topo sul do Estádio foram os locais reservados para os grupos organizados de adeptos (GOA, de ora em diante) da F………. assistirem ao jogo;
f) Aos 10 minutos do jogo, os adeptos do F……… que se encontravam na bancada do topo sul entoaram repetidamente o cântico "S…., S…., filhos da puta S….";
g)Aos 25 minutos do jogo, na bancada topo sul, onde se encontravam os adeptos da F…….., foram rebentados petardos, flashlights e tocas de fumo;
h)Um dos rebentamentos provocou pequenas lesões num espectador;
i)Aos 67 minutos do jogo, na mesma bancada do topo sul, onde se encontravam os adeptos da F……, foram acendidas por esses adeptos 4 tochas de fumo;
j)Uma dessas tochas de fumo, de cor azul, foi arremessada para dentro do terreno de jogo, mais concretamente para dentro da área da baliza da C..... - FUTEBOL SAD ;
k)O arremesso da tocha para a área da baliza determinou o árbitro a interromper o jogo durante 2 minutos, para o referido objeto ser removido do terreno do jogo;
l)Ainda no minuto 67 do jogo, um dos adeptos da F............que se encontravam atrás do banco dos técnicos dessa equipa arremessou um isqueiro na direção do árbitro assistente nº 1, R……………;
m)O isqueiro não atingiu o referido árbitro assistente;
n)A Demandante, enquanto qualificada para disputar competição oficial organizada pela FPF, bem sabia que era sua obrigação evitar ou prevenir qualquer alteração da ordem e da disciplina que ocorra por atuação daqueles que o apoiam, nomeadamente, que era seu especial dever o de zelar pela segurança e bem-estar de todos os agentes desportivos envolvidos no jogo aludido, adotando medidas adequadas e idóneas para minimizar/eliminar o perigo, ou seja, para evitar o resultado que redunda no incumprimento do dever de zelar pela defesa da ética e do espirito desportivos;
o) A Demandante, ao não lograr evitar o comportamento dos seus adeptos, acima descrito, o que podia e devia ter feito, não agiu com o cuidado e diligência a que está regularmente obrigada, violando -de forma censurável- o dever de evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, o que redunda no incumprimento do dever de zelar pela defesa da ética e do espírito desportivos;
p) A Demandante foi já sancionada por diferentes infrações disciplinares, mas nenhuma na competição em causa (Supertaça Cândido Oliveira) nas épocas anteriores.
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO
A matéria de facto julgada provada resultou da análise e valoração, à luz das regras da experiência comum, dos elementos e prova documental junto aos presentes autos, nomeadamente
a Ficha de Jogo,
o comportamento dos adeptos afetos à Demandante,
comportamento este que foi devidamente confirmado e descrito no Relatório de Ocorrências do Delegado da FPF,
bem como, no Relatório de Policiamento Desportivo, sendo que, este relatório, entre outras informações, refere os incidentes provocados pelos adeptos da Demandante, o número de elementos da força de segurança, incluindo o número de ARD's e os espectadores presentes no jogo em apreço.
Em relação ao pote de fumo arremessado para o relvado, é de realçar que o vídeo do jogo mostra, sem qualquer sombra para dúvida, o local onde o pote caiu, o momento em que ocorreu e o tempo que o jogo esteve interrompido para retirar esse objeto do relvado.
Acresce ainda que a Demandante não contraia a matéria constante da acusação e dada como provada.
Acolhemos o entendimento de que, relativamente à matéria de facto considerada provada, à semelhança da maioria da jurisprudência e doutrina, a apreciação e valoração da prova em processo disciplinar desportivo deve seguir as regras do processo penal, já que estas apresentam o maior conjunto de garantias para os arguidos, em observância do princípio da livre apreciação da prova também consagrado no Código de Processo Penal, e do princípio da presunção de inocência do arguido.
Com efeito, observou-se o princípio da livre apreciação da prova.
Assim, nos termos do disposto no artigo 607 n 5 do CPC aplicável ex vi artigo 1 do CPTA e artigo 61 da LTAD, o tribunal aprecia livremente as provas produzidas, decidindo o Juiz segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Pelo que a conjugação dos dispositivos legais acima mencionados consagra o princípio da prova livre, o que significa que a prova produzida em audiência (seja a prova testemunhal ou outra) é apreciada pelo julgador segundo a sua experiência, tendo em consideração a sua vivência da vida e do mundo que o rodeia. Porém, devemos ter presente que o julgador deverá ter em consideração todas as provas produzidas de acordo com o disposto no art.° 413.° do C.P.C, ou seja, a prova deve ser apreciada na sua globalidade

*
II.2 – APRECIAÇÃO DO RECURSO
Tendo presente o exposto, passemos agora à análise dos fundamentos do presente recurso.
1 - A DECISÃO ARBITRAL RECORRIDA
O discurso fundamentador adotado pela maioria do colégio arbitral recorrido (já que há um voto de vencido, como vem sendo mais frequente nesta matéria) foi o seguinte:
“III. VALOR DO PROCESSO
A Demandante indica como valor da causa de 9.180,00 € (nove mil cento e oitenta euros), enquanto a Demandada entende que o valor da ação deve ser de 30.000,01€ (trinta mil e um euros).
No entanto, o tribunal fixou, no seu despacho n.° 1, à causa aqui em discussão o valor de 30.000,01 € (trinta mil euros e um cêntimo), considerando que subjacente à mesma está um valor indeterminável, pelo que, nos termos do art.° 34, n 1 e 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, conjugado com no art.° 6, n 1 e 4, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, e no art.°. 44, n. 1 da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto, aplicáveis por remissão do art. 77, n 1, da LTAD e nos termos do disposto no artigo 2°, nº 2 da Portaria n 301/2015, de 22 de setembro, alterada pela Portaria n. 314/2017, de 24 de outubro.

X.QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos do disposto no artigo 95, n.° 3, do CPTA, aplicável ex vi artigo 61.° da LTAD, o Tribunal deve pronunciar-se sobre todas as causas de invalidade que tenham sido invocadas pela Demandante a respeito da Decisão Final do CD LPF.
Ora, a Demandante fundamenta, em termos sumários, as suas impugnações na nulidade decorrente da violação da proibição da alteração substancial dos factos, na existência de erro na apreciação da prova, nomeadamente no erro sobre a apreciação da matéria de facto dada como provada, na violação do princípio da presunção de inocência contra a Demandante e ainda que não foi carreado nos autos um único elemento probatório de uma atuação culposa da Demandante.
XI. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
No âmbito das competições organizadas pela Federação Portuguesa de Futebol, o poder disciplinar a exercer assume natureza pública cf. art.° 19, ns 1 e 2, da Lei 5/2007, de 16 de janeiro e arts.° 10.° e 13.2 al. i) do Decreto-Lei 248-B/2008, de 31 de dezembro.
Dispõe o art.° 52, n.° 1 do Decreto-Lei 248-B/2008, de 31 de dezembro:
"Artigo 52º Regulamentos disciplinares
1 - As federações desportivas devem dispor de regulamentos disciplinares com vista a sancionar a violação das regras de jogo ou da competição, bem como as demais regras desportivas, nomeadamente as relativas à ética desportiva."
O n 2 do acima referido art.° 52.° dispõe que são consideradas normas de defesa da ética desportiva "(...) as que visam sancionar a violência, a dopagem, a corrupção, o racismo e a xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo."
O poder disciplinar das federações desportivas exerce-se sobre os clubes, dirigentes, praticantes, treinadores, técnicos, árbitros, juízes e, em geral, sobre todos os agentes desportivos que desenvolvam a atividade desportiva compreendida no seu objeto estatutário, cf. art.° 54, n 1, e o regime da responsabilidade disciplinar é independente da responsabilidade civil ou penal, cf. art. 55, ambos do Decreto-Lei 248/2008, de 31 de dezembro.
Face ao supra exposto, resulta que estamos perante um poder disciplinar que se impõe, em cumprimentos dos valores/direitos que se visam tutelar, e todos os que se encontram a ele sujeito, nos termos acima referidos e que, por esse motivo, assenta na prossecução de finalidades que estão além dos pontuais e concretos interesses desses agentes e organizações desportivas.
O RD FPF estabelece as infrações disciplinares, pela qualidade do agente infrator. Sendo que, por cada um destes tipos de agentes o RD FPF dispõe as referidas infrações e as correspondentes sanções em obediência ao grau de gravidade dos ilícitos, sendo assim as infrações qualificadas como leves, graves e muito graves.
São imputadas à Demandante a prática de uma infração p.p pelo art.° 204, uma infração p.p pelo art. 208 e duas infrações p.p pelo art.° 209, todos os artigos com referência ao art.° 193, e todos do RD FPF.
Assim, e por uma questão de simplicidade, transcrevem-se na integra os artigos aqui em causa:
"Artigo 204.° Arremesso perigoso de objeto ou arremesso de objeto perigoso com reflexo no decurso de jogo oficial
1. O clube cujo adepto arremesse para dentro do terreno de jogo objeto perigoso, de forma a determinar justificadamente o árbitro a atrasar o início ou reinicio de jogo oficial ou a interromper a sua realização por período igual ou inferior a 5 minutos, é sancionado com multa entre 20 e 50 UC, se sanção mais grave não lhe for aplicável por força de outra disposição deste Regulamento.
2. É sancionado nos termos do número anterior o clube cujo adepto arremesse perigosamente objeto, ainda que não perigoso, de forma a determinar justificadamente o árbitro a atrasar o início ou reinício de jogo oficial ou a interromper a sua realização por período igual ou inferior a 5 minutos.
Artigo 208º Ofensas corporais a espectadores e outras pessoas
1. O clube cujo adepto agrida fisicamente espectador ou pessoa presente em recinto desportivo é sancionado com multa entre 5 e 50 UC, se sanção mais grave não lhe for aplicável por força de outra disposição deste Regulamento.
2. A redução na sanção de multa prevista no artigo 25.° não é aplicável.
Artigo 209º Comportamento incorreto do público
O clube cujo adepto tenha ou mantenha um comportamento socialmente reputado incorreto, designadamente a prática de ameaça ou coação sobre agente desportivo ou pessoa autorizada a permanecer no terreno de jogo ou na zona entre as linhas exteriores do terreno de jogo e a entrada nos balneários, tal como representada na definição da zona técnica, o arremesso de objeto para o terreno de jogo, insultos e ainda outros atos que não revistam especial gravidade ou que pratique atos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina, é sancionado com multa entre 5 e 50 UC, se sanção mais grave não lhe for aplicável por força de outra disposição deste Regulamento.
Artigo 193º Violação de dever legal relativo à prevenção da violência
1. O clube que, por ocasião da sua participação em jogo oficial, não promova os valores relativos à ética desportiva, ou não contribua para prevenir comportamentos antidesportivos, ou não cumpra dever relativo à prevenção da violência constante da Lei nº 39/2009, de 30 de Julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança, é sancionado nos termos dos artigos seguintes.
2. São deveres relativos à promoção dos valores referentes à ética desportiva, à prevenção de comportamentos antidesportivos e da violência os seguintes:
a) Incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados;
b) Usar de correção, moderação e respeito relativamente a outros promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo;
c) Não proferir ou veicular declarações públicas que sejam suscetíveis de incitar ou defender a violência, o racismo, a xenofobia, a intolerância ou o ódio, nem tão pouco adotar comportamentos desta natureza;
d) Zelar por que dirigentes, técnicos, jogadores, pessoal de apoio ou representantes dos clubes, associações ou sociedades desportivas ajam de acordo com os preceitos das alíneas b) e d);
e) Zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associação ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos.
3. Para efeitos do número 1, é suscetível de revelar a prática do facto aí descrito, designadamente, o comportamento incorreto de adepto do clube, descrito nos artigos seguintes, quando ocorra no recinto desportivo, no complexo desportivo ou nos limites exteriores ao complexo desportivo, por ocasião de jogo oficial."
Alega a Demandante que os elementos típicos das infrações que lhes são imputadas resultam da presunção de veracidade de que gozam tais documentos, com base em descrições sumárias vertidas nos relatórios do jogo, e que tal prova não é suficiente.
A este propósito, cumpre esclarecer que tal não significa que o relatório de jogo contenha uma verdade absoluta: o que significa é que o conteúdo do relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via das regras da experiência comum e demais provas coligidas, são (ou podem ser) prova suficiente para que o CD FPF forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Demandante incumpriu os seus deveres.
Tal resulta do disposto no art 220 do RD FPF, vejamos:
"Artigo 220º Meios de prova
1. São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei ou por este Regulamento, podendo os interessados apresentá-las diretamente ou requerer que sejam produzidas quando forem de interesse para a justiça da decisão.
2. Salvo quando o Regulamento dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção dos órgãos disciplinares.
3. Presumem-se verdadeiros, enquanto a sua veracidade não for fundadamente posta em causa, os factos presenciados pelas equipas de arbitragem e pelos delegados da FPF, no exercício de funções, e constantes de relatórios de jogo e de declarações complementares."
Sem esquecer o disposto no art 139º, al. f) do RD da LPFP:
"O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:
(...)
f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa;
(...)"
Neste sentido vejamos o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Administrativo, acórdão de 20/12/2018 proferido no processo n.° 08/18.0BCLSB:
"(...)II -A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 132, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.(...)" - acórdão disponível em www.dgsi.pt.
A Demandante bem sabe que é com base no relatório de jogo que a Secção Não Profissional do Conselho de Disciplina faz subsumir o facto à norma aplicável, aplicando a sanção correspondente.
Face ao supra exposto, e considerando o disposto no art.° 153 do C.P.A., não se verifica o alegado pela Demandante "(...) se impunha uma explicação lógico-dedutiva do iter de racionalização probatória que levou a Demandada à prova de tais factos(...)", ou seja não se verifica a falta de fundamentação do acórdão em crise, porquanto, o mesmo não padece de nenhuma obscuridade, contradição ou insuficiência, improcedendo assim a nulidade invocada.
Até porque, entendemos que, pese embora, não devam ser beliscadas as garantias de defesa do arguido (nunca poderiam ser), o grau destas garantias não tem necessariamente de ser idêntico ao da esfera criminal. Assim, sufragamos o entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, emergente de acórdão proferido em 21/03/2019 proferido no processo n 075/18.6BCLSB (na esteira de aresto do mesmo Tribunal Supremo datado de 21/10/2010), que fixou o seguinte sumário:
"I- A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II- A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2, 20, n 4, e 32, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.", acórdão disponível em www.dgsi.pt.
Acresce ainda, que a Demandante não nega a ocorrência dos factos ilícitos que lhe são imputados.
No entanto, a Demandante alega que não existe prova que sustente a sua punição pela prática das infrações de que vem acusada.
Ora, considerando os relatórios elaborados pelo delegado da FPF, em que de forma clara descreve as condutas ilícitas e que as mesmas foram praticadas por adeptos que se encontravam nas bancadas afetas a sócios ou simpatizantes do F…….. e analisando em concreto como se formou a convicção do Tribunal, é possível verificar que a mesma assentou na análise crítica da prova produzida.
Ou seja, no relatório de ocorrência referente ao jogo em causa nos presentes autos, os Delegados são claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do F…………….., bem como são bem explícitos a referenciar a bancada onde esses adeptos /simpatizantes se encontravam
E, por estarem localizados em bancadas exclusivamente reservadas a adeptos do F............e serem portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao clube, tais como bandeiras, cachecóis, camisolas e tarjas de incentivo à Demandante, não poderá deixar de resultar provado terem sido adeptos/ simpatizantes da Demandante os autores da prática dos factos ilícitos aqui em causa.
Esta é, pois, a versão mais consentânea com a realidade em face das regras da experiência comum, conjugada com a documentação que compõem os autos, pelo que se pode afirmar, sem margem para quaisquer dúvidas pela veracidade dos factos dados como provados, por ser essa a versão mais consentânea com a realidade.
É certo que nem as autoridades policiais nem o delegado da FPF ou o árbitro identificaram pessoalmente quem concretamente proferiu as expressões constantes das ocorrências reportadas pelo delegado ao jogo, e que aqui se dão integralmente reproduzidas, quem procedeu ao arremesso de objetos para o relvado ou ainda de quem fez o uso de engenhos pirotécnicos, nem tendo detido algum adepto/ simpatizante infrator, o que se mostra compreensível tendo em conta as circunstâncias em que os factos ocorreram (no decurso de um jogo e em que os adeptos/ simpatizantes estavam nas bancadas).
Não existem dúvidas em identificar a que Clube pertenciam os adeptos/simpatizantes que praticaram os factos, nomeadamente, através dos adereços que esses adeptos tinham vestidos, nomeadamente camisolas, cachecóis e bandeiras por esses adeptos envergadas, a que acresce o local onde se encontravam situados, isto é, de extrema relevância o facto de esses adeptos estarem localizados em bancadas exclusivamente reservadas a adeptos da Demandante e serem portadores de sinais inequívocos da sua ligação ao clube, nomeadamente, as já referenciadas bandeiras, cachecóis e camisolas.
Impõe-se dizer-se, ainda, que não obstante a convicção a que se chegou, o facto de não ter sido efetuada a identificação pessoal da(s) pessoa(s) que entoaram cânticos ofensivos, que arremessaram objetos para o relvado ou que fizeram uso de engenhos pirotécnicos no meio de uma multidão de adeptos, é, claramente, uma obstrução à imputação pessoal dos factos aos seus autores.
Assim, o elemento subjetivo resulta da conjugação dos factos objetivamente apurados com as regras da experiência comum e do normal acontecer. Efetivamente, o facto de esses mesmos adeptos estarem situados em bancadas exclusivamente destinadas a adeptos da Demandante e esses serem portadores de símbolos inequívocos da sua ligação ao clube, espelha a prática dos factos dados como provados e supra descritos, assim como a sua prática por adeptos/simpatizantes da Demandada, F……………...
O convencimento do Tribunal quanto à verdade dos factos situa-se para além de toda a dúvida razoável, entendendo-se esta na dúvida que seja "compreensível para uma pessoa racional e sensata", e não "absurda" nem apenas meramente "concebível" ou "conjetural".
Deste modo, mediante a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis, levam-nos a excluir qualquer outra explicação lógica e plausível, fundamentando-se, assim, a convicção deste tribunal, de que determinados factos estão provados.
Ademais, em conformidade com a doutrina e jurisprudência dominante, a prova dos factos relevantes pode, de igual modo, resultar de um raciocínio lógico e indutivo, com base em factos ou acontecimentos "instrumentais" ou "circunstanciais", mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência.
Ora, aplicando tais considerações aos presentes autos e procedendo à valoração de toda a prova produzida, verifica-se a concordância total quanto aos elementos probatórios iniciais: perante
o relatório de delegado e
relatório de policiamento, e
os restantes documentos juntos ao processo disciplinar,
é possível concluir com a necessária segurança, que os adeptos que praticaram os factos em apreço eram, efetivamente, afetos à Demandante, nomeadamente, seus adeptos/simpatizantes.
Diante do facto dos autores estarem localizados em bancadas exclusivamente afetas a adeptos do da Demandante e serem portadores de símbolos representativos do clube, chegamos à convicção juntamente com o diverso material probatório junto aos presentes autos, é suficiente para, numa lógica processual disciplinar e constitucional, legitimar a condenação da aqui Demandante e assim, também neste ponto julgar improcedente o recurso por esta interposto.
Até porque, o art.° 4 do RD FPF:
"Definições
Para efeitos deste Regulamento entende-se por:
a) «Adepto»: a pessoa que, direta ou indiretamente, manifeste apoio a determinada equipa ou clube, designadamente através da ostentação de sinais que o indiquem.
Concluímos, portanto, que a análise da prova que fundamenta a decisão recorrida, tem como base um raciocínio lógico, que este tribunal não vislumbra fundamentos que imponham uma solução diversa.
Deste modo, dúvidas não existem de que a prova existente é bastante para sustentar a punição nos termos do artigo 204.º, 208.° e 209.° do RD da FPF, e não existiu erro na sua apreciação.
Entende ainda a Demandante, e bem assim o alega, que cabia ao CD FPF provar que a Demandante atuou com culpa.
Vejamos.
A Demandante foi condenada a:
a) uma infração p.p. pelos arts. 204, n.° 1 conjugado com o 193º, ambos do Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol, doravante RDFPF, arremesso perigoso de objeto com reflexo no decurso de jogo oficial, condenando a Demandante ao pagamento de uma multa no valor de 3.570,00€;
b)uma infração p.p. pelos arts.°208 conjugado com o 193º, ambos do RDFPF, ofensas corporais a espectadores, condenando a Demandante ao pagamento de uma multa no valor de 2.805,00€; e
c)uma infração p.p. pelos arts.° 209.° conjugado com o 193.° ambos do RDFPF, comportamento incorreto do público, manifestado através do arremesso de objeto na direção de árbitro assistente e dos cânticos entoados pelo grupo organizado de adeptos, condenando a Demandante ao pagamento de uma multa no valor de 2.805,00€;
Ora tendo o CD da Demandada verificado que
foram rebentados objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo, bem como,
foram entoados cânticos por adeptos/simpatizantes que foram identificados pelo delegado da FPF e pelos agentes das forças policiais como sendo mesmo adeptos/simpatizantes da Demandante, que se encontravam na bancada reservada aos seus adeptos, e por eles exclusivamente ocupada,
concluiu o CD da Demandada que, com base nestes elementos, mas também das regras da experiência comum, que a Demandante havia sido, no mínimo, negligente no cumprimento dos seus deveres de vigilância e de formação.
"Artigo 12º Deveres gerais
1. Todas as pessoas físicas e coletivas sujeitas ao presente Regulamento devem agir em conformidade com os princípios da ética, da defesa do espírito desportivo, da verdade desportiva, da lealdade e da probidade.
2. Os clubes e agentes desportivos devem manter comportamento de urbanidade entre si, para com o público e entidades credenciadas para os jogos oficiais.
3. Todas as pessoas previstas no número 1 têm o dever de promover os valores relativos à ética desportiva e de contribuir para prevenir comportamentos antidesportivos, designadamente violência, dopagem, corrupção, combinação de resultados desportivos, racismo e xenofobia, bem como quaisquer outras manifestações de perversão do fenómeno desportivo ou ofensivas dos órgãos da estrutura desportiva e das pessoas a eles relacionados."
Importa ainda analisar o teor do art.° 193 do RD da FPF:
"Artigo 193 Violação de dever legal relativo à prevenção da violência
1. O clube que, por ocasião da sua participação em jogo oficial, não promova os valores relativos à ética desportiva, ou não contribua para prevenir comportamentos antidesportivos, ou não cumpra dever relativo à prevenção da violência constante da Lei n 39/2009, de 30 de Julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança, é sancionado nos termos dos artigos seguintes.
2. São deveres relativos à promoção dos valores referentes à ética desportiva, à prevenção de comportamentos antidesportivos e da violência os seguintes:
a) Incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados;
b) Usar de correção, moderação e respeito relativamente a outros promotores dos espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo;
c) Não proferir ou veicular declarações públicas que sejam suscetíveis de incitar ou defender a violência, o racismo, a xenofobia, a intolerância ou o ódio, nem tão pouco adotar comportamentos desta natureza;
d) Zelar por que dirigentes, técnicos, jogadores, pessoal de apoio ou representantes dos clubes, associações ou sociedades desportivas ajam de acordo com os preceitos das alíneas b) e d);
e) Zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube, associarão ou sociedade desportiva participem do espetáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos.
3. Para efeitos do número 1, é suscetível de revelar a prática do facto aí descrito, designadamente, o comportamento incorreto de adepto do clube, descrito nos artigos seguintes, quando ocorra no recinto desportivo, no complexo desportivo ou nos limites exteriores ao complexo desportivo, por ocasião de jogo oficial."
Pelo que, desde logo, conseguimos aferir que a Demandante, enquanto Clube, é a responsável pelas alterações de ordem e disciplina provocada pelos seus adeptos/ simpatizantes, nomeadamente, quanto à entoação de cânticos, arremesso de objetos para o relvado e deflagração de engenhos pirotécnicos no interior do Estádio.
Dispõe ainda o art.° 15.° do RD da FPF que:
"Artigo 15.° Infração disciplinar
1. Constitui infração disciplinar o facto voluntário, ainda que meramente culposo que por ação ou omissão previstas ou descritas neste Regulamento viole os deveres gerais e especiais nele previstos e na demais legislação desportiva aplicável.
2. O facto não é sancionado disciplinarmente quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada no seu todo, nomeadamente em legítima defesa, no exercício de um direito, no cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima.
3. Age com dolo quem atuar com intenção de realizar facto infracional que representou, ou que represente tal facto como consequência necessária da sua conduta ou com ele se conforme ao atuar.
4. Age com mera culpa quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz, representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de infração mas atuar sem se conformar com essa realização, ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto."
Ora, os preceitos legais supracitados, estabelecem obrigações para os Clubes participantes em competições profissionais, de forma a prevenirem situações de violência associadas ao desporto, e dessa forma, estabelecerem condições para a ordem e segurança dos seus adeptos e demais participantes no espetáculo desportivo.
A demonstração da realização pelos clubes de atos concretos junto dos seus adeptos/ simpatizantes destinados à prevenção da violência poderá afastar a sua responsabilização disciplinar.
Porém, não existe nenhum elemento probatório nos autos que prove que a Demandante tenha dado cumprimento às obrigações a que está sujeita no que respeita aos deveres de formação, controlo e vigilância do comportamento dos adeptos/simpatizantes, sendo que, era à Demandante que caberia provar que o fez.
Tais obrigações devem ser estritamente cumpridas pelos clubes, tanto na qualidade de visitados, como na qualidade de visitantes.
Aliás, acerca desta matéria o Tribunal Constitucional já se pronunciou no Acórdão n 730/95, datado de 14/12/1995, proferido no âmbito do processo n 328/91, a propósito da sanção em causa no caso controlo daquele Tribunal, que era a interdição dos estádios por comportamentos dos adeptos dos clubes, tal como previsto do Decreto-Lei n 270/89, de 18/08 referente a "medidas preventivas e punitivas de violência associada ao desporto", e onde se entendeu que: "Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objetiva pelo facto de o artigo 3 exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes. E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (nº 7) e no artigo 6 (nº 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúrbios). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube)." Disponível em www.dgsi.pt
A Demandante alega que fez tudo com vista a evitar a prática dos comportamentos aqui em causa. No entanto, não logrou em provar nos presentes autos, quais as medidas que tomou, quais os atos concretos que adotou junto dos seus adeptos destinados à prevenção da violência.
Realçar ainda que o facto de a Demandante não ser a promotora do evento desportivo não afasta os deveres que sobre si impendem.
Mais alega a Demandante a violação do princípio da presunção de inocência e do princípio do in dubio pro reo.
Para tal, a Demandante socorre-se de vários acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo do Sul nomeadamente o acórdão proferido a 26 de julho de 2018 no processo nº 08/18.0BCLSB, acórdão proferido a 6 de agosto de 2018 no processo nº 33/18.0BCLSB e da Decisão sumária de 21 de setembro de 2018, proferida no processo nº 75/18.6BCLSB.
Sucede que os acima referidos acórdãos proferidos pelo Tribunal Central Administrativo do Sul foram já revogados pelo Supremo Tribunal Administrativo pelo acórdão proferido a 20 de dezembro de 2018 no processo nº 08/18.0BCLSB, acórdão proferido a 21 de fevereiro de 2018, no processo nº 33/18.0BCLSB e acórdão de 21 de março de 2019, proferido no processo nº 75/18.6BCLSB.
Reitera-se: sufragamos o entendimento da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, emergente de acórdão proferido em 21/03/2019 proferido no processo nº 075/18.6BCLSB (na esteira de aresto do mesmo tribunal supremo datado de 21/10/2010), que fixou o seguinte sumário:
"I-A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II-A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2, 20, n 4, e 32.°, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo." - acórdão disponível em www.dgsi.pt.
Sobre esta matéria, acompanhamos ainda o acórdão proferido por este Tribunal Arbitral do Desporto no processo n.° 65/2018:
"(...) o princípio da presunção da inocência tem consagração constitucional, sendo um pilar essencial de todo o ordenamento jurídico português, merecendo natural aceitação na presente instância. Como refere Maia Gonçalves (in Código do Processo Penal anotado 17° edição, Almedina, 2009) [o] "princípio in dúbio pro reo estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu. É um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário. (...) Este princípio identifica-se com o da presunção da inocência do arguido, e impõe que o julgador valore sempre a favor dele (arguido) um non liquet, e ainda que em processo penal não seja admitida a inversão do ónus da prova em seu detrimento."
Assim, no cumprimento do princípio do in dubio pro reo, o julgador quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, terá que decidir a favor do arguido.
Ou seja, após a ponderação e análise de todos os elementos probatórios e subsistindo no espírito do julgador uma dúvida razoável sobre a veracidade ou realidade dos factos, ou sobre a sua verificação, deve o julgador decidir a favor do arguido.
Assim, será que nos presentes autos, após a ponderação de todos os elementos probatórios, subsistiu alguma dúvida razoável ao julgador, acerca da verificação, ou não, dos factos ou sobre a responsabilidade da Demandante?
Parece-nos que não!
Face aos factos dados como provados não se vislumbra a prova de qualquer facto que levasse a uma posição diferente da decisão ora recorrida.
A responsabilidade da Demandante pelo comportamento dos seus adeptos/simpatizantes não foi presumida, resultou antes da omissão dos deveres que impendem sobre a Demandante, e previstos nos normativos legais acima referidos.
Pelo que estamos perante um caso de responsabilidade pela violação, omissão, dos deveres específicos a que a Demandante estava obrigada, e vinculada.
Apesar da Demandante alegar que tudo faz para evitar a prática dos comportamentos aqui em causa, não foi carreado para os presentes autos, pela Demandante, qualquer elemento probatório que demonstre que a Demandante tenha dado cumprimentos aos deveres a que está obrigada, quer quanto aos deveres de controlo e vigilância do comportamento dos adeptos/simpatizantes, quer quanto à forma como efetuou a prevenção e formação dos seus adeptos para que tais factos não acontecessem.
Repete-se, cabia à Demandante demonstrar o que fez para dar cumprimento aos deveres que impendem sobre si, de modo a prevenir e evitar os atos que vierem a ser praticados.
Ao invés, estes tipos de situações continuam a acontecer de forma reiterada, pese embora as condenações da Demandante, em sede própria.
Porquanto, não se vislumbra que a Demandante tenha alterado a sua conduta de modo a demonstrar a alteração do que vem acontecendo ou seja, demonstrando ou provando qualquer tipo de ação ativa ou preventiva que conduza a evitar este tipo ocorrência.
Pelo que, e face ao supra exposto, improcede a alegada violação do princípio da inocência e do princípio do in dubio pro reo.”.

1.2. APRECIAÇÃO OFICIOSA DO JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO, ao abrigo do artigo 662º/1 do Código de Processo Civil ex vi artigos 1º e 140º/3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos:
Consta do probatório o seguinte:
n) A Demandante, enquanto qualificada para disputar competição oficial organizada pela FPF, bem sabia que era sua obrigação evitar ou prevenir qualquer alteração da ordem e da disciplina que ocorra por atuação daqueles que o apoiam, nomeadamente, que era seu especial dever o de zelar pela segurança e bem-estar de todos os agentes desportivos envolvidos no jogo aludido, adotando medidas adequadas e idóneas para minimizar/eliminar o perigo, ou seja, para evitar o resultado que redunda no incumprimento do dever de zelar pela defesa da ética e do espirito desportivos;
o) A Demandante, ao não lograr evitar o comportamento dos seus adeptos, acima descrito, o que podia e devia ter feito, não agiu com o cuidado e diligência a que está regularmente obrigada, violando -de forma censurável- o dever de evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, o que redunda no incumprimento do dever de zelar pela defesa da ética e do espírito desportivos.
A linha divisória entre o facto e o Direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso poderá ser direito ou juízo de direito noutro.
Questão de facto é, seguramente, tudo o que se reporta ao apuramento de ocorrências da vida real e de quaisquer mudanças ocorridas no mundo exterior, bem como à averiguação do estado, qualidade ou situação real das pessoas ou das coisas.
Além dos factos reais e dos factos externos, também se considera matéria de facto os factos internos, isto é, aqueles que respeitam à vida psíquica e sensorial do indivíduo, e os factos hipotéticos, ou seja, os que se referem a ocorrência virtuais. E os juízos periciais de facto.
São claramente de classificar como matéria de Direito as atuações respeitantes à escolha das normas aplicáveis ao caso concreto, à sua interpretação, à determinação do seu valor, à sua legalidade e constitucionalidade, à integração das lacunas da lei e à sua aplicação aos factos, bem como o apuramento dos efeitos derivados dessa aplicação.
Como se vê, as als. n) e o) do probatório contêm alguma matéria de facto, mas também contêm um erro ou falsidade (“o comportamento dos seus adeptos acima descrito”), bem como meras conclusões(1) (“ou seja, para evitar o resultado que redunda no incumprimento(2) do dever de zelar pela defesa da ética e do espírito desportivos”; “o que podia e devia ter feito”) e conclusões jurídicas ou matéria de Direito (“era sua obrigação evitar ou prevenir qualquer alteração da ordem e da disciplina que ocorra por atuação daqueles que o apoiam”,violando -de forma censurável(3)- o dever de evitar ou prevenir comportamentos antidesportivos, o que redunda no incumprimento(4) do dever de zelar pela defesa da ética e do espírito desportivos.”).
Pelo que se devem eliminar as als. n) e o), por não conterem matéria de facto, nem factos-conclusões.
*
2 – AS QUESTÕES DO RECURSO
2.1 – SOBRE O ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO quanto à punição disciplinar ao abrigo dos já transcritos artigos 204º/1, 208º e 209º (e 193º) do RD/FPF
Comecemos por lembrar (i) que eliminámos as als. N) e O) do probatório e (ii) o teor das disposições regulamentares principalmente em causa.
Artigo 193º - Violação de dever legal relativo à prevenção da violência
1. O clube que, por ocasião da sua participação em jogo oficial, não promova os valores relativos à ética desportiva, ou não contribua para prevenir comportamentos antidesportivos, ou não cumpra dever relativo à prevenção da violência constante da Lei nº 39/2009, de 30 de Julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança, é sancionado nos termos dos artigos seguintes.
Artigo 204.° do RD/FPF - Arremesso perigoso de objeto ou arremesso de objeto perigoso com reflexo no decurso de jogo oficial
1. O clube cujo adepto arremesse para dentro do terreno de jogo objeto perigoso, de forma a determinar justificadamente o árbitro a atrasar o início ou reinicio de jogo oficial ou a interromper a sua realização por período igual ou inferior a 5 minutos, é sancionado com multa entre 20 e 50 UC, se sanção mais grave não lhe for aplicável por força de outra disposição deste Regulamento.
2. É sancionado nos termos do número anterior o clube cujo adepto arremesse perigosamente objeto, ainda que não perigoso, de forma a determinar justificadamente o árbitro a atrasar o início ou reinício de jogo oficial ou a interromper a sua realização por período igual ou inferior a 5 minutos.
Artigo 208º - Ofensas corporais a espectadores e outras pessoas
1. O clube cujo adepto agrida fisicamente espectador ou pessoa presente em recinto desportivo é sancionado com multa entre 5 e 50 UC, se sanção mais grave não lhe for aplicável por força de outra disposição deste Regulamento.
2. A redução na sanção de multa prevista no artigo 25.° não é aplicável.
Artigo 209º Comportamento incorreto do público
O clube cujo adepto tenha ou mantenha um comportamento socialmente reputado incorreto, designadamente a prática de ameaça ou coação sobre agente desportivo ou pessoa autorizada a permanecer no terreno de jogo ou na zona entre as linhas exteriores do terreno de jogo e a entrada nos balneários, tal como representada na definição da zona técnica, o arremesso de objeto para o terreno de jogo, insultos e ainda outros atos que não revistam especial gravidade ou que pratique atos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina, é sancionado com multa entre 5 e 50 UC, se sanção mais grave não lhe for aplicável por força de outra disposição deste Regulamento.
Passemos agora à jurisprudência, recente e menos recente, do Supremo Tribunal Administrativo e que aqui adotamos.
Os nucleares princípios constitucionais da culpa e da presunção da inocência têm intensidades diferentes no Direito penal, no Direito disciplinar e no Direito contraordenacional. Mas têm sempre presença efetiva.
A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige, obviamente, uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção não arbitrário sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos verdadeiramente probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo também, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
A especial presunção regulamentar administrativa de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados por oficiais públicos não parece inconstitucional, mas desde que não impliquem que a mesma entidade (FPF, Liga) faz o relatório e julga com base nesse relatório (cf. assim G. CANOTILHO/V. MOREIRA, Constituição … Anotada, I, 4ª ed., p. 518).
A responsabilidade disciplinar no desporto é subjetiva, porque está estribada na violação dos deveres que impendem sobre clubes e sociedades desportivas, em que o critério de delimitação da autoria da infração disciplinar surge recortado com apelo à titularidade do dever omitido ou preterido. Está claro que, se porventura houver um resultado, este terá de ser imputado à omissão do dever em causa, sob pena de haver punição sem nexos de imputação objetiva e subjetiva.
2.1.1.
Segundo a recorrente, a decisão arbitral confirmativa do ato administrativo condenatório da F……. - SAD, relativa aos ilícitos disciplinares previstos nos cits. artigos 204º/1, 208º e 209º (e 193º) do RD/FPF, violou o princípio constitucional da presunção de inocência em processos sancionatórios e ainda o consequente princípio da repartição do ónus da prova em tais processos, bem como o princípio da culpa.
Aquele primeiro princípio constitucional terá, alega, corolários em sede de avaliação dos meios de prova produzidos no processo disciplinar, corolários que aqui foram desrespeitados - valoração da prova consentânea com o princípio da presunção da inocência - porque o TAD, tal como o ato administrativo em causa, presumiu simplesmente que a arguida falhou culposamente nos seus deveres regulamentares e com base apenas num critério probatório de 1ª aparência, como se fosse suficiente uma simples indiciação para se obter a prova dos factos tipificados na norma tipificadora do ilícito; é que não caberá ao arguido em processo disciplinar demonstrar que não se verificam os elementos do facto típico, ilícito e culposo de natureza disciplinar. Por outras palavras da recorrente, será inconstitucional, por violação por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.° 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito, art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos cits. 204.°, 208.° e 209.° (e 193º) do RDFPF, no sentido de que a indiciação, com base em relatórios do jogo, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorretas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube.
Ainda por outras palavras da recorrente, será inconstitucional, por violação por violação do princípio da presunção de inocência (inerente ao seu direito de defesa, art. 32.°, n.° 2 e 10 da CRP; ao direito a um processo equitativo, art. 20.°-4 da CRP; e ao princípio do Estado de direito art. 2.° da CRP) e do princípio jurídico-constitucional da culpa (art. 2.° da CRP), a interpretação dos cits. artigos 204.°/1 (e 193º), 208.° e 209.° do RDFPF, no sentido de que se dá como provado que o clube violou deveres regulamentares e legais de vigilância, controlo e formação dos seus sócios e simpatizantes quando se prove, com base no artigo 220.° do RDFPF, que esses sócios ou simpatizantes adotaram um comportamento social ou desportivamente incorreto, cabendo ao clube aportar prova demonstradora do cumprimento desses seus deveres.
2.1.2.
O TAD, além de invocar os Acs. do Supremo Tribunal Administrativo emitidos nos Proc. nº 08/18(5), nº 033/18(6) e nº 075/18(7), entendeu expressamente o seguinte:
o relatório elaborado pelo Delegado da FPF descreve as condutas ilícitas, quem e onde as praticou.”
Mas isso não é verdade. O relatório ou relatórios nada dizem sobre a conduta ilícita da F……. - SAD. Nem o probatório do ato administrativo ou o da decisão arbitral o fazem.
O TAD, além de invocar os Acs. do Supremo Tribunal Administrativo emitidos nos Proc. 08/18, 33/18 e 75/18, entendeu expressamente o seguinte:
o elemento subjetivo do ilícito disciplinar em causa resulta da conjugação dos factos objetivamente apurados com as regras da experiência comum e do normal acontecer.”
Será isto possível à luz dos factos realmente provados e das regras da experiência comum? Cremos bem que não. Com efeito, os factos provados não permitem encontrar a violação culposa dos cits. deveres em momento algum.
O TAD ainda entendeu expressamente o seguinte:
a Demandante foi, no mínimo, negligente no cumprimento dos seus deveres de vigilância e de formação dos seus adeptos, porque foram rebentados pelos seus adeptos objetos pirotécnicos proibidos por lei de entrar no recinto desportivo, porque foram por eles entoados cânticos ofensivos e porque há as disposições regulamentares constantes dos já transcritos artigos 12º e 193º do RD/FPF. Pelo que, desde logo, conseguimos aferir que a Demandante, enquanto Clube, é a responsável pelas alterações de ordem e disciplina provocada pelos seus adeptos/simpatizantes, nomeadamente, quanto à entoação de cânticos, arremesso de objetos para o relvado e deflagração de engenhos pirotécnicos no interior do Estádio”). O TAD entendeu ainda expressamente o seguinte: a responsabilidade da Demandante pelo comportamento dos seus adeptos/simpatizantes não foi presumida, resultou antes da omissão dos deveres que impendem sobre a Demandante, e previstos nos normativos legais acima referidos.”
Será tudo isto correto, lógico? Tem isto sentido?
Não. Com efeito, do facto de os supostos adeptos - não identificados - praticarem as ações descritas nos artigos 204º/1, 208º e 209º do RD/FPF é impossível, natural ou juridicamente, retirar o facto da violação voluntária dos cits. deveres a cargo da ora recorrente.
O TAD, além de invocar os Acs. do Supremo Tribunal Administrativo emitidos nos Proc. 08/18, 33/18 e 75/18, entendeu ainda o seguinte:
a demonstração da realização pelos clubes de atos concretos junto dos seus adeptos/ simpatizantes destinados à prevenção da violência poderá afastar a sua responsabilização disciplinar.”
Será bem assim? Não, também, como veremos melhor.
2.1.3.
O princípio da culpa “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer conceção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena.” – cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 56.
Do ponto de vista da culpa, e, em síntese: “A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar” – cf. FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 109 e ss.

Quer dizer, sem culpa (censura ético-jurídica à ação ou omissão ilegais), em qualquer ramo ou sub-ramo de Direito punitivo, é impossível aplicar o princípio constitucional da proporcionalidade da pena disciplinar ou criminal ou da sanção contraordenacional à culpabilidade revelada na infração cometida.
E, tal como referido no Acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul de 26-09-2019, P. nº 74/19…, sublinhamos nesta sede o seguinte:
- o que o TC considera expressamente que o que está aqui em causa é o tema da violação subjetiva ou voluntária de deveres; e não a responsabilidade disciplinar por condutas voluntariamente praticadas por outras pessoas que são simpatizantes de outrem;
- normas como as resultantes dos artigos 204º, 208º e 209º do RD/FPF, criadas por uma entidade privada com poderes públicos, serão inconstitucionais quando entendidos assim: no significado literal dos mesmos; e ou significando (cf. artigo 9º do Código Civil) que os factos-resultado previstos naqueles artigos implicam necessariamente a responsabilidade (subjetiva, culposa) dos clubes ou SADs. Violariam dessa forma o princípio fundamental da culpa concreta, próprio do Direito sancionatório. Prova disto é que tal significaria que o responsável pela ação-resultado desviante seria outrem, atuante ou não atuante muito a montante, sem qualquer elemento de ligação causal natural ou jurídica entre o outrem a montante e o agente a jusante;
- juridicamente, há que distinguir sempre e em geral algo que parece simples: por um lado, (i) “dever a cargo das SADs de formação de cidadãos livres, maiores e imputáveis, e dever de vigilância desses mesmos cidadãos”; por outro lado, (ii) “ações violentas ou desordeiras praticadas por esses cidadãos”. O primeiro postulado lógico-natural-jurídico é o de que aqueles dois polos, para relevarem, necessitam de um ponto de conexão, uma ligação natural ou jurídica entre os dois, de uma causalidade natural ou jurídico-normativa entre os dois. Ligação causal, remota ou não, que não se demonstra existir aqui. São duas realidades ilícitas distintas. Pode haver uma sem a outra. E, como se disse, quanto às SADs, o que está em causa são aqueles deveres de formação e de vigilância, e não o que seja praticado por outrem;
- o mesmo o entende o TC para concluir haver aqui responsabilização subjetiva e não a inconstitucional responsabilização sancionatória objetiva. Caso não estivesse em causa a violação voluntária daqueles deveres, o TC nunca teria podido concluir que se tratava de responsabilização culposa. O que quer dizer que “a violação daqueles deveres” é o essencial do tipo legal de ilícito disciplinar aqui em causa, segundo o Supremo Tribunal Administrativo, o TC e segundo a Constituição. O que implica que o acusador tem o dever constitucional de afirmar e de demonstrar a violação daqueles deveres por parte do agente indiciado;
- o princípio da culpa é inabalável por meros juízos de suposta normalidade advindos de origem factual desconhecida ou não comprovada;
- aqui, a novel presunção de verdade dos relatórios dos árbitros e delegados (“oficiais públicos”?) nada tem a ver com os factos legalmente imputáveis aos clubes, i.e., os factos referentes aos deveres de formação e vigilância cits. em estádios próprios ou mesmo em estádios alheios.

Aliás, o TC, no Acórdão nº 730/95, teve o cuidado de referir que
"Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objetiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objetiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para a aplicação da sanção da interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes. E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (nº 7) e no artigo 6 (nº 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúrbios). Por fim, o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4) servirá precisamente para averiguar todos os elementos da infração, sendo que, por esta via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube).".

Note-se bem que, ali, o TC fala cuidadosa e significativamente em:
(i) violação de deveres pelos clubes, (ii) que as faltas possam ser imputadas aos clubes e (iii) na prova – pelo clube - de que o espetador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto.
Portanto, a não inconstitucionalidade foi ali decidida apenas no pressuposto expresso de que (1º) estava em causa uma violação culposa de certos deveres, (2º) a possibilidade (real) de essa violação ser imputada aos clubes e (3º) a possibilidade (real) de o clube provar que quem cometeu materialmente a infração não é simpatizante ou adepto.
Ora, se lermos o probatório e olharmos para a natureza das coisas, logo concluímos que nenhum destes pressupostos se verifica aqui.
2.1.4.
Considerando as infrações p. e p. pelos arts. 204.°/1, 208.° e 209.° (e 193º) do RD/FPF em causa nos autos, era, pois, necessário que o Conselho de Disciplina tivesse carreado aos autos prova suficiente de matéria fáctica no sentido
(1º) de que os comportamentos indevidos de certos indivíduos foram perpetrados por sócio ou simpatizante da F……………… - Futebol SAD,
e, ainda, (2º) de que tais condutas resultaram, normal e ou efetivamente, de um comportamento imputável a título de culpa à F…………….- Futebol SAD.
O que aqui não ocorreu. Basta ler o parco, mas essencial, probatório.
Na verdade, o TAD simplesmente presumiu (concluiu) que a ora recorrente falhou nos seus deveres (i) de formação de pessoas adultas e independentes e (ii) de vigilância, apenas porque ficou provado que alguns adeptos não identificados praticaram atos descritos nos artigos 204º/1, 208º e 209º do RD/FPF. Não existe qualquer nexo, real ou sequer possível, entre as duas realidades de facto, a presumida e a verificada.
Nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez a autora recorrente, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa atuação ou não atuação facilitou, causou ou permitiu o comportamento dos adeptos que é censurado; apesar de (i) a atuação culposa e (ii) a imputabilidade causal-objetiva serem elementos constitutivos das infrações, que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar.
Mais. É óbvia e completamente impossível à ora recorrente impedir manifestações vocais como as referidas e ficará sempre por demonstrar a efetividade de qualquer possível esforço pedagógico nesse sentido.
Responsabilizar disciplinarmente os clubes ou SADs pelas grosserias ditas pelos seus adeptos significa, portanto, puni-los por algo que, objetivamente, não estão em condições de prevenir ou evitar, o que equivale a uma responsabilidade objetiva, i.e., a uma responsabilidade disciplinar sem culpa.
Pelo referido até aqui, daríamos desde já razão à recorrente.
Mas, não nos devemos surpreender que estejamos perante várias questões ao nível dos meios de prova, do ónus da prova e até da natureza das coisas; em rigor, tais questões, embora importantes, encobrem algo de nível mais profundo e essencial.
2.1.5.
Pelo que devemos ir mais fundo, assim “explicando” o essencial acabado de referir.
Na verdade, os artigos 204º/1, 208º e 209º do RD/FPF são inconstitucionais, por violação do princípio constitucional da imputação culposa em matéria sancionatória (cf. artigos 1º, 2º e 32º da Constituição).
É que o único significado normativo de tais disposições regulamentares administrativas sancionatórias é, de um modo claro, o de a FPF (ter decidido que pode) punir uma pessoa pela conduta totalmente independente e voluntária de outra pessoa ( ente suscetível de lhe serem atribuídos direitos e impostas vinculações jurídicas).
É, simplesmente, punição sem culpa. Nem imputação subjetiva, nem imputação objetiva sequer.
Aqui, não há interpretação conforme a Constituição ou orientada pela Constituição que salve tais fontes de Direito administrativo disciplinar (artigos 204º/1, 208º e 209º do RD/FPF). A clareza da letra de tais fontes de Direito administrativo sancionatório não permite salvá-las perante a lei fundamental através da hermenêutica jurídica.
São, assim, por preverem punição sem culpa, disposições regulamentares administrativas jurídico-constitucionalmente imprestáveis, devendo ser desaplicadas pelos tribunais administrativos ao abrigo do artigo 204º da Constituição (“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados.”).
É o que aqui fazemos.
Portanto, a decisão arbitral ora recorrida deve ser revogada, porque, ao aceitar a aplicação de tais disposições, violou o princípio constitucional da imputação culposa em matéria sancionatória.

2.2. - SOBRE O ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO QUANTO À FIXAÇÃO DO VALOR DA CAUSA em 30.000,01 euros, com violação dos artigos 33º-b) e 34º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos
De acordo com o artigo 33º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, “nos processos relativos a atos administrativos, atende-se ao conteúdo económico do ato, designadamente por apelo aos seguintes critérios, para além daqueles que resultam do disposto no artigo anterior: … b) Quando esteja em causa a aplicação de sanções de conteúdo pecuniário, o valor da causa é determinado pelo montante da sanção aplicada.”
Porém, o TAD, surpreendentemente, integrou o caso presente no artigo 34º/1 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos: “Consideram-se de valor indeterminável os processos respeitantes a bens imateriais e a normas emitidas ou omitidas no exercício da função administrativa, incluindo planos urbanísticos e de ordenamento do território.”
Estando em causa a impugnação de ato administrativo que aplicou à impugnante F….. multas (i.e., sanções de conteúdo pecuniário), é claro que o TAD errou, pois deveria ter aplicado o artigo 33º-b) do Código de Processo nos Tribunais Administrativos e não o artigo 34º/1 cit.
Portanto, é manifesto que o valor da causa é de 9180,00 euros e não o valor fixado pelo TAD.

2.3. - SOBRE O ERRO DE JULGAMENTO DE DIREITO QUANTO À FIXAÇÃO DO VALOR DAS CUSTAS PROCESSUAIS, por inconstitucionalidade
Esta questão nada tem a ver com o Acórdão n.º 301/2009 do TC.
No caso presente, o valor da causa é de 9180,00 euros e as despesas com a arbitragem necessária ou forçada no TAD foram fixadas em 4890,00 euros, i.e., mais de metade do valor das multas impugnadas.
É o que resulta de um regime legal geral que reputamos de desproporcionado e restritivo do direito de acesso aos tribunais (vd. ainda o Voto de Vencido emitido no Acórdão nº 543/2019 do Tribunal Constitucional).
Dispõe o artigo 2.º da Portaria n.º 301/2015
«1. A taxa de arbitragem necessária corresponde ao montante devido pelo impulso processual do interessado e é fixada pelo presidente do Tribunal Arbitral do Desporto em função do valor da causa, nos termos do anexo I à presente portaria que dela faz parte integrante.
()
5. A fixação do montante das custas finais do processo arbitral e a eventual repartição pelas partes é efetuada na decisão arbitral que vier a ser proferida pelo tribunal arbitral, em função do valor da causa, nos termos do anexo I».
Por sua vez, da primeira linha do Anexo I da Portaria n.º 301/2015 resulta que nas causas de valor até 30.000 euros (como aqui ocorre), a taxa de arbitragem é sempre de 750 euros, os honorários do coletivo de árbitros somam 2.500 euros e os encargos administrativos 75 euros.
Há aqui, em geral ou sempre, uma automaticidade do apuramento das custas por referência ao valor da causa, em especial nas causas de valor até 30.0000 Euros, sem possibilidade de conformação pelo julgador em função das especificidades do caso concreto, que importa ponderar à luz do princípio constitucional da proporcionalidade.
Assim, para o TAD, entidade de jurisdição privada forçada, arbitrar um litígio no valor de cerca de 500 euros ou de 5000 euros, as custas, onde se incluem nesta sede os honorários dos árbitros, serão sempre superiores a 3200 euros.
É um absurdo notório. Uma tal situação tributária não faz sentido, não tendo lógica de justiça nem de proporcionalidade, que são exigidas pelos artigos 2.º e 18.º n.º 2 da Constituição também quanto ao acesso à tutela jurisdicional efetiva (artigos 20.º e 268.º da Constituição).
Não está justificado e não é justificável, justo ou equilibrado condicionar o acesso ao sistema judiciário com custas processuais de valor muito superior ao valor processual. O que, aliás adquire particular gravidade quando se trata de arbitragem necessária ou forçada, como foi o caso presente.
Em consequência, haverá que recusar a aplicação das normas extraídas dos preceitos legais dos artigos 2.º n.ºs 1 e 4 da Portaria n.º 301/2015 e da primeira linha da tabela do seu Anexo I, por violarem os princípios constitucionais da proporcionalidade e do acesso à justiça, na medida em que permitem conduzir a montantes de custas manifestamente desproporcionados, em face da natureza e complexidade do processo, bem como, e particularmente, em relação ao valor da causa e à utilidade que da arbitragem retiram os que nela litigaram.
Está em causa, sublinhamos (aliás, com o voto de vencido emitido no Acórdão nº 543/2019 do Tribunal Constitucional), um critério normativo que, por inconstitucional, deve ser desaplicado.
O critério normativo cit., apreciado à luz do princípio da proporcionalidade e do direito à tutela jurisdicional efetiva, independe de, no caso dos autos, o valor final envolvido das custas aplicadas representar ou não um valor particularmente significativo para qualquer dos envolvidos nesta concreta arbitragem em apreciação.
Se o regime legal das custas é inconstitucional, não pode ser aplicado em caso algum.

Ora, o legislador deve ter o cuidado de garantir que os tribunais arbitrais necessários têm um regime que assegure independência, imparcialidade e qualidade de decisão pelo menos equivalente à dos tribunais estaduais. Da mesma forma, é necessário garantir que a instituição de um regime de arbitragem necessária não redunda num caso de restrição constitucionalmente inadmissível do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 1, da Constituição). Efetivamente, não parece adequado recorrer nestes casos a uma fundamentação que diga respeito à arbitragem voluntária, como a celeridade dos julgamentos ou a suposta qualidade dos árbitros, já que, no caso da arbitragem necessária ou forçada, os cidadãos não têm escolha a não ser recorrer ao tribunal arbitral; logo essa fundamentação não procede.

Este limite à garantia de acesso à tutela jurisdicional efetiva é especialmente importante nas situações em que é instituído um regime de arbitragem necessária no âmbito do controlo jurisdicional de atos materialmente administrativos, como é o caso de (pelo menos) alguns dos atos praticados pelas federações desportivas abrangidos pela jurisdição do TAD (artigo 268.º, n.º 4, da Constituição).

O que é relevante aqui é ponderar se a introdução de um nível obrigatório de custas apurado, nas causas de valor inferior a 30.0000 euros, de forma automática e cega às diferenças, sem possibilidade de conformação pelo julgador em função das especificidades do caso concreto, é compatível com o princípio da proporcionalidade. Ademais, relativamente a uma entidade privada de justiça, a quem os cidadãos, clubes e SADs são forçados a recorrer se quiserem exercer o seu direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva.

Empreendendo a necessária ponderação dos interesses envolvidos, e na linha do que tem sido a jurisprudência do Tribunal Constitucional em matéria de custas judiciais - aqui necessariamente aplicável por se tratar da única via jurisdicional aberta aos cidadãos - conclui-se que a circunstância de a definição do montante das custas resultante dos referidos preceitos (i) assentar num critério de indexação automática ao valor da causa, (ii) sem consideração da concreta natureza e complexidade do processo, bem como da utilidade que da arbitragem forçada retiram os que nela litigaram, (iii) omitindo a possibilidade de o tribunal reduzir as custas a fixar, a não ser no caso de a arbitragem terminar antes da sentença final, não respeita o princípio da proporcionalidade, podendo mesmo, além disso, ter um efeito injustificadamente inibidor do acesso à justiça arbitral necessária.
Por outro lado, para a ponderação da afetação do direito de acesso à tutela jurisdicional efetiva pela norma em causa, é (juridicamente) indiferente que o TAD tenha nas custas processuais a sua principal fonte de financiamento. Não está em causa a opção do legislador de criar, neste âmbito, um tribunal arbitral necessário, mas o regime de custas aplicável. Se este tribunal concluir que este regime é inconstitucional, por restringir excessivamente o acesso à justiça, então deverá o legislador encontrar uma forma de financiamento alternativo que assegure a independência, a qualidade e imparcialidade dos “juízes arbitrais”.
Não cabe ao juiz ponderar opções de política legislativa. Uma coisa é Política Jurídica, outra bem diferente é o Jurídico; a primeira cabe aos autores das fontes de Direito, a segunda cabe aos juizes e demais profissionais do Direito.
Diga-se, também, que o nível médio de rendimentos das entidades desportivas envolvidas nos litígios que integram a competência necessária deste tribunal arbitral não é superior ao nível médio de rendimentos dos cidadãos em geral.
Poder-se-á afirmar que qualquer jovem praticante de desporto federado (na Federação Portuguesa de Natação, na Federação de Andebol de Portugal, na Federação Portuguesa de Judo, por exemplo), a quem seja aplicada uma sanção, tem um nível médio de rendimentos superior aos outros jovens da sua idade? Um clube desportivo da segunda divisão distrital tem um nível médio de rendimentos superior a uma associação equivalente?
É que a mesma norma da tabela de custas é aplicável indiferenciadamente a todos estes casos, o que poderá ter um forte efeito inibidor do acesso à justiça por motivos meramente económicos. Existe o risco de criação de um sistema judicial desportivo apenas para os agentes que tenham capacidade financeira elevada, ficando os restantes arredados do acesso à justiça, sem possibilidade de tutela.
Concluímos, portanto, que as normas citadas e aplicadas pelo TAD, em sede de fixação das custas (ou dos custos), são inconstitucionais, porque violam
(i) o princípio constitucional da proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição) e
(ii) o princípio constitucional da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º n.º 1, e 268.º n.º 4, da Constituição)
Daí não poderem ser aplicadas.
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III - DECISÃO
Nestes termos e ao abrigo do artigo 202.º da Constituição e do artigo 1.º, nº 1, do EMJ (ex vi artigo 57.º do ETAF), os juízes da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul acordam em conceder provimento ao recurso, alterar o probatório como referido, revogar a decisão arbitral e anular o ato administrativo punitivo impugnado.
Mais acordam em alterar o valor processual para 9.180,00 euros.
Não são devidas custas no TAD, devido à desaplicação do inconstitucional regime legal de custas no TAD nos termos atrás expostos.
Custas neste TCAS a cargo da FPF.
Not. o MP também para efeitos de recurso obrigatório para o TC.
Lisboa, 27-02-2020

Paulo H. Pereira Gouveia - Relator


Catarina Jarmela
[voto vencida]


Paula de Ferreirinha Loureiro
[Revendo a posição exarada no Acórdão deste Tribunal, por nós prolatado em 18/12/2019 no Processo nº 35/19.0BCLSB]

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Declaração de voto de vencida:

Voto vencida por entender que:

- não deveria ser anulado o acto punitivo impugnado pelas razões constantes do acórdão arbitral recorrido e da jurisprudência reiterada do STA (entre outros, Acs. do STA de 21.2.2019, proc. n.º 33/18.0 BCLSB, 4.4.2019, proc. n.º 40/18.3 BCLSB, 2.5.2019, proc. n.º 73/18.0 BCLSB, 19.6.2019, proc. n.º 1/18.2 BCLSB, 5.9.2019, procs. n.ºs 58/18.6 BCLSB e 65/18.9, e 26.9.2019, proc. n.º 76/18.4 BCLSB);

- face à procedência da questão relativa ao valor da causa (que implica a alteração do valor das custas, dado que os montantes da taxa de arbitragem e dos encargos do processo arbitral dependem do valor da causa – cfr. art. 2º n.ºs 1 e 5 e Anexo I, da Portaria 301/2015, de 22/9), encontra-se prejudicado o conhecimento da questão da inconstitucionalidade do valor das custas fixado pelo TAD.


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(1)Encerram um juízo ou conclusão e podem conter a decisão da própria causa.
(2) Conceito estritamente jurídico.
(3) Conceito estritamente jurídico.
(4) Conceito estritamente jurídico.
(5) II – A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da LPFP que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13º, alínea f) do Regulamento Disciplinar da LPFP, conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não é inconstitucional.
III – O acórdão que revogou a decisão do TAD, partindo do pressuposto que em face do princípio da presunção de inocência do arguido, não se poderia atender a quaisquer presunções como a resultante do relatório de ocorrências do jogo, incorre em erro de direito, devendo, por isso, ser revogado.

(6) I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional [LPFP] que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP [RD/LPFP], conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 02.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.
III - A responsabilidade disciplinar dos clubes e sociedades desportivas prevista no art. 187.º do referido RD/LPFP pelas condutas ou os comportamentos social ou desportivamente incorretos que nele se mostram descritos e que foram tidos pelos sócios ou simpatizantes de um clube ou de uma sociedade desportiva e pelos quais estes respondem não constitui uma responsabilidade objetiva violadora dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
IV - A responsabilidade desportiva disciplinar ali prevista mostra-se ser, in casu, subjetiva, já que estribada numa violação dos deveres legais e regulamentares que sobre clubes e sociedades desportivas impendem neste domínio e em que o critério de delimitação da autoria do ilícito surge recortado com apelo não ao do domínio do facto, mas sim ao da titularidade do dever que foi omitido ou preterido.
(7) I - A prova dos factos conducentes à condenação do arguido em processo disciplinar não exige uma certeza absoluta da sua verificação, dado a verdade a atingir não ser a verdade ontológica, mas a verdade prática, bastando que a fixação dos factos provados, sendo resultado de um juízo de livre convicção sobre a sua verificação, se encontre estribada, para além de uma dúvida razoável, nos elementos probatórios coligidos que a demonstrem, ainda que fazendo apelo, se necessário, às circunstâncias normais e práticas da vida e das regras da experiência.
II - A presunção de veracidade dos factos constantes dos relatórios dos jogos elaborados pelos delegados da Liga Portuguesa Futebol Profissional (LPFP) que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 13.º, al. f), do Regulamento Disciplinar da LPFP (RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2.º, 20.º, n.º 4, e 32.º, n.os 2 e 10, da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.